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DISPERSOS. 18

10-01-2021 14:03

Carta (inacabada) a António Cândido Franco*

 

A linguística não se distingue da Kabbalah por considerar o que a palavra tem de social, deixando para a arte poética, que a segunda é, o que ela tem de meta-social ou de metafísico. Ao definirem a língua como um meio de comunicação, os linguistas têm inteira razão. Não é pensável língua sem, pelo menos, dois; o seu conceito implica sempre a existência de um emissor e de um receptor. Falamos e escrevemos conversando.

O que é capaz de distinguir a linguística da Kabbalah é a diferença entre a língua entendida como fonação e a língua entendida como audição. Os macacos não falam nem podem falar não é porque não possuam órgãos capazes de proferirem sons, mas porque não têm ouvidos para fonemas. É o facto de o homem possuir o ouvido que falta nos macacos que lhe permitiu adaptar e utilizar para a emissão de palavras órgãos que a natureza não produziu para falar, mas para comer e para respirar. Eu não penso, todavia, que a linguística seja tão oposta ou, pelo menos, tão distinta da Kabbalah em linguistas tais como Emílio Benveniste, Eduardo Sapir e Benjamin Lee-Worf e, talvez, Noam Chomski e Roman Jacobson. Donde veio oposição à Kabbalah foi dos alemães. O estruturalismo que é, como se depreende dos nomes acima referidos, um movimento judaico de reacção no século XX à linguística alemã que dominou todo o século XIX, deve ser interpretado como o modo que a Kabbalah encontrou de se revestir da aparência de uma ciência exacta.

É que a linguística surge no princípio do século XIX como uma disciplina científica, é no modo de se apresentar como ciência que reside a sua força. Ninguém ignora o poder deste moderno estratagema mágico. Só os nomes carregados de valores e, portanto, capazes de produzirem emoções são eficazes socialmente. A modernidade pode ser caracterizada pelo prestígio da palavra científico. Todavia, qualquer sistema de pensamento para se apresentar como científico tem de satisfazer certas condições.

A linguística começou por ser fonética, isto é, por dissociar a palavra do sentido, de modo a tomá-la como pura materialidade.

A intromissão do sentido viria pôr em perigo o rigor da ciência que se pretendia fundar. Era necessário que a língua se pudesse estudar como fenómeno material, analogamente ao que acontece com o objecto das outras ciências.

É um acaso significativo a semelhança acústica da palavra fenómeno com a palavra fonema e de nómeno com nome (nomen). O kantismo está por detrás de Franz Bopp. Os nomes, na fonética alemã do princípio do século XIX, são considerados fora dos seus sentidos como associações de fonemas, sujeitos a transformações ao longo dos tempos, cujas leis (de associação e de mutação) a nova ciência vinha determinar. O conhecimento destas leis constitui a base da linguística histórica e comparativa.

Com a descoberta do sânscrito, os linguistas alemães embandeiraram em arco. As conhecidas afinidades da filosofia alemã com o pensamento hindu encontraram a sua ressonância na linguística. Franz Bopp começou a escrever a sua Gramática Comparada das Línguas Indo-Germânicas e não ainda das línguas indo-europeias. O sentido da designação é flagrante: As línguas indo-germânicas constituiriam um grupo perfeitamente distinto das línguas semitas e o mito pelo qual o hebreu era tido pela língua primordial da humanidade não poderia resistir à demonstração rigorosamente científica do indo-germânico, depois indo-europeu, como a língua original de onde teriam derivado as línguas do mundo civilizado. Diels, outro alemão, veio depois completar o empreendimento de Bopp com a Gramática Comparativa das Línguas Românicas.

Esta finalidade teve como meio instrumental a fonética e por tal modo que a Kabbalah e os seus métodos – a temuria, a guematria e a notaria – ficaram completamente desprestigiados. O combate não foi explícito e declarado. Passou pela destruição do Crátilo de Platão, cujos princípios e cuja doutrina, quando não foram ridicularizados, passaram a ser identificados com a pré-história da linguística. Ainda hoje é corrente afirmar que o próprio Platão não acreditava no que escrevera e que o escrevera para o ridicularizar.

Na verdade, o que acontece é que a gramática de Platão nada tem que ver com a fonética dos alemães, embora esta que nada tem que ver com aquela tenha servido para destruí-la. A oposição aqui entre a linguística e a arte poética é completa. O objecto de estudo não é o mesmo, não é o mesmo o método, o fim também não é o mesmo. Dar a linguística como o resultado de uma evolução que teve início no Crátilo é um erro, se de erro se trata, análogo ao que se comete quando se deduz a química da alquimia ou a astronomia da astrologia.

São diferentes quanto ao objecto. O objecto da fonética alemã é a fala; o da gramática antiga a escrita. Da primeira é o falar vulgar e comum; da segunda os textos poéticos (de Homero, Hesíodo, etc.).

São diferentes quanto ao método. Dou o exemplo do modo pelo qual se determinam os étimos. Para Platão as palavras primitivas são os fonemas enquanto sentidos; para os foneticistas palavras historicamente anteriores que se encontram por comparação de palavras de línguas diferentes. Aqui o sentido não tem qualquer relevância. No Crátilo, o fim é o conhecimento dos nómenos; nos modernos o conhecimento das leis que regem os fonemas enquanto fenómenos.

Esta tríplice diferença foi propositadamente construída. A compatibilidade entre a linguística e a arte poética é possível. O estruturalismo deve ser compreendido, no seu melhor aspecto, como uma feliz tentativa de realizar esta compatibilidade. Falarei disso mais adiante, dando as provas do que afirmo. Por agora, lembro apenas que Ferdinand de Saussure baniu a fonética dos estudos linguísticos, repelindo-a para o domínio das ciências acústicas por não ter em conta significado, sem o qual a linguística fica sem objecto.

No combate que desencadeou contra a Kabbalah, a linguística alemã começou por fazer três coisas. Aboliu a distinção entre vogais e consoantes que as dava como os elementos de uma oposição em que só as primeiras eram fonemas. Repare-se bem nisto porque é muito importante. A manter-se a distinção punha-se em questão a sólida materialidade da língua, indispensável para a fundação da nova ciência. Na fala, haveria sons que em si não eram sons: as consoantes; sons que só se manifestam como tais com o suporte de uma vogal. Vozes só as vogais.

