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INÉDITOS. 01
18-01-2014 16:35Seja qual for o ponto de vista em que se coloque -- o teorético, o biográfico ou o histórico --, o leitor deste extraordinário escrito inédito de António Telmo não deixará de se dar conta de que está perante um texto da maior importância. Saída do espólio do autor de Arte Poética, a carta dirigida, mas nunca enviada, ao irmão do seu signatário -- o filósofo Orlando Vitorino --, cujo objecto incide em boa parte sobre a história da tradição judaica, surge agora comentada pela voz autorizada de António Carlos Carvalho, e inaugura uma das linhas de força do projecto António Telmo. Vida e Obra: a publicação de inéditos ou dispersos télmicos nunca antes reunidos em livro, adrede acompanhada daquele módico de estudo que a sua apresentação ao leitor requer. Pelo meio, damos a conhecer o escrito de Orlando que motivou a missiva.
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Ao Orlando Vitorino sobre “O Processo das Presidenciais 86”
António Telmo
Recebi a tua Epystola ad Parvos, à qual quiseste dar a forma de novela (no sentido que Álvaro Ribeiro dá à palavra na Razão Animada), li-a encantado de uma ponta a outra, (o episódio de Borba, por exemplo, é uma obra prima do género literário) (…). A apresentação tipográfica (papel, formato, capa, etc.) é uma maravilha condizente.
Um dos valores da tua inteligência sem par é o sentido das relações imediatas, preconizado por Leibniz, o sentido da evidência da verdade. A verdade é, em si, o que é evidente; basta olhar, mas os homens não seguem o caminho mais breve entre dois pontos reais e, cegos para si e para Deus, procuram no futuro ou no passado, no oculto e no remoto, o que é necessariamente presente aqui e agora, porque a verdade do espírito não se pode conceber senão como acto puro invencível, que elimina eternamente a distância e todo o intervalo. E é por isso que a fenomenologia do mal só pode constituir uma ilusão teatral ou uma novela ridiculamente diabólica, cujos efeitos nefastos se desfazem mostrando: basta tirar umas tábuas, deixar correr o espectáculo com o ceno à vista e, terminado quando, com o vermos, o quisermos terminado, voltar a pôr os “bonecos” na caixa onde se guardam as coisas inúteis.
[VARIANTE A:] Infelizmente não pude fruir um prazer intelectual análogo, ao ler o capítulo sobre “Os Camitas” (p. 33). Quando passei a idade dos 14 anos, que é, segundo os talmudistas, a idade em que é permitido ao rapaz ler e estudar o Pentateuco, tive-te como meu primeiro mestre. Depois seguiu-se o Eudoro de Sousa, o José Marinho, o Álvaro Ribeiro, o Agostinho da Silva e o Max Hölzer, que me prepararam, passando como quem não quer, para conhecer o único e verdadeiro mestre, de cujo nome o meu, teu Pai, pôs o remoto sinal etimológico ao baptizar-me de Telmo e até os que gostam de utilizar um diminutivo serviram, sem saber, a mesma ideia. Recordo nitidamente preceitos e ensinamentos dessa época distante, em Arruda dos Vinhos, quando o Anjo do Bem passou a assistir-me ao meu lado direito. Um deles era, e é, o seguinte: “Nunca devemos combater uma doutrina apresentando-a na sua forma degradada”. Efectivamente, o espíri- (…)[1]
[VARIANTE B:] De todo o livro, aquilo que mais directamente me interessou foi o capítulo sobre “Os Camitas”, porque também eu pertenço ao número dos ocultistas, nascidos do “desprezo para com os activistas políticos e da agressividade para com a vazia cultura oficial”. E aqui também gostei de concordar com o repúdio do guénonismo, embora esse repúdio, pela minha parte, seja por razões contrárias às tuas, porque assenta no facto de ele representar uma corrente adversa ao ocultismo, no qual René Guénon via, como viu no bergsonismo, na filosofia alemã e em Goethe e não só na ciência ocidental, um fenómeno de origem diabólica, para o que muito contribuiu certamente a sua educação familiar católica, decisiva na posição polémica que tomou em relação à Maçonaria em que foi iniciado e que mereceu os aplausos calorosos dos eclesiásticos que, na época, dominavam a burguesia francesa. Os agrupamentos que se formam à volta de René Guénon não são mais do que a manifestação desviada de um catolicismo subconsciente que tem vergonha de se mostrar tal qual é a si próprio.
O ocultismo ou o que correctamente se pode entender por esta palavra recentemente criada é o domínio das Ciências Ocultas. O estudo e a prática da magia invocatória aparece, no Fausto, antes do pacto com o diabo. Aquele que Deus, no Prólogo, considera o seu primeiro servidor, “que O procura ardentemente na obscuridade e quer, em breve, conduzir para a luz” só depois, pelo pacto com o diabo, arrisca a sua alma. O espírito do mal é o espírito que nega, mas é também ele quem restitui ao velho sábio a juventude perdida, lhe dá o amor das mulheres e o poder político junto do Imperador; o que o salva é o conhecimento, que soube manter e aumentar através das vicissitudes do mal. Se o pacto pode ser interpretado só como simbólico, parece querer-nos dizer Goethe que os homens superiores têm todos uma inquietante e misteriosa ligação com o espírito do mal, mais ou menos consciente, consoante o grau. Ela é bem evidente em Leonardo Coimbra e em Teixeira de Pascoais, descarada em Fernando Pessoa, profundamente reflectida em Álvaro Ribeiro e Sampaio Bruno, constantemente poetizada em José Régio, dramática em José Marinho. Sem luciferismo não há arte, de filosofar ou outra, mas o estudo das Ciências Ocultas faz-se sob a inspiração do Espírito Santo. Pelo menos, se mais não tivéssemos, bastar-nos-ia para o saber “A Tempestade” de Shakespeare. Compreende-se assim que Álvaro Ribeiro tenha escrito nos últimos anos de vida que só as Ciências Ocultas são capazes de nos descobrir a verdade. (Prefácio ao livro de Conceição Silva sobre “O Mistério dos Painéis”).
De facto, como tu dizes, carecemos de uma interpretação de Pascoais e de Leonardo Coimbra, em que o pensamento destes dois homens surja como a finalidade que “o ocultismo procura” e que tu defines, para o primeiro, como uma sabedoria, criada “desde a origem e para além da erudição, em símbolos poéticos com vivida experiência e conceptualizada intuição”.
Quando pões nesta sabedoria a razão do patriotismo, cuja exigência os ocultistas recebem imediatamente de Fernando Pessoa, como foi talvez o meu caso na História Secreta, e estabeleces como condição de aprofundamento, mais real, desse patriotismo o pensar Pascoais e Leonardo, evocas O Encoberto de Sampaio Bruno e, em meu entender, com perfeita razão, porque O Encoberto é, como se vê no final de A Ideia de Deus, o Messias dos cristãos novos, Senhor das Ciências deste e do outro mundo.
Custa-me dizer-to, (“Irmão de Orlando, mas mais irmão dos que sabem”), mas a tua interpretação de O Encoberto é incompleta e não tão correcta quanto pretende ser. Nunca Sampaio Bruno poderia ter identificado judeus e camitas. “Os judeus, – escreves – dividiram-se em semitas, ou descendentes de Sem, e camitas, ou descendentes de Cam, o filho que não honrou seu Pai”; Sem e Cam, com Japhet, são filhos de Noé e só muito tempo depois aparece Abraão, que vem do outro lado do rio, e dá origem, por isso mesmo, aos hebreus; Abraão é da linhagem de Sem e é a razão por que os seus descendentes são semitas; Israel é o nome que Deus pôs a Jacob; a designação de judeus julgo provir do nome da principal tribo israelita, a tribo de Judá. Os filhos de Noé são relativos aos vários ramos em que se dividiu a humanidade. Os semitas, que honravam Pai e Mãe seguindo o preceito de Moisés eram odiados pelos povos descendentes de Cam que não honrou seu Pai. A não correcção é importante, não por ser incorrecção, mas porque desvia a exacta interpretação do Encoberto que tem de procurar-se precisamente na oposição dos camitas aos semitas (estes, judeus e árabes); com Abraão acabaram os sacrifícios humanos, já que Isaac foi substituído por um animal, com Cristo, que representa Caim e não Abel, os sacrifícios animais foram substituídos pelas espécies vegetais do pão e do vinho. A Inquisição, filha de um catolicismo africano (palavras de Bruno), repõe, em nome de Cristo, os sacrifícios humanos. Os Reis e os Sacerdotes assistiam jubilosos ao suplício das vítimas por entre os apupos de gozo dos camitas. Os Jesuítas, ainda segundo Sampaio Bruno, combateram a Inquisição porque a Companhia se tinha organizado a partir dum grupo de conversos, possivelmente, não o diz Bruno, de conversos árabes, se a semelhança entre os exercícios espirituais de Santo Inácio e os exercícios espirituais sufis é, como mostra o jesuíta espanhol Asín Palacios, um facto inegável. Em Portugal, predomina o cristão-novo de origem judaica e em Espanha o cristão-novo de origem islâmica. Em Álvaro Ribeiro a filosofia portuguesa tem como missão realizar a síntese católica das três tradições.
São direcções que ficaram por explorar na tua interpretação e por isso a disse incompleta. Não é, porém, um pequeno capítulo que vem diminuir o valor do teu livro. O seu êxito também não sofrerá com isso. Em Portugal, entre as pessoas que escrevem, só eu e tu sabemos um pouco melhor do que os outros “a única coisa que importa”. Oxalá outros apareçam melhores do que nós e eu não posso deixar de admirar a inteligência que, através dos teus escritos políticos, abre caminho à consciencialização da nossa mediocridade geral e à exigência de filosofar como convém.
