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VOZ PASSIVA. 12

07-02-2014 09:16

A foto, ainda inédita, da autoria e do arquivo pessoal de Paulo Samuel, membro do projecto António Telmo. Vida e Obra, mostra-nos António Telmo, no uso da palavra, e Pinharanda Gomes numa das mesas do Colóquio "Álvaro Ribeiro e a Filosofia Portuguesa", que se realizou no Porto em 1993.  O ensaio, que agora publicamos, de Pinharanda, reflecte a comunicação de encerramento por este apresentada ao Colóquio "A Obra e o Pensamento de António Telmo", promovido em 14 e 15 de Fevereiro de 2011 em Lisboa pelo Instituto de Filosofia Luso-Brasileira. Amplamente informado, trata-se, do ponto de vista da biografia de António Telmo, de um documento da maior importância, mormente no que toca às raízes raianas e beirãs do filósofo. Ao longo de 2014, publicaremos nesta página o que Pinharanda escreveu sobre Telmo e as páginas que este dedicou ao condiscípulo, autor do Dicionário de Filosofia Portuguesa.

No signo da Raia

J. Pinharanda Gomes

 

1. Que António Telmo era meu compatrício de Riba Coa e, portanto, lustre das terras arraianas entre a Beira e Castilla/ Léon, só vim a sabê-lo depois de 1969, e julgo ter a prova substanciada em omissão. Durante o ano anterior, e pelo menos até meados do ano seguinte, procedera à montagem e elaboração do Dicionário de Escritores do Distrito da Guarda (Ed. Pax, Braga, 1969). De e não dos, por estar ciente de que os recenseados seriam apenas uma parte do todo. Apesar do apelo publicado em vários jornais, e do considerável afluxo de informação recebida, incluíndo livros de natureza regional (que depois doei à Biblioteca do Sabugal), nem todos os vivos deram sinal de vida.

Ora, em Almeida, o decénio que vai de 1920 a 1930 ficou assinalado pelo nascimento de pessoas que se notabilizaram, entre elas o humanista Américo da Costa Ramalho (1921), o compositor e salmista Bernardo Terreiro (1921), o filósofo Orlando Vitorino (1922), o professor e ensaista Eduardo Lourenço de Faria (nascido na freguesia de S. Pedro do Rio Seco, 1923), o poeta e psicólogo Sá Vieira/ Álvaro Terreiro (1925) e, enfim, António Telmo (1927), irmão de Orlando. Com este, beneficiara do estabelecimento de relações, pelo que teve lugar no Dicionário. António Telmo e Eduardo Lourenço foram omissos, por carência de atempada informação, o que deveras lamentei. Houve mais casos, infelizmente, e, depois, pelo menos durante alguns anos, juntei novas entradas biográficas à obra que, na falta de reedição, depositei para consulta no Arquivo Distrital e na Biblioteca Municipal em fotocópia.

No caso de Eduardo Lourenço, não tinha dele pessoal conhecimento, a Telmo conhecia-o pelo menos da época em que publicara a Arte Poética (por ela me foi dado escutar garbosos elogios ao Autor), mas a sua origem não veio à conversa. Na ignorância, parecia não haver motivo para indagar se ele era do Distrito, de resto, pela minha parte havia algum pudor em fazer perguntas biográficas nas “conversas de café”, desde que, certo dia, a alguém que desejava saber algo da sua biografia, Álvaro Ribeiro replicou que, naquela tertúlia não se tratava de vidas pessoais.

No entanto, em 1983, no inventário intitulado A Imprensa da Guarda, abrangendo a maior parte dos concelhos distritais, já Telmo aparece referenciado e como irmão de Orlando Vitorino. Mais tarde, de ambos, redigi as respectivas breves notícias bio-bibliográficas, por deferência do Doutor João Bigotte Chorão, para a Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura Verbo (Volumes 20 e 21). No ensejo, sugeri que fossem noticiados outros autores, como Marinho, Quadros, Sant’Anna, Cunha Leão, Dalila, Alexandre Coelho, todos nomes da “Filosofia Portuguesa”, tendo o Dr. Bigotte Chorão acedido à ideia. Tais artigos, alguns actualizados, foram recuperados para a edição Século XXI da mesma prestigiada Enciclopédia.

A vila de Almeida era, então, uma decadente vila raiana. Já iam longe os fastos e nefastos dias da sua história militar como fortaleza estratégica, sobretudo durante as Invasões Francesas. Habitada por pequenos agricultores, pequenos comerciantes e funcionários públicos, a vila era sede concelhia e, portanto, local de referência e passagem. Os quartéis, que haviam feito a sociedade e a economia da vila, estavam devolutos. Perto, beneficiando da passagem da ferrovia internacional, um lugarejo, Vilar Formoso, elevado a posto alfandegário, entrava em crescimento económico e social. Vilar Formoso de um lado, e Fuentes de Onõro de outro, ascendiam a principais povoações.

