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DOCUMENTA. 01

05-02-2014 12:25

Quando chega a Brasília em Fevereiro de 1966, para leccionar Cultura Latina e Cultura Portuguesa na Universidade da novel capital brasileira, António Telmo vai ali reencontrar Eudoro de Sousa, de quem havia partido o convite para a travessia do Atlântico. Já se conheciam, bem entendido. Desde o início dos anos 50, Telmo privara com Eudoro nas tertúlias lisboetas onde também Álvaro Ribeiro e José Marinho pontificavam magistralmente. Álvaro irá, de alguma forma, recomendar ao insigne helenista o jovem estudante de Filologia Clássica. O convívio entre ambos intensifica-se e Eudoro convida o discípulo contertúlio a auxiliá-lo na organização da sua biblioteca pessoal – longe de saber que, década e meia depois, sob a sua superintendência, Telmo viria a colaborar na organização da maior biblioteca de Estudos Clássicos da América do Sul. Contrariamente ao que sucede com os seus outros mestres – Álvaro, Marinho e Agostinho –, são escassas as referências escritas de António Telmo a Eudoro de Sousa, que praticamente se resumem ao magnífico escrito prefacial de introdução a Dioniso em Creta e outros ensaios, volume editado em 2004 pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, que será aqui em breve publicado na rubrica "Os meus prefácios". Também a influência da obra e do pensamento de Eudoro em António Telmo está ainda, decerto, por averiguar. Da alta consideração (como expressão de amizade e admiração) que o primeiro tinha pelo segundo nos dá agora conta a carta que aquele dirige ao Reitor da Universidade de Brasília, como peça valiosíssima desencantada no processo burocrático tendente à contratação do docente António Telmo, e que constitui mesmo um documento imprescindível para a história da filosofia portuguesa. Não por acaso, integrou a exposição De Sesimbra à História Secreta: António Telmo e as Margens da Aventura, comissariada, no ano transacto, por Pedro Martins.  

 

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                            Brasília, 14 de Fevereiro de 1966

 

 

Magnífico Reitor

 

 

O Prof. Antônio Telmo Carvalho Vitorino foi meu aluno entre 1950 e 1953, ano em que vim para o Brasil. Já, então, dava provas de excepcional aptidão para a hermenêutica superior dos textos clássicos, isto é, para aquela parte da crítica textual que, por efeito da conhecida “lei” das oscilações, não atraindo o filólogo hodierno com a intensidade com que atraía os grandes mestres da segunda metade do século XIX, morosamente vai reconquistando o alto posto que merece. Aliás, foram as tendências filosóficas que caracterizam os filólogos de escol – precisamente as que mais transparecem no curriculum do prof. Antônio Telmo – junto com outros motivos que, decerto, não honram a maior parte do corpo dos universitários portugueses, que lhe vedaram o acesso à carreira do magistério superior, relegando-o para tarefas oficiais menos dignas da grande competência e real capacidade que tive ocasião de verificar, não só pessoalmente, durante três anos de estreito convívio, como também pela leitura das suas publicações.

 

Para as personalidades intelectuais da classe do Prof. Antônio Telmo, cujo título de não menor valia é o de terem sido co-fundadores do movimento cultural que tão brilhantemente se manifesta nas páginas das revistas “57” e “Espiral”, só se abrem dois caminhos: a expatriação e a alienação. “Alienação” é o caso dos verdadeiros mestres do Prof. Antônio Telmo, como Álvaro Ribeiro e José Marinho, e dos seus melhores condiscípulos, como Antônio Quadros e Francisco Sottomayor, uns e outros, hoje, obrigados a servir, como funcionários burocráticos, em empresas particulares, como a Fundação Gulbenkian, ou repartições públicas, como Casas do Povo e Institutos de Previdência. “Expatriação” é o caso dos mais jovens e dos mais corajosos, daqueles que acham, como António Telmo, que ainda vão a tempo e ainda têm forças para servir os reais interesses de uma Nação disposta a educar seus filhos na autêntica liberdade, que é o único meio, ou a única mediação, da verdade científica.

 

Parece-me, por conseguinte, que, ouvidos os meus dois meritíssimos colegas, membros da mesma comissão, poderá Vossa Magnificência contratar o Prof. Antônio Telmo Carvalho Vitorino, como Professor Associado, e designá-lo para o Centro de Estudos Clássicos.

 

Eudoro de Sousa, Prof. Titular  

 

INÉDITOS. 03

02-02-2014 10:59

Escrito já em 2010, ou seja no último ano de vida de António Telmo, esta breve página memorial sobre o seu amigo António Cagica Rapaz, desaparecido meses antes (em 13 de Dezembro de 2009), reflecte sobretudo, por parte do filósofo, a leitura do derradeiro livro do sesimbrense, uma sorte de autobiografia intitulada Tratar da Vida. Mas tem também seu quê de biográfico no que ao próprio Telmo diz respeito. É mais um inédito tírado do espólio télmico (o título é da responsabilidade do editor), e saído a lume na edição de ontem, 1 de Fevereiro, do jornal O Sesimbrense, que nos próximos dias chegará a casa dos assinantes e aos habituais escaparates. Para além do texto télmico, saliente-se a publicação, neste número de O Sesimbrense, do texto da palestra "Raul Brandão e os pescadores de Sesimbra",  proferida por António Reis Marques na Biblioteca Municipal de Sesimbra, em 29 de Setembro de 2012. 

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In memoriam António Cagica Rapaz

 

No Café Central, em Sesimbra, havia dois bilhares, um ao lado do outro. O Café era do Sr. Arménio, velho tuberculoso, mas cheio de vitalidade que me deixava jogar de borla, desde que o fizesse ao perde-paga.

Quando estava a jogar, costumava aparecer um rapazinho, muito aprumado, muito sério que se encostava ao outro bilhar, seguindo inteligentemente com os olhos o movimento geométrico das bolas, que eu impelia com o meu taco.

Depois, convidei-o a jogar, conforme vem contado por ele no livro que escreveu, alguns meses antes de abalar para onde todos, excepto um, tiveram, terão e têm forçosamente de ir.

Ele diz, no mesmo livro, que, se o seu destino não o tivesse futebolizado com passagem pela Académica, pela CUF e pelo Belenenses, teria talvez podido ser mais atento ao que eu lhe teria de certo ensinado.

Conta que apostei, com ele, num dia de muita chuva, que o povo tem razão quando afirma que “não há sábado sem sol”. Mostra-se convencido porque lá pela tarde abriram-se por instantes as nuvens para deixarem passar um raio de luz.

Apesar do futebol, era muito inteligente, não tinha embrutecido. Não vivia encegueirado por ele. Foi um notável jornalista, que nos encantou com as suas crónicas no Sesimbrense; escreveu livros que se lêem com o encanto das coisas sonhadas e só ali vistas. O seu estilo é simples, claro, tirando todos os efeitos dessa mesma simplicidade e clareza.

Mas o último dos seus livros subjuga-nos também. É uma autobiografia em que se confronta com o próprio pai e sai desse confronto admirando quem depois de Deus lhe deu com a mãe a vida.

Mostra-se ali que foi um lutador. Conheceu a ameaça da miséria material, defrontou a maldade e a intriga que se urdem no mundo do futebol, mas viu em Matateu um herói.

Na verdade, essa luta decorreu das situações difíceis que a vida foi criando, mas que se foram resolvendo com num sonho. Quando se julgava perdido, uma nova solução inspirada vinha abrir o caminho que parecia fechado.

A morte foi o último obstáculo, donde ele terá saído vencedor. Assim Deus o queira! queira!

 

António Telmo

POEMAS. 03

01-02-2014 08:27

José Marinho, um dos mestres de António Telmo, a cuja memória o filósofo dedicou a História Secreta de Portugal, nasceu no Porto a 1 de Fevereiro de 1904, vindo a falecer em Lisboa em 5 de Agosto de 1975. Quando escreve o poema com que assinala o septuagésimo aniversário do autor de Teoria do Ser e da Verdade, saído a lume na edição de 14 de Fevereiro de 1974 de O Sesimbrense, Telmo está de novo a viver em Sesimbra, realizando em Almada o estágio do magistério, depois de um biénio em que fundou e superiormente dirigiu a Escola Preparatória do Redondo. Os versos de homenagem a Marinho reflectem, pois, esse contexto de vivência sesimbrense que era então o seu...

 

José Marinho

 

Neto de sereia

nos mares da Galiza

mas também filho do Homem.

Sesimbra, terra do mar, saúda o filósofo

nos seus 10 x 7 anos,

dez vezes a escada da sabedoria

desatando e atando dez vezes

os sete nós que enlaçam

o corpo da sereia

ao corpo do homem.

