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EDITORIAL. 24

02-05-2021 10:37

Entre efemérides

 

Os dois mais recentes números da NOVA ÁGUIA, revista de que António Telmo foi colaborador desde o seu primeiro número, permitiram assinalar de modo efectivo e significativo o décimo aniversário da sua partida: um conjunto de doze apontamentos inéditos do filósofo, que vieram a lume no Outono passado, e a que, já nesta Primavera, se juntaram dois valiosos conjuntos epistolares – de Dalila Pereira da Costa e Luís Amaro – para o filósofo da razão poética e um dossier temático com treze ensaios (número obsidiante!) dedicados à sua vida, à sua obra e ao seu pensamento, traduzem, na sua diversidade, formas convergentes de evocação de um legado perene e fecundo, neste tempo, tão obscuro como reservado, em que continuamos ainda a esperar. Um agradecimento muito especial, e que não pode também deixar de sublinhar uma notável capacidade de resistência à adversidade, será, por isso, devido a Renato Epifânio, Director da NOVA ÁGUIA, e a Alexandre Gabriel, editor da Zéfiro, chancela que, além da revista, identifica também as Obras Completas do nosso patrono, que ainda este ano deverão retomar o seu curso de publicação.

Mas hoje é o dia em que passam 94 anos sobre o nascimento de Telmo. Tempo de olhar para um porvir que se projecta com esperança. A par da NOVA ÁGUIA, a revista de cultura libertária A IDEIA tem sido outra das publicações periódicas que acolhem a presença da sua obra filosófica singular. Ainda recentemente, no número quádruplo de 2020, foram dados à estampa dois escritos inéditos do filósofo originalmente destinados a um livro que ele não chegou a concretizar. 2021 será, tudo o indica, o ano em que a revista dirigida por António Cândido Franco – outro amigo de António Telmo, credor por igual da nossa gratidão – dará à estampa a correspondência de Max Hölzer (note-se que este enigmático iniciado foi também uma figura maior do surrealismo austríaco) para o filósofo português. Trabalho moroso de transcrição e tradução que está a ser desenvolvido no seio do Projecto António Telmo. Vida e Obra, o epistolário que por ele se deixará revelar constitui, por certo, na positividade do que, preto no branco, foi deixado no papel, um elemento da maior importância para a justa compreensão da evolução do pensamento do seu destinatário.

Uma última palavra de calorosa gratidão para a família de António Telmo, na pessoa de Maria Antónia Vitorino, pela confiada generosidade com que têm acompanhado, apoiado e estimulado este nosso Projecto. Bem-hajam!    

INÉDITOS. 99

02-05-2021 09:54

Fragmento autobiográfico[1]

 

Como os meus irmãos, nasci no centro do hexágono formado pelas muralhas de Almeida, numa rua chamada do Convento.

Os poderes estavam assim distribuídos na carta do céu: o Sol e a Lua em Toiro, na casa nona, fadavam-me para a filosofia e uma Grande Viagem; somente o sinistro Saturno, na casa IV, a dos Pais, da Terra e dos Antepassados, ocupava o hemisfério inferior; os restantes olhavam uns para os outros no hemisfério superior. Oposto a Toiro é o Escorpião. No fundo do céu, este signo significava a minha Mãe, que nasceu sob a sua regência e os meus irmãos, que nasceram a 21 e 25 de Outubro. O mais velho conheceu a vida ainda no signo da Balança.

Sou o mais novo – o benjamim. Liga-me aos meus dois irmãos uma profunda amizade e o que vou escrever pretende apenas mostrar as razões, alheias à nossa vontade, que não permitiram que a relação entre mim e o meu irmão mais velho se não desenvolvesse com qualquer de nós desejaria.

Entre o primogénito e o benjamim há uma misteriosa relação de que se deve tomar consciência sob pena de se explicar o conflito, inevitável, se a relação se assume em toda a sua realidade, como qualquer conflito dos interesses das almas: neste caso, o ciúme do período infantil que perseverasse ao longo da vida, mais ou menos inconscientemente.

A relação entre o primogénito e o benjamim é regida por uma lei que reflecte relações entre princípios.           

 

António Telmo



[1] Nota do editor – O título é da nossa responsabilidade.

 

VOZ PASSIVA. 120

02-05-2021 09:43

«É de mim que me lembro com saudade»

Risoleta C. Pinto Pedro

 

«É de mim que me lembro com saudade[1]»

Quando evoco teu rosto de bondade.

Não é certo o encontro no infinito

Mas se for na planície ou noutro mito

 

Me contento e me alegro de antemão. 

A alma de Camões lá cantará

A balada como tema de refrão.

É manhã, e à hora o sol dará

 

Um reflexo interior, um resplendor

Alfabeto de luz bordado a cor

Por trovador espantado com seus versos.

 

Após anos passados, teu passar,                         

Como em linho e seda um restolhar,

Sem que tal se veja, faz conversos.

 

2 de Maio de 2021

 



[1] A expressão deste primeiro verso pertence a António Telmo.

 

CORRESPONDÊNCIA. 52

27-04-2021 10:08

Carta de Dalila Pereira da Costa para António Telmo, de 21 de Outubro de 1984
 

Porto, 21-X-1984

 

                                 Querido Amigo

 

A carta vai escrita à máquina, para ser fácil de ler: não tenho como o António letra legível. Seria eu a ter de lhe agradecer sua vinda aqui ao norte e sua companhia nesta viagem. Foi bom. Só me ficou a pena de não ter visto, conhecido o que é um centro do sagrado, uma sábia concentração de sua força, terrível, ainda agora sentida, como é a da igreja de S. Pedro de Balsemão: passámos a um kilómetro. Tem de ficar para outra vez. É um dos pontos altos deste norte: a primeira igreja cristã portuguesa (talvez séc. V) e peninsular.

Mas como todos ficámos tão unidos a S. Pedro das Águias, queria hoje enviar-lhe mais informes, que colhi de um primo meu que a visitou no sábado anterior a estarmos lá. A visita foi feita com uma nossa prima, filha do antigo dono de S. Pedro das Águias (convento), o visconde de Macedo Pinto; que lhe contou: o pai, tendo grande pena do estado de ruína em que estava a igreja do eremitério (um montão informe de pedras) levou um dia lá D. Fernando de Almeida, que ficou siderado com o lugar. E logo, conseguiu ajuda do Estado para sua reconstrução: felizmente não faltava nenhuma pedra. Sua reconstrução e abertura da estradinha, pois o lugar era inacessível. Mais ainda lhe informou: que uma das grutas abertas naquele enorme penasco coberto de liquens amarelos, conduz ao convento. E que o fantasma da Moura Artiga, morta pelo rei de Lamego e atirada ao Távora, ainda hoje aparece em fantasma branco, perto do rio.

Fiquei muito contente com a notícia que me dá: de uma próxima edição de Pascoaes, sem aqueles horríveis prefácios, obstruentes.

E gostei também que tivesse visitado Guimarães: espero que não tivesse deixado de ver a rua de Santa Maria e o largo da Colegiada. Bem, para outra vez, será o santuário rupestre de Panoias, e a Senhora da Serra.

Mas este norte, como viu, tem de se olhar para além de toda a destruição (estragação) que sofre há vinte anos; as desnorteadas casas dos emigrantes parecem feitas para degradar a Terra-Mãe. Um acto misterioso.

Mas gostei que tivesse compreendido e sentido este norte. E lembre-se, lhe peço, que o Camilo chamou, num dos livros, sem mais rodeios, ao Porto, a “cidade dos livres”.

Agradeça também ao amigo Inácio Ballesteros a companhia. E saudades para nosso Amigo, para Maria Antónia e para si, António. De sua amiga dedicada, Dalila.

 

 

[Carta dactilografada, com excepção da data, destinatário e da parte final dos cumprimentos de despedida com assinatura.]

 

VOZ PASSIVA. 119

27-03-2021 11:25

O filho de Orfeu[1]

[Gramática Secreta da Língua Portuguesa][2]

António Cândido Franco

 

 

Mestre, as coisas do Céu são belas e difíceis e fazes bem em apontá-las aos outros homens, mas eu prefiro estudar e descrever as coisas da Terra.

             António Telmo, 1992

 

A poesia de Guerra Junqueiro condensa o momento culminante da poesia portuguesa do século XIX. Antero, com as Odes Modernas, em 1865, garantira para a poesia uma nova seriedade de pensamento, mas sem depois explorar a fundo, quer nos sonetos, quer na prosa de ideias, a profundidade desse livro. A poesia de Junqueiro condensa, assim, a experiência poética mais completa do seu século português e representa o momento privilegiado da condensação do moderno entre nós, ao mesmo tempo que se mostra o momento em que o moderno se assume como um projecto de expressão do espírito.

Junqueiro pertenceu, como de resto Antero, à primeira geração que se pretendeu crítica em Portugal e uma boa parte da atenção com que olhamos para o trabalho dessa geração vem dessa pretensão. A poesia de Junqueiro não se limita, porém, a fazer a crítica do criticado, mas passa com ele a interrogar uma possibilidade de libertação. É por isso que a poesia de Junqueiro, ao nível da sua energia significativa, nos parece muito mais viva do que a dos seus companheiros da geração de 70, incluindo o Eça naturalista. Junqueiro quando fala do criticado – Deus, Pátria e Rei – procura sempre descondicionar as formas rígidas, passíveis de crítica, libertando-as do peso da sua ignorância, o que acontece, por exemplo, com o cura do poema O Melro, tão diferente do irremissível Amaro queiroziano, ou com o Portugal crucificado do poema Pátria, irreconhecível também no Portugal sem remédio de Antero ou Martins. A poesia de Junqueiro realiza, nas palavras de José Marinho, a catarse da matéria aprisionada na sua própria solidez.

Fica a dúvida como é que uma poesia tão vigorosa como a de Junqueiro, constituindo a cumeada do nosso século XIX, pode ser hoje preterida a favor de poesias muito menos significativas, ainda que por vezes formalmente mais perfeitas, como é o caso das de Cesário Verde e Camilo Pessanha.

Cesário Verde e Camilo Pessanha são líricos com um sentido pessoal da elegância do verso e da perfeição formal do poema, mas a sua poesia raramente atinge aquela dificuldade de descondensar a matéria ou de coar o espírito que se confundia em Antero e Junqueiro com o nascimento do espírito moderno em Portugal, e a que a poesia de Gomes Leal ou o pensamento teodiceico de Sampaio Bruno também deram continuidade.

A condição da modernidade tal como Antero a colocou punha o valor significativo do poema, a sua operatividade espiritual no plano da expressão, acima de qualquer perfeição rígida formal. O espírito moderno de que aqui falamos prefere no verso a imperfeição das formas à ausência de profundidade espiritual. A significação em jogo não actua na superfície do discurso, dando-lhe uma elegância contida e regulada, mas revolve as camadas mais profundas. A palavra destes poetas remove, mesmo à custa de enxurradas retóricas, ou imperfeições de forma, a falta de alcance catártico da palavra vulgar, ainda quando passe por elegante ou mesmo por eloquente.

Longino, no capítulo XXVII do seu Tratado, dizia ser preferível um sublime com partes defeituosas a um medíocre com todas as parcelas perfeitas; Sófocles, apesar da ardência inútil para onde se deixa arrastar, será sempre um poeta muito superior a Ion, pese embora a certitude e a perfeição da escrita deste último. Também a grandiloquência de Junqueiro não tem paralelo na elegância de Pessanha ou na correcção de Cesário. Se a obra toda de Ion não chega a valer uma única de Sófocles, como o Édipo Rei, também os versos todos em conjunto de Cesário e Pessanha não podem ser comparados, ao nível profundo da sua significação dramática, com a Pátria de Junqueiro, com o Anti-Cristo [1886] de Gomes Leal ou com esse sublime poema trágico em prosa que é A Ideia de Deus [1904] de Sampaio Bruno.

A elegância do verso lírico dá lugar a poesias debruçadas sobre a medida, que só através da saturação da música verbal conseguem uma marca de sobrenaturalidade, atingindo esferas de descondensação somática; o verso como expressão do sobrenatural dá, por sua vez, lugar a poesias centradas na imaginação, que tendem sempre ao desenvolvimento de expressões complexas e sublimes que compensam imperfeições de forma. O moderno com Antero, Junqueiro, Gomes Leal e Sampaio Bruno passou a ser uma demanda expressiva do mundo invisível, que é o mundo espiritual a ser imaginado ou o mundo material a ser diluído. Foi esse entendimento da finalidade poética como imaginação da dissolução material do mundo físico ou da coagulação do espiritual que tornou a poesia mais que ornamento formal, entretenimento inócuo ou comércio vulgar.

A experiência poética de Junqueiro, naquilo que tem de decisivo, de superior ou anterior a todas as experiências dos seus contemporâneos, aprofundou-se depois na poesia da Renascença Portuguesa ou saudosista. Esta poesia acrescentou à necessidade de interrogação e à intenção resolutiva um sentido universalista e visionário, traduzido na construção de grandes narrativas poéticas em torno de mitos universais, como Adão e Eva ou Apolo e Jesus. A par das formas líricas, que são porém tão livres como as outras, a poesia da Renascença cultivou, na linha de Hesíodo, o poema cosmogónico onde se visionam as lutas da criação original, como acontece nos versos de Corrêa d’Oliveira e Pascoaes, mas também na prosa versicu lar de Leonardo Coimbra, aprofundando a vertente anterior e dando lugar a uma ciência poética do mito que interessa como fundo criador.

Os poetas e pensadores da Renascença Portuguesa, onde se entalham os discípulos directos de Leonardo Coimbra, todos eles activos na última fase da Renascença, desenvolvem na linguagem, mesmo quando se mostram indiferentes à versificação, uma energia de evaporação ou condensação, que é o aprofundamento lúdico do sentido decisivo da libertação da matéria aprisionada herdado da poética junqueiriana. Trata-se, com saudosismo e criacionismo, de desenvolver uma visão daquilo que nos rodeia, capaz de perceber aí mais do que habitualmente se vê. Nesta poética é preciso alterar a percepção imediata do mundo, substituindo-a por outra mais difícil e muito mais profunda, que apresente a capacidade de ver com o pensamento, alcançando assim o invisível.

É por isso que Pascoaes vê numa folha que tomba, uma alma que sobe. A visão é aí uma ideia, a ideia duma compensação entre a matéria e o espírito, a vida e a morte, o alto e o baixo. A folha vesperal que se volatiza em alma ascendente traslada o mundo exterior, imediatamente visível, numa significação metafórica interior, que só os olhos da mente podem alcançar. O que este propósito nos diz é que, no saudosismo, o acto poético é já por si um acto do espírito, um afinamento da percepção do mundo pelo desenvolvimento da imaginação. Mas isto não nos deve levar a olvidar que o apuramento do espírito se faz pelo exercício da linguagem verbal, o que, dito doutro modo, quer dizer que qualquer acto do espírito é, por excelência, um acto poético verbal. A imaginação é sempre, além do fermento que faz levedar a desocultação do invisível, uma questão de expressão.