Quanto à vila, consultando os jornais da época (primeiro trinténio do século XX) é possível dispor do elenco dos principais empresários. Entre eles, os Estabelecimentos de Joaquim Carvalho dos Santos, cuja Família era a mais importante da vila, com seu comércio geral, abastecedor de todas as freguesias. Joaquim Carvalho dos Santos aderira ao partido afonsista, tendo sido Vice-Presidente da Câmara. De imprensa, o mais notório é a sequência de três jornais com o mesmo título – O Almeidense – o segundo tendo como proprietário um rico “brasileiro”, ardente propugnador republicano. Neste jornal, um colaborador assina apenas Carvalho dos Santos, que escreve artigos em prol da “revolução social”. Quinzenário, deixou de se publicar em Abril de 1913, mas, em Fevereiro desse ano, um jurista, natural de Campo Maior que, pela idade era, ela por ela, da geração integralista e poeta, de nome João António Diniz Victorino, chegou à vila, a tempo de ainda assinar uns poemas no dito quinzenário, o primeiro deles sendo a apologia da árvore, cuja festa fora criada nos alvores da República, festa essa em que as crianças das escolas, descalças na sua maior parte, participavam em ardente cortejo, por vezes abrindo com alguma brigada dos “voluntários da República”, uma espécie de “legião portuguesa” para apoio ao novo Regime.

Numa entrevista concedida (2004) ao actor e poeta Américo Rodrigues, António Telmo menciona o avô, o pai, e os tios (seu pai casou com uma senhora da Família Carvalho dos Santos) – Ernesto, José e Teófilo, irmãos de sua mãe.

Na família salientou-se, ainda jovem estudante, José (1893-1967), Director de uma “folha quinzenal académica”, de que foi co-proprietário com Augusto Coelho, A. Silva Pereira, Fausto de Abreu e Aurélio Barros. A “folha” tinha a Redacção julgamos que em casa de algum deles, na Rua D. Diniz 18, junto à Praça Velha, na Guarda. Publicaram onze números desde Dezembro de 1911 a Junho de 1912 (afinal um ano lectivo!) sob o lema “Verdade. Justiça” e pretendia que os estudantes fossem menos oprimidos pelos superiores (do Liceu). José assinava, ora com o pseudónimo Nic Carter, ora com o anagrama Olhavrac. Cremos ser este a quem Telmo considerava o “cérebro da família”, que trabalhou em Angola, foi deputado e ensaísta, sendo de amena leitura o livro Roma. A Mulher e o Amor, obra tardia (1964), e tem lugar no nosso citado Dicionário. Também fundou e dirigiu um quinzenário de transportes, a Revista Portuguesa de Comunicações (Lisboa, 1929-1937). Álvaro Ribeiro ainda colaborou nesta Revista, com um artigo intitulado Páginas dum Caderno Democratista (N.º 96, 1934) excerto de um ensaio que preparava no âmbito da doutrinação do movimento “Renovação Democrática” – A Cultura Dirigida, contra o dirigismo cultural do Estado. Lembremos, de passagem, que Orlando Vitorino foi opositor ao dirigismo, combatendo a política de subsídios governamentais a iniciativas artísticas porque subsidiar geralmente implica ingerir.

Regressando a O Almeidense. Extinto o segundo, doze anos se passaram até que, em Novembro de 1925, o título ressurge, quinzenário, em iniciativa estruturada por membros da família Carvalho dos Santos: Joaquim e, depois, Ernesto, como proprietários; Diniz Victorino como Director, a que sucedeu Ernesto, que também exerceu funções de Editor e de Redactor. O jornal durou até Agosto de 1931, tendo em dada altura passado de quinzenário a trimensário, sedeando por norma na Rua do Convento, a mesma onde Telmo nasceu. Deste jornal quase houve dois perfis diferentes. Enquanto Director, o Dr. Victorino pôs a tónica na defesa dos interesses regionais, evitando cores políticas: “Não é azul nem vermelho, não é branco, nem preto”, escreveu. Apenas defende os interesses de Almeida.

Tendo saído para Moçâmedes, o seu lugar veio a ser ocupado pelo cunhado Ernesto, que repôs o selo ideológico. Suspenso entre 1927 e 1929, já o Dr. Victorino ausente. António Telmo nasceu no ano de aparecimento do segundo modernismo, corporizado na revista coimbrã Presença, muito mais próxima da lirica da “Renascença Portuguesa” do que alguns supõem, apesar de para alguns o nome presença estar carregado de anti-saudosismo.

Ernesto e Teófilo envolveram-se noutro projecto, A Defesa do Concelho de Almeida (1927-1928), que se bateu pelo retorno das forças militares à vila, pois elas eram um importante esteio da vida económica e política da vila fortaleza.

Depois, em 1929, A Defesa suspensa, O Almeidense reapareceu, dirigido por Ernesto. Então, e por curiosidade, a imprensa regional desafecta às ideias do jornal, quando o criticava, citava-lhe o título, seguido de três pontinhos, na forma maçónica.