A segunda coisa que fez, que deriva desta, foi a de condenar o estudo dos fonemas pelas letras, entendendo estas, evidentemente, como a representação visual daqueles. Como acontece, porém, que as letras, nos alfabetos anteriores ao grego, não registavam as vogais, elas não devem ser interpretadas como transcrições de fonemas, pois que as consoantes são, nesses alfabetos, o que não tem som próprio. O registo das vogais no alfabeto grego não significa um progresso, mas sim uma decadência. A fidelidade à sabedoria gramatical mais antiga permanece na filosofia grega, uma vez que no Crátilo, no Sofista, no Theeteto e no Filebo só as vogais recebem o nome de fonemas (tá phonéênta).

A terceira coisa, que deriva da primeira e da segunda, consistiu em identificar a língua, não com a forma superior que recebe nos textos poéticos, mas com a fala comum, que é a adaptação à vida prática daquilo que foi criado para outros fins.

Estes três momentos ou movimentos da linguística alemã foram indispensáveis no processo de materialização da linguagem humana.

Na verdade, sabemos nós o que é uma língua? O que é isso que só existe pelo uso que dele fizermos? Só é enquanto acto. Os dicionários são cemitérios de palavras.

Podemos distinguir vários usos de uma língua: o uso proposicional, o lúdico, o uso afectivo, o uso prático, etc. A sua verdadeira forma, aquela em que se realiza inteiramente como acto puro, é a poética. Aí é que devemos surpreender as verdadeiras relações dos elementos viventes que a constituem. O uso que dela fazem os homens está completamente condicionado pela qualidade dos interlocutores.

Verificamos por este caminho que, na prática, ou seja, na vida social nascida de finalidades práticas, entre o significante e o significado não há uma relação necessária. É o que Sócrates admite na terceira parte do Crátilo. A linguística fundada por Saussure no início do século XX (1916) teve que considerar a frase, e não o fonema, o acto por excelência da língua. Digo que teve de considerar porque, sendo um movimento contra a linguística alemã, era-lhe necessário mostrar que a língua é primacialmente significado. A fonética foi repudiada e substituída pela fonologia que restabelece a ideia antiga de elementos e os dá ou interpreta como traços distintivos de significados. É interessante observar neste ponto que Saussure considera os alfabetos tradicionais obras-primas de classificação dos traços distintivos.

O argumento para defender a ideia de que é a frase que comanda na língua o seu movimento portador de significação é o de que as palavras variam de significado conforme a frase em que se integram. É verdade, mas daí não deriva a necessidade de considerar as palavras e os fonemas insignificativos. Diz-se que a pessoa que fala só tem consciência do conteúdo de significação da frase e não das palavras que a constituem. Não é verdade. No uso prático ou corrente da língua, a pessoa não tem consciência desse conteúdo, mas só de uma intenção. A linguagem automática das conversas correntes é formada de sucessivas intenções que se encadeiam sem que haja, até delas, clara consciência.

No uso proposicional da língua, como por exemplo num verídico texto filosófico, o sentido da frase depende do sentido das palavras dominantes. No uso poético, o artista tem plena consciência dos fonemas e das suas intenções.

É esta uma das lições que recebemos do Crátilo. A leitura inteligente do famoso livro de Platão mostra que ele se divide em quatro partes pelas quais se exprimem quatro graus de acesso ao conhecimento do que a língua é. Logo no início, o mais novo e menos sábio dos interlocutores do diálogo, Hermógenes, aparece a defender contra Crátilo a tese de que a relação do significante com o significado é convencional. Fá-lo vinte séculos antes de Saussure. Crátilo ri-se dele. A defesa daquela tese é a prova de que Hermógenes nada sabe ou conhece de sabedoria hermética e, como Hermes foi o deus que ensinou aos homens o alfabeto, o nome de Hermógenes, que significa “gerado por Hermes”, não pode ser o do seu portador.

Sócrates é chamado a intervir e dispõe-se a iniciar Hermógenes no mistério da palavra. O argumento do jovem, em tudo igual ao de Saussure, para mostrar a convencionalidade das significações das palavras é o seguinte: “Ó Sócrates, eu não concebo senão um modo justo de atribuir os nomes: eu posso dar a uma coisa um nome estabelecido por mim; tu à mesma coisa um nome estabelecido por ti. Acontece o mesmo com as cidades. Vejo-as, às vezes, darem um nome diferente à mesma coisa, vejo nisto, que os Gregos divergem dos Gregos e os Gregos dos Bárbaros.”

O plano em que se situa Hermógenes é o plano que a Kabbalah designa por Asiah, o plano da Fabricação. Sócrates vai levá-lo ao plano seguinte, o de Yetsirah ou da Formação. Ali, os nomes aparecem como o que se fabrica do exterior para designar isto e aquilo; aqui, os nomes formam-se a partir do interior do sentido pelas operações da imaginação.

No mundo da alma, a convenção deixa de ter sentido; o que aí domina é a arbitrariedade, não a que resulta de substituir uma convenção por outra convenção como no plano anterior, mas a que é a própria actividade da imaginação procurando o sentido para as palavras. Sócrates diz-se inspirado pelo daimon de Euthyphron, um adivinho de Atenas, dado por completamente estúpido no diálogo que tem por título o seu nome. A erudição alemã baseia-se neste último dado para mostrar que o próprio Platão não atribuía qualquer veracidade às etimologias pelas quais, sob o impulso do daimon de Euthyphron, Sócrates pretenderia mostrar a Hermógenes o erro da sua tese. O facto de algumas dessas etimologias e de outras obedientes ao mesmo processo se encontrarem noutros diálogos de Platão e em momentos de inequívoca seriedade filosófica não perturba a erudição alemã. O filósofo encheu páginas e páginas do Crátilo com elas. Para exemplificar a estupidez de Euthyphron é de mais! Todavia, os eruditos continuam a não se perturbar. Valerá a pena mandá-los ler aquele passo do Fedro onde se diz que as pitonisas que tão elevados serviços prestavam à Pátria, quando o deus as abandonava, eram uns seres iguais a toda a gente e até destituídos do menor grau de inteligência?

De resto, há uma necessidade íntima que comanda essas etimologias. Como se trata de um assunto que toca o limiar de terríveis mistérios falarei disso um dia.

O procedimento que Platão usa de explicação dos nomes existentes nos textos poéticos é o mesmo que a Kabbalah usa para os nomes dos textos sagrados hebreus. Encontramos neste lugar do Crátilo o correspondente da Temuria, da Notaria e da Guematria. Da aplicação da Guematria dou só este exemplo: “Sabes que nós designamos os elementos por nomes, pelos seus nomes, e não por eles próprios, com a excepção de quatro: o e, o u, o o e o ô. Os restantes, vogais e consoantes (phonnesi te kai aphonois), recebem, por meio de outras letras, um nome. Uma vez que por essas letras exprimimos claramente o valor numérico do elemento, é legítimo dar-lhe o nome que revela inteiramente a sua essência. Seja, por exemplo, o bêta. Tu vês que a adição do ê, do t e do a nada alterou a letra e permitiu manifestar a natureza destes elementos com a ajuda de todo o nome, como o quis o legislador (o nomothétês).”

