30 DE MAIO, ÀS 15:00, NA BIBLIOTECA MUNICIPAL DE SESIMBRA: LANÇAMENTO DE «UM ANTÓNIO TELMO: MARRANISMO, KABBALAH E MAÇONARIA»
Um António Telmo: Marranismo, Kabbalah e Maçonaria, livro de Pedro Martins prefaciado por António Carlos Carvalho que será o título inaugural da Colecção Thomé Nathanael - Estudos Sobre António Telmo, é lançado no próximo dia 30 de Maio, em Sesimbra, com a chancela da Zéfiro, na segunda Tarde Télmica de 2015. A apresentação estará a cargo de António Carlos Carvalho e de Miguel Real, numa sessão que contará ainda, como palestrantes, com o Professor Moisés Espírito Santo, que falará sobre o marranismo, e com Alexandre Teixeira Mendes, que evocará Artur Barros Basto. Antecipamos aos leitores, em modo de pré-publicação, um trecho de "Agostinho da Silva, o marrano do Divino", o longo ensaio inédito com que abre o livro.
10. Agostinho da Silva, como vimos, faz notar que os judeus não levantavam oposição alguma a assistir reverentemente ao culto do Espírito Santo. Por quê?
Encontramos porventura um princípio de resposta a esta minha pergunta nalgumas palavras suas, proferidas na derradeira entrevista de imprensa que concedeu: «Não há propriamente, nem no que se vê no Brasil, nem na Califórnia, nem na documentação portuguesa, o culto de Deus na festa do Espírito Santo; há o culto do Divino, o culto da obra de Deus.»[1]
Não será afinal o culto da obra de Deus o culto do aspecto criador da Divindade, desde que, muito franciscanamente, saibamos ver o Criador na criatura? Ora isto conduz-nos em linha recta à essência do judaísmo, dado que este, como sabemos, presta preferencialmente culto a Elohim, o Ser Criador.
Em Origens Orientais da Religião Popular Portuguesa, logo no começo do capítulo sobre “O Culto do Divino”, Moisés Espírito Santo é peremptório em afirmar o que não devemos ignorar, tanto mais que é o resultado de um fecundo trabalho de investigação, escorado num conhecimento sólido das religiões monoteístas, na tradição etnográfica portuguesa e em décadas de trabalho de campo:
O culto português do Espírito Santo não tem equivalente no mundo cristão. Tentaremos ao longo deste capítulo justificar uma reivindicação dos Cristãos-Novos que diz: «O Espírito Santo é nosso, não deles», referindo-se aos cristãos-velhos. O culto vem directa e inteiramente da tradição hebraica.[2]
A argumentação expendida pelo eminente sociólogo é opulenta, o que o leitor, querendo, verificará. Não a poderei reproduzir aqui, como facilmente se compreende. Mas avançarei, ainda assim, algumas das linhas essenciais da respectiva leitura.
Depois de acentuar que o Espírito Santo entre nós cultuado popularmente não é a terceira pessoa da Santíssima Trindade, tão pouco o Paráclito, «princípio de ordem intelectual ou espiritual que inspira os santos e os profetas, expresso na língua hebraica por rwah», o etnólogo das religiões mostra que o Espírito Santo do culto popular português é
«vida ou força»; isto é, a força ou princípio vital que, na visão de Ezequiel, anima os ossos ressequidos. O Espírito Santo popular equivale ao próprio conceito de vida. Este conceito coincide com a mais antiga tradição semita. As significações das múltiplas referências que faz o Antigo Testamento ao Espírito Santo coincidem todas com o conceito popular português e com as razões do seu culto nas Beiras.[3]
Escrevendo duas décadas antes de Moisés Espírito Santo, afirma Álvaro Ribeiro em A Literatura de José Régio: «Ao longo do Velho Testamento vai-se verificando que Deus é Espírito Santo, ao qual Jesus se sentia unido quando o seu pensamento místico lhe aparecia como inspirado, extasiado, entusiasmado.»[4] Claro que é aqui outra, ao menos em parte, a acepção em que o filósofo se refere ao Espírito Santo. Mas o etnólogo, como vimos, regista-a igualmente.