Anoto, de passagem, que Telmo considerou ter aprendido a clarificar a sua posição face à Igreja e à Maçonaria na esfera de influência de Álvaro e de Marinho, no entanto, curiosamente, seu tio Teófilo, que se distinguiu como activíssimo político, era um homem de uns vinte anos quando Telmo nasceu. Segundo Oliveira Marques, no seu Dicionário, Teófilo ter-se-ia iniciado na Maçonaria, em Lisboa, no ano de 1931. Segundo lemos num jornal de Alenquer, pelo menos nos anos de 1930/1940, costumava recrear-se em tempos livres, numa Quinta na freguesia de Merceana (Alenquer). Não temos por certo se, além de Azambuja, Telmo também passou tempos na Merceana.

O jornal em vista, teve óbvias relações com a Federação da Imprensa Republicana Portuguesa, e divulgou artigos transcritos da revista Seara Nova e de outras publicações. De José Marinho transcreveu um artigo por este publicado na revista portuense Princípio, dirigida por Álvaro Ribeiro, Manuel Maia Pinto e Adolfo Casaes Monteiro. Vivia-se o movimento renovacionista-democrático.

Este longo e maçador registo serve para apenas olhar a paisagem que acolheu a vinda de Telmo ao mundo. Se, nas datas indicadas, Orlando já andava nos 6 ou 7 anos, seu irmão Rui não sei, António era apenas uma criancinha, de pouco, julgamos, se lembrando desses dias, tanto mais que saiu bem cedo da vila, onde esteve algumas vezes, a última das quais por voltas de 1984. Segundo declarou a Américo Rodrigues, na data em que fizera 77 anos, terá vivido 64 em Portugal e os restantes em Angola, Brasil e Espanha, revelando-se literariamente sobretudo a partir de 1957, editando o 1.º livro em 1963, na idade de 36 anos.

A título porventura irrelevante, António Telmo ainda frequentou estudos liceais na época de ascenso do problema da “Filosofia Portuguesa”, (que se reivindicava da herança e sucessão do magistério de Leonardo Coimbra), na Escola Nacional, sita no Largo da Anunciada (Lisboa) junto do Elevador do Lavra, que uma vez subiu com seu irmão Orlando e com Álvaro Ribeiro, a quem, por então, conheceu. A Escola Nacional tinha sido fundada em 1917 pelo então Coronel José Vicente de Freitas (fal. 1952) que também foi Director dela.

Vicente de Freitas presidiu ao Ministério que, por Decreto de 12 de Abril de 1928, sendo o portuense médico José Alfredo Mendes de Magalhães (fal. 1957) Ministro da Instrução, extinguiu a Faculdade de Letras do Porto, criada por Leonardo em 1919. Numa página memorial, António Telmo situa a extinção da Faculdade no signo do “salazarismo”. De facto, Salazar já se tornara financeiro apetecido pelos militares da Ditadura, mas só entrou para o Governo, (Ministro das Finanças) em 27 de Abril, acedendo a Primeiro Ministro em 1932. Sob a sua anuência orçamental, a Ditadura consentiu que a Faculdade funcionasse até à finalização das licenciaturas dos alunos existentes, o que se verificou em 1931.

 

2. Após a passagem de alguém que se estima para a vida renascida, constitui quase um impossível abordar esse alguém sem compulsivo recurso à autobiografia. Não se trata de nos situarmos no centro da memória, mas apenas de vermos de que modo viajámos com o protagonista.

Nascido no vizinho concelho do Sabugal em 1939, nessa data, nascido em Almeida, António Telmo perfazia os doze anos. Quando obteve a licenciatura (1957), ainda o evocador destas lembranças, por diversos motivos, respirava os ares liceais na Guarda. O conhecimento de Telmo não levou a uma convivência tão frequente como a havida depois de 1960 com os demais da “Filosofia Portuguesa”. O nosso convívio foi espaçado, intermitente, com longos hiatos, derivados das ausências de Telmo noutras terras – Sesimbra, Redondo, Brasil, Estremoz.

Tanto quanto nos lembra, pela mão de Luiz Zuzarte e também por motivação de Afonso Botelho (que conhecera na Causa Monárquica) terei tido a graça de conhecer António Telmo tempos antes da Arte Poética. Luis Zuzarte suspendera os estudos na Faculdade de Direito por motivos de saúde e publicava, de conta própria, uns opúsculos, em papel pardo, com poemas e aforismos poéticos, felizmente reunidos pós-mortem por sua prima Maria Helena em livro. De Telmo e de Zuzarte recordo que tinham algumas divergências, mas a minha impreparação de jovem chegado da província não deu para entender os motivos, embora fosse evidente que um provinha de um ambiente republicano com algum pendor laicista, e outro provinha de famílias monárquicas e tradicionalmente católicas. Zuzarte seguiu uma doutrina como a do personalismo cristão, promovido pela revista coimbrã, católica e integralista Cidade Nova, cujo personalismo defendia, não por influência francesa, mas por recepção da doutrina de Tomás de Aquino.