Os exemplos de Temuria e de Notaria são todos os outros. É fascinante observar como as operações com letras, que Sócrates faz, sob a inspiração do daimon, são as mesmas que com imagens faz a alma para a elaboração do sonho. Tenho em mente, já se vê, a interpretação do sonho por Freud. Era útil estabelecer pormenorizadamente a comparação.

O que há aqui a fixar é que Platão não pretende encontrar dos nomes o seu étimo histórico. Se assim fosse, não teria dado para o mesmo nome várias explicações que considera todas verdadeiras. É idiota afirmar que todas essas etimologias são falsas, com excepção de duas ou três, como se o filósofo tivesse pretendido fazer a história do nome que estuda. O plano em que se situa é completamente outro. É o plano de Yetsirah, bem superior àquele em que se situam os modernos intérpretes do Crátilo. Condenar o processo de formação das palavras, tal com o descreve Platão, é tão absurdo como exigir para a alma um procedimento historicista da produção dos sonhos.

O problema que aqui se põe, se há problema, é o das raízes das palavras, se as devemos procurar no inferno ou no superno. O comparativismo alemão determinou o que há de comum entre as palavras de várias línguas e, com algum jeito, ajudado por um tal grau zero que, sendo zero, dá para tudo, encontrou um número razoável de raízes que identificou com as palavras de uma língua falada algures no passado pré-histórico ou fundamente histórico, tão fundo como funda é a nossa ignorância do que só imaginamos por conjectura. Se o português vem do latim, o latim de onde vem? Mas vem o português realmente do latim? Não é este a matéria de que se apoderou activamente o génio que se revelou no português? As transformações fonéticas não obedecem, como se pretende, à lei do menor esforço, porque se assim fosse teríamos não português, francês e italiano mas uma só língua. As línguas não são degenerescências, são generescências.

As raízes no Crátilo são os elementos do alfabeto. Quando Sócrates pergunta a Hermógenes, depois de ter mostrado que os nomes resultam das mutações e das combinações das palavras primitivas, como é que devemos explicar o que não tem nada antes, há uma nova subida de plano, que convém referir àquele que os cabalistas designam por o de Beriah ou da Criação. De facto, é aqui que parece dar-se uma emergência do nada.

Não é de aceitar a explicação onomatopaica dos sons primitivos tal como a formulou Herder e depois adaptaram ao interesse de uma miserável antropologia os seguidores de Darwin. Fica-se indignado quando um homem como Emílio Benveniste nos vem dizer que a linguística considera hoje insolúvel o problema da origem da linguagem articulada e que a única coisa que podemos afirmar é que onde quer que tenha havido sociedade houve, de certeza, língua. Mas os linguistas do século XX têm razão, só que não é o problema que é insolúvel, é que não há problema. A língua não tem origem histórica.

Quem acabou definitivamente com os darwinistas foi Eduardo Sapir. Basta citar: “Se fosse possível demonstrar que a linguagem, de maneira global, considerada nos seus longínquos fundamentos históricos e psicológicos, provém das interjeições, não seria legítimo concluir disso ser ela uma actividade instintiva, mas, na realidade, todas as tentativas para uma tal demonstração da origem da linguagem foram infrutíferas. Não há evidência tangível, de ordem histórica ou de outra ordem, que se preste a admitirmos que a massa dos elementos e dos processos da linguagem seja uma evolução das interjeições. Estas constituem uma porção mínima e funcionalmente insignificante do vocabulário de qualquer língua. Em nenhuma época e em nenhuma província linguística até hoje conhecida vimos sequer uma tendência apreciável para com ela se elaborar a trama de fundo da linguagem. Nunca passaram, quando muito, de um debrum decorativo para aquele amplo e complexo tecido.”

 

António Telmo

 

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* Nota do editor – Publicado originalmente em Teoremas de Filosofia, n.º 9, Primavera de 2004, pp. 28-34.

DOS LIVROS. 69

21-12-2020 11:28

Sétima conversa (Dies Solis

[Das Conversas do Mês de Outubro]


 

[Versão “A”]

Última conversa – Dies Solis

 

Eudoro

Creio que esta é a nossa última conversa. Tendes de partir amanhã para Lisboa os dois. Eu ficarei aqui, como de costume até ao Natal. Gostaria de perguntar-vos pelas razões que fizeram que nos encontrássemos os três esta manhã, em Estremoz, na Missa do Meio-Dia e também como conseguistes descer até lá a baixo, se não íeis na camioneta e não tendes automóvel. Tivestes, porventura, a sorte de arranjar boleia?

 

Marinho

Todas as manhãs, muito cedo, levanto-me e estou cá fora antes do nascer do Sol. Num sítio isolado procuro o lugar para a minha meditação, como dizia o nosso Leonardo Coimbra. Ela consiste, então, em harmonizar a luz reflectida do Sol com a minha essência.

Dou, depois, um longo passeio de alguns quilómetros, que tem como condição sine qua non a de o meu espírito, preparado pela meditação anterior, não deixar entrar as “Rêveries d’un promeneur solitaire”. É o que poderíamos chamar um passeio atlético. Se o Eudoro ceder um dia à tentação de seguir a minha técnica iniciática terei o maior prazer em ensinar-lhe os segredos do “andar”.

Podeis ver agora a razão porque não me encontrastes na camioneta e me vistes a assistir à missa em Estremoz. No que diz respeito à outra pergunta, não constitui surpresa, certamente, para si ver afirmar a verdade de todas as religiões.

 

Álvaro

Não tenho o segredo da marcha atlética. Mas também não sei explicar-vos, uma vez que não me vistes na camioneta, como me transportei até à Igreja de Estremoz. Há, no Louis Lambert de Balzac, o relato de como o protagonista, visitando, pela primeira vez, determinado lugar do seu país, se surpreende reconhecendo, com toda a lucidez do pormenor, tê-lo visto já. Uma das hipóteses explicativas do fenómeno dada por Balzac é que tenha estado em corpo astral nesse lugar, enquanto dormia. É estranho, porém, que o Eudoro me tenha visto.

 

Eudoro

O mais extraordinário é que a Missa tenha sido a do Dia de Todos os Santos.