 

António Telmo

VERDES ANOS. 02

31-01-2014 00:01

Álvaro Ribeiro fala em dado trecho de A Razão Animada na transgressão dos elementos a que os artistas se mostram particularmente habilitados. Só quem de todo ignorar a proverbial escritura etimológica do filósofo, mestre daqueles que sabem, poderá assacar um sentido policial ao emprego de semelhante termo por parte do portuense ilustre. E, todavia, não raro a transgressão – agora entendida a palavra em seu comum sentido jurídico e sociológico – se constitui como condição da progressão. Sampaio Bruno, a quem António Telmo, em 24 de Dezembro de 1957, consagrou, nas páginas do Diário Ilustrado, um breve ensaio levando por título o nome do filósofo, teve de transgredir – implicado que esteve na frustrada revolução republicana de 31 de Janeiro de 1891, no Porto, de que hoje comemoramos mais um aniversário – para no exílio progredir pela iluminação da metanoia, da qual há-de derivar a superior, posterior ideação do seu pensamento, sobretudo na genial teodiceia d’A Ideia de Deus. Se, a fazer fé em Álvaro Ribeiro, foi Sampaio Bruno o fundador da filosofia portuguesa, mister será então reconhecer como na génese desta se inscreve um acto transgressivo de ruptura, causa instauradora do maior progresso. É importante lembrá-lo, para que assim, uma vez mais, se possa reafirmar a imensa e tremenda lição de coragem e dignidade com que, na matriz, a nobre Escola Portuense, pelo exemplo dos seus maiores, sempre soube preservar aquele sentido último, espiritualmente aristocrático, da Santa Liberdade que não transige no que mais importa.

Paulo Samuel, a voz portuense do projecto António Telmo. Vida e Obra que comenta o brunino escrito télmico agora publicado, é lídimo representante daquela matriz. Membro da terceira geração da Filosofia Portuguesa, editor e autor de uma notável obra ensaística, vivente daquele Porto que aprendemos a honrar em Sampaio Bruno, Álvaro Ribeiro, José Marinho ou  Agostinho da Silva, mas também em Dalila Pereira da Costa, Alfredo Ribeiro dos Santos ou José Augusto Seabra, convivente de quantos fizeram grande a geração do 57, oferece-nos agora um notabilíssimo comentário ao artigo de Telmo. Fá-lo neste dia assinalado, derradeiro do mês primeiro; e ao fazê-lo permite que demos continuidade a um dos vectores mais importantes do nosso projecto: o estudo sério e aturado da obra de António Telmo, em particular daquela que, ainda esparsa, esquecida anda, ou da inédita, desconhecida. Em Fevereiro, serão de Rui Lopo, Eduardo Aroso (neste caso a inéditos) e António Cândido Franco as glosas esperadas; e de Miguel Real e Elísio Gala as de Março…  

Vai, pois, o mês no seu fim, correndo propício a um balanço. Janeiro foi para o projecto António Telmo. Vida e Obra um tempo exaltante. Começou com a assunção da responsabilidade maior que é a de assegurar o apoio científico à edição das Obras Completas de António Telmo, com o inerente estudo, em curso, do espólio do filósofo; prosseguiu com o desenvolvimento desse muito estimulante projecto que é o suplemento télmico da revista de cultura libertária A IDEIA, com inéditos de Telmo, Dalila, Marinho e Fiama; e culminou com a atempada programação das TARDES TÉLMICAS 2014, num feixe de datas, tão realista quão ambicioso, que se antecipa, prolonga e diversifica por outros azimutes e outras paragens. Dito isto, permitimo-nos ainda assinalar, pela sua particular significação, dois tópicos mais: o contributo de Pedro Martins e Rui Lopo, em colaboração com Renato Epifânio, na transcrição e anotação da correspondência de Agostinho da Silva para António Telmo, que sairá a lume no próximo número da revista NOVA ÁGUIA, e que constituirá um dos acontecimentos mais marcantes das comemorações do 20.º aniversário da morte de Agostinho da Silva; e a participação do mesmo Pedro Martins na primeira sessão do  Colóquio “Portugalidade e Lusofonia” , que terá lugar na Academia das Ciências, em Lisboa, no próximo dia 2 de Junho, com uma comunicação subordinada ao tema “Portugalidade e Lusofonia entre Camões e António Telmo”. O outro orador será também um destacado membro do nosso projecto: Miguel Real, que ali irá falar sobre “Portugalidade e Lusofonia entre António Vieira e Fernando Pessoa”, dois vultos eminentemente télmicos, cada um deles definindo, só por si, um capítulo inteiro da História Secreta de Portugal.  

 

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Sampaio Bruno[1]

De algum modo sentiram a importância e a significação do ano cultural que decorre os vários e inúmeros escritores que em jornais, revistas e sessões públicas celebraram o centenário do nascimento de Sampaio Bruno. Viu-se um país a ler, discutir e pensar os mesmos livros; pela primeira vez, na história da nossa cultura, os portugueses se reuniram à volta dum filósofo. Divergiu-se à esquerda e à direita; na altercação, forçoso é dizê-lo, pouco se alcançou: não ficámos a conhecer melhor o pensamento de Bruno. Todavia, verificou-se o que era já inevitável. A filosofia portuguesa, quer se afirme, quer se negue, é a obsidiante, obnubilante, absorvente preocupação de todos os portugueses cultos.

 

Importa sim dizer que Sampaio Bruno, esse homem tímido, apagado e bondoso, domina toda a nossa vida mental. Mas para bem situar o sentido mais fecundo dessa influência necessita-se antes fazer uma consideração de ordem aparentemente historicista e cultural. Formou-se o espírito do filósofo num período de pleno domínio do positivismo. A agitação provocada pela república nascente alvoroçava as almas e, por vezes, obscurecia a inteligência das ideias, dos acontecimentos e das coisas. Só ele viu o que haviam previsto os liberais resistentes menos à admirável ideia republicana do que à doutrina que os republicanos procuravam realizar. Esses homens, iniciados na tradição iluminista, souberam deduzir, das premissas duma doutrina política que prescindia da teologia, a vitória fatal do obscurantismo. Sampaio Bruno assistia à realização progressiva dessa previsão. Por isso, julgou necessário pensar a teologia da república. Insistentemente chamou a atenção dos seus correligionários para o facto de que no destino histórico, senão transcendente, de Portugal, há que contar com a constante do Catolicismo. Também a república teria uma teologia, discutindo-se depois a sua compatibilidade ou incompatibilidade com a doutrina ortodoxa. O positivismo vinha precisamente fazer o contrário: negar ao Homem o poder de pensar por si e por si imaginar o transcendente. Mas como a maioria dos homens e a generalidade das mulheres que constituem um povo hão-de ser sempre religiosas, como as consciências sempre se hão-de procurar umas às outras enquanto existir o mal, a dor e a morte, os resultados duma doutrina que negasse a Teologia estavam à vista.

 

Combatendo o positivismo, pareceria natural que o autor da Ideia de Deus fizesse a defesa da metafísica. Isso não acontece, porém. Pelo contrário, do positivismo se socorre para mostrar como uma das razões da fácil divulgação dessa doutrina entre nós se deve à falta de inclinação dos portugueses pelos problemas metafísicos. A existência da dor, do sofrimento e da morte, o seu natural espanto perante o mistério cósmico e antropológico, obsidiam demasiado os portugueses para se deixarem seduzir, influir e dominar pelas explicações platónicas e pitagóricas, que, durante a meditação do problema do uno e do múltiplo, ignoram o conceito de evolução.

 

Sampaio Bruno, criticando o pitagorismo, que parte da noção do nada, subordinando à teologia as outras ciências que, com ela, constituem a filosofia, estruturando a física pelo estudo do movimento a partir da queda, relacionando a forma da natureza com a palavra da alma, concebendo a causa final como primeira das causas, cria uma filosofia caracterizadamente aristotélica. Discute-se muito, em certos meios, as características do nosso pensamento. Quem ler os livros do estagirita, não só através dos comentários cristãos e islâmicos, mas também hebraicos, logo descobrirá o fio que permite seguir aristotelicamente o pensamento de Bruno, ou seguir bruninamente o pensamento de Aristóteles. Tanto é certo que somos aristotélicos sempre que lemos, traduzimos e interpretamos o notável pensador hebraico pelas verdadeiras categorias da língua portuguesa.  