Quando pude ler com mais assiduidade os escritos de Telmo, e depois de ter visto os meus provincianos horizontes mais abertos, aquando do colóquio O que é o Ideal Português (1962) era impossível não considerar a ascendência de Telmo sobre a ignorância de quem estas linhas escreve. Já conhecera e ouvira Álvaro e Marinho, mas foram as lições de António Quadros, Francisco da Cunha Leão, Fernando Sylvan, António Braz Teixeira, Luis Espírito Santo, Fernando Morgado, Alexandre Coelho, que ajudaram a compreender o significado dos ideais da “Filosofia Portuguesa”, ainda o 57 se publicava com o título Movimento da Cultura Portuguesa.

Se com os outros convivi, com Telmo o convívio escasseou, compensado então pela leitura de escritos (nem todos, por desconhecimento) de sua autoria. Manda a verdade confessar, sem pejo de desprimor, que muitas vezes não me foi dado atingir, por manifesta carência da virtude de discernimento, (que é diacrítica e diagnose) o íntimo significado de seus enigmas, gnomas e figuras de estilo. Só podia considerar Telmo como mestre, com implícito reconhecimento de ser seu discípulo, mas a prudência mantinha a reserva, perante a questão: – Aceitar-me-ia ele como discípulo? E mais: poderia, sem temor, estar certo de que atingira a plenitude dos carismas do discipulato?

Esta evocação está possuída por um apelo à memória das etimologias da vida, que etimologia também significa raiz, a das nossas origens na pequena pátria raiana que, apesar da proximidade espanhola, não perdeu o sentido da portugalidade.

Almeida é berço do mais polémico intérprete da história arcaica de Portugal, que a olhou através de um prisma simbólico-teológico e providencialista – Bernardo de Brito. Assinale-se então o facto de Telmo, com seus próximos pensadores já citados, ter assumido a emergência de Portugal como tema e problema de filosófica, e não apenas política, intencionalidade.

Guardo a esperança de que Almeida saiba acarinhar a memória e a obra deste seu filho (e também dos outros que subscreveram a portugalidade: Orlando e, os irmãos Terreiro) mesmo considerando que fez vida longe do berço. Estes escritores honram a história de Almeida, história essa que é mais ampla do que a debatida história dos (in) sucessos bélicos.

Telmo nasceu na Raia. Repousa em Estremoz. Fez, da especulação secretista, a arte cabálica de mostrar, jamais ocultando. Como se reza no Salmo 138: “A noite brilha como o dia/ e a escuridão é clara como luz”.

FOTOS COM HISTÓRIA(S). 03

06-02-2014 09:03

Do arquivo pessoal de Paulo Samuel, e da autoria deste membro do projecto António Telmo. Vida e Obra, uma fotografia histórica, sem margem para dúvida. Trata-se de uma mesa-redonda subordinada ao tema “Leonardo Coimbra e a Filosofia Portuguesa”, realizada na Fundação Eng. António de Almeida, em 12 de Abril de 1983, por ocasião das comemorações do centenário do filósofo criacionista. Da esquerda para a direita do leitor estão Fernando Sylvan, António Telmo, Joel Serrão, José Augusto Seabra, António Quadros, Afonso Botelho e António Braz Teixeira.

Serrão, de quem Telmo muito apreciava o estudo luminoso sobre Sampaio Bruno, tal como o autor de Arte Poética foi um habitante de Sesimbra. Começou por passar férias na vila, junto ao mar, em casa arrendada no bairro municipal, onde hoje aliás se situa a Rua António Telmo. Mais tarde, subiu a vertente, estabeleceu-se no remanso campestre da Quintola de Santana, onde de resto viria a falecer, em 2008. Há a memória vaga de que os dois homens chegaram também a conversar na camonina Piscosa...

Da importância dos documentos escritos: a 1 de Janeiro de 1977, Sesimbra regurgita de vida espiritual. Possivelmente no Castelo, ou na vila, António Telmo e Agostinho da Silva conversam sobre assuntos que a História Secreta de Portugal viria, meses depois, a revelar. Perto, na Quintola, Joel Serrão mostra a Vergílio Ferreira, seu compadre, os fragmentos inéditos de Fernando Pessoa que, dois anos mais tarde, sairiam a lume em Sobre Portugal e Da República... 

DOCUMENTA. 01

05-02-2014 12:25

Quando chega a Brasília em Fevereiro de 1966, para leccionar Cultura Latina e Cultura Portuguesa na Universidade da novel capital brasileira, António Telmo vai ali reencontrar Eudoro de Sousa, de quem havia partido o convite para a travessia do Atlântico. Já se conheciam, bem entendido. Desde o início dos anos 50, Telmo privara com Eudoro nas tertúlias lisboetas onde também Álvaro Ribeiro e José Marinho pontificavam magistralmente. Álvaro irá, de alguma forma, recomendar ao insigne helenista o jovem estudante de Filologia Clássica. O convívio entre ambos intensifica-se e Eudoro convida o discípulo contertúlio a auxiliá-lo na organização da sua biblioteca pessoal – longe de saber que, década e meia depois, sob a sua superintendência, Telmo viria a colaborar na organização da maior biblioteca de Estudos Clássicos da América do Sul. Contrariamente ao que sucede com os seus outros mestres – Álvaro, Marinho e Agostinho –, são escassas as referências escritas de António Telmo a Eudoro de Sousa, que praticamente se resumem ao magnífico escrito prefacial de introdução a Dioniso em Creta e outros ensaios, volume editado em 2004 pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, que será aqui em breve publicado na rubrica "Os meus prefácios". Também a influência da obra e do pensamento de Eudoro em António Telmo está ainda, decerto, por averiguar. Da alta consideração (como expressão de amizade e admiração) que o primeiro tinha pelo segundo nos dá agora conta a carta que aquele dirige ao Reitor da Universidade de Brasília, como peça valiosíssima desencantada no processo burocrático tendente à contratação do docente António Telmo, e que constitui mesmo um documento imprescindível para a história da filosofia portuguesa. Não por acaso, integrou a exposição De Sesimbra à História Secreta: António Telmo e as Margens da Aventura, comissariada, no ano transacto, por Pedro Martins.  