Do teu irmão
António Telmo
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Os Camitas[2]
Orlando Vitorino
Na segunda conferência da noite, limitei-me a chamar a atenção para a exigência de uma correcta leitura da interpretação que Sampaio Bruno, em O ENCOBERTO, faz, não tanto do sebastianismo, como da decadência histórica dos Portugueses.
Há hoje entre nós numerosos ocultistas, fenómeno que, além de extensivo a diversos povos europeus, é o equivalente intelectual do revivescer da religiosidade por desprezo para com os activistas políticos e por agressividade para com a vazia cultura oficial. Esses ocultistas de origem e expressão intelectual chegam a organizar-se em agrupamentos “tradicionais”, como os de simbologia “templária”, realizam cerimónias e simpósios internacionais a que dão, paradoxalmente, a mais desocultante publicidade e ocupam, ainda mais paradoxalmente, cátedras universitárias. A sua via de iniciação mais frequente é a obra do francês René Guénon, obra de leitura muito fácil e sugestiva, sobretudo para adolescentes. Constitui ela um constante e azedo, embora fundamentado e justificável, requisitório contra a civilização ocidental, que reduz ao que resultou da ciência moderna, considerando-a uma profanação desvirtualizadora mas substituindo-lhe um sistema de rememorações orientalistas que desenvolve em círculos viciosos de semelhanças, sincretismos e identidades simbólicas. Os iniciados são, deste modo, levados a afastar, das imagens e dos símbolos, os conceitos e as noções, ou seja, a filosofia e o pensamento. Ficam a braços com símbolos vazios e imagens sem legenda. Ficam ignorando que a única iniciação intelectual na verdade que a religião guarda ou de que dá imagem e símbolo, é a filosofia, e disso temos o mais eloquente exemplo na biografia espiritual de Leonardo Coimbra da qual Santana Dionísio acaba de publicar o admirável e indispensável guia.
O inspirador sempre presente e exaltado dos nossos ocultistas é Fernando Pessoa. O ocultismo de Fernando Pessoa é de carácter erudito ou, como ele próprio dizia da erudição, parasitário, mas revela-se com originalidade na poetização de uma imagética para a história de Portugal. O que o ocultismo procura como sua finalidade é o que, não Pessoa (e ele bem o sabia e disse), mas Pascoaes, criou desde a origem e para além da erudição, em símbolos poéticos com vivida experiência e conceptualizada intuição. Os nossos ocultistas preferem, porém, o poeta-artista (para empregar uma distinção de Régio), que vai da imagem para o conceito, ao poeta-pensador, que vai do conceito para a imagem. E porque ao poeta-artista muitas vezes acontece ficar pelo caminho, se dispensam eles de seguir o caminho até ao fim.
Esta nebulosa de ocultistas poderá evanescer-se. Mas entretanto afirmou uma exigência de patriotismo que recebeu imediatamente de Pessoa, procurando agora transitar dele a Sampaio Bruno. Enquanto não ascender a Pascoaes e, de Pascoaes, a Leonardo, carece de uma correcta interpretação do autor de O ENCOBERTO, que começou já a ser preparada no 1.º volume do livro de António Quadros, PORTUGAL, RAZÃO E MISTÉRIO.
Sampaio Bruno não é um sebastianista, como muitos entendem. Pelo contrário: o sebastianismo afigura-se a Bruno uma expressão degradada de um messianismo universal. E o que, no seu livro, constitui o primordial elemento para a interpretação ou a filosofia da história de Portugal é, primeiro, o predomínio dos judeus que se instalaram tão profundamente entre nós que neles estão nossas raízes espirituais e étnicas; é, depois, o conflito entre camitas e semitas que dilacera a diáspora hebraica e se manifesta, explicando-a, na lenta, mas funda decadência dos Portugueses, desde o Séc. XVI até nossos dias. Dessa decadência, vê Sampaio Bruno que o segredo se encontra nas razões e fins que teve a Inquisição, estabelecida entre nós quase ao mesmo tempo em que se deu a enigmática expulsão dos judeus e o aparecimento do sebastianismo. Para aquém dos Autos-de-Fé e do Santo Ofício, para aquém da sua abolição, muito para aquém, a Inquisição ficou-nos no sangue. Há, em cada Português, um inquisidor, um inquiridor, um juiz. A nossa inteligência imediata é judicativa e nossa acção procede por juízos. A filosofia portuguesa, da qual Bruno foi o precursor senão, como entendia Álvaro Ribeiro, o fundador, é, porém, o contrário e o remédio dessa idiossincrasia degradante. Demonstra-nos e descreve-nos Santana Dionísio como Leonardo Coimbra opunha à inteligência judicativa a razão compreensiva e a bondade. José Marinho dava, a um dos seus primeiros ensaios, o título de NÃO JULGARÁS, ao mesmo tempo que denunciava o vício judicativo dos orientadores da “cultura oficial”, como António Sérgio. E Álvaro Ribeiro negava, em termos sistemáticos, o valor lógico do juízo.
Como, porém, identificar Inquisição e Judaísmo? Não foram eles, precisamente, irredutíveis opostos e inimigos? É o que Bruno explica. Segundo ele, certos sectores da Coroa, ou do Estado, como da mesma Igreja, contrariaram, primeiro, o estabelecimento da Inquisição; depois, os Reis e a Igreja chegaram a decidir pôr-lhe fim. Quem os impediu foi o povo. Bruno determina melhor: foi o povo de Lisboa e do sul do país. Autos-de-Fé, houve-os em Lisboa, mal chegaram a Coimbra e, ao avançarem sobre o Porto, depararam com a repugnância, a indignação e a oposição invencível das populações que assim impediram a sua realização, ao contrário do que acontecia na capital onde eram espectáculos jubilosos para os populares. Como entender? Diz-nos Bruno que assim:
Os judeus dividiram-se em semitas, ou descendentes de Sem, e camitas, ou descendentes de Cam, o filho que não honrou seu Pai. Um ódio sem tréguas os divide. Os camitas expandiram-se pela África do Norte e um ramo deles instalou-se na metade sul de Portugal. Foram eles que sustentaram, contra Deus, contra a Coroa e contra a Igreja, os Autos-de-Fé em que eram queimados, não os judeus indiscriminadamente, mas os semitas.
Esta distinção entre semitas e camitas é, digamos, viva e presente, nos países africanos. A população dominante na Argélia socialista de hoje, reconhece-se, afirma-se e orgulha-se como camita. Na África Central, no Congo por exemplo, singularizam-se as tribos negras cruzadas de camitas, como aquela a que pertencia Lumumba que, nos anos 60, abriu as portas ao socialismo russo. Depois dos Autos-de-Fé, depois dessa obsessão de julgar e inquirir, ou “levantar inquéritos” a tudo e a nada, os camitas do velho republicano, democrata e sábio que foi Sampaio Bruno, recorrem agora ao socialismo?
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Comentário
António Carlos Carvalho
Três considerações prévias:
- O movimento da Filosofia Portuguesa, precisamente porque é movimento em vez de sistema, não prescreve nenhum pensamento único, antes pelo contrário, defende e cultiva o pensamento livre de homens livres e a diversidade de pontos de vista sobre a Humanidade e os mistérios da Criação;
- A Bíblia continua a ser um volume encadernado que convém que figure nas prateleiras bem à vista mas que geralmente não é lido e, quando o é – fenómeno raro --, geralmente é mal entendido, sobretudo porque essa leitura, numa tradução duvidosa, não é, como deveria ser, acompanhada pelos comentários (a tradição oral depois compilada no Talmude, aliás queimado às carroças cheias, durante séculos, nas praças europeias, incluindo algumas portuguesas);
- Precisamente de acordo com os comentários, mas contemporâneos, do sábio Léon Askenazi, a mesma Bíblia pode ser entendida como uma recorrente insistência sobre a necessária construção da irmandade ou fraternidade, tomando como exemplos as histórias de Caim e Abel, de Sem, Jafet e Cam, de Abraham e Loth, de Isaac e Ismael, de Jacob e Esaú, de José e dos seus irmãos, de Moisés, Aaron e Miriam.
Vem a propósito recordar tudo isto quando lemos agora esta carta escrita por António Telmo, mas não enviada, para Orlando Vitorino. Dois irmãos, dois filósofos, cada um com a sua visão própria, neste caso, do sentido profundo da História de Portugal vista à luz de um dos relatos bíblicos que envolve justamente dois irmãos, Sem e Cam (e também um terceiro, Jafet, embora não aqui referido) e os seus descendentes. Orlando Vitorino recorrera a «O Encoberto», de Sampaio Bruno, para afirmar, numa sua obra, que os judeus dividiram-se em semitas e camitas, «conflito entre camitas e semitas que dilacera a diáspora hebraica e se manifesta, explicando-a, na lenta mas funda decadência dos portugueses.»
António Telmo, na sua carta-resposta (variante A) começa por elogiar o irmão, lembrando, significativamente, que aos 14 anos -- a idade em que, segundo os talmudistas, é permitido ler e estudar o Pentateuco --, o tivera como primeiro mestre, e depois (variante B) afirma que também ele, Telmo, pertence ao número dos ocultistas, desprezados pelo irmão no seu texto; o estudo das Ciências Ocultas, sublinha, faz-se sob a inspiração do Espírito Santo, e elas são, segundo Álvaro Ribeiro, capazes de nos descobrir a verdade; e mais: «o ocultismo procura a sabedoria, razão do patriotismo, cuja exigência os ocultistas receberam imediatamente de Fernando Pessoa, como foi talvez o meu caso na História Secreta». E acrescenta: «O Encoberto é, como se vê no final de A Ideia de Deus, o Messias dos cristãos-novos, Senhor das Ciências deste e do outro mundo».