Daí a possibilidade de considerarmos poesia e pensamento na Renascença Portuguesa como linguagens da imaginação, interessadas em percepcionar níveis invulgares ou ocultos de realidade, e desenvolvendo para isso uma visão, ou construção imaginativa, que tanto garanta o espírito enquanto operação verbal como a poesia enquanto acto ou sentido espiritual. Esse sentido espiritual foi a penetração da linguagem poética na esfera volátil do mundo invisível, fazendo da poesia uma questão de revelação, e não de crítica ou de rigor formal. A poesia consolida-se, com o saudosismo, como uma operação do espírito, mas o espírito também se faz, nesse movimento da matéria para si, uma questão de palavras. A tinta, como suco sensível, dá a ler, através duma estilística rica e muito tensa, ainda quando desordenada e torrencial, o invisível. As dissoluções corpóreas são sempre complementadas na linguagem do saudosismo criacionista, ou do criacionismo saudoso, por coagulações, mesmo que coagulações em que as solidificações dos corpos espirituais dominam sobre as dos materiais.

O que nos aparece como surpreendente nos textos de Pascoaes e de Leonardo é a metáfora material, a analogia das partes separadas ou contrárias, a recomposição imaginativa do mundo dividido, o criacionismo da imaginação, o impulso inovador, não a rima ou a métrica. A poética da Renascença não é uma questão de invenção e primor técnico, ou até de literatura, se por esta entendermos algo como o escrever segundo as regras, mas de criação. O poeta para os saudosistas é aquele que cria ou vê, mas que cria ou vê o invisível, e não o que inventa com a mestria dum saber mecânico. A visão do invisível é a forma que o poeta tem de criar, e de criar em primeiro lugar esse invisível, que para ser criação original precisa de ser algo mais do que ilusão do repetido. A sublime significação do poema está na condensação verbal do desconhecido, não no verso enquanto arte. O valor do poema nasce da revelação do invisível, não da versificação.

 

* * *

 

Tudo o que acabamos de dizer sobre o nascimento e o desenvolvimento do espírito moderno em Portugal, serve para enquadrar a criação de António Teimo e constitui a melhor introdução de conjunto que se lhe pode arranjar. Se atentarmos com cuidado que a modernidade nasceu em Portugal como um esforço de significação e não como mera destreza técnica, podemos então estar de compreender já alguma coisa dos problemas mais exigentes que a poética de António Telmo coloca. A excessiva deferência que a partir de certa altura se prestou a poetas sóbrios e a ensaístas elegantes, mas sem a genialidade do sentido mítico-dramático, ajuda a explicar a perplexidade que sentimos diante da obra de António Telmo.

No seu primeiro livro, Arte Poética, livro reconhecidamente dedicado a Álvaro Ribeiro, deparamos com o duplo propósito de elevar a poesia ao pensamento e de descer, da esfera raciocinante, a filosofia ao sensível. Se o pensamento actua pela palavra, a palavra serve de veículo ao pensamento. Esta dupla intenção, servindo de esteio às três partes do livro, é reconhecível à luz do que dissemos anteriormente acerca de Junqueiro, Bruno, Pascoaes e Leonardo.

O que torna significativa a poesia de Junqueiro, distinguindo-a de poetas como Cesário ou Pessanha, é o seu pensamento dramático, a seriedade trágica do seu perfil. Do mesmo modo, o pensamento teodiceico de Bruno é iluminante pela força sensível, pelo exemplo vital, mostrando-se assim mais perto do modelo cativante do mito ou da fábula que da secura rígida do raciocínio ou do intelecto. E isto que aqui se diz de Junqueiro e Bruno diz-se também, de igual modo, de Pascoaes ou Leonardo, cujos textos são muitas vezes longos poemas líricos, de Raul Brandão e Teixeira Rego, que remitizou ainda mais tragicamente que Bruno a filosofia, ou, mais próximo de nós, de Régio e Marinho, que fez a filosofia do incompreensível e da filosofia o incompreensível.

A poesia, diz António Telmo, vive duma sobrecarga imaginativa fora do vulgar, que lhe permite visionar os universos ínferos e recônditos da mente e do mundo, onde volitam as almas e os demónios, seres invisíveis aos olhos do corpo, mas, acrescenta o autor, esse premeditado excesso de devaneio, esse jogo exaltado da imaginação, esse esforço em direcção do invisível, só ganha utilidade e significado a partir do momento em que não perde de vista as interrogações essenciais.

A poética de António Telmo raspa o verniz estético da poesia como entretenimento, aquele mesmo pó-de-arroz contra o qual a modernidade de Antero e Junqueiro pretendeu reagir, e deixa de lado, para sempre, como cadáver repulsivo, a crosta sociológica duma poesia entendida como indústria cultural. A arqueologia crítica de Telmo põe assim a descoberto, diante dos nossos olhos, as intenções da poesia clássica, quer através dos trágicos gregos, quer dos épicos latinos. O que aí encontramos, em estado puro, reiterado de resto pelos dramaturgos e narradores modernos, de Shakespeare a Baudelaire, de Dante a Pascoaes e Cesariny, é um gosto cósmico e abissal, uma ardência imaginativa, um sentido da mobilidade do mundo e das suas formas, que só ganha, porém, o seu alcance fundador na ideia de metamorfose interior transfiguradora.

Fica de lado, mais uma vez, nesta poética, a concepção do poema como forma visível e ostensiva, capaz de receber qualquer conteúdo. Nada mais enganador que confundir a arte poética de Telmo com um manual métrico ou um tratado técnico de versificação. Não são as ideias de ordem e organização que dominam a sua poética, mas antes aquilo que podemos chamar, à falta de melhor, de teor imaginativo ou intuitivo, de impulso criador, se por criação entendermos a substantivação, na linguagem verbal, do espírito incriado. Só esta substantivação, em visões consecutivas ou em sucessivas emergências, é digna do entusiasmo da poesia e da sua aprendizagem, mostrando assim que o poema não é um revestimento formal, uma casca técnica, mas o miolo verbal duma revelação desconhecida.

Por isso, esta poética propõe-nos friamente, no seguimento de Homero e de Virgílio, descer ao encontro dos subterrâneos crípticos e escuros, onde se situam os mundos invisíveis, os mundos ocultos pela opacidade da superfície linear e positiva, num propósito que parece ter alguma correspondência com as intenções freudianas de indagação das dobras secretas da alma ou com os intentos rimbaldianos do videntismo surrealista, mas que desvela sobretudo, pela preocupação do regresso, uma filiação clássica dionisíaca, de sondagem das ínferas camadas dos mortos ou das sombras, naquilo que são as catábases do mundo antigo e dos seus mistérios.

António Telmo estreou-se, em 1963, com um livro poderoso e perfeito, onde a poética órfica das catábases ou da descida aos infernos se esclarece e reactualiza, pondo porventura termo, por um máximo alargamento, àquele novo sentido de modernidade que Antero, Junqueiro e Bruno inauguraram na poesia portuguesa do fim do século XIX e que outro não era que o espírito feito aventura de procura.

O propósito desta nobre família em que ele se integra – e de que ele traça involuntariamente, no seu livro, o rigoroso quadro genealógico, não recuando mesmo em falar dos seus parentescos mais escandalosos (os poetas satânicos franceses) – é o denodo argonáutico de Orfeu desprendendo os barcos que demandavam a luz da Cólquida. E é também o seu esforço descendo aos infernos da noite, com uma lira de fogo nas mãos, não para recuperar a sua alma, essa Eurídice pálida e flutuante como um raio de luar, indecisa como uma sombra volátil, mas para depois, à luz da manhã, no glorioso regresso ao dia solar, reabilitar a harmonia da palavra e a limpidez etérea do canto.

O livro de estreia de António Teimo não foi abandonado. Telmo é um órfico perdido na Trácia do Ocidente, saudoso duma luz original esquecida, exumando, das palavras soterradas, uma lira de luz e fogo, um instrumento capaz de arrancar à escuridão da noite e do esquecimento as almas aprisionadas, volatizar as pedras brutas, amansar os monstros sanguinários que nos escravizam e amedrontam. Tudo isso para depois celebrar, numa terra sublimada, a glória do dia e do sol.

Alguns outros livros de António Telmo vieram continuar o seu propósito inicial, entrosando o sensível e o pensamento e restituindo à arte em geral, e à literatura em particular, um papel superior, uma função iniciática de aperfeiçoamento do ser.

Gramática Secreta da Língua Portuguesa (1981) abre com um texto, “Para um Organon da Razão Poética”, onde deparamos com uma chamada de atenção para as formas de imaginação artística destituídas de dimensão interior transmutativa. O que Telmo pretende é que a arte poética, ou se quisermos o exercício da metáfora, não decaia num jogo gratuito de formas, votado à distracção ou ao aproveitamento do comércio; é preciso que a imaginação artística sirva de veículo ao pensamento filosófico; é necessário não confundir expressão e técnica das formas. Expressão poética e formas do verso podem não coincidir.

Dito doutro modo, a realidade da metáfora deve ser tão viva que transforme e aprofunde a nossa percepção do real fixo. É pela metáfora, quer dizer, pela observação atenta das coisas e das suas qualidades, que se dizem as essências. Só há pensamento, pelo menos pensamento activo, através da palavra. A língua portuguesa pode ser refundada à luz duma razão poética, em que a Cabala desempenha um papel similar à euforia dos daimons. Há que arrancar a linguagem verbal ao estado letárgico da comunicação, restituindo-lhe uma vitalidade criacionista. O real é, como diria Leonardo Coimbra, ideado, não cousado. A criação poética é, pela metáfora verbal, a criação do real ideado. A poesia é criacionista; cria a realidade de que fala.

Mas, sendo a metáfora, na definição de Aristóteles, o “transportar para uma coisa o nome de outra”, é por ela que se estabelece a transformação da coisa e do sujeito. Mudar de nome é também mudar de coisa. Depois duma metáfora certeira e inesperada, o ente deixa de ser o mesmo. As metáforas recriam os seres e aperfeiçoam o mundo. Dão-nos a ver o invisível; fazem-nos perceber o que antes não tinha ainda sido percebido pelos sentidos; revelam o que velado estava. São elas que fazem da arte poética uma arte mimética, mas não uma contrafacção, uma indústria da cópia, ao modo do que acontece com a História. Só pela metáfora se descobre a metamorfose interior do mundo e do ser.

O poeta é um adivinho, não um fotógrafo; o poema é uma cifra – mas uma cifra do indecifrável –, não um retrato. A imitação é criação, não cópia. Eis a parcela de vidência, ou de criação interior, que toda verdadeira arte poética comporta. E eis ainda os limites de toda a arte naturalista ou figurativa, que não saiba alçar-se à abstracção transfiguradora da metáfora. A metáfora poética altera a natureza; desloca e alarga os seus atributos; modifica as aparências com que vemos o real. Capta – melhor, cria – a essência invisível do particular, aquilo mesmo que constitui a demanda do pensamento, e mergulha o mundo ou a linguagem num oceano de universais.

O que importa é elevar a realidade à expressão da sua sobrenaturalidade. O poeta pode tomar como pretexto de trabalho qualquer parcela da realidade circundante; nada lhe está vedado, como nenhuma língua, por mais comum, lhe impede de dizer a verdade que se esconde por detrás da aparência das coisas. O que precisa é de ampliar o olhar sobre essa mesma realidade, de modo a transfigurar esse individual, passando do singular ao universal. A língua, qualquer língua humana, o acompanhará neste solitário trabalho de metamorfose. A realidade histórica ou social é desmantelada pelo poeta e substituída por uma nova esfera imaginativa, fruto da criação interior ou do esforço da vidência.

Existe na linguagem verbal uma verdade superior à vida que nos foi dada. Foi ela que permitiu a Leonardo soletrar a magnífica consigna do criacionismo: O homem não é uma inutilidade num mundo feito, mas o obreiro dum mundo a fazer. Enquanto a vida material nos foi entregue já feita e acabada, numa rígida determinação de formas e acontecimentos que têm por finalidade e termo a morte, a linguagem verbal deixa o mundo em aberto, indeterminando eventos, deslocando e alterando formas. Essa verdade superior à vida é a imaginação, a única capaz de deitar por terra os espessos muros da realidade, superando as apertadas condicionantes que nos escravizam a um meio e a uma herança, circunstâncias pequenas, irrelevantes, ilusórias até, mas a que tantos dos mais ilustres, mesmo durante uma longa e esforçada vida, não conseguem fugir uma folga mínima.

Fazer da linguagem verbal o intermediário privilegiado do pensamento, não descurando aquela verdade que nela existe de superior à vida, é o intento dum livro como Filosofia e Kabbalah (1989), que reúne dispersos anteriormente publicados sobre poetas e pensadores portugueses. Mas tal propósito não existe em tal livro, sem uma outra preocupação, a de trazer a filosofia até às formas sensíveis de expressão dramática ou poética, de resto o móbil que o levou a escrever e a publicar em 1963 um livro de filosofia ferozmente anti-intelectualista.

O trabalho de António Telmo foi, assim, mais uma vez, adequar a verdade transcendental às formas presentes e locais da vida, procurando, porém, que estas não sufoquem a harmonia excelsa do pensamento. Orfeu assegura, pelo canto, uma nova seriedade para a língua. Para além da tentativa de disciplinar a desordem da imaginação, vê-se em António Telmo o esforço de adaptar a ordem da vida à aventura da liberdade.

Telmo procura, como qualquer poeta, um equilíbrio de simetria complementar entre a razão das formas e o excesso da imaginação, entre a tirania dos imperativos formais e a liberdade de criação. Nenhuma delas toma verdadeiramente a dianteira; Orfeu zela por uma harmonia entre os mistérios que se revelam, a tremer, na escuridão da noite e o senso apolíneo da beleza extática e da forma diurna. A realização deste equilíbrio é como que uma supra-realidade, onde as noções de caos e ordem, de estabilidade e ruptura, de sensível e inteligível, se confundem ou perdem o seu sentido dicotómico mais vulgar. O movimento transfigurador do mundo não resulta do transformismo da matéria, mas da visão interior do poeta. É ele que assegura a tendência unificadora da metáfora e a contemplação luminosa da essência ou do arcano universal, essa luz central em torno da qual todos os opostos deixam de fazer sentido.

A imaginação volta a ser o agente formativo dum mundo desconhecido, encarcerado na esfera do invisível, pela ilusão da repetição das formas estáticas, que constituem a vida aparente que nos é dada. A metáfora é a expressão dessa acção criadora e libertadora, que funde antinomias e aproxima distâncias. A catarse ou a libertação das formas rígidas da realidade, arrancando o homem e a natureza ao cárcere onde o hábito os aprisionou, é o resultado da metáfora, instrumento da imaginação e do pensamento poético em geral. A metáfora desloca e traslada, mostrando, em sucessivas emergências, que as imagens são as manifestações duma mesma essência universal.

Trata-se duma operação do espírito, um processo interior, que implica uma alteração da percepção do mundo ou uma animação imaginativa dessa percepção, em que o espírito se faz expressão verbal. A metáfora revela sempre dum imaterial, que é o ponto invisível onde a pluralidade da dispersão material se reúne num universal ou, se quisermos, o ponto em que a dispersão dos sentidos, sem colocar directamente em causa os seus elementos sensíveis, encontra a sua unidade psíquica.

Deste modo, o trabalho do poeta parece iluminar tudo o que se tornou opaco, descousificando a vida, libertando a matéria física da prisão das suas amarras, procurando e contemplando o que doutro modo para sempre ficaria aprisionado no invisível. É por isso que Telmo, na introdução ao livro de 1981, nos diz que a cor como manifestação física imediata ou revestimento material dos corpos não é o produto da decomposição da luz, mas antes o resultado da progressiva qualificação da sombra. A treva, ascendendo da terra, multiplica-se, por uma influência involuntária da luz do céu, em cores físicas; as cores, por sua vez, pela acção humana da visão poética, aperfeiçoam-se na sua essência central que é a luz.