 

Seria útil distinguir, para avaliar a influência de Bruno na poesia que o segue no tempo, e também na prosa, aqueles escritores de cuja obra se extrai logicamente ou uma teologia ou uma metafísica. Não hesitamos um momento em colocar entre os primeiros Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoais e Fernando Pessoa; entre os segundos, Antero de Quental e todos quantos dele derivam. Lembrarão aqueles que se negam a atribuir qualificação filosófica aos poetas e a ver e reconhecer em Junqueiro, Pascoais e Pessoa reveladores da filosofia portuguesa, que Aristóteles começa a Metafísica pela reflexão séria dos poetas teólogos que o precederam, como Homero, Hesíodo e Empédocles? Contudo, no ensino universitário da filosofia grega nunca se deixam de ministrar os nomes e as doutrinas desses e de outros imaginativos. Tão grande é o poder da distância!

 

Eis o que nos ocorre dizer para salientar nas páginas do «Diário Ilustrado», a importância da homenagem que os intelectuais prestam a um dos seus maiores. É natural que, nos anos mais próximos, se venham a publicar livros sobre a obra de Sampaio Bruno. Os seus múltiplos aspectos nunca estarão completamente vistos, a sua imensa profundidade espera ainda o hermeneuta que dela se abisme para dela extrair a luz. Nós, ao caracterizarmos [sic] ter apontado segundo a directriz mais fecunda e esclarecedora das relações do seu pensamento com a ciência e a política, com a moral e a religião, com todas as esferas, enfim, em que actua o espírito humano. Há que estudar Sampaio Bruno como filólogo, como jurista, como crítico literário, como historiador, como médico acima de tudo. Nunca, na verdade, inteligência tão vasta e inventiva nasceu em terra portuguesa.     

 

António Telmo

 

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Comentário

Paulo Samuel

Publicado a páginas 33 e 39 do Diário Ilustrado de 24 de Dezembro de 1957 (ver verbete completo), este premonitório artigo de António Telmo vem anunciar, em quadra natalícia, o renascimento desse semi-patronímico que intitula o artigo, Sampaio Bruno, na esfera letrada e culta portuguesa da época. Telmo começa por situar o contexto da evocação, logo assinalando, num timbre de consonância decerto irónica e humorada, que a partir de então a filosofia portuguesa, “quer se afirme, quer se negue”, é a absorvente, obsidiante, “preocupação de todos os portugueses cultos”.

 

Traçando um breve perfil da figura enunciada, o articulista destaca a originalidade de Bruno, mormente quanto ao seu papel no ideário republicano, à margem de um qualquer mimetismo positivista, defendendo, a contrario, a liberdade creencial como constitutiva da própria liberdade humana. Em parágrafos concisos e que denotam o seu conhecimento do pensamento brunino, António Telmo apresenta topicamente as linhas fundamentais do autor de A Questão Religiosa, obra cujo cinquentenário de publicação ocorria em 1957, pois a primeira – até agora única – edição (formada por textos dispersos na imprensa periódica) fora impressa em 1907, sob a chancela da Livraria Chardron.

 

É curioso que António Telmo não mencione este título ao longo do seu breve ensaio, referindo apenas uma única vez o emblemático livro de Sampaio Bruno, A Ideia de Deus, donde extrai a base que permite estruturar a sua análise em torno da falsa questão da “metafísica” no pensador portuense, apontando o seu aristotelismo incluso. É certo que a primeira obra citada constitui, segundo o próprio autor, proémio àquele que, imaginado, será o seu “último livro”, em contraponto ao primeiro da sua bibliografia, a intitular-se Síntese da Crença Cristã. No denso e informado volume A Questão Religiosa explicita Bruno, com recurso a vasta erudição, as razões que devem levar à separação da Igreja e do Estado, os fundamentos que legitimam a abolição do celibato dos padres, a questão do ensino religioso, os veios cultos e ocultos que faziam do catolicismo do povo português, em seu entender, não tanto a expressão de uma feição religiosa (esta teria outra expressão, nunca dogmática) mas antes uma tendência sócio-cultural, plantada e adubada ao longo de séculos pela vontade de uma hegemonia jesuítica…

 

Retomando o artigo de António Telmo, não se cuide que este seja circunstancial, assinalando o centenário da morte de José Pereira de Sampaio, nem sequer o único que o jovem filósofo então radicado em Lisboa dedica a esse vulto catalizador da Revolução Republicana Portuguesa de 31 de Janeiro de 1891... A recolha de dispersos em curso, que alimentará a edição das “Obras de António Telmo” e vivifica, por enquanto, este lugar digital, poderá certamente comprovar esta asserção. Até lá, garantem essa particular e até precoce atenção télmica pela obra do obscuro publicista portuense outras fontes e leituras comparatistas. Recorde-se que a memória da bibliografia activa de Bruno apenas está disponível, por essa data, na “antologia” organizada por Álvaro Ribeiro, em 1947, para o elegante livrinho do SNI, na colecção “Idearium”, já que as suas obras não foram entretanto reeditadas – o que só ocorre a partir de meados dos anos 80, enquanto parte das existências de alguns outros títulos estiolam esquecidas em velhos armários de antigo editor portuense –, e só nas bibliotecas públicas se podem ler e folhear. Em Lisboa, todavia, sempre era possível encontrar um ou outro exemplar nos alfarrabistas, por vezes assinados pelo autor e deslocalizados do seu inicial acervo (como ocorre com este de O Encoberto, que agora consulto, com carimbo da Sociedade Literária lisbonense Almeida Garrett, assinatura de posse de Luiz Pacheco no frontispício, datada de 54, e recentemente oferecido a quem estas linhas escreve por Luís Amaro). O mencionado volume antológico rapidamente adquiriu uma notória repercussão, não só atendendo à selecção dos textos recolhidos, importantes para uma aproximação ao pensamento nuclear de Bruno, como pelo facto de registar os estádios da reflexão filosófica do antologiador, que a dado momento escreve que Bruno só admite uma “teologia sem fundamentação metafísica”, ideia que Telmo recupera para a formulação da sua tese aristotélica.

 

Também em 1957 vem a público, em Lisboa, o livro Sampaio (Bruno) – sua vida e sua obra, de José Pereira de Sampaio, com prefácio de Joel Serrão. Em páginas iniciais, o prefaciador reconhece a importância do autor de A Geração Nova para a Cultura portuguesa e a história da filosofia, mas critica “certas interpretações parciais da sua obra” concepções “soi disant filosóficas que na sua obra pretendem enraizar”. Sobre a antologia organizada e prefaciada por Álvaro Ribeiro, a que atrás nos referimos, considera-a “além de pequena” tendenciosa, porquanto o prefaciador “sugere um Bruno que só na imaginação do autor terá existido e existirá, e esboça uma interpretação do pensamento do autor seleccionado que apresenta o leve inconveniente de se não adaptar nem à especulação estudada, em si considerada, nem a declarações expressas do respectivo autor”. (p. 11). Em todo o caso, bastará consultar o livro que o próprio Joel Serrão trará a público um ano depois, em Dezembro de 1958, para se verificar que algumas observações e pistas deixadas por Álvaro Ribeiro ali se encontram retomadas, servindo outras leituras, como a dessa distinção positivista entre “prospectivismo” e “messianismo”. Além disso, a posição do autor contra a “Filosofia portuguesa” não deixa de ser aí reiterada.

 

Ora, António Telmo não havia lido o livro de Joel Serrão quando escreve o seu artigo para o Diário Ilustrado, nem tão-pouco quando cita Bruno nos primeiros parágrafos do seu artigo sobre o “Futuro do Romance português” (e as suas relações com o Lirismo), surgido no 1.º número do jornal 57, com data de Maio desse mesmo ano. Tal como ocorre nas linhas finais deste texto do Diário Ilustrado, também naquele António Telmo acentua a importância do referente filosófico para a literatura, afirmando, no limite, que a “evolução da humanidade se opera […] de harmonia com a doutrina expressa da reintegração dos seres nos seus princípios e nas suas virtudes”. Leitor e discípulo de Álvaro Ribeiro, frequentando as conhecidas tertúlias dos Cafés de Lisboa onde se originou o Grupo da “Filosofia Portuguesa”, Telmo ainda apresenta nesse mesmo número do 57 o escopo de A Razão Animada, em recensão que mantém plena actualidade.

 

Meses depois, no suplemento dominical donde foi extraído o presente disperso, o futuro autor de Filosofia e Kaballah escreve, convicto, que a “imensa profundidade” da obra de Bruno “espera ainda o hermeneuta que dela se abisme para dela extrair a luz”. Tão paradoxal podia então parecer esta certeza como a de vaticinar que a figura e obra de Bruno mereceriam, nos anos a vir, uma atenção e estudo que naquela data apenas começava a ser seminal. De particular relevância é ainda o parágrafo em que Telmo suscita a reflexão, por via da recepção e leitura comparada, da influência de Bruno noutros autores, em particular nos de filiação teológica, como Guerra Junqueiro, Pascoaes, Fernando Pessoa. Ainda no elenco dessas reflexões, propõe que se aprofunde o pensamento de Sampaio Bruno na Filologia, na História, na crítica literária. Obscura é, porém, a última menção – ao “médico” –, salvo se se tratar, quem sabe, de uma velada alusão às investigações de Bruno em torno da Cabala e do misticismo judaico.