E tal como na tradição judaica o filho deve respeitar o Pai mas mais ainda o sábio, Telmo, «irmão de Orlando, mas mais irmão dos que sabem», fiel a esse princípio, vê-se obrigado a dizer ao irmão que a sua interpretação de O Encoberto é «incompleta e não tão correcta quanto pretende ser» -- de facto, «nunca Bruno poderia ter identificado judeus e camitas». (E realmente não o faz: leia-se o que Bruno realmente escreveu nas páginas 159 a 161 da reedição de 1999 da Lello – e, já agora, esqueçamos o infeliz prefácio dessa mesma reedição). Sem, Cam e Jafet são filhos de Noé; só muito depois (dez gerações mais tarde) surge Abraham, «que vem do outro lado do rio e que dá origem por isso mesmo aos hebreus»; os semitas constituem a linhagem de Sem; a designação «judeus» vem da tribo de Judá; os camitas vêm de Cam, aquele que não honrou o seu Pai; há portanto uma oposição entre camitas e semitas, na exacta interpretação de O Encoberto; e que, se Abraham acabou com os sacrifícios humanos, a Inquição repôs esses sacrifícios, para gozo dos camitas. E tendo reposto a verdade dos textos, Telmo elogia novamente o irmão. E, tal como Jacob-Israel e Esaú, Telmo e Orlando seguiram depois os seus respectivos caminhos diferentes.
Pelo seu tom desassombrado, esta carta incita-me a levar mais longe o comentário. Recordemos o contexto da história de Sem e de Cam – e de Jafet, os três filhos de Noé.
Depois do Dilúvio, uma nova humanidade recomeça o seu caminho através destas três figuras: Sem (Shem), o «Nome»; Cam (Ham), o «quente»; e Jafet (a Beleza, o antepassado dos Gregos). Noé planta uma vinha, faz vinho, embriaga-se e expõe a sua nudez; Cam vê a nudez do Pai e incita os irmãos a partilhar dessa visão profanadora (algumas interpretações do texto bíblico vão ao ponto de sugerir que Cam castrou o Pai... porque desejava ser ele próprio o pai, o princípio de uma identidade nova, Canaã); no entanto, Sem e Jafet cobrem a nudez paterna com um manto simbólico; Cam viola uma das sete leis noaquitas (anunciadoras dos futuros Dez Mandamentos (Palavras) do Sinai), a que proíbe a mutilação de um ser vivo; de qualquer modo, lembra Raphael Draï, o exibicionismo etílico do pai e o voyeurismo castrador do filho representam uma regressão, uma reconstituição da humanidade anterior ao Dilúvio, um desafio feito a Deus e à sua Aliança (simbolizada pelo arco-íris). Cabe então ao Nome (Sem) e à Beleza (Jafet) repararem o mal feito: cobrindo com o manto do símbolo a nudez do Pai, afirmam já aqui o elemento novo que será depois proclamado no Sinai: Honra, isto é, «veste» o teu pai e a tua mãe para que os teus dias se prolonguem. Este é o quinto mandamento, curiosamente figurando na lista dos cinco mandamentos referentes a Deus, na primeira das Tábuas.
Refira-se ainda que uma tradução mais cuidadosa do texto desta narrativa mostra-nos que Noé, ao acordar do seu torpor alcoolizado e apercebendo-se do que Cam lhe fez, proclama: «Isolado seja Canaã, escravo do escravo, será devolvido aos seus irmãos» (não se trata propriamente de uma «maldição» lançada sobre o filho de Cam, mas antes de uma ausência de bênção, da bênção dada por Noé a Sem, «Bendito seja o Eterno, Deus de Shem»; Canaã deverá ser servidor dos seus irmãos para que estes, os descendentes de Sem e Jafet, o ajudem a encontrar a humanidade plena perdida). Em vez de «raças» (que é coisa de cães e de cavalos, mas não de gente), devemos antes ver nestas três personagens, Sem, Cam e Jafet, a figuração de três linhagens espirituais, presentes ainda hoje, mesmo entre nós. Quantos camitas há por aí cheios de si mesmos, alheios à herança paterna (da pátria) e vivendo apenas de acordo com os seus impulsos espontâneos, julgando que tudo lhes é devido e que podem viver alheios à presença do Nome e da Beleza (outro dos nomes divinos)?
E quando Noé acrescenta «E habite Jafet nas tendas de Sem», fica formulada a esperança de que Jafet, ou seja, os Gregos, venham a habitar as tendas em que a Presença divina se manifesta. Efectivamente, de que serve a Beleza sem o Nome? O que é a Filosofia se não for portadora de uma herança profética? Convém ter sempre presente o que aconteceu no século VI anterior à nossa era comum: terminado o ciclo da profecia em Israel, começou o ciclo da filosofia na Grécia. Como se fosse uma passagem de testemunho para um novo ciclo da História. E se nós somos filhos de Atenas e de Roma, também o somos de Jerusalém. Temos três raízes, para a coisa ser perfeita, e não apenas duas.
Por outro lado, sabendo nós que os poetas herdaram o espírito profético, então a Filosofia Portuguesa, enquanto arte poética, tem o dever de buscar essa raiz e escutar a sua voz inspirada – e nesse sentido, por muito que isso custe ou cause incómodo a alguns, devemos mais a Jerusalém do que a Atenas ou a Roma. Por isso Álvaro Ribeiro e António Telmo falavam do nosso subconsciente hebraico...
[1] Nota do editor: Aparentemente, e ressalvando a possibilidade de extravio de alguma folha do conjunto dactilografado, António Telmo interrompeu aqui, no final da primeira folha A4 do dactiloscrito, o desenvolvimento de ideias que o referido capítulo sobre “Os Camitas” do livro de Orlando Vitorino lhe suscitava, para iniciar uma nova reflexão sobre o mesmo capítulo na folha seguinte.
[2] In Orlando Vitorino, O Processo das Presidenciais 86, Lisboa, 1986, pp. 33-34.
VOZ PASSIVA. 11
17-01-2014 11:34De António Carlos Carvalho, membro do projecto António Telmo. Vida e Obra de quem, já na próxima semana, vamos publicar o comentário ao inédito télmico sobre O Processo das Presidenciais de 86, de Orlando Vitorino, publicamos hoje o texto da comunicação que apresentou ao Colóquio "A Obra e o Pensamento de António Telmo", promovido em 14 e 15 de Fevereiro de 2011 em Lisboa pelo Instituto de Filosofia Luso-Brasileira.
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Os nomes de António Telmo
António Carlos Carvalho
António Telmo tratava sempre cada um de nós pelo nome completo, nome próprio e apelido -- não dizia «Você» ou «Tu».
Lembro-me que essa foi uma das coisas que mais me surpreendeu nele, esse sublinhar do nome num tempo em que a importância é dada aos números que todos nós temos, que nos são atribuídos e é por eles que nos identificam, e não pelo nome que recebemos ao nascermos -- tal é o absurdo --, esse nome que nos deram e que se cola a nós ao ponto de a ele respondermos, de reconhecermos o seu poder de apelo.
«Habitamos um nome, como habitamos uma casa.»
António Telmo ensinou-nos que existe «uma íntima relação entre o nome de uma pessoa e o que ela viveu ou pensou» («Congeminações de um Neo-Pitagórico»).
«Os nomes actuam sobre a alma e até sobre o pensamento dos homens que os recebem ao nascer e de acordo com o rito.»
António Telmo aprendeu essa importância do nome com o mestre Álvaro Ribeiro, logo no seu segundo encontro. Álvaro Ribeiro disse-lhe então: «Lembre-se sempre de que António Telmo há só um», «é preciso conhecer o ser que tem o seu nome e não outro» (in «Teoremas de Filosofia», 12).
Muito mais tarde, evocando o mestre, António Telmo escreveu: «Se soubermos estar atentos aos nomes daqueles que Leonardo Coimbra designou como “a monstruosa variedade dos contemplativos” e que nós diremos “prodigiosa”, o nome de Álvaro Ribeiro aparecer-nos-á bem significativo. Álvaro foi na verdade o mestre do alvoroço.» («Álvaro Ribeiro e a Filosofia Portuguesa»)
«O nome em princípio representa a essência sobrenatural do indivíduo.»
Ele próprio interrogou o significado do seu nome, como sabemos:
«António, Anthos Noû, a flor do intelecto, que é como quem diz, a sua parte suprema que atrai a influência do céu. Telmo, uma forma da palavra Hermes, de Thélêmos, vontade, desejo, aspiração.»
E nós, pelo nosso lado, poderíamos acrescentar, seguindo os seus ensinamentos de termos um olhar e um ouvido atentos à letra e ao som, que em António e Telmo nos parece repetida a letra T, a letra grega Tau e cruz de Santo André, o pai dos monges, o eremita do deserto; que no A de António encontramos o Alef e o Alfa, a estilização da cabeça do Touro, que era também o signo astrológico de António Telmo, esse signo que era o domicílio principal de Vénus/Afrodite, a deusa do Amor – e António Telmo, tal como Álvaro Ribeiro, muito escreveu sobre o Amor e a sua Verdade; que dizendo Telmo é impossível não pensar no famoso «Fogo de Santelmo», esse estranho penacho luminoso no cimo das vergas e mastros dos barcos ou uma chama à superfície das ondas.
E concluir que António Telmo foi também isso: um insólito sinal de luz e de fogo no meio desta tempestade em que vivemos.
Mas António Telmo não se contentou em investigar a essência do nome com que assinava: desdobrando-se «para se ensinar a si próprio», à maneira de Pessoa, e jogando kabbalísticamente com os anagramas à maneira de Samuel Usque e Teixeira Rego, criou um certo Thomé Nathaniel para com ele dialogar e depois explicou assim esses nomes:
«Eu tirei-o das letras do meu nome e pu-lo a ser como se fosse a essência da minha alma, o amigo um dia anunciado da minha essência. Thomé Nathaniel é anagrama de António Telmo mas possui virtudes que em mim são imperfeitas, como se patenteia pelos dois H que o constituem, dois sopros ou modos de vida espiritual unificados pelo divino El da última sílaba do nome.»