 

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                            Brasília, 14 de Fevereiro de 1966

 

 

Magnífico Reitor

 

 

O Prof. Antônio Telmo Carvalho Vitorino foi meu aluno entre 1950 e 1953, ano em que vim para o Brasil. Já, então, dava provas de excepcional aptidão para a hermenêutica superior dos textos clássicos, isto é, para aquela parte da crítica textual que, por efeito da conhecida “lei” das oscilações, não atraindo o filólogo hodierno com a intensidade com que atraía os grandes mestres da segunda metade do século XIX, morosamente vai reconquistando o alto posto que merece. Aliás, foram as tendências filosóficas que caracterizam os filólogos de escol – precisamente as que mais transparecem no curriculum do prof. Antônio Telmo – junto com outros motivos que, decerto, não honram a maior parte do corpo dos universitários portugueses, que lhe vedaram o acesso à carreira do magistério superior, relegando-o para tarefas oficiais menos dignas da grande competência e real capacidade que tive ocasião de verificar, não só pessoalmente, durante três anos de estreito convívio, como também pela leitura das suas publicações.

 

Para as personalidades intelectuais da classe do Prof. Antônio Telmo, cujo título de não menor valia é o de terem sido co-fundadores do movimento cultural que tão brilhantemente se manifesta nas páginas das revistas “57” e “Espiral”, só se abrem dois caminhos: a expatriação e a alienação. “Alienação” é o caso dos verdadeiros mestres do Prof. Antônio Telmo, como Álvaro Ribeiro e José Marinho, e dos seus melhores condiscípulos, como Antônio Quadros e Francisco Sottomayor, uns e outros, hoje, obrigados a servir, como funcionários burocráticos, em empresas particulares, como a Fundação Gulbenkian, ou repartições públicas, como Casas do Povo e Institutos de Previdência. “Expatriação” é o caso dos mais jovens e dos mais corajosos, daqueles que acham, como António Telmo, que ainda vão a tempo e ainda têm forças para servir os reais interesses de uma Nação disposta a educar seus filhos na autêntica liberdade, que é o único meio, ou a única mediação, da verdade científica.

 

Parece-me, por conseguinte, que, ouvidos os meus dois meritíssimos colegas, membros da mesma comissão, poderá Vossa Magnificência contratar o Prof. Antônio Telmo Carvalho Vitorino, como Professor Associado, e designá-lo para o Centro de Estudos Clássicos.

 

Eudoro de Sousa, Prof. Titular  

 

INÉDITOS. 03

02-02-2014 10:59

Escrito já em 2010, ou seja no último ano de vida de António Telmo, esta breve página memorial sobre o seu amigo António Cagica Rapaz, desaparecido meses antes (em 13 de Dezembro de 2009), reflecte sobretudo, por parte do filósofo, a leitura do derradeiro livro do sesimbrense, uma sorte de autobiografia intitulada Tratar da Vida. Mas tem também seu quê de biográfico no que ao próprio Telmo diz respeito. É mais um inédito tírado do espólio télmico (o título é da responsabilidade do editor), e saído a lume na edição de ontem, 1 de Fevereiro, do jornal O Sesimbrense, que nos próximos dias chegará a casa dos assinantes e aos habituais escaparates. Para além do texto télmico, saliente-se a publicação, neste número de O Sesimbrense, do texto da palestra "Raul Brandão e os pescadores de Sesimbra",  proferida por António Reis Marques na Biblioteca Municipal de Sesimbra, em 29 de Setembro de 2012. 

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In memoriam António Cagica Rapaz

 

No Café Central, em Sesimbra, havia dois bilhares, um ao lado do outro. O Café era do Sr. Arménio, velho tuberculoso, mas cheio de vitalidade que me deixava jogar de borla, desde que o fizesse ao perde-paga.

Quando estava a jogar, costumava aparecer um rapazinho, muito aprumado, muito sério que se encostava ao outro bilhar, seguindo inteligentemente com os olhos o movimento geométrico das bolas, que eu impelia com o meu taco.

Depois, convidei-o a jogar, conforme vem contado por ele no livro que escreveu, alguns meses antes de abalar para onde todos, excepto um, tiveram, terão e têm forçosamente de ir.