No excerto de A Literatura de José Régio dado à epígrafe do livro que o leitor tem entre mãos, Álvaro Ribeiro, sublinhando a influência cultural, latente e oculta, do povo hebraico sobre a Península Ibérica, após a sua expulsão e a despeito desta, considerava que essa influência ainda não tinha sido assaz reconhecida por etnógrafos e historiadores. A obra de Moisés Espírito Santo parece ter vindo cumprir, pelo menos em parte, o desígnio do criador do movimento da Filosofia Portuguesa…
Para o que aqui nos move, retenha-se agora, do citado livro daquele etnólogo, esta passagem, que muito nos pode interessar:
Em Nisa, no século passado, o cerimonial, que incluía, como em toda a parte, abate público de animais, foi visto deste modo: «Das confrarias, a primeira é a do Espírito Santo, que começou logo nos princípios da vila, e consiste na reunião de alguns jovens lavradores com o fim de invocarem aquele Divino criador e vivificador em nome da classe a que pertencem, para as suas plantações e sementeiras e, como documento dos benefícios que dele têm recebido, ostentam como troféu no alto do pendão as primícias da colheita do ano anterior. Para lhes oferecerem estes cultos, erigiram-lhe uma capela, alevantaram um estandarte, no alto do qual puseram um molho de espigas e um bolo, emblemas da agricultura, e para exprimirem a sua majestade e grandeza nos dias de maior festividade, improvisam um imperador vestindo um mancebo na púrpura dos Césares e cingindo-lhe a coroa e o diadema, cercando-o e acompanhando-o com espadas em punho como guarda pretoriana […]».[5]
A referência ao Divino criador e vivificador, feita por José Dinis da Graça Motta e Moura na sua Memória Histórica da Notável Vila de Niza, obra que Moisés Espírito Santo aqui extracta, remete-nos, precisamente, para o Ser Criador, para esses Elohim que constituem o aspecto criador da Divindade e a que o judaísmo, na visão de Benzimra, presta o seu culto electivo. A tradição hebraica dá o nome de Shekinah à Presença divina neste nosso mundo, aspecto feminino da Divindade que maternalmente sustenta a Natureza, alimentando a vida. Sendo através de si que a criação se concretiza na materialidade, corresponde-lhe, na tradição cristã, o Espírito Santo. Tudo isto pode o leitor religar…
Ao verificarmos que a celebração judaica do Pentecostes foi adoptando designações como a de Festa das Colheitas (no hebraico, hag haqasir, tratando-se aqui da ceifa dos cereais) ou a de Festa das Primícias (no hebraico, yom habikurim, estando em causa a oferenda, a Deus, dos primeiros grãos, dos primeiros frutos da terra a serem colhidos na sega), não podemos deixar de esboçar um sorriso, sabido como a Festa do Espírito Santo culmina em tempo de Pentecostes.
Não transcrevi na íntegra o excerto de Motta e Moura apresentado por Moisés Espírito Santo, mas a oferenda de primícias, digo-lo agora, será ali motivo reincidente.
Talvez enfim se perceba melhor por que razão os judeus medievos não levantavam oposição alguma a assistir reverentemente ao culto do Espírito Santo. Porque o sentiam, sabiam seu. Como por certo o sentiram, séculos a fio, muitos dos marranos de que Agostinho da Silva se constitui afinal como um ilustre representante no século XX.
[1] Agostinho da Silva, “«A Península Ibérica deveria ser guia do mundo!»”, in Raio de Luz, n.º 203, de 30 de Setembro de 1993, entrevista conduzida por Pedro Martins, António Ladeira, José Pedro Xavier, e publicada em Agostinho da Silva em Sesimbra, de Pedro Martins e António Reis Marques, Setúbal, Centro de Estudos Bocageanos, 2014, pp. 143-155.
[2] Moisés Espírito Santo, Origens Orientais da Religião Popular Portuguesa seguido de Ensaio de Toponímia Antiga, Lisboa, Assírio & Alvim, 1988, p. 109.
[3] Idem, ibidem.
[4] Álvaro Ribeiro, A Literatura de José Régio, Lisboa, Sociedade de Expansão Cultural, 1969, p. 355.
[5] Moisés Espírito Santo, Op. cit., p. 122.