«Thomé Nathaniel é um dos discípulos actuais de Hermes, antiquário em Estremoz. As nossas relações pessoais tinham sido determinadas pelo mistério dos nomes. O seu nome é o anagrama do meu. Uma relação anagramática dos nomes, anagramática quer dizer, cujas letras se dirigiam conjuntamente para o alto.»
E nós podemos acrescentar que se Tomé ou Tomás foi um dos Doze, o Dídimo ou Gémeo, o incrédulo do «ver para crer» que depois teria ido pregar para a Índia, Natanael significa «Deus deu» ou «dom de Deus».
E, já agora -- o que António Telmo nunca referiu por pudor ou temor --, que EL, Deus, está escondido no nome de Telmo, um nome teóforo.
Ora toda esta questão dos nomes é, afinal de contas, como sabemos, uma questão tão velha como a da humanidade: no Génesis, a linguagem torna-se nomeação, conhecer é nomear, e isso é confiado ao Homem, o único ser que dá ele próprio um nome ao seu semelhante; é Adam (que não é um nome) que dá nome aos animais -- e aqui podemos especular se essa nomeação é simplesmente uma classificação zoológica, chamar gato ao gato, ou se será um verdadeiro nome dado a cada animal. (A verdade é que lá em casa cada um dos nossos vinte e um gatos tem nome próprio e reconhece-o como seu: reagem quando os chamamos. Não sei como mas é mesmo assim…)
Caim e Abel não recebem nomes, um é «adquirido» e o outro é «vão», «orvalho», «inconsistente», e é então o terceiro irmão, Seth, a primeira criança chamada «filho» na Bíblia, que recebe um nome, um «shem» («shem» vem de «sham», além, dimensão horizontal, aquela onde o olhar ascendente se une à linha de encontro entre terra e céus, «shamaim»), e Shem ou Sem, como também sabemos, é um dos filhos de Noé, daquele de quem todos nós somos descendentes, e que dista dez gerações de Seth. Noé, que indicou a Japhet, o antepassado dos Gregos, que devia residir «nas tendas de Shem», o antepassado dos Semitas.
Um bom conselho para a conciliação de Atenas com Jerusalém – como António Telmo procurou fazer nas suas obras.
António Telmo, tendo nascido no Reino da Quantidade, pertencia na verdade ao Reino da Identidade.
Deus chamava os seus profetas, Abraham ou Moisés, pelos nomes. E eles respondiam: «Hineni», «Eis-me aqui, aqui estou.»
O nome é um apelo, um chamamento, um convite à escuta, e não à visão, na solidão do deserto.
Neste outro deserto em que nos encontramos, de cada vez que António Telmo nos tratava pelo nome estava também a chamar-nos à responsabilidade do nome que carregamos como um peso ou como uma vocação.
A decisão é nossa.
Ele, António Telmo, cumpriu o seu papel.
VOZ PASSIVA. 10
15-01-2014 09:08Mais um livro de António Telmo*
Rafael Monteiro, sob o pseudónimo de Frei Mínimo
António Telmo (dr. António Telmo Vitorino) acaba de publicar, na «Guimarães», de Lisboa, mais um trabalho de sua autoria: «Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões», obra sábia e polémica – como todas as deste autor, ao qual devemos, nós, portugueses, a já quasi clássica História Secreta de Portugal e a famosa Gramática Secreta da Língua Portuguesa – escrito inspirado que durante muitos anos irá merecer estudo atento a cabalistas e filólogos.
António Telmo sempre se afirmou discípulo de José Marinho e Álvaro Ribeiro, grandes filósofos portugueses que a morte há pouco tempo afastou do nosso convívio. Quando na Universidade de Brasília exerceu o Mestrado, António Telmo aprendeu e conviveu com outro grande mestre: Agostinho da Silva, agora felizmente entre nós. (A cada um destes três Mestres dedicou A. Telmo três dos seus livros, acto de reconhecimento pouco comum entre escritores). Destes homens invulgares foi discípulo dilecto e, do real mestrado que exerceram, o mais qualificado, o mais nobre.
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Fiel ao pensamento de Sampaio Bruno, de Leonardo Coimbra e de Álvaro Ribeiro, António Telmo continua a tradição filosófica defendia por aqueles altos pensadores: filósofo e filólogo, talvez haja ultrapassado o conhecimento dos seus Mestres em alguns estádios do saber. Defendendo, e outros com ele, corresponder o esoterismo de hoje à teologia medieval, mercê da patente decadência das igrejas, António Telmo é alto expoente do pensamento religioso português.
O «Desembarque dos Maniqueus» ilumina surpreendentemente algumas das mais belas estâncias dos «Lusíadas», nosso Livro Sagrado. Camões surge-nos, embora oculto, liberto dos negros véus com que durante séculos procurara, escondê-lo – ora por razões de Estado, ora pela sem razão de uma Fé. Alguém já escreveu ter sido necessário esperar 400 anos por António Telmo para conhecer Camões!
O «Desembarque dos Maniqueus» é, presumimos, a primeira obra de interpretação gnóstica do nosso tempo; nela Camões surge-nos como um ser universal.
Neste trabalho o autor procurou estabelecer um paralelismo entre a imaginação de Camões e a de Zoroastro, e convida os homens a meditar, reflectir, para que, conhecendo-se, possam ascender aos mundos superiores.
Oxalá todos pudéssemos desembarcar na «Ilha» – dos Amores, ou outra, se é que todas não são «Ilhas de Amor»…
Ao autor, velho amigo desta terra, os nossos parabéns.
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* Publicado na edição de 30 de Abril de 1982 do mensário sesimbrense Raio de Luz.
CORRESPONDÊNCIA. 02
14-01-2014 10:52CORRESPONDÊNCIA DE REBELO GONÇALVES PARA ANTÓNIO TELMO. 02
Mafra, 25 – II – 1963
Meu caro António Telmo:
A sua estimada carta de 13 do corrente deve ter chegado à Faculdade em 14; mas só anteontem, sábado, chegou às minhas mãos. Descuido de um empregado que costuma ser cuidadoso, mas que não o foi desta vez, deixando esquecida numa gaveta vária correspondência endereçada ao meu nome nas últimas semanas.
Como pode calcular, tive grande satisfação com a leitura da sua carta. O meu bom Amigo sabe muitíssimo bem quanto o aprecio pelos seus méritos intelectuais e quanto o estimo pelas suas nobres qualidades de carácter. E não ignora também, porque por várias vezes o tenho dito a amigos comuns, que conservo gratíssimas recordações da nossa afectuosa convivência na velha Faculdade da Rua do Arco (a Jesus).
O que me conta do tal director desgostou-me, mas não me surpreendeu. Javardos desses são em número avultado na nossa terra e, quando menos nos precavemos, surpreendem-nos com festinhas das suas mimosas patas… Ainda há dias soube o que isso é, embora os meus cinquenta e cinco outonos me dessem alguma esperança de estar livre de tais bestiagas.
Muito estimei saber que está agora disposto a dar as últimas arrancadas para a conclusão do seu curso. E pode, como é óbvio, contar comigo para tudo o que esteja ao meu alcance. Logo após a reabertura das aulas, comunicarei com os professores de Hist. de Port. I e de Pré-História. Depois, quando for oportuno, comunicarei com o de Hist. da Civil. Grega.
Li e muito gostei (digo-o sem sombra de intenção lisonjeadora) do seu artigo sobre «Como Traduzir Henri Bergson». Aguardarei, pois, com todo o interesse, o prometido livro sobre a «Arte Poética» do mesmo filósofo francês. Entretanto, vou-lhe dizendo que quem é capaz desses cometimentos não terá dificuldade em preparar uma dissertação de licenciatura no campo da literatura grega ou no da latina.
Do nosso amigo Eudoro de Sousa há muitos anos que não tenho notícias. Depois da promessa, nunca cumprida, de um artigo para a minha Euphrosyne (revista de filologia clássica de que estou já preparando o 4.º volume), parou a correspondência entre nós. Suponho, no entanto, que ele esteja ainda, como professor contratado de Língua e Literatura Grega, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Florianópolis (Santa Catarina).
A Maria Isabel, que recorda sempre com muita consideração o seu antigo e lealíssimo condiscípulo António Telmo de Carvalho Vitorino, está agora na Biblioteca da Reitoria da Universidade, cuja organização lhe coube. Saiu da Torre do Tombo para lá. Nunca esteve, porém, em Coimbra (senão a tirar o curso de bibliotecário).
Já me ia esquecendo de lhe enviar felicitações pelo seu casamento. Aceite-as com a amizade de sempre, acompanhadas de cordialíssimos votos pela constante ventura do casal e dos herdeiros (?).
Cumprimentos e lembranças da Maria Isabel e um afectuoso abraço do
Seu velho amigo, muito
admirador, dedicado e grato,
Rebelo Gonçalves.
POEMAS. 02
13-01-2014 11:31
Senhor Deus da Luz, seja concedido
Que num ponto concentre o sol difuso
Neste meu ser inquieto e dividido
Onde, se olho, é só treva e caos confuso.
Toda essa luz esparsa o mago fuso
Do pensamento a busca, em si perdido,
E o fio de oiro ao acaso recolhido
Quebra-se contra o ser opaco e ocluso.
Concentre-se a luz num ponto! Dá-me a lente
Com que punha, em criança, a arder a palha
E fazia um incêndio grande e ardente!
Dá-me o poder da Fé, puro e sem falha!
De uma fé que se move e pensa e sente
E ouve dizer baixinho: “Deus nos valha!”