 

Enfim, aí fica este disperso de António Telmo, compilado por Pedro Martins, a suscitar as leituras que outros, com maior sageza e desenvolvimento, decerto lhe poderão dar…



[1] Diário Ilustrado (suplemento Diálogo, n.º 45), ano II, n.º 381, Lisboa, 24 de Dezembro de 1957, pp. 33 e 39.

 

CORRESPONDÊNCIA. 04

30-01-2014 09:54

CORRESPONDÊNCIA DE REBELO GONÇALVES PARA ANTÓNIO TELMO. 04

 

Lisboa, 31 de Outubro de 1968.

 

                    Meu caro António Telmo:

 

            Não fazia ideia de que estivesse agora mais perto de Lisboa. Supunha que se mantivesse em Brasília, donde me escreveu a sua penúltima carta.

            Estamos de acordo, meu bom Amigo. Aquilo não é país no qual se possa confiar. É um país que tudo promete e nada cumpre, pelo menos no que respeita ao que promete a Portugal. Por isso mesmo, desliguei-o da minha actividade intelectual e universitária, de tal forma que, tendo fundado em Coimbra a «Brasilia» e em Lisboa a «Euphrosyne», subintitulada «Revista Luso-Brasileira de Cultura Clássica», acabei por considerar unicamente portuguesa a segunda série desta última publicação. Não quero mais intimidade com um povo que faz dos tratados farrapos de papel e que só na aparência nos dedica amizade.

            Desejo-lhe as maiores felicidades na sua permanência em Granada. Que dela colha os melhores frutos!

            A Maria Isabel, que lhe manda cordiais lembranças, continua muito satisfeita no seu lugar de bibliotecária da Fundação Gulbenkian. Oxalá assim estivesse também o meu filho, que, coitado, lá está em Cabinda, em clima dos mais inóspitos do mundo, próprio para gorilas, mas não para seres humanos, a seguir o seu fadário militar, como capitão de infantaria. É já a terceira comissão de serviço obrigatória que cumpre no Ultramar. Quando é que isto acabará, meu bom Amigo?

            Aproveito este ensejo para lhe repetir, meu caro António Telmo, que o recordo sempre com muita admiração intelectual, com muita consideração moral e com muita amizade. E pode crer que a sua sincera e tão desinteressada dedicação a este seu velho professor é dos melhores prémios que a minha carreira universitária, por vezes tão atormentada por incompreensões e injustiças, pôde proporcionar-me.

            Há tempo falei a seu irmão Orlando (a quem, como sabe, também muito admiro), numa sessão da Academia das Ciências, mas foi, como se costuma dizer, de raspão. Mal pude pedir-lhe notícias suas.

 

            Com um grande abraço, faz votos pelo seu completo bem-estar e pelo de todos os seus o sempre

 

                                                                                             Seu m.to adm.ºr, am.º e grato

 

                                                                                                                        Rebelo Gonçalves.

 

 

 

INÉDITOS. 02

29-01-2014 11:45

Não Não sabemos ao certo onde terá tido lugar a conversa entre Rafael Monteiro e Agostinho da Silva, cujo excerto brevíssimo se me deparou agora, guardado num dos proverbiais cadernos de apontamentos de António Telmo. Bem oportuna se revelou, porém, a descoberta, levando por destino certo o capítulo sétimo de Agostinho da Silva em Sesimbra, inteiramente dedicado à extraordinária relação de amizade que Rafael e Agostinho puderam manter durante mais de duas décadas. Verdadeiramente, não sabemos sequer se António Telmo teria querido escrever mais do que ali deixou escrito, e assim, porventura, interrompido. Não tem mal. À conversa, podemos imaginá-la travada na casa veneranda de Rafael, no Castelo de Sesimbra, numa daquelas gloriosas tardes de sábado em que por lá também apareciam António Telmo e António Reis Marques para discretearem sobre Deus, a Pátria e o Universo. E quanto à escrita, é outrossim bem possível que Telmo nada mais tivesse pretendido acrescentar à incisa concisão do fulgor que, lapidar, ressuma das parcas linhas manuscritas. O leitor percebe logo porquê…

  

Pedro Martins

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De um caderno de apontamentos: excerto de um diálogo entre Rafael Monteiro e Agostinho da Silva

 

Rafael – Sabe o senhor? Eu em geral tenho o dinheiro para o próprio dia e às vezes para o dia seguinte.

 

A. Silva – Isso é bom. Comigo acontece uma coisa semelhante. Em geral, só tenho dinheiro para a véspera.

 

António Telmo

DISPERSOS. 05

26-01-2014 20:49

Eis um interessante disperso télmico de temática sesimbrense que se escapou por entre as malhas da rede com que em 2011 se organizou Sesimbra, o lugar onde se não morre, volume de edição municipal onde então se reuniram os escritos sesimbrenses de António Telmo. O artigo foi publicado em 1965, na edição de O Sesimbrense comemorativa do 8.º centenário da conquista de Sesimbra aos mouros -- o jornal saiu a lume no exacto dia em que, segundo a crónica, D Afonso Henriques, oitocentos anos antes, tomara o velho burgo acastelado --, e oferece-nos um documento particularmente importante do ponto de vista autobiográfico. Por estes dias em que Telmo está prestes a mudar decisivamente o rumo da sua vida --  em Outubro desse ano conhecerá Maria Antónia na Escola Preparatória de Estremoz e em Fevereiro do ano seguinte encontra-se já em Brasília, com Eudoro e Agostinho, tudo conforme a previsão rigorosa de Hórus --, o filósofo esclarece cabalmente a relação de pertença à camonina Piscosa, elogia, de alguma sorte, o dinamismo sedutor de uma Sesimbra vivendo então a Idade de Ouro turística, revisita as amizades de sua juvenil convivência, num universo povoado de sortilégios e mistérios, e exalta o belvedere deslumbrante da Serra da Achada que, décadas depois, lhe há-de motivar a quadra singela, mas profunda, do pórtico aposto às Congeminações de um Neopitagórico -- poético testemunho arrábido que ora garante o assomo da memória télmica na iminente reedição, pelo Centro de Estudos Bocageanos, da antologia A Serra da Arrábida na Poesia Portuguesa, organizada por António Mateus Vilhena e Daniel Pires, com apresentação aprazada para a Biblioteca Municipal de Sesimbra no próximo dia 22 de Março, pelas 15:00.

 

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Sesimbra[1]

 

 

Há vinte anos que vivemos nesta vila com oito séculos de existência!

 

Em vinte anos deve ter sofrido mais modificações do que em oito séculos! É fantástico!

 

Poder-se-á dizer que só o castelo permanece tal como então, inexpugnável. Naquelas pedras está toda a história de Sesimbra.

 

Há também o mar. O mar e o castelo põem frente a frente o homem e a natureza.

 

Nestes vinte anos, surge o Espadarte, o Náutico, o Hotel do Mar.

 

Nós éramos rapazes e íamos até às sombras da Califórnia: eu, o António e o Francisco Reis Marques, o Jaime e o Rafael, o José Preto e o Gilberto, tão parecido com o Rudolfo Steiner. Conversámos de duendes e de bruxas. O mar era o som fundo das nossas vozes. Havia em tudo aquilo a antiguidade do homem e da natureza.

 

Hoje, porém, os fantasmas foram exorcizados pela luz fria dos edifícios novos. É outro mundo, com belas raparigas estendidas ao sol. Os cabelos claros das estrangeiras afastaram as sombras. Por trás de tudo está a figura imensa de D. Afonso Henriques, o Conquistador!

 

O que é que está na nossa frente?

 

Falarei daquela nova estrada, ainda imperfeita, que começando numa rua de Santana, atravessa a Serra da Achada, onde já houve perdizes, e vai entrar na vila pelo lado da Califórnia, ali onde está o Bairro dos Pescadores. Porque eu creio que o mais importante para qualquer progresso, material ou espiritual, são as estradas. Depois virão as casas, as pousadas e os hotéis. E esta, a que atravessa aquela Serra onde ainda há caçadores, é muito mais bela do que a actual. Só lhe falta a largura e o piso necessários por onde deslizarão, sem ruído, os carros dos visitantes. Hoje, porque ainda é estreita e de mau piso, deslizam por lá, sem ruído, os carros dos namorados.

 

Sesimbra tem de ser uma vila progressiva porque está ao pé do mar. E o mar, com o seu mistério solene, incita ao sonho.