A saudade está próxima do entendimento refundador de Orfeu; o aristotelismo da obra de pensamento de António Telmo, a sua disciplina morfológica, é uma das tradições da saudade. Pascoaes chegou a conceber a criação do mundo pela saudade, espírito feminino de Deus, acção de criar. A saudade é, nesta visão, um equivalente da língua, do verbo, da palavra. A saudade aspira ao ausente como a metáfora ao desconhecido. A saudade, lugar de passagem, concretiza a realidade somática por uma transferência formal do espírito para o corpo. A condensação implica, porém, a analogia duma dissolução, acordando assim ecos do solvite corpora e do coagulate spiritum. A saudade dá o nascimento e a morte, a morte e o renascimento, o sensível e o imaterial. Se o mundo nada mais é que a forma opaca do espírito que o poder geral da saudade cristalizou, então o espírito é nada menos que a metáfora luminosa da matéria que, por igual operação, a saudade coagula. O eu é um outro, diz a lição rimbaldiana e brunina, apagando a diferença entre a ipseidade e a alteridade, a matéria e o espírito.

Daí a consigna saudosista de regresso instantâneo ao paraíso; e daí ainda o centro da doutrina saudosista nada ter a ver, no essencial, com qualquer ideologia neolusitanista, mas apenas com o apelo directo à imaginação e às fontes da sua expressão. O neolusitanismo, sem a consciência viva e activa do que está para além dele, degrada-se em forma cousificada do local, em esbracejar cego e inconsequente cio mundo parcial da acção, em pesada cadeia de ferro que mais aprisiona os seres às lutas incongruentes e baixas da matéria e do sangue, e a que falta a substância etérea do pensamento, essa luz que livra os seres do sofrimento.

Assim como assim, na visão da arte poética de António Telmo, um pensamento universal sem o húmus do concreto, um conhecimento sem formas sensíveis de expressão, é nocivo de si mesmo. Sem a terra fecunda onde germinam as sementes, o ânimo apaga-se e a transcendência murcha, debilitada e frouxa; sem um mínimo de dor, o superior é incapaz de se sustentar e desenvolver. O filho de Orfeu aspira à luz e à ordem superior da razão, mas não recusa, ainda que passageiramente, a experiência aterradora das trevas. É no coração da noite e do caos, rodeado dos últimos monstros, do cimento sólido e da cinza, que ele vislumbra a pura e meridiana luz dum meio-dia celeste.

Filosofia e Kabbalah é a aspiração da filosofia à vida sensível das formas dramáticas. Nesse livro, e depois noutros dois, O Bateleur (1992) e Contos (1999), Telmo procurou directamente, sem rodeios, os modos da expressão poética, e em particular, entre eles, o narrativo. É a reafirmação da arte poética, agora através da composição, não da explicação. O conto é, para o autor de “A Dama de Oiros”, o género vivo, capaz de falar da origem e dizer o mistério. A tradição poética preferida por António Teimo foi a da fábula oral e popular. Com a narrativa, com o acto de contar, Telmo encontrou o veículo que até aí lhe faltara, dramatizando o conhecimento, dando-o a entender pelos sentidos, sensibilizando-o em formas intermédias eficazes. Assumindo, através dum género poético reconhecido e arcaico, a dramatização concreta dos problemas da filosofia, Telmo talvez nos tenha querido alertar para algo mais importante que a inteligência. Quem sabe, parece ele dizer, se não é do lado de fora da inteligência, sobretudo da inteligência discursiva, intelectual, que a verdade pode chegar. Esse exterior é a efabulação poética, a imaginação.

Se a poesia, com as suas formas e géneros, é esse lado de fora da inteligência, esse lado capaz de superar a realidade, entendida esta a partir das formas rígidas, densas e opacas a que vulgarmente se resumem nesta vida as coisas e as ideias, então é ela a linguagem dos deuses. Isso não implica, todavia, o sacrifício absoluto da ordem humana do entendimento, e em primeiro lugar da organização linguística tal como ela se perpetua, na comunicação, para ser entendida. Daí o conto ser, por excelência, a dicção órfica de quem, acabando de regressar do coração inominável do mistério, já lá não está. Forma bifronte, análoga ao mito, o conto diz aquilo que não pode ser dito, fala do céu divino na terra dos homens, vê o invisível na teia do opaco, narra a substância do sonho e ensina a realidade do mal.

O itinerário de António Telmo é dos mais curiosos; se ele começa por apresentar, na sua arte poética, uma explicação dos seus propósitos, acaba depois, na parte final, por abandonar qualquer tentativa de explicação, por mais inteligente que seja, tornando-se simplesmente um poeta, que opta por escrever os seus poemas sob a forma de contos. Será a obra estritamente poética de António Telmo mais ou menos importante que a sua obra de pensamento? Será a sua inteligência superior à sua imaginação? São vãs as perguntas, pois este autor teve desde o início a dupla preocupação de se afastar quer do intelectualismo rígido, quer da literatura como distracção. Os seus contos não são, por isso, vazios de inteligência; as suas obras explicativas, como o livro de estreia ou a Gramática, são, por sua vez, criações imaginativas.

Até aqui a obra de António Telmo tem sido para nós um exercício que vive da necessidade de entrosar a acção e o pensamento. O motivo obsessivo do seu trabalho é descobrir e ginasticar o instrumento sensível do pensamento. Esse instrumento é a língua, que ele exercitou nos vários livros a que nos temos vindo a referir. Agora, com os contos, aparece-nos pela primeira vez a referência à realidade do mal, que parece constituir outra das inquietações maiores desta obra.

Desde a História Secreta de Portugal (1977; reactualização no Horóscopo de Portugal, 1997) que Telmo pretendeu dar visibilidade ao maniqueísmo, não para o perfilhar, mas para dele retirar uma verdade poética. Isto quer dizer, que na obra de Telmo o maniqueísmo é menos uma verdade que uma ficção. De qualquer modo, só através dessa ficção Telmo pôde dizer algumas das coisas que lhe interessava dizer, em primeiro lugar aquele excelente argumento que apresentou para a leitura da Ilha do Amor de Os Lusíadas, no Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões (1982).

Podemos usar o maniqueísmo em duas acepções: a primeira, como equivalente das variadíssimas religiões dualistas que existiram no mundo; a segunda, como sinónimo do dualismo espiritualista cristão, aquele que obscuramente resultou do encontro da visão maniqueísta com os textos canónicos do cristianismo, naquilo que constitui demarcadamente uma parte considerável, mas não exclusiva, do heretismo cristão.

A feição que a visão dualista tradicional tomou na corrente maniqueísta cristã, por pouco homogénea que seja, pode delinear-se nos seguintes traços: uma separação absoluta de dois princípios contrários, cada um deles com realidade própria e eterna, Deus e Diabo, o Bem e o Mal; a criação do universo físico-material, tal como é encarada no bereshit hebraico, pertence ao princípio diabólico e não ao princípio divino, o que levou a que no dualismo cristão o Deus do Antigo Testamento surja associado ao princípio diabólico-maligno, num paralelismo evidente com os vários demiurgos inferiores ou Tricksteres que aparecem nos mais variados mitos cosmogónicos dualistas; o Deus do Novo Testamento não se confunde, por isso, com o do Antigo; o Homem e a Mulher são vistos, no contexto desta inicial criação maligna, como simples autómatos de lama, saídos das mãos do Diabo e fabricados com a sua matéria; a sua importância, na hierarquia dos mundos inferiores, não é, todavia, a mesma dos minerais, dos vegetais e dos animais, já que eles se destinam, pela sua perfeição, a ludibriar Deus; para O enganar, o Diabo atreveu-se a roubar almas angélicas aos céus divinos, que incorporou depois nos autómatos de lama, que deste modo passaram a ter uma pequeníssima e involuntária centelha divina.

É essa faúlha que justifica as platónicas saudades das essências celestes que perfumam as redondilhas camonianas de Babel e Sião. Os homens lembram-se das ideias, já que nos primeiros há alguma coisa das segundas. No contexto deste cosmodrama, Jesus, o enviado do Pai, não pode ter natureza humana, capaz de sofrimento, como quer a cristologia ortodoxa, pois tal pretensão equivaleria a admitir para ele uma natureza diabólica. Jesus é, então, em todas as suas partes, um espírito divino, de materialidade apenas aparente, que foi enviado à terra para ajudar as faúlhas divinas a libertarem-se dos cárceres de lama em que o Diabo ardilosamente as encerrou. O projecto acorda a lembrança doutros dois versos de Camões: “as almas soltarão/ Da ferrosa e misérrima prisão” (Canto V, 48).

Eis em traços rápidos a economia do pensamento com duas importantes consequências imediatas: primeiro, uma repulsiva decepção, ou até mesmo uma desgostosa contravenção, pelo mundo da realidade e da matéria, dada a sua peculiar natureza inferior, atitude deceptiva que se estende à História e sobretudo à esperança messiânica de que o tempo histórico esteja dotado de evolutivo sentido libertador, já que o tempo gnóstico terreno, com o eterno-retorno das mesmas estações, dos mesmos meses e das mesmas horas, quer dizer, do mesmo sofrimento e do mesmo mal, é também ele um simulacro inferior da Eternidade ou do tempo celeste; segundo, um esforço iniciático de contacto com os mundos invisíveis e desconhecidos, os céus estranhos e os longes ignorados da Terra, os horizontes primeiros, onde residem o Bem e a Beleza do princípio divino, e que foram a residência original das centelhas roubadas pelo princípio diabólico, esforço que não merece tanto uma exigência de aperfeiçoamento virtuoso em sentido benemérito ou filantrópico, sobretudo no que isso pressupõe de crença redentorista deste mundo, mas muito mais uma tentativa de ver, visionar e visitar, através de faculdades mentais criadoras, os mundos paralelos e superiores, sempre pressentidos como a verdadeira Pátria primeira, essa Sião das redondilhas, numa experiência de conhecimento directo que tem mais de contacto místico que de paciente virtuosismo remissivo.

Acrescente-se uma curiosíssima concepção de casamento, não como sacralização magnânima do encontro sexual entre dois seres, naquilo que pode ser tido como matrimónio sacramental, mas como encontro aplicado de duas inteligências malévolas, que se concentram e industriam na multiplicação da maldade do mundo. As igrejas dualistas cristãs preferem ao casamento como sacramento redentor, e mesmo à união livre entre o homem e a mulher, a castidade e, quando impossível, a homossexualidade ou outras formas não-heterossexuais de solução sexual, já que a episódica e inofensiva satisfação dum instinto, mesmo que nocivo, aparece no dualismo radical como superior ao acasalamento reprodutor. Este é encarado como a pior, a mais perigosa e até a mais diabólica forma de manifestação sexual, pois implica a perpetuação das carapaças de lama e o consequente aprisionamento das almas.

Em última visão, que foi a dos Perfeitos cátaros que se agruparam no derradeiro píncaro de Montségur, os maniqueus cristãos deviam, dada a origem mesma do mundo, tender gradativamente não apenas para o estrangulamento da reprodução biológica, sinónimo do diabólico encarceramento das almas, numa mentasomatose que eternamente as retinha nos putrefactos vasos da esfera terrena, mas para o suicídio místico, que os de Montségur chamaram endura. Vislumbraram aí, nesse endurecimento voluntário e consciente da matéria, a libertação definitiva da centelha divina do cárcere luciferino e a sua livre e imperturbável ascensão para os mundos estrangeiros e invisíveis do demiurgo luminoso e alienígena.

Que tem a obra de António Telmo a ver com isto? Em primeiro lugar, quando se pensa em livros como A Ideia de Deus (1902) de Bruno, o Para a Luz (1904), a Vida Etérea (1906) ou o Regresso ao Paraíso (1912) de Pascoaes, a Oração à Luz (1904) de Junqueiro, A Farsa (1903), Os Pobres (1906) ou o Húmus (1917) de Raul Brandão, os Estudos e Controvérsias (1932) de Teixeira Rego, somos levados a perceber que todos estes autores, que constituem a tradição poética de António Telmo, estão tocados por uma descrença profunda pelo mundo terreno da matéria e por uma ânsia desmedida de evasão, que, em conjunto, acabam por aproximá-los da atitude gnóstica.

Há asserções de Junqueiro na “carta-prefácio” a Os Pobres de Raul Brandão, que, num tópico violentíssimo, soldam a vida ao sofrimento, o que, num plano de equivalência entre Deus e a vida, obriga a encarar a inexplicabilidade do Mal na criação do mundo, questão presente de resto na teodiceia de Sampaio Bruno. Mesmo aceitando que tanto os relâmpagos de pessimismo vital da “carta-prefácio”, aquele “pandiabolismo” ou aquele “satanás-universo”, como o seu eterno pessimismo cosmogónico de tipo dualista – “Deus é, pois, o amor infinito, vencendo a infinita dor” – estão suavizados por um optimismo evolutivo, que vai do círculo infernal hermeticamente fechado à radiosa luz etérea, isso não chega para retirar ao pensamento de Junqueiro o desencanto estrutural, a tragicidade cósmica, o dualismo feroz dos princípios. Em Junqueiro, a luz não parece tanto o produto duma evolução estratégica, como uma realidade separada que, por maravilhados instantes, se contempla.

Em segundo lugar, os aspectos do dualismo maniqueísta que se prendem com as saudades duma pátria superior foram aqueles que serviram a António Telmo para ler o ultimo episódio de Os Lusíadas. A ilha funciona como um mundo alienígena, fora da cartografia terrestre, que tem, todavia, um paralelo formal com o mundo sensível. Estão lá os três reinos da natureza e está lá o homem. Não se trata, portanto, dum lugar sem lugar, imaterial e incorpóreo, perfilhando a pureza absoluta da luz. Todas as formalizações sensíveis existem nele, com a excepção única das sereias angélicas, as nereides, que constituem o elemento puramente divino do lugar.

Assim, a ilha não sendo a natureza, também não é o espírito puro. Trata-se dum mundo intermédio, um mundo imaginado, criado por Eros, em que o corpóreo das formas coexiste com a eternidade e o humano com o angélico. Se por um lado, temos a evasão da cartografia natural, com uma mudança de plano, por outro, as imagens do mundo material e sólido continuam a desempenhar, nesse novo mundo separado, um papel activo. A ilha é uma imagem da língua e um equivalente da saudade.

Telmo isola a ilha de Camões como uma das imagens privilegiadas do plano intermédio, aquele em que, nas palavras do poema, se dá a descida dos deuses ao vil terreno e a subida dos humanos ao céu sereno (IX, 20). A ilha resulta dum trabalho de entrosamento, que lembra o propósito da arte poética em cruzar acção e transcendência, palavra e pensamento. Trata-se sempre do resultado duma intenção criacionista. Neste sentido, Telmo só usa o maniqueísmo até onde lhe interessa. Por um lado, para encarar e enquadrar a existência duma terra celeste, recorre dele; por outro, deixa-o cair, sem nostalgia, quando se trata de negar as formas terrestres. Telmo olha o Céu com evidente agrado e deslumbre, mas não abandona a Terra, fonte do sensível.