António Telmo
«OS MEUS PREFÁCIOS». 01
12-01-2014 11:03Mais do que um desejo, foi um desígnio de António Telmo: o filósofo intentou criar, intitulando-a, isto é: nomeando-a, uma recolha dos seus escritos prefaciais ou posfaciais, conforme alguns dos amigos puderam testemunhar, numa conversa havida no seu escritório, em Estremoz, num dos últimos anos da sua vida. Ciente das reponsabilidades que assumiu, mormente no âmbito da edição das Obras Completas de António Telmo, a que irá assegurar o apoio científico, o projecto António Telmo. Vida e Obra inicia hoje a acção que conduza à concretização daquele desígnio do seu patrono.
DUAS CARTAS-PREFÁCIO A O VELHO DA MONTANHA, DE PEDRO SINDE[1]
[António Telmo com Pedro Sinde, em 24 de Novembro de 2007, na Sala Polivalente da Biblioteca Municipal de Sesimbra, na sessão de lançamento de Contos Secretos (Tartaruga, 2007), da autoria do primeiro. Esta sessão antecedeu a realização do colóquio A Filosofia Portuguesa Hoje, com que se encerrou o ciclo No Signo do 7 – 150 anos de Filosofia Portuguesa. O fotógrafo foi João Augusto Aldeia.]
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Estremoz
9 de Junho de 1998
Meu Caro Pedro
Recebi o seu livro que muito agradeço e a sua carta. Fiz uma primeira leitura. Quando nos encontrarmos de novo aqui em Estremoz e em Julho já terei feito as três leituras que nunca deixo de fazer dos livros que me ensinam.
Vejo agora que foi bom não ter respondido à sua primeira carta que li 3 x 3. Vejo que foi bom porque o longo silêncio entre os dois criou, como provam as notícias do “outro mundo” que me chegaram de si hoje, um mais alto lugar para o diálogo que lembra na sua dedicatória.
Ontem, pus sobre a minha mesa de “bateleur” essa sua primeira carta, na intenção de lhe escrever hoje. Hoje, recebi o seu livro e uma nova carta.
A generalidade dos livros sobre os poetas são apenas uma “coisa mental” que nenhuma “experiência” ilumina. Reflectem, não refractam, a poesia que estudam. Não a recebem na própria água à luz do sol. Reflectem, repetem o que anteriormente se lhes patenteia. Neste seu livro, a sua alma está lá refractando a de Pascoaes.
[…]
Precisam de “conversar” aqueles que se encontram envolvidos no mesmo “inter-esse”. Por muito que nos seja dado saber, nada sabemos; como V. diz: “dissemos muito e, contudo, não dissemos nada”.
[…]
Um grande abraço do
António Telmo
* * *
Estremoz
Noite do dia 17 de Agosto
Meu estimado Amigo
[…]
Fiz hoje a terceira leitura [do capítulo «A Alquimia da Saudade»], pelo que a inteligência do texto se iluminou pela memória. Desta vez, o que mais me impressionou foi o que escreveu depois de ter escrito, depois daquela paragem [passagem?] da quadriga puxada por três cavalos: essência e substância (duas rédeas); intelecto e memória (outras duas); transmutação e transformação. O auriga segurando as três pelo do meio. Eis como se pode ter por suporte o Guénon e fazer uma coisa puramente própria. A razão vai comandando as analogias para desocultar e manifestar o significado das imagens pelo qual a saudade se revela como a Shekina.
Mas, como disse, o que mais me impressionou foi o que vem depois, precisamente o seguinte: “O caminho mais estável é, contudo, aquele que, avançando gradualmente por dissolução e coagulação sucessivas, por graduais conquistas, sabe que o vazio, a ausência que se sente interiormente é a ausência do Paraíso, é a lonjura em que estamos situados ou sitiados hoje” (e por aí fora até à palavra “pássaro”).
Chama-lhe aviso e muito bem, porque as pessoas não estão avisadas disso, de que o que sentem como desolação não as deve deprimir ou iludir com vivências alheias ao próprio ser, fabricadas pelo diabo. Ficam por si a saber que, sendo essa desolação a ausência do Paraíso, é pelo sentimento dessa ausência que o podem tornar presente, desde que tenham a força de, na desolação do deserto, suportarem a insolação e o seu esplendor.
[…]
Seu amigo e admirador
António Telmo
[1] Pedro Sinde, O Velho da Montanha: a doutrina iniciática de Teixeira de Pascoaes, Lisboa, Hugin, 2000, pp. 13 e ss.
VOZ PASSIVA. 09
10-01-2014 08:35De Rui Lopo, membro do projecto António Telmo. Vida e Obra que vai transcrever e anotar, para o suplemento télmico do próximo número da revista de cultura libertária A IDEIA, a correspondência de Dalila Pereira da Costa e de José Marinho para António Telmo, publicamos agora o texto da comunicação que apresentou ao Colóquio "A Obra e o Pensamento de António Telmo", promovido em 14 e 15 de Fevereiro de 2011 em Lisboa pelo Instituto de Filosofia Luso-Brasileira.
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Significado e Valor da Filosofia na Obra de António Telmo - Em diálogo com José Marinho
Rui Lopo
a Interrogação não é só o princípio da filosofia
mas também o seu fim.
O mais alto grau da interrogação será assim
a sabedoria divina ou Sofia,
aquela actividade a que Álvaro Ribeiro chamou
“o conhecimento especulativo do Absoluto”[1]
I
Avaliar o significado da noção de filosofia de um autor passa não só por percorrer as expressas definições deste termo que na sua obra se apresentem, por constatar a amplitude do espectro semântico dos usos que à palavra conceda, mas também por inferir qual seja o seu estatuto e função partindo das fontes de que parta, dos modos como a pratica e das relações que estabeleça com outras atitudes anímicas ou intelectivas.
Neste breve estudo pretendemos mostrar sucintamente que – em consonância com o modo particular como habita a cultura filosófica – António Telmo pratica e propõe uma ampla e singular concepção de filosofia. Procuraremos assim demonstrar as dificuldades inerentes a essa mesma amplitude, afrontando também as eventuais ambiguidades e tensões que nela se vivam ou que ela em seus intérpretes suscite.
Assim, em primeiro lugar, há que notar que nesta obra rara no panorama da cultura portuguesa (como o seria em qualquer outra, mas é a esta que em primeiro lugar a referimos por pertença imediata e pela detida atenção que a ela dedica) a filosofia não corresponde a um género literário determinado ou sequer a um registo textual específico, mas sobretudo radica numa atitude e numa experiência.
Quem da longa e polícroma história da filosofia universal se ocupe saberá que é das relações com o que lhe é exterior que a filosofia se tem sempre constituído; que é das margens desta disciplina e das transgressões dos métodos – epocal ou circunstancialmente – impostos que surgem novas concepções e tantas e tão marcantes correntes e autores. Que seria do pitagorismo sem a relação constante à matemática, do platonismo sem a remissão à geometria, do aristotelismo sem a gramática ou a física, da filosofia clássica grega sem a tragédia? E como medir com exactidão e clareza o real influxo das concepções religiosas mistéricas sobre as grandes ideias (conceitos e concepções) da filosofia helénica (recordemos o célebre passo em que Sócrates diz a Ménon que melhor o entenderia se se quedasse e assistisse aos rituais eleusinos), dos pré-socráticos aos cínicos, dos estóicos aos neoplatónicos?
Já na idade moderna e contemporânea, quantas vezes não temos assistido ao anúncio e diagnóstico de inúmeras crises da filosofia, correlativas e derivadas dos dispersivos e fragmentantes cortes epistémicos que novas áreas disciplinares têm aberto, mas também a originais contaminações feitas de sínteses e encontros com o que seja o outro da filosofia: como pensar a filosofia clássica alemã sem o encontro com a história e toda a filosofia contemporânea sem o decisivo confronto com a economia política, com a psicanálise, com a arte e a literatura, com o cinema, com as ciências da vida e as neurociências, com a tecnologia, com o enorme acervo que a etnografia de todos os povos tem revelado, com os patrimónios sapienciais, culturais e literários dos povos não europeus cuja imprevista grandeza e diversidade começamos hoje a vislumbrar?
II
Neste quadro breve que acabámos de traçar talvez melhor se compreenda o surgimento da figura de António Telmo como alguém que demonstra a coragem dos pioneiros, dos que assumem a errância como inerente à viagem e não temem formular hipóteses que outros desconsiderarão como ridículas, extravagantes ou simplesmente extra-filosóficas, caminhando na direcção de novas sínteses cuja amplidão se anseia mas cujos contornos ainda hoje se não vislumbram.
Se a filosofia (…) tem de ser filosofia para ser ela própria, não poderá todavia deixar de correlacionar-se intimamente com todo o outro, na ordem do espírito ou da multímoda realidade, e terá de ser de algum modo esse outro para poder regressar autenticamente a si. O análogo, com mais ponderada exigência se impõe quando, excluído o primado da religião e da poesia, se atribua primado à relação com as ciências. Sendo assim, se na sua relação com o vário saber tem a filosofia de tornar-se de algum ou alguns modos outra do que é, só consistirá para dar sentido a todo e qualquer saber se se mantiver autónoma e apta sempre a regressar a si própria.[2]
É José Marinho quem assim nos previne e adverte acerca do duplo movimento de trânsito e recurso que a cada momento ao início do filosofar corresponde. A outração da filosofia é condição do seu consequente regresso a si, em aprofundamento e expansão. Os nexos com o exterior (na ordem do espírito ou da realidade), as articulações que geram redes constelantes e as apropriações mais ou menos vorazes a que ela se entrega constituem, paradoxalmente, elementos da sua mesma singularidade, autonomia e auto-subsistência.
António Telmo considera José Marinho como seu Mestre e a ele dedica três marcantes textos, que constam como capítulos de Filosofia e Kabbalah[3]. Estes textos demonstram o cariz experiencial, viajante e visionário do texto da Teoria do Ser e da Verdade. Telmo procura demonstrar como a leitura da Teoria é ela própria libertadora e como a prática de atenção que ela impõe suscita uma experiência de auto-gnose. A filosofia é por Telmo aceite como Teoria, no sentido que Marinho confere ao termo, como visão, e visão tida num limite. Todo o pensar liberta nesta viagem insituada. E é tão significativa, do ponto de vista histórico-cultural e erudito, a recorrência da metáfora da viagem na literatura poética ou filosófica portuguesa (nomeadamente em Sampaio Bruno, Álvaro Ribeiro ou Marinho, referências primaciais de Telmo) quão irrelevante tal dado se afigura perante o seu poder transmutador como experiência.