 

Do alto do Castelo, os grandes antepassados mergulham nele a vista.

 

Invoquemo-los, na hora que passa!

 

António Telmo

 

[1] O Sesimbrense, ano 39, n.º 420, Sesimbra, 21 de Fevereiro de 1965, p. 3.

 

CORRESPONDÊNCIA. 03

22-01-2014 11:39

CORRESPONDÊNCIA DE REBELO GONÇALVES PARA ANTÓNIO TELMO. 03

 

P. S. – No caso de vir a Lisboa em Junho ou Julho, agradecia-lhe o favor de me prevenir com alguma antecedência, a fim de combinarmos bem o dia, a hora e o local de encontro.
 
                                               Mafra, 18-V-1963
 
                                        Meu caro Vitorino:
 
            De todo o coração agradeço a sua nova carta, assim como o amável empréstimo da revista «Organon». Muito interessante o trabalho do nosso amigo Eudoro de Sousa: traz a marca da lucidez e da segurança, uma e outra bem características do autor.
            Tem-me à sua inteira disposição para, com todo o gosto, me ocupar da sua dissertação de licenciatura. Pelo que toca, porém, à indicação de um tema, parecia-me conveniente conversarmos: uma troca directa de impressões sempre será preferível à comunicação epistolar.
            Não poderia o meu caro Vitorino, uma vez liberto das suas obrigações docentes deste ano lectivo, aproveitar uma vinda a Lisboa para conversarmos sobre o assunto? Na mesma altura, falaríamos a respeito da assinatura da “Euphrosyne”.
            A Maria Isabel de novo se lhe recomenda.
            Com os melhores votos de bem-estar, reexprimo-lhe a minha firme amizade e a minha afectuosa admiração, e peço-lhe aceite um abraço do
                                                                                  Seu velho e dedicado amigo
                                                                                  Rebelo Gonçalves. 
 


[em papel timbrado da revista EVPROSYNE
Revista Luso-Brasileira de Filologia Clássica
Director
Professor Rebelo Gonçalves
*
Pinheiro – Mafra
PORTUGAL]

INÉDITOS. 01

18-01-2014 16:35

Seja qual for o ponto de vista em que se coloque -- o teorético, o biográfico ou o histórico --, o leitor deste extraordinário escrito inédito de António Telmo não deixará de se dar conta de que está perante um texto da maior importância. Saída do espólio do autor de Arte Poética, a carta dirigida, mas nunca enviada, ao irmão do seu signatário -- o filósofo Orlando Vitorino --, cujo objecto incide em boa parte sobre a história da tradição judaica, surge agora comentada pela voz autorizada de António Carlos Carvalho, e inaugura uma das linhas de força do projecto António Telmo. Vida e Obra: a publicação de inéditos ou dispersos télmicos nunca antes reunidos em livro, adrede acompanhada daquele módico de estudo que a sua apresentação ao leitor requer. Pelo meio, damos a conhecer o escrito de Orlando que motivou a missiva.

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Ao Orlando Vitorino sobre “O Processo das Presidenciais 86”

António Telmo

 

Recebi a tua Epystola ad Parvos, à qual quiseste dar a forma de novela (no sentido que Álvaro Ribeiro dá à palavra na Razão Animada), li-a encantado de uma ponta a outra, (o episódio de Borba, por exemplo, é uma obra prima do género literário) (…). A apresentação tipográfica (papel, formato, capa, etc.) é uma maravilha condizente.

 

Um dos valores da tua inteligência sem par é o sentido das relações imediatas, preconizado por Leibniz, o sentido da evidência da verdade. A verdade é, em si, o que é evidente; basta olhar, mas os homens não seguem o caminho mais breve entre dois pontos reais e, cegos para si e para Deus, procuram no futuro ou no passado, no oculto e no remoto, o que é necessariamente presente aqui e agora, porque a verdade do espírito não se pode conceber senão como acto puro invencível, que elimina eternamente a distância e todo o intervalo. E é por isso que a fenomenologia do mal só pode constituir uma ilusão teatral ou uma novela ridiculamente diabólica, cujos efeitos nefastos se desfazem mostrando: basta tirar umas tábuas, deixar correr o espectáculo com o ceno à vista e, terminado quando, com o vermos, o quisermos terminado, voltar a pôr os “bonecos” na caixa onde se guardam as coisas inúteis.

 

[VARIANTE A:] Infelizmente não pude fruir um prazer intelectual análogo, ao ler o capítulo sobre “Os Camitas” (p. 33). Quando passei a idade dos 14 anos, que é, segundo os talmudistas, a idade em que é permitido ao rapaz ler e estudar o Pentateuco, tive-te como meu primeiro mestre. Depois seguiu-se o Eudoro de Sousa, o José Marinho, o Álvaro Ribeiro, o Agostinho da Silva e o Max Hölzer, que me prepararam, passando como quem não quer, para conhecer o único e verdadeiro mestre, de cujo nome o meu, teu Pai, pôs o remoto sinal etimológico ao baptizar-me de Telmo e até os que gostam de utilizar um diminutivo serviram, sem saber, a mesma ideia. Recordo nitidamente preceitos e ensinamentos dessa época distante, em Arruda dos Vinhos, quando o Anjo do Bem passou a assistir-me ao meu lado direito. Um deles era, e é, o seguinte: “Nunca devemos combater uma doutrina apresentando-a na sua forma degradada”. Efectivamente, o espíri- (…)[1]

 

[VARIANTE B:] De todo o livro, aquilo que mais directamente me interessou foi o capítulo sobre “Os Camitas”, porque também eu pertenço ao número dos ocultistas, nascidos do “desprezo para com os activistas políticos e da agressividade para com a vazia cultura oficial”. E aqui também gostei de concordar com o repúdio do guénonismo, embora esse repúdio, pela minha parte, seja por razões contrárias às tuas, porque assenta no facto de ele representar uma corrente adversa ao ocultismo, no qual René Guénon via, como viu no bergsonismo, na filosofia alemã e em Goethe e não só na ciência ocidental, um fenómeno de origem diabólica, para o que muito contribuiu certamente a sua educação familiar católica, decisiva na posição polémica que tomou em relação à Maçonaria em que foi iniciado e que mereceu os aplausos calorosos dos eclesiásticos que, na época, dominavam a burguesia francesa. Os agrupamentos que se formam à volta de René Guénon não são mais do que a manifestação desviada de um catolicismo subconsciente que tem vergonha de se mostrar tal qual é a si próprio.

 

O ocultismo ou o que correctamente se pode entender por esta palavra recentemente criada é o domínio das Ciências Ocultas. O estudo e a prática da magia invocatória aparece, no Fausto, antes do pacto com o diabo. Aquele que Deus, no Prólogo, considera o seu primeiro servidor, “que O procura ardentemente na obscuridade e quer, em breve, conduzir para a luz” só depois, pelo pacto com o diabo, arrisca a sua alma. O espírito do mal é o espírito que nega, mas é também ele quem restitui ao velho sábio a juventude perdida, lhe dá o amor das mulheres e o poder político junto do Imperador; o que o salva é o conhecimento, que soube manter e aumentar através das vicissitudes do mal. Se o pacto pode ser interpretado só como simbólico, parece querer-nos dizer Goethe que os homens superiores têm todos uma inquietante e misteriosa ligação com o espírito do mal, mais ou menos consciente, consoante o grau. Ela é bem evidente em Leonardo Coimbra e em Teixeira de Pascoais, descarada em Fernando Pessoa, profundamente reflectida em Álvaro Ribeiro e Sampaio Bruno, constantemente poetizada em José Régio, dramática em José Marinho. Sem luciferismo não há arte, de filosofar ou outra, mas o estudo das Ciências Ocultas faz-se sob a inspiração do Espírito Santo. Pelo menos, se mais não tivéssemos, bastar-nos-ia para o saber “A Tempestade” de Shakespeare. Compreende-se assim que Álvaro Ribeiro tenha escrito nos últimos anos de vida que só as Ciências Ocultas são capazes de nos descobrir a verdade. (Prefácio ao livro de Conceição Silva sobre “O Mistério dos Painéis”).

 

De facto, como tu dizes, carecemos de uma interpretação de Pascoais e de Leonardo Coimbra, em que o pensamento destes dois homens surja como a finalidade que “o ocultismo procura” e que tu defines, para o primeiro, como uma sabedoria, criada “desde a origem e para além da erudição, em símbolos poéticos com vivida experiência e conceptualizada intuição”.