 

[Versão “B”]

Domingo, Dies Solis

 

Leonardo[1]

Chegámos ao sétimo dia e pergunto-me a mim mesmo qual é o resultado nos nossos espíritos destas tarde passadas a conversar. Estou como que estarrecido, atordoado, perturbadíssimo, cheio duma inquietação vazia. Nunca como agora me pareceu tanto que o nosso ideal de vida deve ser a vida simples de se deixar repousar no espaço e deslizar no tempo sem choques nem atritos: conduzir virgilianamente as nossas almas para o redil de Deus, transformar os choques das ideias em balanceados chocalhos, soando no ar puro do entardecer. O nosso sol aqui é sempre o sol do entardecer, a jubilosa luz da noute[?], a divina luz que se esparge como um lago pela superfície da treva.  

Ides partir para Lisboa amanhã. Ficarei aqui até ao Natal com o problema imenso de encher o tempo, não de Pensamento, mas de Ser. A arte de enganar o tédio está toda em ser em si sem pretensões de ser outra coisa, numa íntima e perfeita harmonia com o actual ter. Tenho o vale do Infante, as ovelhas, os patos, as oliveiras e as laranjeiras. O meu olhar pousará na distância sem outra preocupação senão a de ser olhar.

Que me importa que, lá fora, se construa a humanidade dos computadores, que o mundo corra para um precipício, que a estrela da manhã se levante um dia sobre os escombros do cataclismo?

Tive, contudo, o último cuidado de gravar as nossas conversas para que alguém, procurando um editor, as entregue ao mundo. Não sei se elas irão fazer mal ou bem aos homens e às mulheres que as lêem. Talvez sirvam, depois de uma primeira perturbação, para purificar as almas, dando-lhes o gosto das coisas simples, o prazer de uma vida desinteressada, em que o próprio Deus seja concebido como um Espírito sem cuidados, que pelo facto de ser faz ser todo o Universo. Que as nossas orações saiam dos nossos lábios como a água das fontes dum tufo de avencas!

 

Álvaro

Não quero continuar a perturbar o seu e os nossos espíritos com a Ciência do Bem e do Mal, mas não posso deixar de observar que o Leonardo[2] deveria ter deixado para ontem a cessação de todos os trabalhos, embora como bom cristão ponha o seu estado de alma de acordo com a essência dominical do dia. Eu corrigiria de bom grado o adágio popular para “não há Sexta sem preguiça, Sábado sem sol e Domingo sem missa”, pondo-o em consonância com os três dias consagrados pelas três tradições. A revelação de Deus a Maomé é, porém, a última na magna ordem do tempo. Dou a palavra a José, o egípcio.

 

josé

O sétimo é a cessação depois dos seis dias do trabalho da criação. Regressamos à unidade original com o Domingo que é o primeiro dia, o do Fiat Lux. Com o dois vem de novo a divisão. Há que levar a divisão até ao fim para que possamos receber uma nova Revelação.

 

Leonardo[3]

O trabalho da criação, de labore solis, a legenda de João Paulo II. O sol brilha porque é, sem esfoço. Deus disse: Faça-se a luz. Nem sequer teve o trabalho de pensar. Não há o pensamento e depois a palavra. É, por isso, que nos arrependemos de ter dito e não de ter pensado mal dos nossos semelhantes.

 

 josé

Ah! Mas esse esplendor instantâneo do Espírito que as nossas mentes tardas não são capazes de acompanhar e por isso só depois o vemos na imagem fixa e luminosa do espaço não haverá um meio que, sem dúvida, tem de operar no instante, de o encontrar. Adormecemos logo no instante seguinte que nos aparecerá como o curso contínuo do tempo, mas algures nos abismos trevosos das almas esse esplendor será a semente duma luz para a humanidade.

 

Laus Deo 

 

Álvaro

As suas palavras acordam-me para uma antiga perplexidade. Como devemos imaginar a redenção? Vemos morrerem um a um os portadores de uma luz que brilha efemeramente nas trevas e logo se perde com eles nas sombras do abismo; se a visão de um poeta ou a concepção de um filósofo tem a sorte de ser atendida e se propaga logo se faz dela uma aplicação afinal contrária às intenções do seu portador. Os portadores da luz vão rareando e a mediocridade avassala todos os espíritos. Haverá um tempo em que nem um só restará no mundo. 

Por outro lado, podemos modificar alguma coisa pela acção, poética ou outra? Não vemos todos os homens a seguirem docilmente como crianças ou insensivelmente como autómatos ou entusiasticamente como imbecis as ideias que os arrastam para o abismo? Alguns, perante este espectáculo, e você Leonardo[4] é um deles, desistem de pensar. Para quê pensar? Para quê agir? Para quê procurar exercer influência? Não há nada a fazer. Estamos inermes, nós que temos consciência da avalanche.

E no entanto… No entanto, há um modo de conceber a redenção, anunciada por todos os profetas e, portanto, certa, um modo que a torna explicável e ao movimento de descida que parece torna-la impossível. É aquele que podemos apreender através do Criacionismo de Leonardo Coimbra. Há uma perda contínua de energia que arrasta os mundos e os homens para a homogeneidade da morte; mas ao mesmo tempo se vai ganhando a luz da vida que, por um processo misterioso, fica oculta e se conserva e aumenta em formas que a visão dos poetas e a inteligência dos filósofos concebeu. Não foi em vão que eles viram e pensaram porque, logo que o processo entrópico pareça chegar ao fim outra humanidade aparecerá na terra que é a quintessência dessa mesma humanidade de que só resta o cadáver. Há na Terra lugares misteriosos para onde vão as almas que parecem ter abandonado a Terra. Talvez num reino subterrâneo… ou em ilhas que desaparecem logo que nos aproximamos.      

 

Leonardo[5]

 

[Versão “C”]

Domingo, Dies Solis

 

Leonardo

Admitamos que a redenção, prometida por todas as religiões, vai ter lugar num tempo mais ou menos próximo. Como devemos concebê-la?