Ele diz, no mesmo livro, que, se o seu destino não o tivesse futebolizado com passagem pela Académica, pela CUF e pelo Belenenses, teria talvez podido ser mais atento ao que eu lhe teria de certo ensinado.

Conta que apostei, com ele, num dia de muita chuva, que o povo tem razão quando afirma que “não há sábado sem sol”. Mostra-se convencido porque lá pela tarde abriram-se por instantes as nuvens para deixarem passar um raio de luz.

Apesar do futebol, era muito inteligente, não tinha embrutecido. Não vivia encegueirado por ele. Foi um notável jornalista, que nos encantou com as suas crónicas no Sesimbrense; escreveu livros que se lêem com o encanto das coisas sonhadas e só ali vistas. O seu estilo é simples, claro, tirando todos os efeitos dessa mesma simplicidade e clareza.

Mas o último dos seus livros subjuga-nos também. É uma autobiografia em que se confronta com o próprio pai e sai desse confronto admirando quem depois de Deus lhe deu com a mãe a vida.

Mostra-se ali que foi um lutador. Conheceu a ameaça da miséria material, defrontou a maldade e a intriga que se urdem no mundo do futebol, mas viu em Matateu um herói.

Na verdade, essa luta decorreu das situações difíceis que a vida foi criando, mas que se foram resolvendo com num sonho. Quando se julgava perdido, uma nova solução inspirada vinha abrir o caminho que parecia fechado.

A morte foi o último obstáculo, donde ele terá saído vencedor. Assim Deus o queira! queira!

 

António Telmo

POEMAS. 03

01-02-2014 08:27

José Marinho, um dos mestres de António Telmo, a cuja memória o filósofo dedicou a História Secreta de Portugal, nasceu no Porto a 1 de Fevereiro de 1904, vindo a falecer em Lisboa em 5 de Agosto de 1975. Quando escreve o poema com que assinala o septuagésimo aniversário do autor de Teoria do Ser e da Verdade, saído a lume na edição de 14 de Fevereiro de 1974 de O Sesimbrense, Telmo está de novo a viver em Sesimbra, realizando em Almada o estágio do magistério, depois de um biénio em que fundou e superiormente dirigiu a Escola Preparatória do Redondo. Os versos de homenagem a Marinho reflectem, pois, esse contexto de vivência sesimbrense que era então o seu...

 

José Marinho

 

Neto de sereia

nos mares da Galiza

mas também filho do Homem.

Sesimbra, terra do mar, saúda o filósofo

nos seus 10 x 7 anos,

dez vezes a escada da sabedoria

desatando e atando dez vezes

os sete nós que enlaçam

o corpo da sereia

ao corpo do homem.

 

António Telmo

VERDES ANOS. 02

31-01-2014 00:01

Álvaro Ribeiro fala em dado trecho de A Razão Animada na transgressão dos elementos a que os artistas se mostram particularmente habilitados. Só quem de todo ignorar a proverbial escritura etimológica do filósofo, mestre daqueles que sabem, poderá assacar um sentido policial ao emprego de semelhante termo por parte do portuense ilustre. E, todavia, não raro a transgressão – agora entendida a palavra em seu comum sentido jurídico e sociológico – se constitui como condição da progressão. Sampaio Bruno, a quem António Telmo, em 24 de Dezembro de 1957, consagrou, nas páginas do Diário Ilustrado, um breve ensaio levando por título o nome do filósofo, teve de transgredir – implicado que esteve na frustrada revolução republicana de 31 de Janeiro de 1891, no Porto, de que hoje comemoramos mais um aniversário – para no exílio progredir pela iluminação da metanoia, da qual há-de derivar a superior, posterior ideação do seu pensamento, sobretudo na genial teodiceia d’A Ideia de Deus. Se, a fazer fé em Álvaro Ribeiro, foi Sampaio Bruno o fundador da filosofia portuguesa, mister será então reconhecer como na génese desta se inscreve um acto transgressivo de ruptura, causa instauradora do maior progresso. É importante lembrá-lo, para que assim, uma vez mais, se possa reafirmar a imensa e tremenda lição de coragem e dignidade com que, na matriz, a nobre Escola Portuense, pelo exemplo dos seus maiores, sempre soube preservar aquele sentido último, espiritualmente aristocrático, da Santa Liberdade que não transige no que mais importa.

Paulo Samuel, a voz portuense do projecto António Telmo. Vida e Obra que comenta o brunino escrito télmico agora publicado, é lídimo representante daquela matriz. Membro da terceira geração da Filosofia Portuguesa, editor e autor de uma notável obra ensaística, vivente daquele Porto que aprendemos a honrar em Sampaio Bruno, Álvaro Ribeiro, José Marinho ou  Agostinho da Silva, mas também em Dalila Pereira da Costa, Alfredo Ribeiro dos Santos ou José Augusto Seabra, convivente de quantos fizeram grande a geração do 57, oferece-nos agora um notabilíssimo comentário ao artigo de Telmo. Fá-lo neste dia assinalado, derradeiro do mês primeiro; e ao fazê-lo permite que demos continuidade a um dos vectores mais importantes do nosso projecto: o estudo sério e aturado da obra de António Telmo, em particular daquela que, ainda esparsa, esquecida anda, ou da inédita, desconhecida. Em Fevereiro, serão de Rui Lopo, Eduardo Aroso (neste caso a inéditos) e António Cândido Franco as glosas esperadas; e de Miguel Real e Elísio Gala as de Março…  