 

Quando pões nesta sabedoria a razão do patriotismo, cuja exigência os ocultistas recebem imediatamente de Fernando Pessoa, como foi talvez o meu caso na História Secreta, e estabeleces como condição de aprofundamento, mais real, desse patriotismo o pensar Pascoais e Leonardo, evocas O Encoberto de Sampaio Bruno e, em meu entender, com perfeita razão, porque O Encoberto é, como se vê no final de A Ideia de Deus, o Messias dos cristãos novos, Senhor das Ciências deste e do outro mundo.

 

Custa-me dizer-to, (“Irmão de Orlando, mas mais irmão dos que sabem”), mas a tua interpretação de O Encoberto é incompleta e não tão correcta quanto pretende ser. Nunca Sampaio Bruno poderia ter identificado judeus e camitas. “Os judeus, – escreves – dividiram-se em semitas, ou descendentes de Sem, e camitas, ou descendentes de Cam, o filho que não honrou seu Pai”; Sem e Cam, com Japhet, são filhos de Noé e só muito tempo depois aparece Abraão, que vem do outro lado do rio, e dá origem, por isso mesmo, aos hebreus; Abraão é da linhagem de Sem e é a razão por que os seus descendentes são semitas; Israel é o nome que Deus pôs a Jacob; a designação de judeus julgo provir do nome da principal tribo israelita, a tribo de Judá. Os filhos de Noé são relativos aos vários ramos em que se dividiu a humanidade. Os semitas, que honravam Pai e Mãe seguindo o preceito de Moisés eram odiados pelos povos descendentes de Cam que não honrou seu Pai. A não correcção é importante, não por ser incorrecção, mas porque desvia a exacta interpretação do Encoberto que tem de procurar-se precisamente na oposição dos camitas aos semitas (estes, judeus e árabes); com Abraão acabaram os sacrifícios humanos, já que Isaac foi substituído por um animal, com Cristo, que representa Caim e não Abel, os sacrifícios animais foram substituídos pelas espécies vegetais do pão e do vinho. A Inquisição, filha de um catolicismo africano (palavras de Bruno), repõe, em nome de Cristo, os sacrifícios humanos. Os Reis e os Sacerdotes assistiam jubilosos ao suplício das vítimas por entre os apupos de gozo dos camitas. Os Jesuítas, ainda segundo Sampaio Bruno, combateram a Inquisição porque a Companhia se tinha organizado a partir dum grupo de conversos, possivelmente, não o diz Bruno, de conversos árabes, se a semelhança entre os exercícios espirituais de Santo Inácio e os exercícios espirituais sufis é, como mostra o jesuíta espanhol Asín Palacios, um facto inegável. Em Portugal, predomina o cristão-novo de origem judaica e em Espanha o cristão-novo de origem islâmica. Em Álvaro Ribeiro a filosofia portuguesa tem como missão realizar a síntese católica das três tradições.

 

São direcções que ficaram por explorar na tua interpretação e por isso a disse incompleta. Não é, porém, um pequeno capítulo que vem diminuir o valor do teu livro. O seu êxito também não sofrerá com isso. Em Portugal, entre as pessoas que escrevem, só eu e tu sabemos um pouco melhor do que os outros “a única coisa que importa”. Oxalá outros apareçam melhores do que nós e eu não posso deixar de admirar a inteligência que, através dos teus escritos políticos, abre caminho à consciencialização da nossa mediocridade geral e à exigência de filosofar como convém.

 

Do teu irmão           

António Telmo

 

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Os Camitas[2]

Orlando Vitorino

 

 

Na segunda conferência da noite, limitei-me a chamar a atenção para a exigência de uma correcta leitura da interpretação que Sampaio Bruno, em O ENCOBERTO, faz, não tanto do sebastianismo, como da decadência histórica dos Portugueses.

 

Há hoje entre nós numerosos ocultistas, fenómeno que, além de extensivo a diversos povos europeus, é o equivalente intelectual do revivescer da religiosidade por desprezo para com os activistas políticos e por agressividade para com a vazia cultura oficial. Esses ocultistas de origem e expressão intelectual chegam a organizar-se em agrupamentos “tradicionais”, como os de simbologia “templária”, realizam cerimónias e simpósios internacionais a que dão, paradoxalmente, a mais desocultante publicidade e ocupam, ainda mais paradoxalmente, cátedras universitárias. A sua via de iniciação mais frequente é a obra do francês René Guénon, obra de leitura muito fácil e sugestiva, sobretudo para adolescentes. Constitui ela um constante e azedo, embora fundamentado e justificável, requisitório contra a civilização ocidental, que reduz ao que resultou da ciência moderna, considerando-a uma profanação desvirtualizadora mas substituindo-lhe um sistema de rememorações orientalistas que desenvolve em círculos viciosos de semelhanças, sincretismos e identidades simbólicas. Os iniciados são, deste modo, levados a afastar, das imagens e dos símbolos, os conceitos e as noções, ou seja, a filosofia e o pensamento. Ficam a braços com símbolos vazios e imagens sem legenda. Ficam ignorando que a única iniciação intelectual na verdade que a religião guarda ou de que dá imagem e símbolo, é a filosofia, e disso temos o mais eloquente exemplo na biografia espiritual de Leonardo Coimbra da qual Santana Dionísio acaba de publicar o admirável e indispensável guia.

    

O inspirador sempre presente e exaltado dos nossos ocultistas é Fernando Pessoa. O ocultismo de Fernando Pessoa é de carácter erudito ou, como ele próprio dizia da erudição, parasitário, mas revela-se com originalidade na poetização de uma imagética para a história de Portugal. O que o ocultismo procura como sua finalidade é o que, não Pessoa (e ele bem o sabia e disse), mas Pascoaes, criou desde a origem e para além da erudição, em símbolos poéticos com vivida experiência e conceptualizada intuição. Os nossos ocultistas preferem, porém, o poeta-artista (para empregar uma distinção de Régio), que vai da imagem para o conceito, ao poeta-pensador, que vai do conceito para a imagem. E porque ao poeta-artista muitas vezes acontece ficar pelo caminho, se dispensam eles de seguir o caminho até ao fim.

 

Esta nebulosa de ocultistas poderá evanescer-se. Mas entretanto afirmou uma exigência de patriotismo que recebeu imediatamente de Pessoa, procurando agora transitar dele a Sampaio Bruno. Enquanto não ascender a Pascoaes e, de Pascoaes, a Leonardo, carece de uma correcta interpretação do autor de O ENCOBERTO, que começou já a ser preparada no 1.º volume do livro de António Quadros, PORTUGAL, RAZÃO E MISTÉRIO.

 

Sampaio Bruno não é um sebastianista, como muitos entendem. Pelo contrário: o sebastianismo afigura-se a Bruno uma expressão degradada de um messianismo universal. E o que, no seu livro, constitui o primordial elemento para a interpretação ou a filosofia da história de Portugal é, primeiro, o predomínio dos judeus que se instalaram tão profundamente entre nós que neles estão nossas raízes espirituais e étnicas; é, depois, o conflito entre camitas e semitas que dilacera a diáspora hebraica e se manifesta, explicando-a, na lenta, mas funda decadência dos Portugueses, desde o Séc. XVI até nossos dias. Dessa decadência, vê Sampaio Bruno que o segredo se encontra nas razões e fins que teve a Inquisição, estabelecida entre nós quase ao mesmo tempo em que se deu a enigmática expulsão dos judeus e o aparecimento do sebastianismo. Para aquém dos Autos-de-Fé e do Santo Ofício, para aquém da sua abolição, muito para aquém, a Inquisição ficou-nos no sangue. Há, em cada Português, um inquisidor, um inquiridor, um juiz. A nossa inteligência imediata é judicativa e nossa acção procede por juízos. A filosofia portuguesa, da qual Bruno foi o precursor senão, como entendia Álvaro Ribeiro, o fundador, é, porém, o contrário e o remédio dessa idiossincrasia degradante. Demonstra-nos e descreve-nos Santana Dionísio como Leonardo Coimbra opunha à inteligência judicativa a razão compreensiva e a bondade. José Marinho dava, a um dos seus primeiros ensaios, o título de NÃO JULGARÁS, ao mesmo tempo que denunciava o vício judicativo dos orientadores da “cultura oficial”, como António Sérgio. E Álvaro Ribeiro negava, em termos sistemáticos, o valor lógico do juízo.