Telmo irá repetir diversas vezes a assunção de filosofia como viagem (e o seu praticante como errante sem casa própria, percorrendo ínvios caminhos, ainda que receptor de auspiciosos sinais e símbolos). Além do seu estatuto de viagem, é também como arte especial de viajar que a filosofia deve ser entendida. Esta é uma ideia que encontramos expressa em Álvaro Ribeiro, mas que também nos surge em textos muito precoces de José Marinho, como Sedentário e Nómada, redigido entre 1932-35, no inédito Significado e Valor da Metafísica, também da década de trinta e, decisivamente, na própria Teoria vista como Viagem insituada, viagem na qual nasce o próprio viajante[4], viagem do desconhecido para o conhecido e deste para um novo desconhecido de grau superior, uma vez que o próprio sentir de que se parte é imediatamente experimentado como misterioso e desconhecido, mediante a experiência (descoberta do sentido da interioridade e consequente descoberta da subjectividade) da interrogação fundamental, que não só contribui para dissolver as ilusórias visões dualizantes que apartam o mundo sensível do inteligível como se estatui como princípio e fim da mais autêntica filosofia[5]. Se a filosofia é entendida como viagem e como arte de viajar, é assim desde já paradoxalmente equacionável como processo e representação de um processo. É com vista neste paradoxo que percorreremos outras acepções e ocorrências de filosofia nesta obra.
Vemos bem como é convergente com Marinho o esforço Telmiano de salvar a razão para a filosofia e estabelecer a filosofia pela razão, distinguindo todavia o que chama “razão compreensiva” e o que chama “razão judicativa”[6] e distinguindo filosofia e mística para melhor as saber articular:
Confundem alguns a via sacra da “santa filosofia” com qualquer via devocional – judaica, católica ou islâmica – e interpretam o superior dialogo dos filósofos como um conflito de religiões, de pontos de vista religiosos. José Marinho não é um pensador místico porque nunca disse, escreveu ou pensou que a razão, isto é, o raciocínio não constitui a forma da filosofia, mas ensinou demoradamente que, somente quando não se interroga sobre si e vai inconsciente de si e do seu enigma, se impede de cumprir a finalidade para a qual autenticamente existe: a de promover os raciocínios sobre a verdade e sobre o ser que fazem eclodir, em dado momento a interrogação. A interrogação é sim para José Marinho [e não se trata aqui de o divulgar, mas de o apresentar como pensamento actuante e vivo] o princípio da filosofia, e ela é, bem longe e bem pura de toda a mistura sentimental, o supremo acto do intelecto. Após ter feito eclodir a interrogação, a razão não se demite. Mais sábia e lúcida agora, reitera a cada novo momento o processo, além de se assumir especulativamente para reflectir as luzes do inteligível que a interrogação revela. Daqui o erro de opor pensamento racionalista a pensamento místico [7].
Segundo Telmo, já em Leonardo radicaria a atitude de confluência de poesia e filosofia, mística e racionalidade, fundamentação e errância. Da identificação do pensamento com a experiência dependeria a sua fruição como liberdade, autonomia e aventura:
a filosofia aparece como o órgão da liberdade. A filosofia é, em Leonardo Coimbra, isto mesmo: rasgar caminhos, ir ver com os próprios olhos, ouvir com os próprios ouvidos e pensar o mistério da vida e da morte com o próprio pensamento. Daqui o valor da experiência e o conceito de que o pensamento é a experiência[8].
A paradoxal identificação de pensamento e experiência explica a utilização de expressões diádicas (aparentemente) auto-contraditórias tanto por parte de Marinho, tantas vezes assumido como mestre, como por parte de António Telmo e explica que no acervo cultural e sapiencial universalmente humano estes autores procurem aquela sabedoria viva que antecede e excede a, e sucede à, filosofia:
Temos lutado, quanto podemos (…), contra o preconceito da filosofia como coisa sapiente e livresca. Não há filosofia sem ideias viventes e as ideias viventes estão nos homens viventes ou nos que, tendo passado da face do mundo, vivem ainda. (…) Como é então que a filosofia, com todas as suas conotações humanas e transcendentes, tarda em assumir com toda a fundura e vastidão seu humano e mais que humano afã?[9]
A desconfiança face à letra morta da filosofia patrimonial explicará a renitência em relação a uma historiografia que, atenta aos factos atestados, omite o que os funda ou supere, como também face a um culturalismo que se meça pela erudição bibliográfica, por oposição a uma outra noção de filosofia como algo de vivo e sempre excessivo ou excedente:
Transfere-se com os livros o que é cultural e histórico. A filosofia, essa, está radicada nos homens que filosofam ou naquilo que os move, solicita e inspira[10].
A filosofia academicamente estabelecida situar-se-ia ao nível de uma relação patente de transferência de informação entre um professor e um aluno, enquanto para Marinho e depois, para Telmo, outra atitude, simultaneamente vista como tradicional e renovadora, se oferece na relação entre Mestre e discípulo, onde mais se processa o que é oculto:
Todo o ensino resulta de uma relação entre o que inicia e ensina e o que aprende. Nas formas de tal relação é a da mãe e do filho a mais misteriosa, mais acessível a do professor e do aluno, na mediação se situando a do Mestre e discípulo com sua fecunda enigmática[11].
Não nos parece pois carecer de oportunidade relembrar estes passos de Marinho em Filosofia: ensino ou iniciação dedicados à díade de mestre e discípulo, tema que ecoará longamente na obra de Telmo[12].
Assim, em diversos passos espalhados ao longo da sua polícroma obra, Telmo se debruça sobre a questão da noção de filosofia, mas é nos dois capítulos de Filosofia e Kabbalah dedicados a José Marinho que se apresentam maiores as convergências e afinidades entre os dois autores que também consistem na assunção especulativa do legado de um Mestre.
O significado e valor que António Telmo atribui à filosofia são tributários do legado magistral de Marinho e da longa meditação do exercício filosófico inerente e subjacente à Teoria, no quadro de uma antropologia situada[13] e na permanente tensão entre ensino e iniciação, articulável com uma teoria da linguagem e da poesia (recordemos ser Telmo autor de uma Arte Poética, de uma Gramática Secreta além de em inúmeros outros textos se debruçar sobre a língua e a linguagem) de raiz alvarina. E embora Telmo privilegie como terrenos de reflexão a linguagem e a história de Portugal (sendo os poetas, e principalmente Camões[14], o lugar de encontro desses dois planos de actuação, como aliás vemos suceder na obra de Dalila Pereira da Costa e Agostinho da Silva), os domínios especulativos puros ou teoréticos, como preferimos chamar-lhes, surgem na sua obra com nítida marca de água marinha[15].
É porventura difícil abarcar a diversidade de géneros literários que o autor cultiva, (do poema ao conto, do ensaio ao teatro, do aforismo à epistolografia aberta ou aos registos de intervenções orais), assim como a tão inaudita variedade dos seus recursos estilísticos, rara no discurso a que habitualmente se reserva o adjectivo de filosófico. Mas não incorre em qualquer incoerência quem assim actua movido por uma concepção da filosofia como arte (e não apenas como filosofia da arte, que seria situação bem diversa, em grau e natureza), o que explica a recusa de uma verdade fechada e a abertura ao imprevisível e ao desconhecido própria da criatividade artística.
Citemos, da sibilina introdução de Filosofia e Kabbalah:
Álvaro Ribeiro ensinava que a filosofia é uma arte especial de viajar. Ela não virá dizer, de uma vez por todas (…) o que é a verdade: a razão é um organon, um órgão para o conhecimento, mas as suas articulações não coincidem com a realidade. Mas da comunicação com o desconhecido, que a poesia, a música e as artes plásticas procuram estabelecer, cada uma a seu modo e segundo a sua espécie, não pode abdicar o pensamento que é, aliás, quem as move e sustenta.
O pensamento tem o seu rito próprio para comunicar com o desconhecido, distinto em cada homem e em cada povo, e assume em cada homem e em cada povo uma forma peculiar[16].
A Kabbalah funcionaria assim como chave universalizante da poesia e da arte, via de acesso ao grau de verdade já adquirida:
Não é que não haja uma ciência que represente o já adquirido no conhecimento da verdade e também os poetas e demais artistas não devem ignorá-la: essa ciência é a kabbalah, como o foi também para a filosofia alemã, de Jacob Bohme e Kant até Fichte, Schelling e Hegel. Ela é a Coisa, a Nossa Coisa, o objecto constante do nosso estudo, o que nos irmana com os outros povos e seus pensadores[17].
Essa ciência será a kabbalah e outros nobres saberes como o maniqueísmo, cabala, astrologia, esoterismo, martinismo, tarot, magia, poderão e deverão ser convocados… Mais até do que procurar a radicação concreta e individualizada da filosofia portuguesa e da filosofia de língua portuguesa, retemos da proposta telmiana o singular afinco de se estabelecerem inesperadas confrontações até aqui nunca intentadas, como de se ler Leonardo Coimbra à luz do sufismo, Bruno (e Camões) à luz do maniqueísmo, Pascoaes da gnose, Pessoa à luz da Kabbalah... E mesmo que tais comparações possam ser consideradas cientificamente inconsistentes ou de difícil demonstração analítica ou documental, elas contribuem paradoxalmente – por aprofundamento de uma tradição nacional singular – para a compreensão da universalidade do pensar, na constituição de uma filosofia mundial, feita da confrontação de dados tão díspares provindos de autores entre si distanciados, de correntes diversas, de disciplinas sem pontos de toque, de períodos apartados no tempo.