No autor da Arte Poética, a ideia pura não pode ser desligada do mundo sensível e material, a não ser que se queira a esterilidade do intelecto puro. A tradição órfica foi certamente elaborada com o recurso a materiais maniqueístas, sobretudo no que diz respeito à teoria duma alma passando de corpo em corpo, viajando de mundo em mundo, mas o que mais impressiona nessa tradição resulta dum equilíbrio entre a terra e o céu. Orfeu aproximou a arte sensível do sentimento religioso da transcendência, mas não deixou nunca de glorificar a Natureza. A sua legenda de argonauta é a dum viajante perpetuamente dividido entre o alto e o baixo, a luz e o sensível, incapaz de negar o rosto de qualquer realidade. Dava por segura a necessidade que os homens tinham de descer aos infernos para subir depois às esferas celestes.

 

* * *

 

Apresentamos aqui um pensador da mais alta estirpe que por vontade própria se tem mantido discretamente longe do público e da crítica. Descende duma superior linhagem de poetas e faz parte duma atractiva constelação de pensadores que vislumbraram com olhos de águia, no sol ardente e frio da sabedoria, os arcanos preciosos do espírito moderno português e universal.

O seu par, pela discrição, pela sobrecarga imaginativa, pelo desencanto privado, é, entre os contemporâneos, Herberto Helder. António Telmo e Herberto Helder encarnam, no estádio presente da cultura portuguesa, o diálogo secreto do pensamento e da palavra. No primeiro, a filosofia tem como ponto de partida a arte poética; no segundo, a poesia tem como finalidade a imaginação do pensamento.

A liberdade imaginativa, o clima de delírio ardente e subterrâneo, a marca onírica, a demência torrencial das visões, as alucinações imparáveis e imprevisíveis, a precipitação de imagens insólitas, a  

medida visionária, as metáforas escaldantes, e sobretudo as sensações espirituais e as plasticizações transcendentes que irradiam do delírio surrealista de Herberto Helder parecem gémeas da luz intensa, que nos leva a compreender o incompreensível, que palpita na escrita simbólica de António Telmo. Este parece traduzir a frio, nas linhas infinitas da sua prosa, a poesia surreal com que o outro incendiou os versos. Herberto empreende o aprofundamento dos fenómenos e das coisas por um deslocamento do sentido; Telmo revela a metáfora como o instrumento da filosofia.

Tanto Herberto como Telmo fazem parte duma raríssima linhagem de poetas e pensadores obscuros que têm procurado desenvolver uma tradição órfica primordial, em que o canto e a palavra aparecem como a salvação do mundo. Nenhum dos dois sucumbiu diante duma época ostensiva e perdulária, onde frutificam as contrafacções, ainda que para isso tivessem ambos de ocultar o talento, retirando-se para uma zona de sombra e de silêncio, donde não mais saíram por vontade própria. António Telmo publicou, numa vida longa que conta de momento 75 anos, seis ou sete livros; Herberto, quase da mesma idade, publicou poucos mais. Em qualquer deles, este silêncio foi menos secura de inspiração que recusa do comércio e da distracção em que, vezes sem conta, a literatura do tempo tropeçou.

José Marinho, um dos espíritos mais vivos e eloquentes de sempre, lastimava há mais de cinquenta anos o esquecimento e os equívocos que pesavam sobre a aventura espiritual da Renascença Portuguesa. Os altos pressupostos espirituais da poética moderna em Portugal tal como a Renascença a entendeu tinham de entrar em conflito com uma época confessional, dominada pela tentação humanista da História. Esse choque traduziu-se na época de Marinho por uma cultura dominante disposta a adaptar sem qualquer escrúpulo crítico ou de consciência o lado mais perfunctório da modernidade. Agravou-se depois, quando a tentação historicista se transformou no grande e massivo espectáculo mediático de divertimento ao vivo que nos rodeia, numa convulsão destrutiva, que tanto é o impasse do actual escol como a agonia geral da vida e dos seus elementos naturais e humanos.

Aquilo que está a suceder à nossa volta, tanto em Portugal como no resto do mundo, é o ruir da arte poética tal como foi entendida na nossa tradição cultural desde os gregos. A aventura espiritual de Orfeu, como tentativa moral de superar as determinantes da nossa condição visível, libertando pela palavra as almas da morte e fazendo da Terra a morada do amor e do conhecimento, que constituiu outrora o fulcro da nossa civilização, foi substituída por uma ordem fáustica, economicista, bélica, de horroroso encarceramento dos corpos numa natureza agonizante. Não vemos, por isso, soluções para o reconhecimento pela actual cultura de massas das ambições espirituais da Renascença Portuguesa e dos seus poetas e pensadores, nem para a nobilitação junto do público de autores que, como António Telmo, têm como única ambição a demanda da metáfora transmutativa.

O que domina uma época bárbara e desalmada é pouco mais do que ruído, sombra, esquecimento. E isto que aqui se diz em relação à Renascença Portuguesa pode ser dito do mesmo modo em relação ao surrealismo português, que foi, na nossa modernidade, o último momento em que o espírito veio ao de cima.

A obra de António Teimo, tal como aqui a damos a perceber, é uma existência fulgurante, cheia da luz forte de iluminações intensas, arrancadas ao sono e às feridas do mundo. Mais do que a obra dum mago, trata-se da verdade dum curandeiro. Ela cativa-nos mais pelo propósito regenerativo que pelo ilusionismo espectacular da prestidigitação. Capaz de praticar, com o seu talento prático, rendosos truques de magia simpática, Telmo preferiu ajoelhar-se compassivamente, quase em silêncio, aos pés dos seres agonizantes que encontrou no caminho da Terra e da Natureza. Foi com essa atitude que criou a sua obra e escreveu os seus livros. Olhou para o alto e sorriu da sua perfeição; ficou para sempre fiel a essa visão, mas dedicou-se a amar as coisas da terra para lhes minorar o sofrimento e as aproximar do Céu ausente.

Orfeu, o nome iniciático que o filho de Apolo foi buscar a Mênfis, quer dizer aquele que cura pela luz. Depois de Aglaonice, a sacerdotisa máxima dos cultos hecatianos, matar Eurídice, o filho de Apoio ouve em sonhos a voz da sua amada, que lhe murmura apiedada:

– Se queres libertar-me, salva a Grécia, dando-lhe luz.

Assim, António Telmo. Visitando o espaço onde Orfeu conquistou o seu nome, ele trouxe da lá, para nos dar, uma filologia simbólica, pela qual podemos relacionar a arte e a luz, o pensamento e a oração.



[1] Este texto resulta da reelaboração de fragmentos anteriormente publicados pelo autor e dedicados à Renascença Portuguesa, a Teixeira de Pascoaes, a António Telmo.

[2] Nota do Editor – Publicado originalmente em António Telmo e as Gerações Novas, Lisboa, Hugin, 2003, pp. 55-79.

VOZ PASSIVA. 118

06-03-2021 10:43

A “Arte Poética”, de António Telmo

Será a televisão a grande prostituta do Apocalipse?[1]

Victor Mendanha

 

«A ideia de que a Televisão corresponde à prostituta que está sentada sobre as águas anunciada no Apocalipse para o fim dos tempos também me tem ocupado ultimamente. É uma prostituta porque recebe todas as correntes, é uma mistura de sémens. Assistimos a uma missa e, no intervalo, a um anúncio de camisas de Vénus. As águas são a humanidade onde se movem as correntes».

Assim fala um dos personagens do profundo diálogo que, felizmente, ocupa um capítulo inteiro da segunda edição do livro de António Telmo, “Arte Poética”, cuja primeira foi editada pelo autor em 1963.

Desta vez coube a responsabilidade da publicação da obra à prestigiada e prestigiosa Guimarães Editores, que a inseriu na sua colecção Filosofia e Ensaios e se falamos em responsabilidade é porque tudo quanto António Telmo escreve, recorde-se o caso da “História Secreta de Portugal”, “Gramática Secreta da Língua Portuguesa” ou, mesmo “Filosofia e Kabbalah”, merece a maior atenção por parte daqueles que estão despertos ou em vias disso.

Falar de António Telmo, além de não ser necessário, é perturbá-lo no seu refúgio de Estremoz, preferindo usar o espaço disponível para aguçar o apetite do leitor com a transcrição de uma amostra do suculento diálogo entre X e Y, a fazer parte deste livro considerado pela editora como “o único exemplar, em Portugal, de uma centena de páginas inteiramente dedicadas à iluminação da literatura pela filosofia, por aquele pensamento que o Autor diz operativo e que consiste, aqui, em ligar a literatura a uma finalidade iniciática”. Avancemos:

«X: Não é Rudolf Steiner que atribui a Lúcifer a criação de uma esfera espiritual própria, rica e prodigiosa, mas separada da criação divina? Esta ideia deixa de nos parecer fantasmagórica quando pensamos na televisão. Televisão é quase um sinónimo de Lúcifer, se decompusermos cada uma das duas palavras nos seus dois elementos e os fizermos corresponder um a um. Só o automóvel disputa à televisão a supremacia no mundo do homem. As aldeias, as vilas e as cidades perderam a naturalidade antiga, como direi?, aquela relação serena da terra com o céu que se exprimia pela arte das chaminés, dos campanários e dos galos indicando a direcção das brisas e dos ventos. Hoje, por toda a parte, onde há casas, oferece-se-nos o espectáculo irritante de todos os telhados com antenas de televisão, lembrando esquisitos insectos».

«Y: A relação que encontrou entre a palavra Lúcifer e a palavra televisão é impressionante».

«X: A ideia de que a Televisão corresponde à prostituta que está sentada sobre as águas anunciada no Apocalipse para o fim dos tempos também me tem ocupado ultimamente. É uma prostituta porque recebe todas as correntes, é uma mistura de sémens. Assistimos a uma missa e, no intervalo, a um anúncio de camisas de Vénus. As águas são a humanidade onde se movem as correntes».

«Y: E está sentada nas nossas casas e toda a família à volta, como se ela desempenhasse a função das antigas lareiras. As antenas usurparam, de facto, o lugar das chaminés».

Fico-lhe grato, meu bom amigo.

 



[1] Publicado originalmente em Correio da Manhã, Dezembro de 1993. 

 

VOZ PASSIVA. 117

24-01-2021 11:03

Pôr a demanda

[História Secreta de Portugal e Horóscopo de Portugal]*

Elísio Gala

 

Se Portugal não existisse, não existiria a filosofia da história de Portugal concebida e ideada pelo filósofo António Telmo. É claro que nos podemos questionar sobre o modo de existência de Portugal: existirá desde Alcácer-Quibir em forma fantasmática? Existirá como um corpo cuja alma foi substituída por um demónio estranho? E estaremos nós habilitados sequer a perceber tais diferentes modos de existência, nós que vivemos na distracção, na espessura e na insignificância tudo quanto diariamente nos acontece?

Parece ser certo que só estaremos presentes no que viermos a ser, se tivermos consciência do que fomos e do que somos. Procura o filósofo ver melhor, interpretando o passado pela sua ideia de futuro, conferindo sentido à história, pela razão primeira do movimento que garantida está no fim ou na enteléquia.

A sua filosofia da história é uma filosofia de visão e de revelação. De visão, porque apresenta aspectos fundamentais da luminosa e superior doutrina da vida e história da nossa Pátria - todos os que vivemos e a cadeia invisível dos nossos antepassados – consubstanciada numa acção consciente e intencional de redimir o mundo do mal e da divisão. E de revelação, quer porque não explica muito, já que há coisas que só ocultando-se revelam; quer porque revelar é voltar a velar para mostrar.

É também uma filosofia da história cifrada e por isso só decifrável na metáfora. Como por mais de uma vez nos ensina António Telmo é completamente inútil procurar nos documentos que os historiadores utilizam, a prova do que avança. Documentos onde tão hermeticamente se guardava a sabedoria da demanda do centro, como o «manuelino» – cifra que cala o mistério da história de Portugal – ou a poesia trovadoresca das cantigas de amigo, influenciadas pelo Cântico dos Cânticos, só falam para “quem sabe e quer pôr a demanda”.

Trata-se por fim de uma filosofia da história fundamental de Portugal. A que não reduz a história da Pátria portuguesa ao culto sentimentalista dos valores pátrios, de que o salazarismo e seu socialismo positivista constituíram exemplos. A que não subordina a Pátria ao pragmatismo economicista, socorrendo-se da tecnologia dominadora da natureza e anulador da ideia de terra natural. A que não é servil perante qualquer internacionalismo com que historicamente nos deparámos.

Como afirma o filósofo, desenho, desígnio e destino, são tudo palavras irmãs. A obra teológica e filosófica de António Telmo – Horóscopo de Portugal – votada ao esforço de patentear o carácter inteligível da sucessão e desenvolvimento dos acontecimentos no tempo, dá dessa irmandade a prova numa zona de ser que não a situada no plano social, político ou cultural. Como assim? Pelo desenho e hermenêutica dessa oração de pedra, que é o sistema simbólico gerador do Claustro da Senhora dos Reis Magos; pela caracterização do desígnio que presidiu à viagem de Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia; pela apresentação do destino transcendente de Portugal desenvolvida com base na simbólica astrológica do horóscopo de Portugal traçada pelo poeta Fernando Pessoa.

Almas de Portugal

 

No pensar de Fernando Pessoa, há vários “Portugais”, que serão em planos sucessivos a manifestação da ascensão gloriosa da alma portuguesa, depois da viagem pelo céu e inferno da sua História: o 1° Portugal, o que nascido com o país está no fundo de cada português, como alma da própria terra, emotiva, clara e enérgica, reflexo do infinito azul e verde do Atlântico; o 2° Portugal cuja alma nascida com o início da segunda dinastia, se tornou subterrânea após Alcácer-Quibir – hora de fractura entre os portugueses – tornando-se então verdadeira, já que a sua origem também era subterrânea, vinda de mistérios e sonhos antigos da alma helénica, de histórias contadas aos Deuses antes do Caos e da Noite, fortificada na sombra e no abismo. Tendo outrora descoberto a terra e os mares, criou o que o mundo moderno possui que não é antigo, como o oceanismo, o universalismo e o imperialismo, produções conscientes do primeiro movimento divino da alma portuguesa, “do segundo estado da Ordem secreta que é o fundo hierático da nossa vida”; o 3° Portugal encontrado à superfície dos Portugueses é o que, após a dominação espanhola, o curso da dinastia de Bragança, da sua decomposição liberal, e da República, formou a parte do espírito português que contacta com a aparência do mundo, reflectindo errónea e hipnoticamente o caminhar do estrangeiro.

Chegado o fim do ciclo da vida de Portugal, afirma Fernando Pessoa em carta ao Conde de Keiserling, que haverá para além do primeiro dia da manifestação da alma portuguesa (aventura terrestre, material, conquistadora de costas e areias, cumprido com a dinastia de Avis), o segundo dia (formidável aventura de natureza supra-religiosa passada na “No God’s Land”, mundo intermediário entre o Homem e os Primeiros Deuses), e o terceiro dia (a prometida conquista do mundo divino, do Céu de Deus, ascensão do povo – o que foi, é e será? – a um plano substancialmente diferente).

 

Da ambivalência da História

 

António Telmo aproxima a tríplice divisão da alma de Portugal, com o horóscopo de Portugal traçado pelo mesmo Fernando Pessoa. Uma das singularidades mais relevantes que o filósofo torna patente é que no curso do Sol – que  o mesmo é dizer, no curso de Portugal e do povo português que é uma história e uma luz na sua manifestação para a exaustão – a inversão do hemisfério superior

e diurno no hemisfério inferior e nocturno se produz nos acontecimentos ou ideias. A correspondência das Casas opostas. Há o mesmo movimento na sua forma luminosa e tenebrosa.