 

Como, porém, identificar Inquisição e Judaísmo? Não foram eles, precisamente, irredutíveis opostos e inimigos? É o que Bruno explica. Segundo ele, certos sectores da Coroa, ou do Estado, como da mesma Igreja, contrariaram, primeiro, o estabelecimento da Inquisição; depois, os Reis e a Igreja chegaram a decidir pôr-lhe fim. Quem os impediu foi o povo. Bruno determina melhor: foi o povo de Lisboa e do sul do país. Autos-de-Fé, houve-os em Lisboa, mal chegaram a Coimbra e, ao avançarem sobre o Porto, depararam com a repugnância, a indignação e a oposição invencível das populações que assim impediram a sua realização, ao contrário do que acontecia na capital onde eram espectáculos jubilosos para os populares. Como entender? Diz-nos Bruno que assim:

 

Os judeus dividiram-se em semitas, ou descendentes de Sem, e camitas, ou descendentes de Cam, o filho que não honrou seu Pai. Um ódio sem tréguas os divide. Os camitas expandiram-se pela África do Norte e um ramo deles instalou-se na metade sul de Portugal. Foram eles que sustentaram, contra Deus, contra a Coroa e contra a Igreja, os Autos-de-Fé em que eram queimados, não os judeus indiscriminadamente, mas os semitas.

 

Esta distinção entre semitas e camitas é, digamos, viva e presente, nos países africanos. A população dominante na Argélia socialista de hoje, reconhece-se, afirma-se e orgulha-se como camita. Na África Central, no Congo por exemplo, singularizam-se as tribos negras cruzadas de camitas, como aquela a que pertencia Lumumba que, nos anos 60, abriu as portas ao socialismo russo. Depois dos Autos-de-Fé, depois dessa obsessão de julgar e inquirir, ou “levantar inquéritos” a tudo e a nada, os camitas do velho republicano, democrata e sábio que foi Sampaio Bruno, recorrem agora ao socialismo?

 

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Comentário

António Carlos Carvalho

 

Três considerações prévias:

  1. O movimento da Filosofia Portuguesa, precisamente porque é movimento em vez de sistema, não prescreve nenhum pensamento único, antes pelo contrário, defende e cultiva o pensamento livre de homens livres e a diversidade de pontos de vista sobre a Humanidade e os mistérios da Criação;
  2. A Bíblia continua a ser um volume encadernado que convém que figure nas prateleiras bem à vista mas que geralmente não é lido e, quando o é – fenómeno raro --, geralmente é mal entendido, sobretudo porque essa leitura, numa tradução duvidosa, não é, como deveria ser, acompanhada pelos comentários (a tradição oral depois compilada no Talmude, aliás queimado às carroças cheias, durante séculos, nas praças europeias, incluindo algumas portuguesas);
  3. Precisamente de acordo com os comentários, mas contemporâneos, do sábio Léon Askenazi, a mesma Bíblia pode ser entendida como uma recorrente insistência sobre a necessária construção da irmandade ou fraternidade, tomando como exemplos as histórias de Caim e Abel, de Sem, Jafet e Cam, de Abraham e Loth, de Isaac e Ismael, de Jacob e Esaú, de José e dos seus irmãos, de Moisés, Aaron e Miriam.

 

Vem a propósito recordar tudo isto quando lemos agora esta carta escrita por António Telmo, mas não enviada, para Orlando Vitorino. Dois irmãos, dois filósofos, cada um com a sua visão própria, neste caso, do sentido profundo da História de Portugal vista à luz de um dos relatos bíblicos que envolve justamente dois irmãos, Sem e Cam (e também um terceiro, Jafet, embora não aqui referido) e os seus descendentes. Orlando Vitorino recorrera a «O Encoberto», de Sampaio Bruno, para afirmar, numa sua obra, que os judeus dividiram-se em semitas e camitas, «conflito entre camitas e semitas que dilacera a diáspora hebraica e se manifesta, explicando-a, na lenta mas funda decadência dos portugueses.»

 

António Telmo, na sua carta-resposta (variante A) começa por elogiar o irmão, lembrando, significativamente, que aos 14 anos -- a idade em que, segundo os talmudistas, é permitido ler e estudar o Pentateuco --, o tivera como primeiro mestre, e depois (variante B) afirma que também ele, Telmo, pertence ao número dos ocultistas, desprezados pelo irmão no seu texto; o estudo das Ciências Ocultas, sublinha, faz-se sob a inspiração do Espírito Santo, e elas são, segundo Álvaro Ribeiro, capazes de nos descobrir a verdade; e mais: «o ocultismo procura a sabedoria, razão do patriotismo, cuja exigência os ocultistas receberam imediatamente de Fernando Pessoa, como foi talvez o meu caso na História Secreta». E acrescenta: «O Encoberto é, como se vê no final de A Ideia de Deus, o Messias dos cristãos-novos, Senhor das Ciências deste e do outro mundo».

 

E tal como na tradição judaica o filho deve respeitar o Pai mas mais ainda o sábio, Telmo, «irmão de Orlando, mas mais irmão dos que sabem», fiel a esse princípio, vê-se obrigado a dizer ao irmão que a sua interpretação de O Encoberto é «incompleta e não tão correcta quanto pretende ser» -- de facto, «nunca Bruno poderia ter identificado judeus e camitas». (E realmente não o faz: leia-se o que Bruno realmente escreveu nas páginas 159 a 161 da reedição de 1999 da Lello – e, já agora, esqueçamos o infeliz prefácio dessa mesma reedição). Sem, Cam e Jafet são filhos de Noé; só muito depois (dez gerações mais tarde) surge Abraham, «que vem do outro lado do rio e que dá origem por isso mesmo aos hebreus»; os semitas constituem a linhagem de Sem; a designação «judeus» vem da tribo de Judá; os camitas vêm de Cam, aquele que não honrou o seu Pai; há portanto uma oposição entre camitas e semitas, na exacta interpretação de O Encoberto; e que, se Abraham acabou com os sacrifícios humanos, a Inquição repôs esses sacrifícios, para gozo dos camitas. E tendo reposto a verdade dos textos, Telmo elogia novamente o irmão. E, tal como Jacob-Israel e Esaú, Telmo e Orlando seguiram depois os seus respectivos caminhos diferentes.

 

Pelo seu tom desassombrado, esta carta incita-me a levar mais longe o comentário. Recordemos o contexto da história de Sem e de Cam – e de Jafet, os três filhos de Noé.

 

Depois do Dilúvio, uma nova humanidade recomeça o seu caminho através destas três figuras: Sem (Shem), o «Nome»; Cam (Ham), o «quente»; e Jafet (a Beleza, o antepassado dos Gregos). Noé planta uma vinha, faz vinho, embriaga-se e expõe a sua nudez; Cam vê a nudez do Pai e incita os irmãos a partilhar dessa visão profanadora (algumas interpretações do texto bíblico vão ao ponto de sugerir que Cam castrou o Pai... porque desejava ser ele próprio o pai, o princípio de uma identidade nova, Canaã); no entanto, Sem e Jafet cobrem a nudez paterna com um manto simbólico; Cam viola uma das sete leis noaquitas (anunciadoras dos futuros Dez Mandamentos (Palavras) do Sinai), a que proíbe a mutilação de um ser vivo; de qualquer modo, lembra Raphael Draï, o exibicionismo etílico do pai e o voyeurismo castrador do filho representam uma regressão, uma reconstituição da humanidade anterior ao Dilúvio, um desafio feito a Deus e à sua Aliança (simbolizada pelo arco-íris). Cabe então ao Nome (Sem) e à Beleza (Jafet) repararem o mal feito: cobrindo com o manto do símbolo a nudez do Pai, afirmam já aqui o elemento novo que será depois proclamado no Sinai: Honra, isto é, «veste» o teu pai e a tua mãe para que os teus dias se prolonguem. Este é o quinto mandamento, curiosamente figurando na lista dos cinco mandamentos referentes a Deus, na primeira das Tábuas.

 

Refira-se ainda que uma tradução mais cuidadosa do texto desta narrativa mostra-nos  que Noé, ao acordar do seu torpor alcoolizado e apercebendo-se do que Cam lhe fez, proclama: «Isolado seja Canaã, escravo do escravo, será devolvido aos seus irmãos» (não se trata propriamente de uma «maldição» lançada sobre o filho de Cam, mas antes de uma ausência de bênção, da bênção dada por Noé a Sem, «Bendito seja o Eterno, Deus de Shem»; Canaã deverá ser servidor dos seus irmãos para que estes, os descendentes de Sem e Jafet, o ajudem a encontrar a humanidade plena perdida). Em vez de «raças» (que é coisa de cães e de cavalos, mas não de gente), devemos antes ver nestas três personagens, Sem, Cam e Jafet, a figuração de três linhagens espirituais, presentes ainda hoje, mesmo entre nós. Quantos camitas há por aí cheios de si mesmos, alheios à herança paterna (da pátria) e vivendo apenas de acordo com os seus impulsos espontâneos, julgando que tudo lhes é devido e que podem viver alheios à presença do Nome e da Beleza (outro dos nomes divinos)?