Cultor e intérprete dessa tradição, mas atento ao tempo como forma necessária de manifestação e desmultiplicação do espírito, Telmo reserva contudo a abertura ao imprevisível, signo do futuro:
O pensamento é, porém, como a ave Fénix, uma energia, um fogo, uma actividade do espírito que todas as manhãs renasce das próprias cinzas, não se sabendo em que forma, na multiplicação infinita da mesma essência.[18]
Estamos já em condições de compreender porque Telmo tão ciosamente distingue interpretação de hermenêutica. Aquela reconduz o desconhecido para o conhecido, sendo afim da exegese e da divulgação e conotando-se com o exercício historiográfico, cultural e pedagógico, tratando de simplificar o que é complexo, de utilizar palavras mais pobres para traduzir conceitos mais amplos e traduzir ideias de lato espectro em noções de circunscrito alcance; enquanto a hermenêutica, de cariz anagógico, procuraria patentear o oculto. A hermenêutica teria assim por fim não o transacto, o pensado ou já visto, mas a viagem do texto ao arquétipo, definido como fonte do espírito. Daí que Telmo considere maximamente irónico a proclamação de Marinho de que tudo estaria pensado, sendo hora agora de os hermeneutas actuarem, jogando com as expectativas de seus auditores que julgavam que ele é que estaria confundindo a actividade superior (a pretensa criação) com a inferior (a explicitante interpretação):
A originalidade em filosofia ou poesia não está, como se vê, na apresentação de doutrinas diferentes, mas sim no modo como cada um aumentou de Espírito o mesmo processo, como exerceu a sua própria acção espiritual, com palavras novas nascidas de uma experiência singular.[19]
Notemos ainda que a policromia dos saberes e tradições convocadas corresponde àquela irregularidade já notada (etimologicamente compreendida como ausência da regra conforme ao pensar comum: i-regula) como desconcertante signo estilístico. Vejam-se as significativas palavras de José Marinho, a pretexto de Sampaio Bruno, e que com justeza se aplicariam à obra de António Telmo:
quisemos pôr branda mas firme advertência a todos quantos só admitem como filosofia a filosofia científica, ou coisa por tal jeito e que, adeptos da conceituosa e fácil forma, suspeitam de todo o monstruoso e inumano mas divino e sumamente lógico conúbio de filosofia e poesia ou filosofia e mítica[20].
O trabalho de Telmo consistiu em abrir um caminho que outros terão de percorrer, aprofundar, solidificar ou infirmar. As suas hipóteses, desafios e propostas não poderão, todavia, ser ignoradas como inexistentes. Essas possibilidades tornaram-se acessíveis aos cultores da filosofia como teoria: visão e viagem, e assim se prossegue uma tradição que, reivindicando embora a tradição do aristotelismo português, se reveste de uma importância acrescida medida pelo facto de nela se poder procurar a relação ou razão de harmonia entre o consciente cristão e o subconsciente hebraico, a qual, segundo o autor, em Portugal, tudo explicará[21].
Surge pois um outro vector de equação do que seja a filosofia sob a figura da filosofia portuguesa, a filosofia situada numa história e numa cultura:
A filosofia portuguesa terá por fim realizar a síntese católica das três tradições [judaica, cristã e islâmica][22].
A filosofia portuguesa surge ainda ao autor como consciência e conhecimento dos ciclos históricos:
A relação da filosofia com a Pátria, para ser real ou concreta. terá de movimentar a mediação de um escol ou de uma escola que interprete, adapte e renove a tradição secular, essa sim difusa nas várias formas de sentir popular e directamente dimanando das nossas origens étnicas e espirituais.[23]
Neste âmbito, que aqui só indicamos topicamente e não desenvolveremos, a figura de Leonardo surge como magistral. Telmo regista algumas observações sobre a desconsideração do carácter filosófico da obra leonardina (tida por mística), historiando ainda o esforço com vista ao combate e dissolução do movimento lançado por Álvaro Ribeiro, lembrando as objecções segundo as quais não seriam de filosofia aqueles livros em que a razão estaria subordinada à imaginação e à intuição:
Não há, nem haverá autêntica poesia como não há nem houve autêntica ciência sem a, remota ou próxima, experiência das origens a que, com intuitos de menorização, se dá o nome de “mística”. Mas os puros místicos, aqueles que renunciam a pensar, orgulhosos de uma experiência inefável de união com o divino, são também hostis à filosofia, ao pensamento e à razão, mesmo quando esta, como repetia José Marinho, se interroga sobre si própria e procura garantir-se pela relação com o Espírito. Mística é uma nobre palavra, que exprime uma ideia clara e distinta. Pelo seu étimo grego equivale a “iniciática”. O erro está nesta obscura confusão provocada pelos inimigos da filosofia, em supor que a razão é um dado natural e não uma forma de pensamento próprio e só possível naqueles que conhecem que sobre o Mistério se lhes abriu um novo sentido [segundo a expressão leonardina]. O pensamento próprio do corpo físico, que serve os seus interesses, não é nem nunca será razão: é um órgão formador de respostas automáticas aos estímulos. A razão somente é possível quando há já uma nova forma de sentir o mundo, quando a emergência de novos sentidos permite que se fale analogicamente de um corpo subtil; é, por assim dizer, o cérebro próprio desse corpo. Antes disso, sim, é que tudo quanto se diga é palavreado e fogo-fátuo[24].
III
Vimos a filosofia surgir-nos como um nobre saber, como experiência, como aprofundamento auto-gnósico, como auto-transformação, como par ordenado contrário e correlativo de erudição e de história da filosofia ou da cultura (filosofia viva versus filosofia livresca), como via sapiencial, como modo de relacionar opostos, como tradição, como iniciação, como hermenêutica (por oposição a interpretação e exegese), (como método analógico e anagógico) como síntese de tradições culturais e religiosas, como atitude compreensiva, como viagem, como arte de viajar, como arte, como filosofia nacional, radicada e singularizada, dada numa relação de mestre a discípulo, e até como prática orante religativa e redentora:
O poeta ou filósofo exerce o direito, em que acredita como no valor de um sacramento, de uma relação individual com o invisível sobrenatural em que a poesia ou a filosofia tanto podem dispensar a mediação do Livro, do Rito e do Dogma como fazer deles um suporte para o livre exercício do pensamento. Álvaro Ribeiro, José Régio e Leonardo Coimbra estão no segundo caso; José Marinho, Fernando Pessoa e Teixeira de Pascoaes no primeiro. O que lhes é comum é o modo de entender a oração como uma forma poética ou filosófica de acção sobre o mundo espiritual capaz de acelerar o processo colectivo de redenção[25].
[1] António Telmo, Filosofia e Kabbalah, Lisboa, Guimarães editores, 1989, p. 124.
[2] Filosofia, ensino ou iniciação, Lisboa, Instituto Gulbenkian de Ciência – Centro de Investigação Pedagógica, 1972, pp. 94-95.
[3] Ed. cit., “Dois filósofos portuenses e a simbólica do Porto”, pp. 117-121; “O pensamento iniciático de José Marinho”, pp. 121-127 e “Teoria do instante em José Marinho”, pp. 128-132.
[4] Noção de Marinho explicitamente citada, referida e assumida em Filosofia e Kabbalah, pp. 118-119.
[5] Permanece todavia encoberto o próprio sentido profundo do pensar, embora se pressinta já tal sentido como correspondendo a uma interrogação fundamental que se descobrirá como uma das instâncias mais decisivas do propósito teorético e que implicará uma renovada e renovadora meditação sobre o amor e a fé, como experiências que o pensamento repetido não logra aprofundar ou exaurir (a ciência do amor e da fé que os não esgota, mas expõe a sua correlativa opacidade e transparência como momentos em que o homem é para si por assunção do seu ser e saber):
Não cabe no teorético propósito a minuciosa, infindável e ilusória ciência da alma e do homem, mas mostrar gradualmente como é dado passar do sentido da interioridade para o sentido da subjectividade.
[8] “Regresso ao paraíso”, p. 139 de Filosofia e Kabbalah, ed. cit.
[9] Marinho, Filosofia, Ensino ou Iniciação, ed. cit., p. 10.
[10] Marinho, Filosofia, Ensino ou Iniciação, ed. cit, p. 11.
[11] Marinho, Filosofia, Ensino ou Iniciação, ed. cit. p. 60.
[12] Tema este bem próprio da tradição convivial que ficou conhecida como “filosofia portuguesa”, dos discípulos de Leonardo Coimbra e seus continuadores.
[13] Elementos para uma Antropologia Situada, Cadernos do Centro de Investigação Pedagógica nº 4, Lisboa, FCG, 1966.
[14] Ver a recente compilação Obras Completas de António Telmo, Volume I, Luís de Camões, Estremoz, Al-Barzakh, 2010.
[15] E não podemos deixar de lembrar a distinção entre filosofia operativa e especulativa para a qual um intérprete tão lúcido como Joaquim Domingues chama a atenção em estudo precisamente intitulado Arte poética, inserto em António Telmo e as Gerações Novas, Lisboa, Hugin, 2003.
[16] É deste pressuposto que decorrerá a noção do autor de filosofia portuguesa e até a noção de que o próprio progresso da razão dependerá, entre nós, dos estudos de língua portuguesa, particularmente de estilística da língua. Cf. Filosofia e Kabbalah, ed. cit. p.43.
[19] Filosofia e Kabbalah, p.89.
[20] “Sampaio Bruno” in Estudos Sobre o Pensamento Português Contemporâneo, Biblioteca Nacional, Lisboa, 1981, pp. 81-82 e p. 83.
[21] Filosofia e Kabbalah, ed. cit., p. 9.
[22]Filosofia e Kabbalah, ed. cit., p. 81.