Mas António Telmo leva ainda mais longe a original profundidade das suas aproximações hermenêuticas: apresentando os Jerónimos como os Lusíadas em pedra dos Descobrimentos e os Lusíadas como sendo os Jerónimos em verso; apresentando as razões de prova de que o horóscopo de Portugal é a base astrológica e geomântica da Mensagem, onde Fernando Pessoa rectifica à luz de princípios maçónicos a ideia de Quinto Império nas suas primitivas determinações. Tomando as correspondências elementares do círculo com o Céu e do quadrado com a Terra, imagina o Claustro dos Jerónimos como a figura do horóscopo de Portugal. A Terra relacionada com o Céu, com uma diferença porém: o horóscopo de Pessoa é o desenho dos momentos históricos – passado, presente e futuro – de Portugal; e o Claustro é o desenho dos momentos simbólicos propiciadores do cumprimento do Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia.

 

Dos Ciclos Históricos

 

A história, mais do que um problema a resolver, é um mistério a contemplar. Mistério dependente dos desígnios de Deus e envolvendo a materialidade e contingência humanas. É certo que a história não pode ser racionalmente explicada ou reconstruída mediante leis necessitantes, ainda que possa ser decifrada desde que existam orientações e leis inteligíveis iluminadoras dos acontecimentos sem os necessitar.

Tendo o tempo da história humana um significado e direcção interiores, cada ciclo da história humana apresenta uma natureza inteligível e portanto, particulares características fundamentais. Os ciclos aparecem qualificados de acordo com o esquema dos estados sociais do mundo medieval e caracterizados como: heróico ou dos reis (a ideia de Quinto Império representa-se exemplarmente como contacto com o centro invisível do mundo, no portal voltado ao sul, da igreja de Santa Maria de Belém); do clero (começado com D. Manuel e definido com D. João III e o estabelecimento da Inquisição, a ideia de Quinto Império aparece pela voz de Camões, D. João de Castro e António Vieira, como o domínio da Cristandade sobre todo o universo, domínio que já não atende àquela relação com o centro. E porquê? Pela cisão de dois organismos que se complementavam: o rito antigo e transcendente comum aos povos da Península – árabes, cristãos e judeus – e o rito que adaptou pela religião, essa sabedoria às condições específicas de um povo); do povo (iniciado com o Marquês de Pombal e terminando com a implantação da República, a ideia de Quinto Império conservada ainda de algum modo na Maçonaria, configura-se no socialismo, verdade refractada e, portanto, mal reflectida, imaginado sob a forma de um círculo envolvente sem. centro); a que sucede um período plebeu de subordinação à categoria económica de todas as categorias mentais, período de indeterminação e afastamento do centro que é motor do nosso corpo. Da identidade do princípio e do fim ou enteléquia infere António Telmo, a necessidade de representação do movimento histórico de Portugal, desenvolvido e envolvido serpentinamente por ciclos, comandados pela ideia de comunicação do Oriente e do Ocidente, a ideia de Quinto Império, que enquanto ideia pura só se poderia realizar mediante um contacto com o invisível centro do mundo.

 

O Corpo e o Mundo

 

Organiza António Telmo a sua reflexão sobre o corpo chamando a atenção para o carro e a relação que com ele estabelecem muitos seres humanos. Serve-lhe tal reflexão de pretexto para, ao caracterizar a actual insensibilidade humana, tornar patente as múltiplices quedas que o corpo humano padeceu: da queda de um corpo de luz – por causa da transgressão de Adão – num corpo de carne e da queda deste, num corpo de metal fabricado pela tecnologia proliferadora de queda atrás de queda.

Pode então ser como afirma, que a redenção consista na restituição ao homem de um corpo glorioso – espécie de veículo de luz, de carro da alma nos mundos invisíveis – sem abandono do corpo físico e realizando o prodígio de não saindo do mesmo lugar, estar tão realmente noutro como no primeiro. A doutrina do Carro como Trono de Deus – recebida da visão de Ezequiel – é para António Telmo a imutável matriz sem a qual impossível seria qualquer outra ideia. O aviso de Maimónides no Guia dos Perplexos, não pode deixar de ecoar nas nossas almas: só deve ser esta doutrina transmitida a quem pela idade, matrimónio e pensamento se tenha previamente purificado. É pois uma doutrina para gente madura. Não se pode pôr um carro nas mãos de uma criança!

Se na visão de Ezequiel está a matriz, no Fedro de Platão encontra-se uma possível compreensão dessa matriz dada na imagem que compara a alma a um carro constituída por uma armação de ferros e madeira assente sobre rodas, puxado por cavalos e guiado por um auriga. Forma-se assim o seguinte quadro de relações:


 

Cada um deles constitui um cérebro, uma alma ou um centro, a que António Telmo adiciona um outro factor, o passageiro, que diz ao Auriga, ao condutor, como deve conduzir, qual o caminho que deve tomar, qual o destino da viagem. Este pode não conhecer a região para onde o mandam, mas porque quer ganhar a vida dispõe-se ao risco do desconhecido, aos caminhos difíceis, com desvios, perfeitamente atendendo às indicações do passageiro e não menos perfeitamente dominando o carro. E o carro estará em condições de fazer a viagem?

Tendo sido o homem feito para viajar, tudo o que venha a introduzir nessa viagem qualquer alteração inabitual produz alteração na convivência das três almas. Para António Telmo, como para nós, na maioria dos homens tudo deriva ordenado de baixo para cima, que o mesmo é dizer, tudo deriva da vida instintiva que forma a carne: o cio e a fome. Mas, e repetimos, o homem fez-se para viajar, que o mesmo é dizer, para se abrir às emanações divinas, ordenando-se de cima, do centro, do profundo, para o baixo, a periferia, o superficial. A sua viagem faz-se numa busca da íntima relação dos três centros.

O mundo revela-se em sucessivos graus de profundidade. Ora o percebemos pelo corpo, ora pela alma, ora pelo espírito. Na superficialidade com que tantas vezes vivemos os actos correntes da nossa vida, pouco nos esforçamos para adquirir consciência de nós mesmos, deixando-nos ir no desequilibraste automatismo das actividades. Como conceber então a intimidade daqueles três centros? António Telmo dá-nos dela o esquema geométrico:

 

 

A relação íntima dos três centros, faz com que todas as circunferências se toquem no centro por onde igualmente passam, de onde a harmonização das diversas correntes. O círculo central, o dominante é o relativo à vida sensitiva, não o superior (relativo à vida intelectiva), nem o inferior (relativo à vida instintiva). É pois no plano das emoções que se opera a transmutação do homem num novo homem, com um novo sentimento, uma nova emoção.

A mesma percepção vibrando em formas diferentes, mas em simultâneo nas três almas, permite compreender porque situa Aristóteles a inteligência no coração. É Camões que afirma residir no coração o «ponto fundo» onde convergem todas as percepções. A iniciação pelo amor, a potência divina que tudo rege é o que permite chegar à vida nova. A eclosão desta só ocorre quando a potência vegetativa, dominante em todos os homens não iniciados, for conhecida pelo intelecto, potenciando o que une e separa e separando o que está unido. É a imaginação que promove tal potenciação e separação. Por virtude da imaginação, a energia amorosa despertada pelo poder da feminilidade –  manifestação carnal do Amor – da mulher amada, é conduzida não para o inferior plano da vida vegetativa – plano do fogo que arde, vendo-se e portanto extinguindo-se – mas para o superior plano da vivência da imagem feminina por nós eleita. O amor, lume vivo causador de dor, que queima e não consome, elevado no centro da vida é como uma chaga (equivalente a chakra) - simbolismo fundamental da Pátria - um fogo que arde sem se ver. Conhece o homem com todo o seu ser, pelo que a razão não deve proceder sem a experiência da alma. Na intimidade do encontro dessa razão com essa experiência, o Homem descobre-se. Na intimidade da solidão que essa descoberta constitui, descobre-se o Homem como ilha animada pelo secreto Amor.

A Ilha do Amor coloca-nos em movimento de regresso à natureza, como contacto com aquilo que a natureza é, o lado oculto, as sombras (segundo Pascoaes), imagem secreta das coisas e dos seres. Como? Pela invocação da ideia, pela elaboração dos nomes próprios das coisas, dos nomes que as significam enquanto irrepetíveis, iluminando-as por dentro.

A Ilha do Amor é uma imagem do Centro do Mundo, uma imagem de que está dependente o imenso mundo sublunar quanto ao seu movimento, forma e vida. A visão da «unida esfera», causa em Vasco da Gama, espanto e desejo – forças motoras do conhecimento integral – e parece conferir a quem a vê o dom profético. Nesse microcosmos feito de elementos subtis, residindo em si próprio numa imóvel paz profunda, reflecte-se especulativamente o macrocosmos. Se no coração reside o motor imóvel, o «ponto fundo» onde convergem todas as percepções e todas as potências de vida e de intelecto, é ele a Ilha do Amor. A iniciação não é pois mística ou extática, mas realiza-se e passa-se no corpo, no fim de uma viagem de iniciação, realizadora de um conhecimento integral porque transfigurador do próprio ser. Regressado ao Paraíso o homem torna-se imagem do Arquétipo que o criou. O Simpósio de Platão completa-se com o ensinamento do Livro do Céu.

Atingida a maioridade, o Homem dá dela expressão na vida política e social.

 

Do acesso à Maioridade Política e Social

 

A ideia de maioridade política e social aparece em António Telmo garantida e sustentada na reflexão que faz da Monarquia de Dante. A ideia de uma Monarquia Universal, onde todos os homens participariam na unidade do género humano, estaria ordenada ao fim – próprio do género humano – de tornar em acto a potência de intelecção. Unidade do género humano, não significa igualdade do género humano, homogeneização e indiferenciação geral das matérias. A aceitar uma tal identificação, estaríamos a reduzir as diferenças ao ser genérico. Sendo o homem, na concepção dantesca que Telmo aceita, um ser duplo, dividido entre uma natureza ou plano corruptível pelo tempo e uma natureza ou plano incorruptível ao mesmo, a transformação da potência intelectiva em acto intelectivo, não se traduz numa anulação, mas numa integração das diferenças, base da conversação dos espíritos. Integração do inferior pelo superior, integração final do espírito num centro único do ser.

Um tal processo decorre do exercício do maior dom concedido por Deus à natureza humana: o dom da liberdade. Se livre é o que existe por si mesmo e não por outro e se o Monarca é o que melhor pode zelar pela liberdade do povo, então é entre todos livre aquele que está submetido e atraído pelo melhor, o Monarca representante e símbolo máximo da comunidade. Símbolo máximo da terra dos viventes, vencida que foi a divisão e a morte da terra dos homens. E como identificar o Monarca? Resultado de uma epifania, envolto em poder e majestade, atrairá para a sua volta os melhores, aqueles que não se demitindo de pensar, alimentaram o intelecto superior com razões irrefragáveis, o intelecto inferior com experiência e os sentimentos com a doce persuasão divina, como afirma Dante. Quem será ele? Na concepção de Dante, que também é a de António Telmo, será o Príncipe da Paz. A maioridade política e social do povo patenteia-se na Paz, simbolicamente correspondente ao centro do Claustro, fim para que tendem os quatro reinos da natureza (correspondentes a cada um dos lados do Claustro) e fim para que tende a incontável humanidade.

 

Tomar Consciência

 

A vida de cada homem não é um episódio inconsequente apenas susceptível de prolongamento pela espécie. A consciência que tem do absurdo que a morte representa, implica um tríplice esforço: o de se pensar como consciência que se continua e perdura num espaço e tempo qualitativos; o de reactivar o sentimento metafísico da natureza; o de encontrar pontos firmes susceptíveis de suportarem a edificação de uma nova ordem espiritual.

Se a iniciação consiste na conquista pelo indivíduo de um estado de invulnerabilidade face à morte, como aceder à possibilidade de uma tal “iluminação”, quando tantas barreiras no ensino, nas relações políticas, no trabalho, na relação com a natureza, se levantam à mesma? Ficar firme na solidão de si mesmo, constituindo-se como um ponto isolado é o caminho possível para que a esperança cifrada nos Jerónimos possa de novo bater no coração de cada português.

O sentimento do centro do mundo é para António Telmo a saudade. Aceitando o movimento serpentino do tempo, que se dobra e apoia em cada ciclo sobre um arquétipo, no centro que o define cruzam-se assim, passado e futuro, invisível e visível, desejo e lembrança, presença e ausência. O regresso ao Paraíso, só é então possível – como defendeu Pascoaes – pela iniciação poética pela saudade.

 

Venha a nós o Vosso Reino

 

O Reino de Deus, está próximo no espaço e no tempo, porque nenhum abismo com sua força ou maquinação de degradação, consegue afastar a luz iluminadora que assiste ao homem. Essa luz iluminadora patenteia-se no portal sul dos Jerónimos, centro espiritual significativo de um contacto com o centro do mundo, lugar da manifestação divina, sempre representada como Luz: no alto, a imagem do arcanjo São Miguel, arcanjo do Juízo Final, um dos intermediários celestes que em todas as passagens da Escritura onde aparece é referido à glória da Shekinah; no centro a imagem de Santa Maria com O Menino nos braços e com um vaso na mão onde recolhe os três dons dos Reis Magos ou príncipes de Centro do Mundo: o oiro da realeza, o incenso do sacerdócio, a mirra da mestria espiritual; na base da linha vertical que passa pelo arcanjo e pela Senhora, está a imagem do verdadeiro guardião do Templo, o Infante D. Henrique – responsável pela construção da ermida de Santa Maria de Belém – com três cruzes da Ordem de Cristo verticalmente dispostas sobre o seu peito, olhando as naus na rota para o Sul.

Referimos atrás serem os Jerónimos, um centro espiritual significativo de um contacto com o centro do mundo, lugar da manifestação divina, sempre representada como Luz. António Telmo apresenta-nos o Claustro do mosteiro segundo uma tripla perspectiva: como mnemónica da Viagem; como horóscopo do nosso destino transcendente; como imagem arquitectural, símbolo em pedra do Carro do Deus do Universo e seu trono. Do mesmo modo que o corpo nos leva de lugar a lugar, mas somos nós, os por ele levados, quem o levamos, também nós levados de lugar em lugar pelo Claustro, não seremos nós, os levados, quem o leva?

Para percebermos a profundidade de uma tal afirmação, há que primeiro que tudo, dar a chave interpretativa da série dos vinte medalhões (cinco em cada lado do Claustro), combinada com os elementos contidos nas oito figurações (duas em cada canto) onde se combinam momentos fundamentais do Evangelho. Essa chave é um livro. Encaminhemo-nos para o Claustro dos Jerónimos e aí, acompanhando as indicações de António Telmo façamos a viagem. Um dia basta? Quanto é o tempo que dura o deslumbramento das teses apresentadas e da reflexão que as firme no nosso peito?

 

Um Sonho

 

Há uns anos atrás fui convidado para realizar uma conferência numa Universidade. O tema, se ainda bem me lembro era algo como “A Democracia no Pensamento Filosófico Português”. Tinha como companheiro de mesa um amigo e um mestre admirado, então, como agora, o Dr. Orlando Vitorino.  Se alguém de Democracia me esperava ouvir falar, breve se desenganou. Estava ali para falar de um sonho... um sonho a que atribuíra sentido suficiente para o considerar como significativo e esclarecedor do tema proposto. E também eu me desenganei. Sustentar uma reflexão com base na matéria de que os sonhos são feitos é algo que não se revela a desconhecidos e nos faz conhecer a ironia de alguns que julgávamos conhecer.

O que agora, à distância destes anos passarei a descrever é nada mais do que o esquema desse sonho e a interpretação que dele fiz, socorrendo-me de fontes como Sampaio Bruno, Fernando Pessoa, Agostinho da Silva, Álvaro Ribeiro e António Telmo. Mas cabe a questão: porquê fazê-lo agora? É que à medida que redigia este texto, que lia, relia e trelia a História Secreta de Portugal de António Telmo, muitos dos tópicos sujeitos à sua hermenêutica, revelavam-se-me como susceptíveis de me permitirem projectar uma outra luz sobre a matéria do sonho que me visitara. A descrição e interpretação do sonho que então fiz, só encontraria pois o seu lugar adequado, aqui, no ambiente suscitador de convivialidade que caracteriza num dos seus rostos o pensamento de António Telmo.

Talvez agora me encontre habilitado para uma melhor hermenêutica do sonho, mas perdoem-me os desconhecidos que ainda têm paciência para continuar a ler este escrito, não o farei. E porquê? Por duas razões. A primeira delas é que a matéria desse sonho em contacto com as categorias do pensamento de António Telmo, permite-me adivinhar um movimento, no secreto centro da minha vida. E o que tão secretamente vive proteje-se na segunda das razões: não cair no engano de novamente me desenganar.

O sonho li-o do princípio para o fim e do fim para o princípio. Interpretei-o como uma viagem. Os momentos significativos, se é que no “espaço/tempo” do sonho se pode falar de momentos, são quatro:

 

III

Vi uma baía de mar calmo

I                ***               II      

Carro      Nevoeiro    A pé e só

 

 

IV

Vi um templo cristão

tendo sobre o seu tecto e com o tamanho do mesmo, uma pomba imensa, com um olhar e

sorriso humanos

 

Importa antes de mais esclarecer alguns pontos. Como já referi trata-se de uma viagem, com um primeiro movimento de ida. Depois, no Carro onde viajava era acompanhado por três sombras de forma humana, arredondadas e volumosas, seguindo duas nos bancos da frente e a terceira atrás, comigo, do meu lado esquerdo. À sombra que conduzia, denominei “Pai” no íntimo da voz do meu coração. O Carro em movimento e dentro dele imperando o silêncio. Subitamente no caminho seguido surge forte nevoeiro. O Carro despista-se e quando dele saio encontro-me a sós. Uma vez refeito da excessiva velocidade, do despiste e da solidão em que me encontrava, caminhei aproximando-me de uma baía de mar calmo que sabia situada numa ilha. Foi aí que vi, após voltar o rosto em sentido contrário, o templo com uma cruz de braços iguais voltada a Este e a pomba voltada a Oeste, com o seu olhar e sorriso humanos, como que saudando quem entrava no templo.

O sonho lido do princípio para o fim, foi sujeito ao primeiro nível de abordagem, a abordagem pelo espírito dos elementos: primeiro a TERRA. Porque o Carro se movia sobre ela, não me detendo eu na visão das suas paisagens e das suas raízes, não a considerei como elemento de repouso ou detenção de movimento. O Carro aparentava estar possuído na sua excessiva velocidade, por um espírito voluntarista de domínio, de conquista, de repúdio ou desconfiança da imaginação e da transcendência, susceptível de manifestação nos absolutismos da razão prática, das ideologias e totalitarismos dogmáticos. Agora sei quem guiava tal Carro...; a ÁGUA surge primeiro com o nevoeiro, primeiro com um sentido passivo, como que de uma degradação mental se tratando. Pelo menos assim interpretam o nevoeiro Sampaio Bruno e Fernando Pessoa. Sofri um acidente após entrar nele e perdi os meus companheiros de viagem. Mas surge também com outra face: seja como sede de Sofia (segundo Álvaro Ribeiro), seja como caos cintilante, tradutor da expectação da alma antes do surgir do Sol (segundo António Telmo). Em ambos os casos do que se trata é de uma inquieta fluidez, carente de aventura o que se confirma na visão. da baía de mar calmo, de mar propício à partida; o FOGO, vislumbrei-o na cruz de braços iguais (como a grega ou a templária), símbolo do espírito da verdade – que queima como fogo e que como ele purifica – símbolo também da sabedoria, da revelação divina, do pensamento aberto e transcendente; O AR, surge na Pomba que nele se sustém, nele respira, sobe e voa em musical e ritmado movimento inspirado pelo olhar e sorriso que ela nos dá. E tudo se passa numa Ilha que em si sublima a vivência de todos os elementos. Como nos diz António Telmo, a ilha é um absoluto, representa o Universo e tal como a estrela, cria no infinito a visibilidade pela sua luz. Cada um de nós pode ser essa ilha, sem os egoísmos.

Feita a primeira viagem há que fazer a viagem de regresso e ler o sonho do fim para o princípio. Partindo da afirmação de Fernando Pessoa de que “As nações todas são mistérios / cada uma é todo o mundo a sós”, a pergunta a fazer é: qual a razão de ser de Portugal? Pergunta feita no Templo com a Pomba, sobranceiro à baía de mar calino. A razão de ser de Portugal é teleológica e escatológica, é um diálogo com o divino. A Filosofia da História de Portugal firma-se numa matriz paracletista e espiritualista, claramente negadora do materialismo, do positivismo e do utilitarismo. Enquanto entidade espiritual, Portugal é uma Pátria. Num tempo de patriotismo sentimental, a mensagem recebida no Templo manda-nos fazer a arqueologia da tradição portuguesa. Nos Lusíadas, enquanto livro sagrado da nossa Pátria encontra-se uma revelação recebida por tradição. Qual é ela? Que o galardão de Vasco da Gama é a Harmonia do Mundo; que a obra a realizar (o V Império) é mais do que a do povo português; que a missão dos portugueses não é na terra, mas sim no mar, superando a sua condição telúrica; que a essência da Europa é Portugal, reunião da alvorada – Oriente – e do crepúsculo – Ocidente.

O movimento do Homem português dá-se depois na solidão do andarilho caminhante. Pelas estradas do mundo, dirigindo-se ao Rei, à Aristocracia e ao Povo, pede-lhes que se regenerem pela filosofia. E mais, dá-lhes as causas da crise que também é a sua: causas anti-filosóficas (ataque à cultura aristotélica; oposição à filosofia pela cultura e o ensino; descrédito da filosofia perante a literatura); causas anti-pedagógicas, onde se joga a questão democrática (a didáctica fixista; a preocupação mais com a instrução do que com a educação; a ordenação dos estudos sem curso de ensino, relação de meios a fins ou relacionação espiritual; o ensino elaborado por imitação do estrangeiro); causas anti-políticas (o exclusivismo das ciências e técnicas que oblitera o significado da doutrina que ao Estado cumpre realizar fins espirituais; a formação na opinião pública de uma falsa modéstia que a predispõe a aceitar o preceptorado de um Estado forte; a Constituição, vista mais como um código do que como uma poética representativa da alma pátria).

O nevoeiro surge aqui como uma poiesis transfiguradora, como uma arte de fazer, edificar pela palavra e magia do verso, do ritmo.

Por fim o Carro, surge como o espaço da prece ao divino, como símbolo da retoma da grande viagem cuja condição está em atravessar as portas do silêncio, invocando as sombras.

Que se sugere entretanto? A supressão das organizações de cultura dirigida; dar maior margem de ser pessoa e menor à de ser cidadão; a monarquia anárquica ademocrática, em que cada português possa proclamar o Rei que entender; decretar a liberdade de pensamento em função da autonomia de Portugal, e esta em função da salvação do Homem.

Aí está o sonho... agora calo-me!

 

Conclusão

 

Talvez eu me tenha limitado a papaguear o que li. Mas procurei fazê-lo como se fosse um de entre os trovadores – ousada comparação – esses que automaticamente repetiam as palavras do segredo, sempre do mesmo modo e sempre as mesmas. Repetindo procurei fixar imagens, conceitos, ideias que em procissão ou peregrinação levava e levo comigo para onde quer que vá, como mnemónica de um escudo, como força de uma espada, como palavras de uma oração rezada numa viagem de demanda de luz. É momento de o dizer:

O que me pescou para o pensamento de António Telmo foi a constância no seu vivo falar da palavra LUZ.

Bem sei que não tive a intenção de interpretar, mas que incorri no mesmo erro de quem o faz, que é dizer o mesmo por palavras mais pobres. Bem sei que não fiz hermenêutica, ainda que conscientemente saiba que é de Hermes que tudo parece depender.

No dia em que finalmente perdido o receio de errar e convencido da necessidade da errância, me aprestava para dar forma, conteúdo e finalidade a este texto, quis o destino que um galo me visitasse não certamente para presidir à celebração de um mistério iniciático, mas para marcar com a sua presença o mistério de um início. Não no alto de um campanário ou no alto de uma coluna ele me apareceu, mas postado sobre um braço de uma palmeira, mirando a porta do meu quarto, num lugar chamado Ponta do Sol, voltado a Sul, numa ilha de nome Madeira, rodeada pelo Oceano Atlântico.

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* Publicado originalmente em António Telmo e as Gerações Novas, Lisboa, Hugin, 2003, pp. 35-54.

VOZ PASSIVA. 116

15-01-2021 18:41

António Telmo e as novas gerações*

Pinharanda Gomes

 

Sendo um autor magistral, de António Telmo podemos, sem pejo de mal ajuizar, considerar que o seu pensamento se constitui num método de regime solitário. Seguindo uma via singular, aliás, contemplativa do que se chama de esoterismo, mas que, nos seus escritos, se expressa como leitura do esotérico, dos signos e dos símbolos, é voz única. Hoje em dia, o esoterismo quase se constituiu em modismo, havendo diversos modos de esoterismo, algumas vezes se transmutando em ocultismo, logo incomunicante.

O esoterismo de António Teimo institui-se como leitura, para iluminar ou trazer à luz o que se acha menos patente ou de modo fingido ou alegórico na signalística e na simbólica. Pensador de facto solitário, porque enquanto pensador não deriva de qualquer instituição de colegialidade, tem, não obstante, criado o seu próprio colégio de artes. Por isso, aludimos ao predicado que lhe convém de autor magistral, não implicando neste predicado qualquer conotação escolástica ou imediática. O mestre não pode nem deve dizer que tem discípulos, mas um discípulo pode e deve (neste caso, se achar adequado) dizer quem é o seu mestre. De modo facilitado: é o filho que ao pai chama pai e à mãe, chama mãe. No caso dos pais, têm estes legitimidade para dizerem quem é seu(s) filhos(s). No caso do mestre, a prudência ensina que se absterá de chamar discípulo seja a quem for, pois corre o risco de ser, ou de vir a ser, como tal recusado.

Quem olhar de fora para dentro tem legitimidade para afirmar que António Telmo gerou, além de admiradores, discípulos. São eles gerados, ou na leitura dos escritos, ou na convivencial audição de tertúlias e de encontros, nos quais António Telmo sempre exercita a arte de iniciação no sagrado e no segredo, ou, se quisermos, no cerne ou nas cifras, cabálicas ou enigmáticas do movimento do homem e da vida das pátrias. O seu nome vive nas novas gerações, que pelo seu magistério dão continuidade a um dos regimes hermenêuticos preconizados no movimento da «Filosofia Por-tuguesa», do qual António Telmo é, hoje em dia, e falecidos os demais (incluindo seu irmão, Orlando Vitorino) a principal figura, já activa na primeira geração de discípulos de Álvaro Ribeiro. Ocorre-nos que esse límpido texto intitulado «Arte Poética» (que de certo modo decidiu, mais do que parece, a posterior conformação da sua obra) é de 1963.

Autores das gerações novas, admiradores não necessariamente unanimistas, e outros nitidamente discípulos em fase de assunção de caminho autónomo, reuniram-se num acto de gratulação e de louvor a António Telmo, cuja obra do mesmo passo procuram interpretar, cada um a seu modo revelando o que nos seus escritos é vivaz e paidêutico, ou iniciático.

São dez autores que partilham desta ceia: Joaquim Domingues (arte poética), Elísio Gala (Pôr a demanda), António Cândido Franco (O filho de Orpheu), Carlos Aurélio (Chegada dos Lusíadas à Ilha de Deus), Pedro Sinde (Deambulações em torno de Filosofia e Kabbalah), Avelino de Sousa (Contos de António Telmo), Rui Arimateia (As ideias são comunicadas pelos Anjos), Luís Paixão (Apontamentos Biográficos sobre António Telmo) e, a terminar, levantada por António Reis Marques e João Tavares, a Bibliografia de António Telmo. Pensador de índole poética, mas de modo análogo sistemática, de António Telmo se não dirá que apresenta várias linhas de pensamento, só porque diversos são os géneros literários em que se exprime e comunica. São, estes géneros, modos de revelação da mesma e una linha de pensamento que tem elaborado: um pensamento especulativo que acede do conhecimento interior e activo (o pensamento é movimento) ou actual, ao conhecimento do mundo (Cosmologia) do homem (Antropologia) e da ideia de Deus (Teologia). Neste caso, alguém preferirá dizer Teodiceia, mas a nosso ver o termo Teologia justifica-se, porque no discurso de Telmo, para além da razão natural que obriga a Teodiceia, há nítidos elementos revelados, que elevam a Teodiceia a Teologia. A construção cabálica do discurso obriga necessariamente ao que designaremos por simbologia teológica. E, quanto à Cosmologia, esta vem a aferir-se à Teologia, pois o mundo é, também ele, como o Homem, um sinal divino. Uma ostentação milagrosa, ainda que solicite uma leitura por dentro, descortinando o significado dos sinais e dos recessos ou esconderijos formulados pelas palavras que, para além do significado patente, podem servir para esconder outro, afastado do profano.

Como muitos dos nossos leitores sabem, António Telmo tem privilegiado a aplicação do método aos temas e problemas da História de Portugal e da teoria filológica e gramatical da Língua Portuguesa. Também os textos classificados como contos são enigmas de espiritualidade, mas, na esfera da interpretação mítico-simbólica da Língua e da História, a obra de António Telmo é vivíssima refutação das teorias materialistas ou simplesmente fisiológicas da linguística, e das teorias economicistas acerca da gesta portuguesa no Mundo, procurando revelar como, em todas as situações, o ponto de partida, ou o motor imóvel do real, é operativa expressão do espírito em acto. O homem resulta ser, em si mesmo, e no tecido universal, um mistério da história divina, enquanto mistério, peregrinando História, tem por causa final a redenção do mundo perdido. No reencontro desse mundo, ao homem será dada a ver a última iluminação: frente a frente, e não já pelo reflexo do especulativo espelho.

Cada um dos autores convoca-nos para a rosácea de valores da obra escrita de Telmo. Nesta recensão jornalística impossível se torna especificar todos os argumentos, pelo que nos limitamos a transcrever, do ensaio de Joaquim Domingues, o versículo que nos parece sinopse de quanto ali vem: «Na aparente selva dos símbolos, das metáforas e dos sinais, há uma estrada real que, embora esquecida e obscurecida pelo tempo, se oferece a quem acredita que o saber tradicional é susceptível de sucessivas actualizações, pelo que a esperança não é uma palavra vã» (p. 31). A causa da gesta pátria é a esperança na redenção.