 

E quando Noé acrescenta «E habite Jafet nas tendas de Sem», fica formulada a esperança de que Jafet, ou seja, os Gregos, venham a habitar as tendas em que a Presença divina se manifesta. Efectivamente, de que serve a Beleza sem o Nome? O que é a Filosofia se não for portadora de uma herança profética? Convém ter sempre presente o que aconteceu no século VI anterior à nossa era comum: terminado o ciclo da profecia em Israel, começou o ciclo da filosofia na Grécia. Como se fosse uma passagem de testemunho para um novo ciclo da História. E se nós somos filhos de Atenas e de Roma, também o somos de Jerusalém. Temos três raízes, para a coisa ser perfeita, e não apenas duas.

 

Por outro lado, sabendo nós que os poetas herdaram o espírito profético, então a Filosofia Portuguesa, enquanto arte poética, tem o dever de buscar essa raiz e escutar a sua voz inspirada – e nesse sentido, por muito que isso custe ou cause incómodo a alguns, devemos mais a Jerusalém do que a Atenas ou a Roma. Por isso Álvaro Ribeiro e António Telmo falavam do nosso subconsciente hebraico...

 


[1] Nota do editor: Aparentemente, e ressalvando a possibilidade de extravio de alguma folha do conjunto dactilografado, António Telmo interrompeu aqui, no final da primeira folha A4 do dactiloscrito, o desenvolvimento de ideias que o referido capítulo sobre “Os Camitas” do livro de Orlando Vitorino lhe suscitava, para iniciar uma nova reflexão sobre o mesmo capítulo na folha seguinte.

[2] In Orlando Vitorino, O Processo das Presidenciais 86, Lisboa, 1986, pp. 33-34.

 

VOZ PASSIVA. 11

17-01-2014 11:34

De António Carlos Carvalho, membro do projecto António Telmo. Vida e Obra de quem, já na próxima semana, vamos publicar o comentário ao inédito télmico sobre O Processo das Presidenciais de 86, de Orlando Vitorino, publicamos hoje o texto da comunicação que apresentou ao Colóquio "A Obra e o Pensamento de António Telmo", promovido em 14 e 15 de Fevereiro de 2011 em Lisboa pelo Instituto de Filosofia Luso-Brasileira.

 

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Os nomes de António Telmo

António Carlos Carvalho

 

António Telmo tratava sempre cada um de nós pelo nome completo, nome próprio e apelido -- não dizia «Você» ou «Tu».

 

Lembro-me que essa foi uma das coisas que mais me surpreendeu nele, esse sublinhar do nome num tempo em que a importância é dada aos números que todos nós temos, que nos são atribuídos e é por eles que nos identificam, e não pelo nome que recebemos ao nascermos -- tal é o absurdo --, esse nome que nos deram e que se cola a nós ao ponto de a ele respondermos, de reconhecermos o seu poder de apelo.

 

«Habitamos um nome, como habitamos uma casa.»

 

António Telmo ensinou-nos que existe «uma íntima relação entre o nome de uma pessoa e o que ela viveu ou pensou» («Congeminações de um Neo-Pitagórico»).

 

«Os nomes actuam sobre a alma e até sobre o pensamento dos homens que os recebem ao nascer e de acordo com o rito.»

 

António Telmo aprendeu essa importância do nome com o mestre Álvaro Ribeiro, logo no seu segundo encontro. Álvaro Ribeiro disse-lhe então: «Lembre-se sempre de que António Telmo há só um», «é preciso conhecer o ser que tem o seu nome e não outro» (in «Teoremas de Filosofia», 12).

 

Muito mais tarde, evocando o mestre, António Telmo escreveu: «Se soubermos estar atentos aos nomes daqueles que Leonardo Coimbra designou como “a monstruosa variedade dos contemplativos” e que nós diremos “prodigiosa”, o nome de Álvaro Ribeiro aparecer-nos-á bem significativo. Álvaro foi na verdade o mestre do alvoroço.» («Álvaro Ribeiro e a Filosofia Portuguesa»)

 

«O nome em princípio representa a essência sobrenatural do indivíduo.»

 

Ele próprio interrogou o significado do seu nome, como sabemos:

 

«António, Anthos Noû, a flor do intelecto, que é como quem diz, a sua parte suprema que atrai a influência do céu. Telmo, uma forma da palavra Hermes, de Thélêmos, vontade, desejo, aspiração.»

 

E nós, pelo nosso lado, poderíamos acrescentar, seguindo os seus ensinamentos de termos um olhar e um ouvido atentos à letra e ao som, que em António e Telmo nos parece repetida a letra T, a letra grega Tau e cruz de Santo André, o pai dos monges, o eremita do deserto; que no A de António encontramos o Alef e o Alfa, a estilização da cabeça do Touro, que era também o signo astrológico de António Telmo, esse signo que era o domicílio principal de Vénus/Afrodite, a deusa do Amor – e António Telmo, tal como Álvaro Ribeiro, muito escreveu sobre o Amor e a sua Verdade; que dizendo Telmo é impossível não pensar no famoso «Fogo de Santelmo», esse estranho penacho luminoso no cimo das vergas e mastros dos barcos ou uma chama à superfície das ondas.

 

E concluir que António Telmo foi também isso: um insólito sinal de luz e de fogo no meio desta tempestade em que vivemos.

 

Mas António Telmo não se contentou em investigar a essência do nome com que assinava: desdobrando-se «para se ensinar a si próprio», à maneira de Pessoa, e jogando kabbalísticamente com os anagramas à maneira de Samuel Usque e Teixeira Rego, criou um certo Thomé Nathaniel para com ele dialogar e depois explicou assim esses nomes:

 

«Eu tirei-o das letras do meu nome e pu-lo a ser como se fosse a essência da minha alma, o amigo um dia anunciado da minha essência. Thomé Nathaniel é anagrama de António Telmo mas possui virtudes que em mim são imperfeitas, como se patenteia pelos dois H que o constituem, dois sopros ou modos de vida espiritual unificados pelo divino El da última sílaba do nome.»

 

«Thomé Nathaniel é um dos discípulos actuais de Hermes, antiquário em Estremoz. As nossas relações pessoais tinham sido determinadas pelo mistério dos nomes. O seu nome é o anagrama do meu. Uma relação anagramática dos nomes, anagramática quer dizer, cujas letras se dirigiam conjuntamente para o alto.»

 

E nós podemos acrescentar que se Tomé ou Tomás foi um dos Doze, o Dídimo ou Gémeo, o incrédulo do «ver para crer» que depois teria ido pregar para a Índia, Natanael significa «Deus deu» ou «dom de Deus».

 

E, já agora -- o que António Telmo nunca referiu por pudor ou temor --, que EL, Deus, está escondido no nome de Telmo, um nome teóforo.

 

Ora toda esta questão dos nomes é, afinal de contas, como sabemos, uma questão tão velha como a da humanidade: no Génesis, a linguagem torna-se nomeação, conhecer é nomear, e isso é confiado ao Homem, o único ser que dá ele próprio um nome ao seu semelhante; é Adam (que não é um nome) que dá nome aos animais -- e aqui podemos especular se essa nomeação é simplesmente uma classificação zoológica, chamar gato ao gato, ou se será um verdadeiro nome dado a cada animal. (A verdade é que lá em casa cada um dos nossos vinte e um gatos tem nome próprio e reconhece-o como seu: reagem quando os chamamos. Não sei como mas é mesmo assim…)

 

Caim e Abel não recebem nomes, um é «adquirido» e o outro é «vão», «orvalho», «inconsistente», e é então o terceiro irmão, Seth, a primeira criança chamada «filho» na Bíblia, que recebe um nome, um «shem» («shem» vem de «sham», além, dimensão horizontal, aquela onde o olhar ascendente se une à linha de encontro entre terra e céus, «shamaim»), e Shem ou Sem, como também sabemos, é um dos filhos de Noé, daquele de quem todos nós somos descendentes, e que dista dez gerações de Seth. Noé, que indicou a Japhet, o antepassado dos Gregos, que devia residir «nas tendas de Shem», o antepassado dos Semitas.

 

Um bom conselho para a conciliação de Atenas com Jerusalém – como António Telmo procurou fazer nas suas obras.

 

António Telmo, tendo nascido no Reino da Quantidade, pertencia na verdade ao Reino da Identidade.

 

Deus chamava os seus profetas, Abraham ou Moisés, pelos nomes. E eles respondiam: «Hineni», «Eis-me aqui, aqui estou.»

 

O nome é um apelo, um chamamento, um convite à escuta, e não à visão, na solidão do deserto.

 

Neste outro deserto em que nos encontramos, de cada vez que António Telmo nos tratava pelo nome estava também a chamar-nos à responsabilidade do nome que carregamos como um peso ou como uma vocação.

 

A decisão é nossa.

 

Ele, António Telmo, cumpriu o seu papel.

 

 

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