[23] Filosofia e Kabbalah, ed. cit., p.97.
[24] Filosofia e Kabbalah, ed. cit., p. 86-87.
[25] Filosofia e Kabbalah, ed. cit., p. 85. Cf. a citação de Leonardo na página 87 da mesma obra: O pensamento filosófico é a única oração eficaz.
CORRESPONDÊNCIA. 01
09-01-2014 09:26Francisco da Luz Rebelo Gonçalves, que nasceu em Santarém em 1907 e viria a falecer em 1982, foi professor de António Telmo no curso de Filologia Clássica da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, licenciatura que o autor de Arte Poética só tardiamente concluiria. Entre ambos viria a firmar-se uma profunda amizade, pautada pela enorme admiração que filólogo e filósofo reciprocamente se votavam, e de que as quatro cartas que se guardam no espólio de António Telmo permitem dar um importante testemunho. Datada de 10 de Junho de 1956, a primeira, que hoje publicamos, traz interessante referência ao artigo télmico "Laços da Filologia para a Poesia" (um estudo de Rebelo Gonçalves surge neste mencionado com implícito encómio), com que, no passado domingo, iniciámos a rubrica VERDES ANOS, onde se reunirão os dispersos télmicos do período formativo.
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CARTAS DE REBELO GONÇALVES PARA ANTÓNIO TELMO. 01
S/l, 10 de Junho de 1956.
Meu caro Vitorino:
Estou a dever-lhe dois abraços: um, de agradecimento pela nova gentileza com que se dignou distinguir-me; outro, de parabéns pelo belíssimo feixe de reflexões sobre «Laços da Filologia para a Poesia» que tive a satisfação de ler em 24 de Maio e onde me vi citado com muita generosidade e simpatia.
Como não pude dar-lhos na passada 6.ª-feira (estive no Teatro da Trindade com imenso gosto, mas não o vi), daqui lhos dou, com a sincera estima e o devotado abraço do
Seu
Rebelo Gonçalves.
[em papel timbrado de
F. REBELO GONÇALVES
Professor da Universidade de Lisboa
Largo do Pinheiro, 8
Mafra]
VOZ PASSIVA. 08
07-01-2014 09:39Nenhum lugar é sem sombra
Para António Telmo, Mestre Hermético
Jesus Carlos
O Mestre sentou-se à beira do caminho, e disse:
– Cheguei ao final da minha jornada. Adeus.
– Os discípulos, que o seguiam, olharam incrédulos e perdidos.
– Mestre, mas este lugar parece igual a qualquer outro! – Era quase um coro de desânimo.
– E é.
– Não compreendemos.
– Não há nada para compreender. Estou velho, tenho as pernas cansadas, e vou ficar debaixo desta sombra até que a morte me leve. – O Mestre cerrou os olhos, e encostou as costas ao tronco rugoso da árvore.
– E nós? Que faremos? – Era quase um coro de almas danadas e sem rumo.
– Sigam a vossa vida, e respeitem-na. Não façam mal a ninguém, e procurem o Espírito em todas as coisas… numa pedra, nos vermes que limpam o mundo.
– Mestre, e por qual caminho deveremos prosseguir? – Replicou um dos discípulos num tom altissonante de príncipe herdeiro que procura o reino.
– Escolham um. Este era o meu caminho.
– Mestre, e como saberemos a quem seguir? – Murmurou o mais franzino de todos.
– Como souberam seguir-me? Adeus. Deixem-me repousar.
– Mestre, e que diremos ao mundo? – Implorou hesitante aquele que parecia um camponês.
– Digam que nenhum lugar é sem sombra.
22 de Agosto de 2010
VERDES ANOS. 01
05-01-2014 21:10Iniciamos hoje a publicação da rubrica "Verdes Anos", onde, tal como havíamos anunciado, iremos facultar aos leitores os dispersos do período formativo de António Telmo, num arco temporal que, convencionalmente, se poderá considerar dilatado até à partida do filósofo para Brasília, em Fevereiro de 1966. São dezenas de textos desconhecidos, inatendidos, dispersos por periódicos como o Diário de Notícias, o Diário Popular, o 57, o Mensário das Casas do Povo, A Bem da Língua Portuguesa ou Clave, entre outros. Nunca até hoje reunidos em livro, revelam-nos por vezes um autor que busca seguramente a liberdade do estilo e acusa sobretudo a magistral influição de seu mestre Álvaro Ribeiro (na foto). Elencados cronologicamente, os artigos serão arquivados em item próprio da secção Dispersos.
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LAÇOS DA FILOLOGIA PARA A POESIA[1]
I) POESIA, ARTE FILOLÓGICA – Com o modernismo, os poetas deixaram aos humanistas o estudo e o ensino da sua ciência, se, efectivamente, a poesia é, como sempre foi geralmente admitido por todas as tradições, uma arte filológica. O humanismo, cujos princípios se situam na Renascença, tudo fez para que a filologia deixasse de ser uma actividade do pensamento criador. Com ele, a orientação disciplinar passou a dirigir-se para a apreensão de conhecimentos, previamente fixados, na matéria e na forma. O ensino é, porém, iniciação num método livre e pessoal de indagação das verdades superiores. A verdade não está fixa, é causa invisível que perseguimos em caminhos vários, por meio de interrogações, conjecturas, hipóteses, pelo exercício mental dum sistema móvel de imagens que actua como mediador.
O que distinguiu Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa como poetas, deriva em grande parte de saberem ser a poesia uma arte filológica. Sinal disso está na atitude que ambos tomaram, o segundo através do menos conhecido dos seus heterónimos, para com a filologia ensinada pelos humanistas.
II) QUANTIDADE E QUALIDADE – Uma das mais eficientes armas deste humanismo tem sido a estilística. É possível construir, dedutivamente, as diversas figuras de estilo e formar um sistema exterior aplicável às diversas literaturas e respectivos idiomas. Para com estas, tal sistema fixo de relações quantitativas funciona como uma máquina que as devora. As figuras são geralmente definidas como «a parte pelo todo», «o efeito pela causa», «o consequente pelo antecedente», e assim sucessivamente, o que equivale a substituir a linguagem poética pela linguagem positiva e, portanto, a negar a poesia.
Em lugar de «figuras» digamos «formas», digamos e pensemos e logo o método indutivo aparece com o propício meio de investigação filológica. As figuras de retórica ou de estilo não são adornos, ornatos, artifícios, mas formas substanciais, imagens íntimas, forças imanentes em incessante actividade, captáveis pela intuição de que a indução é o processo exterior. O que produz a ilusão de que são formas fixas, fictícias, fingidas, em fim, figuras, é o poder negativo que o homem tem de representar a língua pela escrita. A expressão gráfica representa a transitória submissão do verbo à letra.
III) LÍNGUA E CIFRA – Quem observe a língua portuguesa nas suas formas populares, isto é, como hoje existe antes de ser trabalhada pelo espírito latino, deparará com cifras surpreendentes. Filólogo é aquele que tem «queda» para decifrar, para impregnar de luz as cifras. Nem sempre se repara nesta coisa curiosa: as letras de um livro são insignificantes enquanto não as iluminarmos do nosso pensamento; o que quer dizer que são cifras, zeros de valor atributável consoante a posição. A vária combinação das letras modifica o sentido em direcção e profundidade.
IV) O ESPÍRITO LATINO E O GÉNIO DA LÍNGUA. Sobre esta língua que é a nossa o espírito latino teceu aquele véu de rígidas figuras. Facto geralmente admitido pelos historiadores que reconhecem as diferenças que, por exemplo, separam Fernão Lopes de João de Barros é, todavia, encarado como um progresso e, portanto, situado num ponto da nossa história literária. Mas a verdade é existir um génio português, que sempre capta, apreende, agarra a língua para lhe imprimir as suas formas. É mais certo dizer que, se hoje não falamos latim ou francês, deve-se à vontade poderosa desse génio que a si conforma todos os elementos estranhos.
Não é negar o progresso da língua dizer que houve evolução subterrânea, isto é, substantiva, dizer, em suma, que o verbo sempre animou o substantivo. Ver na latinização da língua um progresso, pelo qual se eliminam formas arcaicas de expressão, equivale a negar a existência da nacionalidade. Persistem as formas arcaicas, mas é tanto mais difícil vê-las quanto mais dificuldade há em descobri-las.
V) ARISTÓTELES E O MODERNISMO. Aristóteles é ainda hoje um autor ao qual recorrem com proveito quantos estudam as questões de poética modernista. Quem consultar a tradução que da «Poética» nos deu Eudoro de Sousa verificará que para o filósofo a poesia não é fenómeno de sentimento, mas fenómeno de pensamento. Com razão dedicou o tradutor o seu trabalho ao sr. dr. Rebelo Gonçalves, que, no seu estudo «A Língua Portuguesa no Ensino Secundário», ensina a função intelectual da estilística.
Afastados da tradição aristotélica, os poetas modernistas continuam a pensar que a poesia é a expressão de sentimentos. Todavia, se as palavras é que transmitem significação e efectividade cósmica e divina aos sentimentos, a educação poética consistirá no ensino da língua, da linguagem, do diálogo, da comunicação.
VI) POÉTICA E METÁFORA. Alenta o modernismo a convicção de que a poesia resulta da exaltação dos sentimentos. Negação da poesia é negação da metáfora. Desta partem todas as formas estilísticas e para ela confluem. Assim, a etimologia só se revela fecunda quando acompanhada de intuição metafórica, quando pensada no lugar espiritual em que se encontram a significação sensível com a supra-sensível. Toda a iluminação resulta de um contacto eléctrico que estabelece uma corrente que se perde se não encontra palavras condutoras. Há metáforas tão luminosas que cegam o poeta e ou o transportam à epopeia ou o prostram no lirismo. Conduzir o espírito de metáfora em metáfora até à suprema iluminação é o fim da educação poética.
António Telmo