CORRESPONDÊNCIA. 20

12-04-2015 17:57

CARTAS DE ANTÓNIO TELMO PARA ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO. 03

[António Cândido Franco entre João Raposo Nunes e António Quadros, na Livraria Universo, em Setúbal]

 

 

Estremoz, 15 de Dezembro de 1999

 

Meu muito estimado Amigo

Deixei-me primeiro desenvencilhar o espírito de preocupações práticas. O endereço do Pedro Sinde é (…). Gostaria que me apresentasse o livro[1] em Setúbal. O José Manuel[2] tem servido de intermediário para o João[3] da Universo. Fiquei com o número do seu apartado no Correio de Cuba, igual ao da minha porta, mas, se o quiser visitar com este corpo em que levo a alma, não sei que casa hei-de procurar. Para lhe roubar meia hora, não mais, pois sei que para si o tempo é sempre pouco, ao contrário do que é para mim que tenho andado para aqui a arrastar esta preguiça.

Quando me desculpava ao Álvaro Ribeiro com a preguiça por não escrever, ele dizia-me ser a preguiça só uma palavra, que deveria ver a que correspondia. Leonardo não sei onde dá-a como egoísmo. Eu, por mim, penso hoje que é uma espécie de descrença nos homens para quem trabalharmos. “Para quê?” perguntava aquela alma do Regresso ao Paraíso e punha a pergunta como um pecado na balança. E a sagrada balança estremecia. Como eu estremeço ao ler estas suas palavras de novo deus da literatura: “…o seu livro bate às portas do Céu e ali tem sido atendido. O seu livro poupa à pobre e desamparada humanidade algumas catástrofes. Ele ajuda a despertar o Deus que dorme.” A pobre e desamparada humanidade! Então sempre a preguiça é egoísmo. E se por acaso fosse assim mesmo? Se com o pensamento se impedissem catástrofes? Nunca acreditei que tivesse esse poder. Afinal, a descrença não é naqueles que me possam vir a ler, é em mim próprio. Hoje, pelo menos, como ontem ao ler o Jornal de Letras[4], as suas palavras tiveram o condão de levantar do abismo do desalento este pobre e desamparado homem. É bom ter amigos. Ter Amigos. Amigos.

Bem sei que há dois. Um desamparado e pedinte, outro senhor de si e da palavra que faz ver. A preguiça é com o primeiro; com a glória o segundo. Mas este segundo já não somos nós, mas o Deus que desperta. E há ainda aquele que está entre os dois e que é, no meu caso, aquele que lhe escreve esta carta.

A sua sugestão de escrever um conto para cada um dos sentidos humanos fez-me lembrar uma discussão habitual à mesa do Café da Brasileira sobre qual dos sentidos, o da vista ou o do ouvido, era medianeiro do mais profundo conhecimento. Argumentavam uns e outros com as primeiras páginas da Metafísica de Aristóteles. Hoje vejo que é legítimo pôr a mesma interpretação relativamente ao olfacto, ao paladar e ao tacto. Dou-lhe inteira razão no que sugere. A verdade, porém, é que eu, no conto, descrevo uma experiência real, em grande parte passada comigo. A Arte de Olhar é uma história que deve ser lida à luz da minha relação com o poeta austríaco Max Hölzer noticiada em Trabalho de Grupo. Não é que ele ensinasse a arte de olhar ou de ver (esta é uma maneira minha e desviada ou substitutiva de contar a coisa). O que ele ensinava era a estabelecer contactos por um processo análogo ao que descrevo no conto. Sensação, não imagem (visual ou sonora), ou não muito como um gosto à maneira dos sufis…Mas, ao princípio era o Verbo. Daí o Leonardo Coimbra e a teoria da ressonância.

Eu gostei muito do seu escrito no Jornal de Letras. Admiro tudo quanto escreve, mas há o pior e o melhor e a notícia sobre mim e os meus contos é do melhor. Admiramo-nos, escrevemo-nos como o fizeram outros antes de nós. Porém, o que me parece importante é que sendo ambos artistas do dizível admiramos o mesmo indizível ou indivisível ou invisível no qual vivemos e somos. O António Cândido tem-lhe chamado o Nada. Na mesma linha deve situar o seu anarquismo. Também eu sou anarquista perante uma política sem príncipes ou princípios, sem arqueus e com gente arquiestúpida. Onde é que foi arranjar essa da minha democracia? O povo que criou a língua não é o mesmo que vota nas eleições. A cidade de Deus não se faz com votos, nem com desejos, nem com opiniões. A cidade de Deus não é, não será fruto da doxia, orto ou hétero. É um paradoxo que só os poetas-filósofos estão em condições de conceber. Não acha?

O paradoxo de… (perdi a ideia). É difícil. Paciência. Não será esta ausência o sinal de que devo pôr fim a esta carta?

Um grande abraço do seu muito amigo   

 

António Telmo



[1] Nota do editor - António Telmo refere-se ao seu livro Contos, publicado em 1999 pela Árion. António Cândido Franco é o dedicatário público do conto “Doutoramento e Incesto”.

[2] Nota do editor - José Manuel Capêlo, editor da Árion.

[3] Nota do editor - João Raposo Nunes, poeta e livreiro. Proprietário da Livraria Universo, em Setúbal.

[4] Nota do editor – António Telmo refere-se ao artigo “António Telmo – Fábulas com pinturas”, que António Cândido Franco publicou, sobre os Contos, na edição de 1 de Dezembro de 1999 de JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias.