CORRESPONDÊNCIA. 21

19-04-2015 14:48

CARTAS DE ANTÓNIO TELMO PARA ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO. 04

Estremoz, 9 de Dezembro de 1995

 

Querido Amigo

 

Pede-me para lhe escrever e eu, que nunca lhe falei do seu belo trabalho in Galicia quando passou por Estremoz depois de tanto tempo passado sobre o seu envio, acordo agora com o carteiro a bater-me à porta trazendo-me a mais bela e inteligente carta que em minha vida recebi, a ao Afonso Botelho, ao filósofo exemplar que sempre me lembra Rabelais e o misterioso oráculo. Ao mesmo tempo, vieram um opúsculo de Francisco Soares (magnífico da filologia para a filosofia) e um livro de Luís Pacheco satirizando admiravelmente a vida literária.

Há muito tempo que não escrevo para gáudio dos pequenos diabos que têm passado pelo meu destino. Vai-me desculpar de lhe vir tomar o tempo falando-lhe do que der e vier sobre o assunto da sua carta. Só escrevendo poderei talvez ficar a saber o que eu penso sobre a saudade, estimulado pelas suas palavras de apreço sobre quanto deixei na Gramática. Faço, porém, minhas as linhas que escreveu no primeiro parágrafo da página 5 da sua Carta. Que felicidade a sua em saber como ali escrever tão bem! É tal e qual como diz o que se passa comigo, só que não o sei dizer assim. Elas, essas linhas, servem-me porém como o serviram a si para que não se pense que pretendo ensinar de cátedra.

Começo por lhe comunicar uma coincidência impressionante que descobri depois de ter sido publicada a Gramática. O mundo da Formação (que os cabalistas assim designam) é o que corresponde na árvore dos fonemas ao triângulo das líquidas:

 

          ~

N__________M

          L

 

O R, líquida também, mas vibrante por excelência, corresponde ao plano da Fabricação. Está lembrado, não é assim?

Na terminologia de René Guénon, diferente da da Cabala, o R corresponderia ao mundo grosseiro, o M, o N e o L ao mundo subtil. Os dois mundos que se lhe sobrepõem são, no mesmo Guénon, os mundos informais, dado que só os dois últimos se caracterizam pela forma. A coincidência é a seguinte: na árvore dos fonemas imaginada por mim, o M, o N e o L estão sob o til, a pura ressonância (sub til). Isto, que descobri depois, é um dos sinais de que a árvore está certa com o que ela significa, como me foi um outro sinal, também só depois de ela ter nascido no espelho do meu espírito, o facto das iniciais de Jesus Cristo (em grego, língua dos Evangelhos, o I e o X) terem, por necessitação matemática, o seu lugar em Tiphereth, sephira donde irradiam todas as outras menos a décima, e que é o centro ou coração do Universo.

Pedi ao desenhista que compôs a capa do meu livro que ali pusesse a vermelho as três ressonâncias subtis em caracteres hebraicos. Na língua portuguesa, esta tríade com o R é constituída pelas consoantes que são final de palavra. Éden, som, sal, ir. O S, o Z e o X também aparecem na mesma posição, mas sem formar ditongo. São puros sopros. Têm, por isso, de ser interpretados diferentemente. Não são crepusculares ou outonais. O Câmara Júnior é o único linguista que vi classificar como ressonâncias os fonemas sob o til.

O mundo subtil ou intermediário entre o mundo grosseiro e o munda da inteligência é, como sabe, o reino da imaginação. É ali que a imagem reflecte e recebe a ideia, é dali que a imagem desce a formar o corpo, movimentada pela energia física que o R, a vibrante, representa. A Física, enquanto ciência, não vai além deste plano, a da energia enquanto força física. Os ocultistas, pretendendo estar de acordo com a ciência, não se cansam de proclamar que tudo é energia, que esta é a noção das noções, a pedra filosofal. Só a Arte Poética ou simplesmente a Poética pode perceber e activar essa energia bem mais subtil que um iluminado francês caracterizou como a do Mundo Imaginal.

E que nós devemos caracterizar como a da saudade, ali onde se casam o Céu e a Terra, ali “onde a Terra se acaba e o Mar começa”. Veio-me um dia a ideia de que Portugal é um barzakh, um entre-dois, nem isto nem aquilo, mas onde isto e aquilo transitam de um para outro. País da saudade e da imaginação intermediária entre o corpo e o espírito. A saudade é assim a actividade essencial da alma.

Pede-me o meu Amigo para dar opinião sobre o modo como na sua carta fala de Álvaro Ribeiro, quando, entre outras certeiras asserções, refere que “nas poucas vezes em que ele se dignou tratar do problema da saudade o tenha sempre abordado como um problema da solidão”, explicando depois: “quer dizer como um problema de filosofia existencial, problema a que ele era pouco sensível, não que a filosofia existencial não lhe pudesse interessar mas porque à solidão preferia a convivência, antepondo assim o amor à saudade.” Eu direi, divergindo daqueles que antepõem a saudade ao amor, que ela e ele são o anverso e o reverso da mesma relação, quando essa relação se dá totalmente. Vejo assim: a saudade é o amor em que o feminino está ausente e a sua forma presente, o amor é a saudade em que o feminino está presente e a sua forma ausente; naquela vive-se a ausência do feminino na forma que o torna presente, neste vive-se a ausência da forma no feminino que a torna presente. E esta duplicidade que ata os mundos ou, noutras palavras, que faz que o mesmo mundo seja simultaneamente espírito e carne não sendo nem um nem outra.

É deste modo que me parece possível pôr alguma objecção ao Álvaro Ribeiro, quando antepõe o amor à saudade. E digo só deste modo porque se enganam quantos interpretam o racionalismo do Álvaro Ribeiro como aristotelismo, pegados à falsa ideia de que o aristotelismo se opõe ao platonismo como um pensamento da Terra perante um Pensamento do Céu. Para Álvaro Ribeiro é na contemplação que reside o princípio da filosofia, tal como para José Marinho, mas, enquanto o primeiro haure na contemplação os princípios e as formas, isto é, as ideias que a razão pensa e transforma em acção, o segundo vai nela colher os movimentos que nos dêem asas para sair do mundo. Daqui que um anteponha o amor á saudade e o outro a saudade ao amor, não esquecendo que ambos são uma relação do masculino com o feminino. Aqui também, como para Portugal, temos que pensar um entre-dois.

Eis o que me foi dado tirar da sua carta. É muito? É pouco? Não é nada? Talvez bem mais decisiva do que me foi dado pensar a partir dela é a impressão que recebi ao ler a sua carta, ao sentir nela a expressão de uma das mais belas almas que me foi dado encontrar ao longo da vida. Certas frases dela fizeram nascer em mim uma emoção quase divina, como, por exemplo: “…a palavra cujos sons são luz visível”, “signo sumptuoso, que cauteriza a cisão babélica”, “ a alta e montesina nascente de Pascoaes”, “água boa e pura, de limpidez imperturbável”.

Meu caro confrade no neoplatonismo, que vê palavras e ouve luzes, estou feliz por lhe enviar esta carta na quadra de Natal, por lhe poder enviar os votos das maiores felicidades em modo litúrgico.

Um abraço do seu amigo e admirador

António Telmo