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* Publicado originalmente em O Diabo de 17 de Agosto de 2004, p. 20.

DISPERSOS. 18

10-01-2021 14:03

Carta (inacabada) a António Cândido Franco*

 

A linguística não se distingue da Kabbalah por considerar o que a palavra tem de social, deixando para a arte poética, que a segunda é, o que ela tem de meta-social ou de metafísico. Ao definirem a língua como um meio de comunicação, os linguistas têm inteira razão. Não é pensável língua sem, pelo menos, dois; o seu conceito implica sempre a existência de um emissor e de um receptor. Falamos e escrevemos conversando.

O que é capaz de distinguir a linguística da Kabbalah é a diferença entre a língua entendida como fonação e a língua entendida como audição. Os macacos não falam nem podem falar não é porque não possuam órgãos capazes de proferirem sons, mas porque não têm ouvidos para fonemas. É o facto de o homem possuir o ouvido que falta nos macacos que lhe permitiu adaptar e utilizar para a emissão de palavras órgãos que a natureza não produziu para falar, mas para comer e para respirar. Eu não penso, todavia, que a linguística seja tão oposta ou, pelo menos, tão distinta da Kabbalah em linguistas tais como Emílio Benveniste, Eduardo Sapir e Benjamin Lee-Worf e, talvez, Noam Chomski e Roman Jacobson. Donde veio oposição à Kabbalah foi dos alemães. O estruturalismo que é, como se depreende dos nomes acima referidos, um movimento judaico de reacção no século XX à linguística alemã que dominou todo o século XIX, deve ser interpretado como o modo que a Kabbalah encontrou de se revestir da aparência de uma ciência exacta.

É que a linguística surge no princípio do século XIX como uma disciplina científica, é no modo de se apresentar como ciência que reside a sua força. Ninguém ignora o poder deste moderno estratagema mágico. Só os nomes carregados de valores e, portanto, capazes de produzirem emoções são eficazes socialmente. A modernidade pode ser caracterizada pelo prestígio da palavra científico. Todavia, qualquer sistema de pensamento para se apresentar como científico tem de satisfazer certas condições.

A linguística começou por ser fonética, isto é, por dissociar a palavra do sentido, de modo a tomá-la como pura materialidade.

A intromissão do sentido viria pôr em perigo o rigor da ciência que se pretendia fundar. Era necessário que a língua se pudesse estudar como fenómeno material, analogamente ao que acontece com o objecto das outras ciências.

É um acaso significativo a semelhança acústica da palavra fenómeno com a palavra fonema e de nómeno com nome (nomen). O kantismo está por detrás de Franz Bopp. Os nomes, na fonética alemã do princípio do século XIX, são considerados fora dos seus sentidos como associações de fonemas, sujeitos a transformações ao longo dos tempos, cujas leis (de associação e de mutação) a nova ciência vinha determinar. O conhecimento destas leis constitui a base da linguística histórica e comparativa.

Com a descoberta do sânscrito, os linguistas alemães embandeiraram em arco. As conhecidas afinidades da filosofia alemã com o pensamento hindu encontraram a sua ressonância na linguística. Franz Bopp começou a escrever a sua Gramática Comparada das Línguas Indo-Germânicas e não ainda das línguas indo-europeias. O sentido da designação é flagrante: As línguas indo-germânicas constituiriam um grupo perfeitamente distinto das línguas semitas e o mito pelo qual o hebreu era tido pela língua primordial da humanidade não poderia resistir à demonstração rigorosamente científica do indo-germânico, depois indo-europeu, como a língua original de onde teriam derivado as línguas do mundo civilizado. Diels, outro alemão, veio depois completar o empreendimento de Bopp com a Gramática Comparativa das Línguas Românicas.

Esta finalidade teve como meio instrumental a fonética e por tal modo que a Kabbalah e os seus métodos – a temuria, a guematria e a notaria – ficaram completamente desprestigiados. O combate não foi explícito e declarado. Passou pela destruição do Crátilo de Platão, cujos princípios e cuja doutrina, quando não foram ridicularizados, passaram a ser identificados com a pré-história da linguística. Ainda hoje é corrente afirmar que o próprio Platão não acreditava no que escrevera e que o escrevera para o ridicularizar.

Na verdade, o que acontece é que a gramática de Platão nada tem que ver com a fonética dos alemães, embora esta que nada tem que ver com aquela tenha servido para destruí-la. A oposição aqui entre a linguística e a arte poética é completa. O objecto de estudo não é o mesmo, não é o mesmo o método, o fim também não é o mesmo. Dar a linguística como o resultado de uma evolução que teve início no Crátilo é um erro, se de erro se trata, análogo ao que se comete quando se deduz a química da alquimia ou a astronomia da astrologia.

São diferentes quanto ao objecto. O objecto da fonética alemã é a fala; o da gramática antiga a escrita. Da primeira é o falar vulgar e comum; da segunda os textos poéticos (de Homero, Hesíodo, etc.).

São diferentes quanto ao método. Dou o exemplo do modo pelo qual se determinam os étimos. Para Platão as palavras primitivas são os fonemas enquanto sentidos; para os foneticistas palavras historicamente anteriores que se encontram por comparação de palavras de línguas diferentes. Aqui o sentido não tem qualquer relevância. No Crátilo, o fim é o conhecimento dos nómenos; nos modernos o conhecimento das leis que regem os fonemas enquanto fenómenos.

Esta tríplice diferença foi propositadamente construída. A compatibilidade entre a linguística e a arte poética é possível. O estruturalismo deve ser compreendido, no seu melhor aspecto, como uma feliz tentativa de realizar esta compatibilidade. Falarei disso mais adiante, dando as provas do que afirmo. Por agora, lembro apenas que Ferdinand de Saussure baniu a fonética dos estudos linguísticos, repelindo-a para o domínio das ciências acústicas por não ter em conta significado, sem o qual a linguística fica sem objecto.

No combate que desencadeou contra a Kabbalah, a linguística alemã começou por fazer três coisas. Aboliu a distinção entre vogais e consoantes que as dava como os elementos de uma oposição em que só as primeiras eram fonemas. Repare-se bem nisto porque é muito importante. A manter-se a distinção punha-se em questão a sólida materialidade da língua, indispensável para a fundação da nova ciência. Na fala, haveria sons que em si não eram sons: as consoantes; sons que só se manifestam como tais com o suporte de uma vogal. Vozes só as vogais.

A segunda coisa que fez, que deriva desta, foi a de condenar o estudo dos fonemas pelas letras, entendendo estas, evidentemente, como a representação visual daqueles. Como acontece, porém, que as letras, nos alfabetos anteriores ao grego, não registavam as vogais, elas não devem ser interpretadas como transcrições de fonemas, pois que as consoantes são, nesses alfabetos, o que não tem som próprio. O registo das vogais no alfabeto grego não significa um progresso, mas sim uma decadência. A fidelidade à sabedoria gramatical mais antiga permanece na filosofia grega, uma vez que no Crátilo, no Sofista, no Theeteto e no Filebo só as vogais recebem o nome de fonemas (tá phonéênta).

A terceira coisa, que deriva da primeira e da segunda, consistiu em identificar a língua, não com a forma superior que recebe nos textos poéticos, mas com a fala comum, que é a adaptação à vida prática daquilo que foi criado para outros fins.

Estes três momentos ou movimentos da linguística alemã foram indispensáveis no processo de materialização da linguagem humana.

Na verdade, sabemos nós o que é uma língua? O que é isso que só existe pelo uso que dele fizermos? Só é enquanto acto. Os dicionários são cemitérios de palavras.

Podemos distinguir vários usos de uma língua: o uso proposicional, o lúdico, o uso afectivo, o uso prático, etc. A sua verdadeira forma, aquela em que se realiza inteiramente como acto puro, é a poética. Aí é que devemos surpreender as verdadeiras relações dos elementos viventes que a constituem. O uso que dela fazem os homens está completamente condicionado pela qualidade dos interlocutores.

Verificamos por este caminho que, na prática, ou seja, na vida social nascida de finalidades práticas, entre o significante e o significado não há uma relação necessária. É o que Sócrates admite na terceira parte do Crátilo. A linguística fundada por Saussure no início do século XX (1916) teve que considerar a frase, e não o fonema, o acto por excelência da língua. Digo que teve de considerar porque, sendo um movimento contra a linguística alemã, era-lhe necessário mostrar que a língua é primacialmente significado. A fonética foi repudiada e substituída pela fonologia que restabelece a ideia antiga de elementos e os dá ou interpreta como traços distintivos de significados. É interessante observar neste ponto que Saussure considera os alfabetos tradicionais obras-primas de classificação dos traços distintivos.

O argumento para defender a ideia de que é a frase que comanda na língua o seu movimento portador de significação é o de que as palavras variam de significado conforme a frase em que se integram. É verdade, mas daí não deriva a necessidade de considerar as palavras e os fonemas insignificativos. Diz-se que a pessoa que fala só tem consciência do conteúdo de significação da frase e não das palavras que a constituem. Não é verdade. No uso prático ou corrente da língua, a pessoa não tem consciência desse conteúdo, mas só de uma intenção. A linguagem automática das conversas correntes é formada de sucessivas intenções que se encadeiam sem que haja, até delas, clara consciência.

No uso proposicional da língua, como por exemplo num verídico texto filosófico, o sentido da frase depende do sentido das palavras dominantes. No uso poético, o artista tem plena consciência dos fonemas e das suas intenções.

É esta uma das lições que recebemos do Crátilo. A leitura inteligente do famoso livro de Platão mostra que ele se divide em quatro partes pelas quais se exprimem quatro graus de acesso ao conhecimento do que a língua é. Logo no início, o mais novo e menos sábio dos interlocutores do diálogo, Hermógenes, aparece a defender contra Crátilo a tese de que a relação do significante com o significado é convencional. Fá-lo vinte séculos antes de Saussure. Crátilo ri-se dele. A defesa daquela tese é a prova de que Hermógenes nada sabe ou conhece de sabedoria hermética e, como Hermes foi o deus que ensinou aos homens o alfabeto, o nome de Hermógenes, que significa “gerado por Hermes”, não pode ser o do seu portador.

Sócrates é chamado a intervir e dispõe-se a iniciar Hermógenes no mistério da palavra. O argumento do jovem, em tudo igual ao de Saussure, para mostrar a convencionalidade das significações das palavras é o seguinte: “Ó Sócrates, eu não concebo senão um modo justo de atribuir os nomes: eu posso dar a uma coisa um nome estabelecido por mim; tu à mesma coisa um nome estabelecido por ti. Acontece o mesmo com as cidades. Vejo-as, às vezes, darem um nome diferente à mesma coisa, vejo nisto, que os Gregos divergem dos Gregos e os Gregos dos Bárbaros.”

O plano em que se situa Hermógenes é o plano que a Kabbalah designa por Asiah, o plano da Fabricação. Sócrates vai levá-lo ao plano seguinte, o de Yetsirah ou da Formação. Ali, os nomes aparecem como o que se fabrica do exterior para designar isto e aquilo; aqui, os nomes formam-se a partir do interior do sentido pelas operações da imaginação.

No mundo da alma, a convenção deixa de ter sentido; o que aí domina é a arbitrariedade, não a que resulta de substituir uma convenção por outra convenção como no plano anterior, mas a que é a própria actividade da imaginação procurando o sentido para as palavras. Sócrates diz-se inspirado pelo daimon de Euthyphron, um adivinho de Atenas, dado por completamente estúpido no diálogo que tem por título o seu nome. A erudição alemã baseia-se neste último dado para mostrar que o próprio Platão não atribuía qualquer veracidade às etimologias pelas quais, sob o impulso do daimon de Euthyphron, Sócrates pretenderia mostrar a Hermógenes o erro da sua tese. O facto de algumas dessas etimologias e de outras obedientes ao mesmo processo se encontrarem noutros diálogos de Platão e em momentos de inequívoca seriedade filosófica não perturba a erudição alemã. O filósofo encheu páginas e páginas do Crátilo com elas. Para exemplificar a estupidez de Euthyphron é de mais! Todavia, os eruditos continuam a não se perturbar. Valerá a pena mandá-los ler aquele passo do Fedro onde se diz que as pitonisas que tão elevados serviços prestavam à Pátria, quando o deus as abandonava, eram uns seres iguais a toda a gente e até destituídos do menor grau de inteligência?

De resto, há uma necessidade íntima que comanda essas etimologias. Como se trata de um assunto que toca o limiar de terríveis mistérios falarei disso um dia.

O procedimento que Platão usa de explicação dos nomes existentes nos textos poéticos é o mesmo que a Kabbalah usa para os nomes dos textos sagrados hebreus. Encontramos neste lugar do Crátilo o correspondente da Temuria, da Notaria e da Guematria. Da aplicação da Guematria dou só este exemplo: “Sabes que nós designamos os elementos por nomes, pelos seus nomes, e não por eles próprios, com a excepção de quatro: o e, o u, o o e o ô. Os restantes, vogais e consoantes (phonnesi te kai aphonois), recebem, por meio de outras letras, um nome. Uma vez que por essas letras exprimimos claramente o valor numérico do elemento, é legítimo dar-lhe o nome que revela inteiramente a sua essência. Seja, por exemplo, o bêta. Tu vês que a adição do ê, do t e do a nada alterou a letra e permitiu manifestar a natureza destes elementos com a ajuda de todo o nome, como o quis o legislador (o nomothétês).”

Os exemplos de Temuria e de Notaria são todos os outros. É fascinante observar como as operações com letras, que Sócrates faz, sob a inspiração do daimon, são as mesmas que com imagens faz a alma para a elaboração do sonho. Tenho em mente, já se vê, a interpretação do sonho por Freud. Era útil estabelecer pormenorizadamente a comparação.

O que há aqui a fixar é que Platão não pretende encontrar dos nomes o seu étimo histórico. Se assim fosse, não teria dado para o mesmo nome várias explicações que considera todas verdadeiras. É idiota afirmar que todas essas etimologias são falsas, com excepção de duas ou três, como se o filósofo tivesse pretendido fazer a história do nome que estuda. O plano em que se situa é completamente outro. É o plano de Yetsirah, bem superior àquele em que se situam os modernos intérpretes do Crátilo. Condenar o processo de formação das palavras, tal com o descreve Platão, é tão absurdo como exigir para a alma um procedimento historicista da produção dos sonhos.

O problema que aqui se põe, se há problema, é o das raízes das palavras, se as devemos procurar no inferno ou no superno. O comparativismo alemão determinou o que há de comum entre as palavras de várias línguas e, com algum jeito, ajudado por um tal grau zero que, sendo zero, dá para tudo, encontrou um número razoável de raízes que identificou com as palavras de uma língua falada algures no passado pré-histórico ou fundamente histórico, tão fundo como funda é a nossa ignorância do que só imaginamos por conjectura. Se o português vem do latim, o latim de onde vem? Mas vem o português realmente do latim? Não é este a matéria de que se apoderou activamente o génio que se revelou no português? As transformações fonéticas não obedecem, como se pretende, à lei do menor esforço, porque se assim fosse teríamos não português, francês e italiano mas uma só língua. As línguas não são degenerescências, são generescências.

