CORRESPONDÊNCIA. 41

21-03-2017 09:28

ANTÓNIO QUADROS, 24 ANOS DEPOIS

Comemora-se hoje o vigésimo quarto aniversário da partida de António Quadros, inseparável amigo e condiscípulo de António Telmo no magistério filosofal de Álvaro Ribeiro e José Marinho. Assinalamos a efeméride com a publicação de uma carta do autor de Portugal, Razão e Mistério para Telmo, motivada pela leitura, então muito recente, da História Secreta de Portugal, o célebre livro télmico que no ano em curso completa quarenta anos de publicação. 

22.6.77

           Meu caro António Telmo:

 

Como deve calcular, li o seu livro com entusiasmo. É uma obra antes de mais nada corajosa, susceptível de abrir perspectivas a muitas pessoas que de nada “suspeitavam”. Você foi, como costuma dizer-se, para a cabeça do touro, abordando de frente e coerentemente, toda uma problemática oculta, mas sem a consideração da qual é de facto impossível começar a compreender satisfatoriamente a nossa história.

A sua maior vantagem é aliar conhecimentos esotéricos a uma reflexão filosófica sempre de qualidade, quer na fundamentação, quer no raciocínio.

Há no seu livro intuições e análises magníficas, em especial as questões relacionadas com as ordens do Templo e de Cristo, com os Jerónimos, Boitaca – sendo de realçar a sua “descoberta” da referência simbólica, nos Jerónimos, à iniciação de Nicolau Coelho, bem como a conotação estabelecida com Camões.

Ficamos a dever-lhe, pois, algumas contribuições essenciais para o conhecimento do Portugal profundo e do projecto ou dos projectos que assumiu, viabilizou e acabou por frustrar.

Pessoalmente, o seu livro suscitou-me interrogações e até o que diria serem objecções, não fosse admitir, por um lado a superficialidade da minha 1.ª leitura, e por outro lado, o escopo das suas intenções (não-histórico).

Por exemplo: a sua “História…” parece-me demasiadamente limitada no tempo; e antes do século 16? e antes da Ordem de Cristo? E antes da fundação da nacionalidade? É que há talvez (decerto) história secreta, com a civilização dolménica, com Tartessos e Creta, com os lusitanos, celtas e visigodos (os godos sábios), com a aliança dos príncipes borgonheses com a Ordem de Cister e a do Templo (S. Bernardo, confrarias de pedreiros, etc.)…

Parece-me que você também silencia em excesso as questões do Culto do Espírito Santo, dos “espirituais”, de Joaquim de Flora e dos Franciscanos portugueses, de D. Dinis e D. Isabel de Aragão, da transformação do Templo na de Cristo – e em especial nos problemas de interpretação iconográfica dos símbolos de Tomar; a Teodomar dos visigodos é um centro marcado e note a importância do triângulo Tomar – Santarém – Batalha / Alcobaça, dentro do qual se situa Fátima.

A sua divisão da história portuguesa em ciclo dos Reis, do Clero e do Povo – que é sem dúvida muito fecunda, ganharia a meu ver (até sob os pontos de vista que você defende) em ser enriquecida com um outro ciclo – Templários / Ordem de Cristo, qualitativamente diferente dos restantes; seria balizado por D. Dinis e D. Manuel, tendo como coordenadas principais o templarismo e o paracletismo. Antes 4, pois, do que 3 ciclos.

Não sei se concorde com a sua data-limite de 1513, para além da qual o projecto manuelino teria mudado de rumo; algumas das referências em que você se baseia não me parecem muito sólidas: assim, por exemplo, o Convento e Igreja de Belém foi doado aos Frades Jerónimos antes do início da construção – e é muito curioso observar que, em troca, o Rei ofereceu à Ordem de Cristo um edifício de Lisboa que tinha antigamente pertencido aos Templários… Por outro lado as razões para retirar Boitaca dos Jerónimos não têm a meu ver relação com qualquer decisão de tipo secreto, já que ele continuou a trabalhar no mesmo sentido noutros lugares. E… tem você a certeza de que as Capelas Imperfeitas foram interrompidas antes da morte de D. Manuel? Tenho de estudar o assunto, mas julgo que foi na verdade a morte do Rei que as interrompeu.

A sua indicação sobre o papel secreto de Boitaca, como um iniciado, parece-me no entanto uma descoberta importantíssima. O enigma da sua nacionalidade ainda se mantém; mas, sendo o iniciador da arquitectura manuelina, com a Igreja de Jesus em Setúbal, pode ter sido o pontífice de dois caminhos: o do passado cisterciense-templário, e o do novo mundo português-imperial e templário renovado. O seu estudo ficaria mais completo se você tivesse podido descobrir alguma coisa sobre Diogo de Arruda, a quem, afinal de contas, foi confiada arquitectura não menos importante do que a de Belém: a transformação da Charola de Tomar, a sua abertura para a nova Casa do Capítulo, e as famosas Janelas.

Agradeço a referência à “Estética Existencial”; no entanto, retomo o assunto de um ângulo mais profundo em “O Movimento do Homem”, apontando os Jerónimos como o novo Templo de Salomão, o Templo Universal, situado em Belém, sob a estrada ou a estrela condutora desta vez para o Ocidente e tendo como orago os Magos.     

Outro ponto que seria fecundo considerar, seriam as relações, até arquitectónicas, entre o Manuelino do sec. 16 e o nosso Barroco dos séculos 17 e 18, pois há tão fundas relações entre eles, como há entre o sebastianismo projectual de Camões e o sebastianismo mitológico de A. Vieira.

Temo estar a ser insuportavelmente pedante, mas espero que não me leve a mal. É que o seu livro avivou uma das minhas preocupações mais constantes e antigas, fazendo emergir um tropel de ideias e reflexões. Vou relê-lo com redobrada atenção e talvez descubra que tem uma unidade não compatível com as minhas divagações!

Também li e apreciei, os seus artigos em “Escola Formal”.

                                                                                                  Até qualquer dia,

                                                                                                                      Seu velho amigo,

António Quadros