Alguns, prevêem, por X+B, sendo B uma deflagração atómica ou coisa no género e X o tempo, a destruição da humanidade, senão do planeta. Tudo quanto “Deus sonhou, o homem pensou e na Obra conseguiu”, terá sido em vão pelo menos neste mundo. Imagine-se, porém, que os grandes abutres da morte, que julgam poder comandar os destinos do mundo, se enganam. Há o X, mas não há o B. Haverá sim X+Y, sendo este, como a letra indica, a separação final dos bons e dos maus, ao som da trombeta sagrada do Anjo de Cristo. Incompreensível Fiat se os bons há muito desapareceram da face da Terra! Filósofos, poetas, santos e profetas foi em vão que existiram e disseram. O destino de cada ideia, por esplendorosa que seja no início, é o seu obscurecimento e a sua degradação. As belas ideias são utilizadas pelas inteligências negativas para intentos tenebrosos. A própria doutrina de Jesus Cristo obedeceu fatalmente ao mesmo destino. Os sábios morrem um após o outro sem que a semente deixada floresça como convém. Ao longo dos séculos, dos anos, dos meses, o número das “almas verídicas” é cada vez menor. Já não nascem. Haverá um tempo, em que tudo estará nas mãos dos medíocres e, o que é pior, não haverá ninguém para apontar essa mediocridade. É então que a roda parará, antes de começar a girar ao contrário? Onde vai buscar a energia espiritual para essa mutação brusca de direcção?

Não à humanidade que não a tem. Se é a outro plano da existência que relação há entre esse plano superior de existência e a inferior humanidade?

 

José

Podemos estabelecer uma relação que reside em ser esse plano de existência constituído pelas ideias dos filósofos, dos poetas, dos santos e dos profetas. Imaginamos uma ilha “nas entranhas do profundo mar” para onde vão as almas que “se foram da lei da morte libertando”. Com elas está o que houve de verdade nas suas visões. É uma nova humanidade, ou o corpo incorruptível desta humanidade, que, tornada cadáver, despirá como a serpente despe a pele. Ela habitará a Terra, dando início ao novo ciclo. Eis porque os nossos esforços nunca são em vão. Não nos iludamos, porém, julgando que nos é possível impedir esta descida para a morte. No fim dos tempos, escreveu o Evangelista que se salvarão apenas aqueles que andarem por cima dos telhados.

 

Álvaro

Considera, por isso mesmo, inútil, se não maléfica, qualquer acção política, até quando a teoria que a provasse lhe pareça admirável?     

 

José

Uma teoria política, admirável como diz, servirá para construir o novo mundo, mas é um engano pensar que ela se pode, desde já, traduzir em acções que não sigam a lei geral da decadência do homem. 

 

Álvaro

Faremos o que pudermos, mesmo que os telhados nos caiam em cima com o peso dos iniciados.     

 

José

Os iniciados não têm peso.

 

Leonardo

Como, tendo peso, é possível subir para cima de telhados que, muito além das nuvens, tocam na esfera da Lua?

 

Álvaro

Perdão se me esqueci de que as palavras do Evangelho têm um sentido simbólico. Toda a minha dificuldade, é que não se pode pensar uma teoria política independentemente da acção que a realiza. Se soubermos remar contra a maré vazante, do nosso barco se levantarão as ondas que uma boa imaginação verá tocar as portas lunares dos Céus. O que é necessário é estar atento aos modos dessa lei geral de decadência do homem para que saibamos pôr nos lugares justos as acções políticas justas.

Ainda não foi dada a ordem de desistir. Ainda não se ouviu, vinda do fundo do mar, a voz que proclama que o Deus antigo morreu. Nada nos assegura que na Terra não viva ainda o último sábio.

 

Leonardo

Este optimismo do Álvaro casa-se estranhamente com a mais nítida consciência da realidade do mal.

Para ele o importante, ao contrário do José, não é a relação do pensamento com o ser, mas a do pensamento com a acção. Tal confiança no homem, no pensamento do homem, choca com o meu sentido religioso que tende a ver tudo suspenso do pensamento de Deus.

 

Álvaro

Não há contradição entre o seu ponto de vista e o meu. O pensamento do homem – a razão – é capaz de eficaz actividade no plano terrestre porque comunica com os seres invisíveis, superiores a nós, interessados na redenção que é a espiritualização do Universo. Tais causas de espiritualização movem-se entre Deus e nós. O que não posso aceitar é, como uma vez me disse o Leonardo, que “o homem seja uma inutilidade num mundo feito”. Ele é, para nos exprimirmos por uma famosa expressão maçónica, “o obreiro dum mundo a fazer”.

 

José

É muito agradável verificar como pudemos ter vindo a conversar durante sete dias dentro de um perfeito entendimento de pontos de vista diversos. Por mim, daria por terminada esta reunião, que é a última, já que partimos, eu e o Álvaro, amanhã de manhã para Lisboa.

 

António Telmo

 

(Publicado em Capelas Imperfeitas - Dispersos e Inéditos, 2019)
 

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[1] N. do O. – António Telmo substituiu “Eudoro”, nome próprio primeiramente manuscrito no original e por si riscado, por “Leonardo”.

[2] N. do O. – No original, Eudoro.

[3] N. do O. – Idem.

[4] N. do O. – No original, Eudoro.

[5] N. do O. – Idem. O texto termina abruptamente neste ponto.

 

 

EDITORIAL. 23

20-11-2020 09:38

Pelos anéis da espiral

 

Na data de hoje, há sete anos, era criado o Projecto António Telmo. Vida e Obra. Aventuroso, começou como uma simples página na internet, em endereço diverso do actual, mas rapidamente se tornou muito mais do que isso. Pela congregação de inúmeras boas vontades, transformou-se no lugar, insituável no espaço, onde as coisas são possíveis. E acontecem.

Sete anos passados, só não temos o sentimento do dever cumprido porque estamos sempre para além do dever e nunca estamos satisfeitos. Uma dezena de volumes das Obras Completas de António Telmo preenche hoje a primeira década de uma ausência afinal tão cheia de presença como é a sua, cumprindo-se numa influência subtil, por vezes desapercebida, mas sempre real. O que talvez explique que, nestes sete anos, sejam já mais de 750.000 os visitantes contabilizados pelas estatísticas desta página.    

Sete anos passados, um ciclo porventura se cumpriu. Outro se seguirá, pelos anéis da espiral.

CORRESPONDÊNCIA. 51

29-10-2020 11:00

CARTAS INÉDITAS

DE LUÍS AMARO PARA ANTÓNIO TELMO

[transcrição & comentário de Pedro Martins & A. Cândido Franco]

Luís Amaro em 2007. Foto gentilmente cedida por António José Queirós
 

 

Carta III

 

Massamá, 30 de Outubro 2009.

 

António Telmo, bom amigo:

 

Sim, é o seu velho companheiro de restaurante – primeiro no Ganso, depois no da Rua da Atalaia, de que esqueci o nome – que lhe escreve… Com 86 anos e meio, que posso dizer-lhe de mim senão que sobrevivo? Talvez – não está esclarecido ainda o meu caso – na iminência de pacemaker, mas… sobrevivendo.