Vai, pois, o mês no seu fim, correndo propício a um balanço. Janeiro foi para o projecto António Telmo. Vida e Obra um tempo exaltante. Começou com a assunção da responsabilidade maior que é a de assegurar o apoio científico à edição das Obras Completas de António Telmo, com o inerente estudo, em curso, do espólio do filósofo; prosseguiu com o desenvolvimento desse muito estimulante projecto que é o suplemento télmico da revista de cultura libertária A IDEIA, com inéditos de Telmo, Dalila, Marinho e Fiama; e culminou com a atempada programação das TARDES TÉLMICAS 2014, num feixe de datas, tão realista quão ambicioso, que se antecipa, prolonga e diversifica por outros azimutes e outras paragens. Dito isto, permitimo-nos ainda assinalar, pela sua particular significação, dois tópicos mais: o contributo de Pedro Martins e Rui Lopo, em colaboração com Renato Epifânio, na transcrição e anotação da correspondência de Agostinho da Silva para António Telmo, que sairá a lume no próximo número da revista NOVA ÁGUIA, e que constituirá um dos acontecimentos mais marcantes das comemorações do 20.º aniversário da morte de Agostinho da Silva; e a participação do mesmo Pedro Martins na primeira sessão do  Colóquio “Portugalidade e Lusofonia” , que terá lugar na Academia das Ciências, em Lisboa, no próximo dia 2 de Junho, com uma comunicação subordinada ao tema “Portugalidade e Lusofonia entre Camões e António Telmo”. O outro orador será também um destacado membro do nosso projecto: Miguel Real, que ali irá falar sobre “Portugalidade e Lusofonia entre António Vieira e Fernando Pessoa”, dois vultos eminentemente télmicos, cada um deles definindo, só por si, um capítulo inteiro da História Secreta de Portugal.  

 

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Sampaio Bruno[1]

De algum modo sentiram a importância e a significação do ano cultural que decorre os vários e inúmeros escritores que em jornais, revistas e sessões públicas celebraram o centenário do nascimento de Sampaio Bruno. Viu-se um país a ler, discutir e pensar os mesmos livros; pela primeira vez, na história da nossa cultura, os portugueses se reuniram à volta dum filósofo. Divergiu-se à esquerda e à direita; na altercação, forçoso é dizê-lo, pouco se alcançou: não ficámos a conhecer melhor o pensamento de Bruno. Todavia, verificou-se o que era já inevitável. A filosofia portuguesa, quer se afirme, quer se negue, é a obsidiante, obnubilante, absorvente preocupação de todos os portugueses cultos.

 

Importa sim dizer que Sampaio Bruno, esse homem tímido, apagado e bondoso, domina toda a nossa vida mental. Mas para bem situar o sentido mais fecundo dessa influência necessita-se antes fazer uma consideração de ordem aparentemente historicista e cultural. Formou-se o espírito do filósofo num período de pleno domínio do positivismo. A agitação provocada pela república nascente alvoroçava as almas e, por vezes, obscurecia a inteligência das ideias, dos acontecimentos e das coisas. Só ele viu o que haviam previsto os liberais resistentes menos à admirável ideia republicana do que à doutrina que os republicanos procuravam realizar. Esses homens, iniciados na tradição iluminista, souberam deduzir, das premissas duma doutrina política que prescindia da teologia, a vitória fatal do obscurantismo. Sampaio Bruno assistia à realização progressiva dessa previsão. Por isso, julgou necessário pensar a teologia da república. Insistentemente chamou a atenção dos seus correligionários para o facto de que no destino histórico, senão transcendente, de Portugal, há que contar com a constante do Catolicismo. Também a república teria uma teologia, discutindo-se depois a sua compatibilidade ou incompatibilidade com a doutrina ortodoxa. O positivismo vinha precisamente fazer o contrário: negar ao Homem o poder de pensar por si e por si imaginar o transcendente. Mas como a maioria dos homens e a generalidade das mulheres que constituem um povo hão-de ser sempre religiosas, como as consciências sempre se hão-de procurar umas às outras enquanto existir o mal, a dor e a morte, os resultados duma doutrina que negasse a Teologia estavam à vista.

 

Combatendo o positivismo, pareceria natural que o autor da Ideia de Deus fizesse a defesa da metafísica. Isso não acontece, porém. Pelo contrário, do positivismo se socorre para mostrar como uma das razões da fácil divulgação dessa doutrina entre nós se deve à falta de inclinação dos portugueses pelos problemas metafísicos. A existência da dor, do sofrimento e da morte, o seu natural espanto perante o mistério cósmico e antropológico, obsidiam demasiado os portugueses para se deixarem seduzir, influir e dominar pelas explicações platónicas e pitagóricas, que, durante a meditação do problema do uno e do múltiplo, ignoram o conceito de evolução.