As raízes no Crátilo são os elementos do alfabeto. Quando Sócrates pergunta a Hermógenes, depois de ter mostrado que os nomes resultam das mutações e das combinações das palavras primitivas, como é que devemos explicar o que não tem nada antes, há uma nova subida de plano, que convém referir àquele que os cabalistas designam por o de Beriah ou da Criação. De facto, é aqui que parece dar-se uma emergência do nada.

Não é de aceitar a explicação onomatopaica dos sons primitivos tal como a formulou Herder e depois adaptaram ao interesse de uma miserável antropologia os seguidores de Darwin. Fica-se indignado quando um homem como Emílio Benveniste nos vem dizer que a linguística considera hoje insolúvel o problema da origem da linguagem articulada e que a única coisa que podemos afirmar é que onde quer que tenha havido sociedade houve, de certeza, língua. Mas os linguistas do século XX têm razão, só que não é o problema que é insolúvel, é que não há problema. A língua não tem origem histórica.

Quem acabou definitivamente com os darwinistas foi Eduardo Sapir. Basta citar: “Se fosse possível demonstrar que a linguagem, de maneira global, considerada nos seus longínquos fundamentos históricos e psicológicos, provém das interjeições, não seria legítimo concluir disso ser ela uma actividade instintiva, mas, na realidade, todas as tentativas para uma tal demonstração da origem da linguagem foram infrutíferas. Não há evidência tangível, de ordem histórica ou de outra ordem, que se preste a admitirmos que a massa dos elementos e dos processos da linguagem seja uma evolução das interjeições. Estas constituem uma porção mínima e funcionalmente insignificante do vocabulário de qualquer língua. Em nenhuma época e em nenhuma província linguística até hoje conhecida vimos sequer uma tendência apreciável para com ela se elaborar a trama de fundo da linguagem. Nunca passaram, quando muito, de um debrum decorativo para aquele amplo e complexo tecido.”

 

António Telmo

 

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* Nota do editor – Publicado originalmente em Teoremas de Filosofia, n.º 9, Primavera de 2004, pp. 28-34.

DOS LIVROS. 69

21-12-2020 11:28

Sétima conversa (Dies Solis

[Das Conversas do Mês de Outubro]


 

[Versão “A”]

Última conversa – Dies Solis

 

Eudoro

Creio que esta é a nossa última conversa. Tendes de partir amanhã para Lisboa os dois. Eu ficarei aqui, como de costume até ao Natal. Gostaria de perguntar-vos pelas razões que fizeram que nos encontrássemos os três esta manhã, em Estremoz, na Missa do Meio-Dia e também como conseguistes descer até lá a baixo, se não íeis na camioneta e não tendes automóvel. Tivestes, porventura, a sorte de arranjar boleia?

 

Marinho

Todas as manhãs, muito cedo, levanto-me e estou cá fora antes do nascer do Sol. Num sítio isolado procuro o lugar para a minha meditação, como dizia o nosso Leonardo Coimbra. Ela consiste, então, em harmonizar a luz reflectida do Sol com a minha essência.

Dou, depois, um longo passeio de alguns quilómetros, que tem como condição sine qua non a de o meu espírito, preparado pela meditação anterior, não deixar entrar as “Rêveries d’un promeneur solitaire”. É o que poderíamos chamar um passeio atlético. Se o Eudoro ceder um dia à tentação de seguir a minha técnica iniciática terei o maior prazer em ensinar-lhe os segredos do “andar”.

Podeis ver agora a razão porque não me encontrastes na camioneta e me vistes a assistir à missa em Estremoz. No que diz respeito à outra pergunta, não constitui surpresa, certamente, para si ver afirmar a verdade de todas as religiões.

 

Álvaro

Não tenho o segredo da marcha atlética. Mas também não sei explicar-vos, uma vez que não me vistes na camioneta, como me transportei até à Igreja de Estremoz. Há, no Louis Lambert de Balzac, o relato de como o protagonista, visitando, pela primeira vez, determinado lugar do seu país, se surpreende reconhecendo, com toda a lucidez do pormenor, tê-lo visto já. Uma das hipóteses explicativas do fenómeno dada por Balzac é que tenha estado em corpo astral nesse lugar, enquanto dormia. É estranho, porém, que o Eudoro me tenha visto.

 

Eudoro

O mais extraordinário é que a Missa tenha sido a do Dia de Todos os Santos.

 

[Versão “B”]

Domingo, Dies Solis

 

Leonardo[1]

Chegámos ao sétimo dia e pergunto-me a mim mesmo qual é o resultado nos nossos espíritos destas tarde passadas a conversar. Estou como que estarrecido, atordoado, perturbadíssimo, cheio duma inquietação vazia. Nunca como agora me pareceu tanto que o nosso ideal de vida deve ser a vida simples de se deixar repousar no espaço e deslizar no tempo sem choques nem atritos: conduzir virgilianamente as nossas almas para o redil de Deus, transformar os choques das ideias em balanceados chocalhos, soando no ar puro do entardecer. O nosso sol aqui é sempre o sol do entardecer, a jubilosa luz da noute[?], a divina luz que se esparge como um lago pela superfície da treva.  

Ides partir para Lisboa amanhã. Ficarei aqui até ao Natal com o problema imenso de encher o tempo, não de Pensamento, mas de Ser. A arte de enganar o tédio está toda em ser em si sem pretensões de ser outra coisa, numa íntima e perfeita harmonia com o actual ter. Tenho o vale do Infante, as ovelhas, os patos, as oliveiras e as laranjeiras. O meu olhar pousará na distância sem outra preocupação senão a de ser olhar.

Que me importa que, lá fora, se construa a humanidade dos computadores, que o mundo corra para um precipício, que a estrela da manhã se levante um dia sobre os escombros do cataclismo?

Tive, contudo, o último cuidado de gravar as nossas conversas para que alguém, procurando um editor, as entregue ao mundo. Não sei se elas irão fazer mal ou bem aos homens e às mulheres que as lêem. Talvez sirvam, depois de uma primeira perturbação, para purificar as almas, dando-lhes o gosto das coisas simples, o prazer de uma vida desinteressada, em que o próprio Deus seja concebido como um Espírito sem cuidados, que pelo facto de ser faz ser todo o Universo. Que as nossas orações saiam dos nossos lábios como a água das fontes dum tufo de avencas!

 

Álvaro

Não quero continuar a perturbar o seu e os nossos espíritos com a Ciência do Bem e do Mal, mas não posso deixar de observar que o Leonardo[2] deveria ter deixado para ontem a cessação de todos os trabalhos, embora como bom cristão ponha o seu estado de alma de acordo com a essência dominical do dia. Eu corrigiria de bom grado o adágio popular para “não há Sexta sem preguiça, Sábado sem sol e Domingo sem missa”, pondo-o em consonância com os três dias consagrados pelas três tradições. A revelação de Deus a Maomé é, porém, a última na magna ordem do tempo. Dou a palavra a José, o egípcio.

 

josé

O sétimo é a cessação depois dos seis dias do trabalho da criação. Regressamos à unidade original com o Domingo que é o primeiro dia, o do Fiat Lux. Com o dois vem de novo a divisão. Há que levar a divisão até ao fim para que possamos receber uma nova Revelação.

 

Leonardo[3]

O trabalho da criação, de labore solis, a legenda de João Paulo II. O sol brilha porque é, sem esfoço. Deus disse: Faça-se a luz. Nem sequer teve o trabalho de pensar. Não há o pensamento e depois a palavra. É, por isso, que nos arrependemos de ter dito e não de ter pensado mal dos nossos semelhantes.

 

 josé

Ah! Mas esse esplendor instantâneo do Espírito que as nossas mentes tardas não são capazes de acompanhar e por isso só depois o vemos na imagem fixa e luminosa do espaço não haverá um meio que, sem dúvida, tem de operar no instante, de o encontrar. Adormecemos logo no instante seguinte que nos aparecerá como o curso contínuo do tempo, mas algures nos abismos trevosos das almas esse esplendor será a semente duma luz para a humanidade.

 

Laus Deo 

 

Álvaro

As suas palavras acordam-me para uma antiga perplexidade. Como devemos imaginar a redenção? Vemos morrerem um a um os portadores de uma luz que brilha efemeramente nas trevas e logo se perde com eles nas sombras do abismo; se a visão de um poeta ou a concepção de um filósofo tem a sorte de ser atendida e se propaga logo se faz dela uma aplicação afinal contrária às intenções do seu portador. Os portadores da luz vão rareando e a mediocridade avassala todos os espíritos. Haverá um tempo em que nem um só restará no mundo. 

Por outro lado, podemos modificar alguma coisa pela acção, poética ou outra? Não vemos todos os homens a seguirem docilmente como crianças ou insensivelmente como autómatos ou entusiasticamente como imbecis as ideias que os arrastam para o abismo? Alguns, perante este espectáculo, e você Leonardo[4] é um deles, desistem de pensar. Para quê pensar? Para quê agir? Para quê procurar exercer influência? Não há nada a fazer. Estamos inermes, nós que temos consciência da avalanche.

E no entanto… No entanto, há um modo de conceber a redenção, anunciada por todos os profetas e, portanto, certa, um modo que a torna explicável e ao movimento de descida que parece torna-la impossível. É aquele que podemos apreender através do Criacionismo de Leonardo Coimbra. Há uma perda contínua de energia que arrasta os mundos e os homens para a homogeneidade da morte; mas ao mesmo tempo se vai ganhando a luz da vida que, por um processo misterioso, fica oculta e se conserva e aumenta em formas que a visão dos poetas e a inteligência dos filósofos concebeu. Não foi em vão que eles viram e pensaram porque, logo que o processo entrópico pareça chegar ao fim outra humanidade aparecerá na terra que é a quintessência dessa mesma humanidade de que só resta o cadáver. Há na Terra lugares misteriosos para onde vão as almas que parecem ter abandonado a Terra. Talvez num reino subterrâneo… ou em ilhas que desaparecem logo que nos aproximamos.      

 

Leonardo[5]

 

[Versão “C”]

Domingo, Dies Solis

 

Leonardo

Admitamos que a redenção, prometida por todas as religiões, vai ter lugar num tempo mais ou menos próximo. Como devemos concebê-la?

Alguns, prevêem, por X+B, sendo B uma deflagração atómica ou coisa no género e X o tempo, a destruição da humanidade, senão do planeta. Tudo quanto “Deus sonhou, o homem pensou e na Obra conseguiu”, terá sido em vão pelo menos neste mundo. Imagine-se, porém, que os grandes abutres da morte, que julgam poder comandar os destinos do mundo, se enganam. Há o X, mas não há o B. Haverá sim X+Y, sendo este, como a letra indica, a separação final dos bons e dos maus, ao som da trombeta sagrada do Anjo de Cristo. Incompreensível Fiat se os bons há muito desapareceram da face da Terra! Filósofos, poetas, santos e profetas foi em vão que existiram e disseram. O destino de cada ideia, por esplendorosa que seja no início, é o seu obscurecimento e a sua degradação. As belas ideias são utilizadas pelas inteligências negativas para intentos tenebrosos. A própria doutrina de Jesus Cristo obedeceu fatalmente ao mesmo destino. Os sábios morrem um após o outro sem que a semente deixada floresça como convém. Ao longo dos séculos, dos anos, dos meses, o número das “almas verídicas” é cada vez menor. Já não nascem. Haverá um tempo, em que tudo estará nas mãos dos medíocres e, o que é pior, não haverá ninguém para apontar essa mediocridade. É então que a roda parará, antes de começar a girar ao contrário? Onde vai buscar a energia espiritual para essa mutação brusca de direcção?

Não à humanidade que não a tem. Se é a outro plano da existência que relação há entre esse plano superior de existência e a inferior humanidade?

 

José

Podemos estabelecer uma relação que reside em ser esse plano de existência constituído pelas ideias dos filósofos, dos poetas, dos santos e dos profetas. Imaginamos uma ilha “nas entranhas do profundo mar” para onde vão as almas que “se foram da lei da morte libertando”. Com elas está o que houve de verdade nas suas visões. É uma nova humanidade, ou o corpo incorruptível desta humanidade, que, tornada cadáver, despirá como a serpente despe a pele. Ela habitará a Terra, dando início ao novo ciclo. Eis porque os nossos esforços nunca são em vão. Não nos iludamos, porém, julgando que nos é possível impedir esta descida para a morte. No fim dos tempos, escreveu o Evangelista que se salvarão apenas aqueles que andarem por cima dos telhados.

 

Álvaro

Considera, por isso mesmo, inútil, se não maléfica, qualquer acção política, até quando a teoria que a provasse lhe pareça admirável?     

 

José

Uma teoria política, admirável como diz, servirá para construir o novo mundo, mas é um engano pensar que ela se pode, desde já, traduzir em acções que não sigam a lei geral da decadência do homem. 

 

Álvaro

Faremos o que pudermos, mesmo que os telhados nos caiam em cima com o peso dos iniciados.     

 

José

Os iniciados não têm peso.

 

Leonardo

Como, tendo peso, é possível subir para cima de telhados que, muito além das nuvens, tocam na esfera da Lua?

 

Álvaro

Perdão se me esqueci de que as palavras do Evangelho têm um sentido simbólico. Toda a minha dificuldade, é que não se pode pensar uma teoria política independentemente da acção que a realiza. Se soubermos remar contra a maré vazante, do nosso barco se levantarão as ondas que uma boa imaginação verá tocar as portas lunares dos Céus. O que é necessário é estar atento aos modos dessa lei geral de decadência do homem para que saibamos pôr nos lugares justos as acções políticas justas.

Ainda não foi dada a ordem de desistir. Ainda não se ouviu, vinda do fundo do mar, a voz que proclama que o Deus antigo morreu. Nada nos assegura que na Terra não viva ainda o último sábio.

 

Leonardo

Este optimismo do Álvaro casa-se estranhamente com a mais nítida consciência da realidade do mal.

Para ele o importante, ao contrário do José, não é a relação do pensamento com o ser, mas a do pensamento com a acção. Tal confiança no homem, no pensamento do homem, choca com o meu sentido religioso que tende a ver tudo suspenso do pensamento de Deus.

 

Álvaro

Não há contradição entre o seu ponto de vista e o meu. O pensamento do homem – a razão – é capaz de eficaz actividade no plano terrestre porque comunica com os seres invisíveis, superiores a nós, interessados na redenção que é a espiritualização do Universo. Tais causas de espiritualização movem-se entre Deus e nós. O que não posso aceitar é, como uma vez me disse o Leonardo, que “o homem seja uma inutilidade num mundo feito”. Ele é, para nos exprimirmos por uma famosa expressão maçónica, “o obreiro dum mundo a fazer”.

 

José

É muito agradável verificar como pudemos ter vindo a conversar durante sete dias dentro de um perfeito entendimento de pontos de vista diversos. Por mim, daria por terminada esta reunião, que é a última, já que partimos, eu e o Álvaro, amanhã de manhã para Lisboa.

 

António Telmo

 

(Publicado em Capelas Imperfeitas - Dispersos e Inéditos, 2019)
 

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[1] N. do O. – António Telmo substituiu “Eudoro”, nome próprio primeiramente manuscrito no original e por si riscado, por “Leonardo”.

[2] N. do O. – No original, Eudoro.

[3] N. do O. – Idem.

[4] N. do O. – No original, Eudoro.

[5] N. do O. – Idem. O texto termina abruptamente neste ponto.

 

 

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