E folgo saber que o meu Amigo continua, em Estremoz – “uma das mais lindas terras do Alentejo”, segundo Armindo Rodrigues num livro que prometo enviar-lhe, gralhadíssimo e póstumo –, continua, em Estremoz, vivíssimo e dispensando atenção, quando o encontra, ao António Severino, o excelente moço que há mais de trinta anos conheci na estação do Metro de S. Sebastião que ambos frequentávamos: o Severino leitor insaciável de romances traduzidos mas não só (o que não é vulgar nos funcionários de Seguros, como ele).

Pois hoje, tendo-me o dito Severino telefonado após meses de silêncio, e falado de novo em António Telmo e da sua recordação dum tal L. A. mais ou menos bisonho (e então na década de 40!), apeteceu-me, saudoso de si, escrever-lhe estas linhas apressadas. E enviar-lhe uma singela página de memórias alusiva a David Mourão-Ferreira, que decerto conheceu também. Desculpe a pobreza do escrito, mas já sabe que pilriteiro só pode dar pilritos…

Junto ainda cópia de um recibo que remonta à minha pré-história, quando, em Beja, aos 16 anos (!), correspondente e colaborador dos Brados do Alentejo estremocenses, nem sonhava ainda que, meses volvidos (quantos, já nem sei), transportaria para Estremoz os meus sonhos, a convite do Dr. Marques Crespo… Viria para Lisboa, finalmente, em finais de Agosto de 41. Diga-me, por favor: será vivo ainda o Sr. Acácio José Palmeiro da Costa, da Farmácia Costa e Assunção, no Largo do Gadanha?

O Severino diz-me que sim, mas custa-me a crer. O Sr. Acácio Costa era (é?) uma das melhores pessoas que encontrei na vida – e também o Dr. Crespo! Ah, sim!

Abraço muito afectuoso e grato do seu Luís Amaro, que ainda ontem recebeu notícias de outro amigo comum: o A. Cândido Franco, que profundamente estimo, assim como ao amarantino António José Queiroz – e, claro, ao António Telmo!          

 

 

CORRESPONDÊNCIA. 50

22-10-2020 16:05

CARTAS INÉDITAS

DE LUÍS AMARO PARA ANTÓNIO TELMO

[transcrição & comentário de Pedro Martins & A. Cândido Franco]

 

Luís Amaro em 1970. Foto gentilmente cedida por António José Queirós

 

Carta II 

 

23 de Julho 2006.

 

Meu Caro Filósofo Amigo:

 

Em férias há uma semana, recordo saudosamente os nossos encontros no Ganso, da Rua do Norte, e depois no Atalaia, restaurantes do Bairro Alto… Com o seu irmão Rui e, às vezes, o seu colega Francisco Sotto Mayor. Da minha parte, aparecia o Romeu Correia neo-realista de gema, e no Ganso(?) estacionavam, longe, o Carlos Wallenstein e o poeta Mascarenhas, de Faro e que estudava Letras. Quantos desapareceram já! Somos nós os sobreviventes… Éramos “contemporâneos”, mas só com o meu Amigo, o seu irmão e o Romeu avulso eu convivia, os outros ignoravam-me com desdém (pois não era eu o “alentejano bisonho” de Armindo Rodrigues?). Recordo ainda, mas já perto de mim, o Azinhal Abelho dessa época e até de antes, e seu irmão Orlando, que nunca me molestou…

Ao Wallenstein (“arrebenta pensões”) descobri-lo-ia, é diferente, na Fundação.

Temos dois bons amigos comuns: o António Cândido Franco e o António Severino.

Deseja-lhe todo o bem, com um abraço, o Luís Amaro.

 

CORRESPONDÊNCIA. 49

14-10-2020 11:02

Luís Amaro (a partir de foto de 1950), Luís Manuel Gaspar, tinta-da-china e acrílico sobre papel, 2006 (Colecção Dulce Palma Rosa)  

 

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CARTAS INÉDITAS

DE LUÍS AMARO PARA ANTÓNIO TELMO

[transcrição & comentário de Pedro Martins & A. Cândido Franco]

 

Nado e criado em Aljustrel, no Baixo Alentejo, Luís Amaro [1923-2018] fez a sua formação de autodidacta com o seareiro Deodato Barreto e com escritores ligados ao sindicalismo libertário da primeira República – Manuel Ribeiro, Ferreira de Castro, Julião Quintinha e outros. Estreou-se aos 12 anos com uma crónica no jornal Ala Esquerda, do Centro Democrático de Beja, e com a mesma idade entrava como redactor do jornal Diário do Alentejo, fundado pouco antes em Beja.

Aos 16 anos era redactor do jornal Brados do Alentejo em Estremoz e pouco depois, em 1941, por intermédio de Agostinho da Silva, muito relacionado no meio livreiro, veio para Lisboa como caixeiro da livraria da Editora Portugália, onde depressa ascendeu a revisor linguístico e editor literário.

Conviveu então com muitos dos mais importantes escritores portugueses, vindo ele próprio a publicar nessa época o seu único livro Dádiva (1949) – um volume de poemas que teve depois reedições sucessivas (1975; 2006; 2011) com título refeito, Diário íntimo, e sempre com novos acrescentos. Com jovens poetas da sua idade – António Luís Moita, António Ramos Rosa, José Terra e Raul de Carvalho – fundou a revista Árvore [1951-1953], uma das mais marcantes da poesia portuguesa da segunda metade do séc. XX.

Nas instalações da Portugália Editora, por certo ainda na primeira metade do século, conheceu Orlando Vitorino [1922-2003], já então conviva das tertúlias do grupo da Filosofia Portuguesa. Foi a propósito do falecimento deste pensador, ocorrido a 14 de Dezembro de 2003, que escreveu pela primeira vez – tudo leva a crer que fosse pela primeira vez – ao seu irmão António Telmo, que de resto conhecia quase da mesma época. É documento comovente, fraterno e solidário, que mostra toda a dádiva que existia na alma deste homem generoso e sensível, que punha um gosto raro no convívio com os seus semelhantes.

Mas essa breve missiva dá ainda a ver a agilidade da sua verve epistolar, o seu desembaraço verbal e a sua atmosfera comunicativa, ele que não tinha qualquer formação escolar – possuía como única habilitação académica a instrução primária – e que começou a prover ao seu sustento fora de casa aos 12 anos, verdadeira figura dickensiana a quem roubaram cedo a infância e a inocência.

As duas cartas seguintes, de 2006 e 2009, já não têm por motivo o convívio com Orlando Vitorino mas com o próprio destinatário. Estudante da Faculdade de Letras de Lisboa, que então ficava numa fralda do Bairro Alto, na Rua da Academia das Ciências, Telmo frequentava os pequenos e populares restaurantes do Bairro Alto, onde encontrou e conviveu com Luís Amaro, também ele vizinho ao mesmo bairro, pois a livraria Portugália ficava perto do Chiado, na Rua do Carmo, e as pensões em que residia, ele que não tinha família em Lisboa, na mesma área. Se atendermos à carta de 23-7-2003, em que se diz que os únicos convivas do jovem livreiro eram Romeu Correia, António Telmo e o irmão deste Rui Vitorino, o convívio entre os dois terá sido intenso e afectuoso. Que Telmo guardou boa memória do seu comensal da época, testemunho-o eu, que lho ouvi, por certo em momento que coincidiu com a leitura duma destas cartas – talvez a segunda.

Azinhal Abelho [1911-1979], que Luís Amaro deve ter conhecido no seu período de Estremoz, foi outra das pontes entre ambos, e por certo não a menor, já que Abelho era um dos que sentava nas tertúlias da Filosofia Portuguesa ao mesmo tempo que era autor dum premiado livro que muito deve ter impressionado o Luís Amaro que vinha de Aljustrel, Confissões dum rapaz provinciano (1936). Mais tarde, Estremoz, para onde Telmo se mudou no início da década de 80 e onde Amaro residira e trabalhara no curso de dois longos anos, foi o motivo central da terceira e última missiva que aqui se dá a conhecer e que vale uma página de memórias, escrita depois de quase 70 anos de ausência.

Já no final da década de 60 mudou-se Luís Amaro para os serviços editoriais da Fundação Calouste Gulbenkian, onde secretariou e co-dirigiu até tardia aposentação a revista Colóquio/Letras, que muito deve ao seu saber e ao seu sentido de convívio. Aí voltou a reencontrar Orlando Vitorino, funcionário da mesma Fundação, e com quem se cruzava nas instalações da instituição ou nos restaurantes próximos, entre a Avenida de Berna e a Avenida António Augusto de Aguiar, onde ambos almoçavam, embora em grupos distintos – Luís Amaro com jovens colaboradores da revista Colóquio/Letras e Orlando com os do seu círculo, Francisco Morais Sarmento, José Luís Ferreira e outros.

Já no caso de António Telmo é provável que após o convívio que com ele teve na Lisboa do meado do século XX nunca mais o tenha visto, já que depois da sua vinda para a livraria Portugália, Luís Amaro pouco mais regressou aos lugares do seu Alentejo natal e não frequentou em absoluto Sesimbra, onde Telmo chegou a viver e a trabalhar depois do seu regresso do Brasil em 1968.

Originário duma terra mineira com forte implantação da organização operária, nascido no seio de família muito modesta – o pai era correeiro –, Luís Amaro manifestou desde cedo simpatia pela generosidade dos ideais libertários, de orientação cooperativista, socialista e comunista, embora sem qualquer militância a assinalar. Fez questão de doar depois da morte ao jornal A Batalha, hoje centenário, parte do seu mobiliário pessoal.

 

Carta I

 

Monte Real, 25 Dez. 2003

 

Meu Caro António Telmo:

 

O destino, essa entidade que nenhum sábio pode compreender, faz que seja no dia de Natal que lhe envie o meu comovido abraço pela morte de seu irmão Orlando. Foi para mim de todo inesperada, pois não o sabia doente. E relembro o simpático jovem, pouco mais velho que eu, que num dia longínquo – há mais de meio século! – conheci na Portugália Editora ao serviço de uns senhores alemães que organizavam o Quem é Quem (pelo vernáculo Álvaro Pinto, da Ocidente, sugerido para Quem é Alguém). E desde então, sempre que nos cruzávamos, Orlando Vitorino me distinguia com um sorriso, e nunca, mas nunca, a peculiar ironia que o caracterizava me feriu… – coisa não vulgar nos intelectuais, e tantos foram, que conheci na vida.

Enfim – todos temos um fim, que nos espera! –, venho dar-lhe um sentido abraço e dizer-lhe da minha mágoa, sejam quais foram as diferenças entre nós todos.

 

Aceite V. também a velha estima que lhe dedica, junta com a admiração intelectual dum inculto,

 

o seu amigo Luís Amaro.

 

INÉDITOS. 98

07-10-2020 10:29

O que é a filosofia?*

 

Talvez alguns preferissem falar de “espiritualidade portuguesa”, na condição do adjectivo definir, caracterizar e singularizar uma espiritualidade, a aceitar o termo de “filosofia portuguesa”, que, pelo menos à partida, exclui outras tão significativas manifestações do espírito, como, e em primeiro lugar, a manifestação pela poesia.

Eis porque convirá perguntar, para responder, o que é a filosofia. O adjectivo “portuguesa”, se não significa “em Portugal” obriga-nos a encontrar qualquer coisa de comum – concepção, visão, modo ou estilo de pensar – nos vários filósofos e também nos poetas – e também nos poetas, se atribuirmos à palavra filosofia o seu significado esotérico que recebeu de Pitágoras e desligando-a da acepção vulgar, adoptada no ensino oficial, que na filosofia vê uma certa forma de pôr o pensamento. Se pensadores como, por exemplo, Leonardo Coimbra não são aceites como filósofos porque articulam silogismos de imagens, é caso para perguntar em que espécie ou género de comunicação pelo verbo os situaremos, já que formalmente também não é lícito dizê-los poetas. Para os classificar, são propostas expressões híbridas, de compromisso, como “filosofia poética”, “filosofia literária” ou “filosofia mística”. 

 

António Telmo

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* Nota do editor - O título é da nossa responsabilidade.    

 

VOZ PASSIVA. 115

28-09-2020 12:23

António Telmo e António Quadros ou a sombra que ilumina

(no décimo aniversário da partida do autor de História Secreta de Portugal)(1)

Pedro Martins

 

A costumada indiferença dos areópagos bem-pensantes ignorou a efeméride, assinalada a 21 de Agosto; mas, uma década após a sua partida, António Telmo continua bem presente na memória daqueles espíritos inquietos que ainda procuram o que mais importa. O filósofo da razão poética devolveu o direito de cidade ao pensamento da tradição iniciática no século XX português, reatando uma cadeia que com Fernando Pessoa só aparentemente se perdera. Se o nacionalismo místico que ele proclamava tem sido a fonte inesperada de grandes equívocos ideológicos e religiosos, que aliás persistem em enlear o cerne autêntico da filosofia portuguesa, teremos fatalmente de reconhecer que a ideação operativa do seu cabalismo judeo-cristão estará muito longe de agradar, sequer de poder interessar, a um situacionismo cultural que voga entre a dominância insidiosa e despudorada de um politicamente correcto assistido pelo braço armado escolar, e em vias de se tornar pensamento único, e a vacuidade mediática de um circuito fechado que engendra génios de pechisbeque para a efemeridade voraz do mainstream.

De extrema lucidez, e em avançado curso de publicação na editora Zéfiro, a obra de António Telmo anuncia toda esta desolação para a denunciar, precedendo em algumas décadas um paroxismo que só agora parece insinuar-se. É uma obra patriótica e fecunda, grávida de futuro. Atenta aos símbolos e aos sinais, dialoga como nenhuma outra com os livros apolíneos de António Quadros, seu dilecto amigo e condiscípulo no magistério filosófico de Álvaro Ribeiro e José Marinho. Pessoalmente, se um testemunho me é aqui concedido, tenho sérias dificuldades em pensar a História Secreta de Portugal à margem do Portugal, Razão e Mistério, agora enfim ressurgido na sua plenitude, pela simples razão de terem ambos entrado de rompante numa mesma época decisiva da minha vida. As suas páginas são como as folhas perenes daquelas árvores que envolvem a frescura das fontes. Uma sombra que ilumina.

 

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(1) Nota do editor - Publicado originalmente na Newsletter de Setembro de 2020 da Fundação António Quadros.

VOZ PASSIVA. 114

28-09-2020 11:59

Dez sonetos para o Filósofo da Razão Poética

Risoleta C. Pinto Pedro

 

 

(10) Contos Secretos

 

Dos segredos, não sei que decifrar,

Se o escritor na vida se inspirar.

Entre o trevo e o bilhar, pôs o poeta

Que da pena fez vara de profeta.

 

Dois irmãos juntou: Janus Dioscuros,

E do três fez o dois por alquimia.

Da arte do olhar pura magia

Com que pintou a sua Dama de Ouros.

 

No Hades se encontrou Natanael

Pela Escola de Atenas transportado.

Duvidoso Tomé ficou do outro lado.

 

Encheu páginas de ficção fiel

Ao real por ele imaginado.

História Sonhada, o seu pensar lavrado.

 

8 de Julho de 2020

 

UNIVERSO TÉLMICO. 71

28-09-2020 11:43

Homenagem ao professor José Santiago Naud, um dos fundadores da UnB[1]

Rozana Naves e Henryk Siewierski

 

Na última segunda-feira, dia 20 de julho de 2020, faleceu o professor José Santiago Naud, poucos dias antes do seu 90º aniversário. Nascido em 24 de julho de 1930, na cidade de Santiago (RS), e licenciado em Letras Clássicas pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o Professor Santiago Naud foi pioneiro de Brasília, para onde se transferiu após ser selecionado em concurso nacional para inaugurar o ensino de nível médio na nova capital. Convidado, em março de 1962, por Cyro dos Anjos, diretor do então Instituto Central de Letras da Universidade de Brasília (ICL/UnB), passou a integrar o corpo docente da UnB, tornando-se um dos seus fundadores.

Na UnB, esteve ligado ao Centro Brasileiro de Estudos Portugueses, dirigido pelo professor Agostinho da Silva, com quem compartilhava inovadoras ideias educacionais, contribuindo para a sua concretização na prática universitária. Participou, ainda, da criação da Federação Espírita do Distrito Federal, da Associação Nacional de Escritores e do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal. 

Lecionou literatura portuguesa e brasileira em várias universidades estrangeiras, entre as quais a Universidade de Yale e a de Los Angeles. Entre 1973 e 1985, dirigiu, como representante do Ministério das Relações Exteriores, centros de estudos e de cultura brasileiros em La Paz (Bolívia), Rosário (Argentina), Panamá e México.

É autor de uma extensa e original obra poética e de vários ensaios críticos, como Hinos Cotidianos (1960), A Geometria das Águas (1963), Ofício Humano (1966), Verbo Intranquilo (1967), Pedra Azteca (1985), Vez de Eros (1987), Memórias de Signos (1993) e Antologia Pessoal (2001), entre outros. Os seus livros de poemas foram publicados na Argentina, no Panamá, no México e em Portugal.


Reintegrado à UnB em 1990, atuou como professor no Departamento de Teoria Literária e Literaturas (TEL) e no Núcleo de Estudos Portugueses do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (Ceam), tendo participado de vários projetos de estudos literários e de tradução. Com o seu profundo conhecimento da herança poética e filosófica universal, e de língua portuguesa em particular, compartilhado generosamente com os estudantes e colegas, enriqueceu substancialmente os programas dos cursos do Instituto de Letras. Aposentado, continuava em contato e colaboração com a UnB, principalmente no âmbito da Cátedra Agostinho da Silva do Instituto de Letras.

Sempre atencioso e aberto ao diálogo, sabia valorizar e incentivar trabalhos dos colegas. O lado espiritual do seu pensamento se associava a uma prática da vida solidária e a uma busca insaciável do conhecimento, verdades da ciência e da fé, tornando a convivência com ele um dom singular.

Seu afeto e consideração para com o Instituto de Letras da Universidade de Brasília se expressaram fortemente no evento de comemoração dos 50 anos deste Instituto, realizado em 2012, em que nos honrou com a sua presença vibrante e entusiasmada. Gostaríamos de homenageá-lo a partir de um de seus poemas, que tem como temática a morte. Sem dúvida, ao Professor José Santiago Naud caberá a glória do legado que deixa ao Instituto de Letras, à UnB e ao país, razão pela qual seguirá vivo na memória afetiva dos que o conheceram e com ele conviveram e na nossa memória institucional.

 

DA MORTE

 

A morte joga no descampado

o seu jogo de dados

mas é no íntimo de nós

no âmago

que os pontos contam.

Ela funda

                 no fundo de nós

sua raiz fecunda –

no ventre

como bicho faminto

no coração

como casa sem gente

na mente

como causa de causas sem motivo.

É a nossa companheira

                                       longinquamente

desde o berço

e muito antes ainda

pois quando nos embalava

ao doce enlevo da mãe

já modulava o canto

                                 antiquíssimo

marcando o mais certo encontro conosco

para a miséria

ou para a glória.



[1] Nota do Editor - Texto originalmente publicado, em 1 de Agosto de 2020, na página oficial na Internet da Universidade de Brasília, de que os autores são professores. Henryk Siwierski é também membro do Projecto António Telmo. Vida e Obra.  

 

 

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