 

Sampaio Bruno, criticando o pitagorismo, que parte da noção do nada, subordinando à teologia as outras ciências que, com ela, constituem a filosofia, estruturando a física pelo estudo do movimento a partir da queda, relacionando a forma da natureza com a palavra da alma, concebendo a causa final como primeira das causas, cria uma filosofia caracterizadamente aristotélica. Discute-se muito, em certos meios, as características do nosso pensamento. Quem ler os livros do estagirita, não só através dos comentários cristãos e islâmicos, mas também hebraicos, logo descobrirá o fio que permite seguir aristotelicamente o pensamento de Bruno, ou seguir bruninamente o pensamento de Aristóteles. Tanto é certo que somos aristotélicos sempre que lemos, traduzimos e interpretamos o notável pensador hebraico pelas verdadeiras categorias da língua portuguesa.  

 

Seria útil distinguir, para avaliar a influência de Bruno na poesia que o segue no tempo, e também na prosa, aqueles escritores de cuja obra se extrai logicamente ou uma teologia ou uma metafísica. Não hesitamos um momento em colocar entre os primeiros Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoais e Fernando Pessoa; entre os segundos, Antero de Quental e todos quantos dele derivam. Lembrarão aqueles que se negam a atribuir qualificação filosófica aos poetas e a ver e reconhecer em Junqueiro, Pascoais e Pessoa reveladores da filosofia portuguesa, que Aristóteles começa a Metafísica pela reflexão séria dos poetas teólogos que o precederam, como Homero, Hesíodo e Empédocles? Contudo, no ensino universitário da filosofia grega nunca se deixam de ministrar os nomes e as doutrinas desses e de outros imaginativos. Tão grande é o poder da distância!

 

Eis o que nos ocorre dizer para salientar nas páginas do «Diário Ilustrado», a importância da homenagem que os intelectuais prestam a um dos seus maiores. É natural que, nos anos mais próximos, se venham a publicar livros sobre a obra de Sampaio Bruno. Os seus múltiplos aspectos nunca estarão completamente vistos, a sua imensa profundidade espera ainda o hermeneuta que dela se abisme para dela extrair a luz. Nós, ao caracterizarmos [sic] ter apontado segundo a directriz mais fecunda e esclarecedora das relações do seu pensamento com a ciência e a política, com a moral e a religião, com todas as esferas, enfim, em que actua o espírito humano. Há que estudar Sampaio Bruno como filólogo, como jurista, como crítico literário, como historiador, como médico acima de tudo. Nunca, na verdade, inteligência tão vasta e inventiva nasceu em terra portuguesa.     

 

António Telmo

 

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Comentário

Paulo Samuel

Publicado a páginas 33 e 39 do Diário Ilustrado de 24 de Dezembro de 1957 (ver verbete completo), este premonitório artigo de António Telmo vem anunciar, em quadra natalícia, o renascimento desse semi-patronímico que intitula o artigo, Sampaio Bruno, na esfera letrada e culta portuguesa da época. Telmo começa por situar o contexto da evocação, logo assinalando, num timbre de consonância decerto irónica e humorada, que a partir de então a filosofia portuguesa, “quer se afirme, quer se negue”, é a absorvente, obsidiante, “preocupação de todos os portugueses cultos”.

 

Traçando um breve perfil da figura enunciada, o articulista destaca a originalidade de Bruno, mormente quanto ao seu papel no ideário republicano, à margem de um qualquer mimetismo positivista, defendendo, a contrario, a liberdade creencial como constitutiva da própria liberdade humana. Em parágrafos concisos e que denotam o seu conhecimento do pensamento brunino, António Telmo apresenta topicamente as linhas fundamentais do autor de A Questão Religiosa, obra cujo cinquentenário de publicação ocorria em 1957, pois a primeira – até agora única – edição (formada por textos dispersos na imprensa periódica) fora impressa em 1907, sob a chancela da Livraria Chardron.

 

É curioso que António Telmo não mencione este título ao longo do seu breve ensaio, referindo apenas uma única vez o emblemático livro de Sampaio Bruno, A Ideia de Deus, donde extrai a base que permite estruturar a sua análise em torno da falsa questão da “metafísica” no pensador portuense, apontando o seu aristotelismo incluso. É certo que a primeira obra citada constitui, segundo o próprio autor, proémio àquele que, imaginado, será o seu “último livro”, em contraponto ao primeiro da sua bibliografia, a intitular-se Síntese da Crença Cristã. No denso e informado volume A Questão Religiosa explicita Bruno, com recurso a vasta erudição, as razões que devem levar à separação da Igreja e do Estado, os fundamentos que legitimam a abolição do celibato dos padres, a questão do ensino religioso, os veios cultos e ocultos que faziam do catolicismo do povo português, em seu entender, não tanto a expressão de uma feição religiosa (esta teria outra expressão, nunca dogmática) mas antes uma tendência sócio-cultural, plantada e adubada ao longo de séculos pela vontade de uma hegemonia jesuítica…

 

Retomando o artigo de António Telmo, não se cuide que este seja circunstancial, assinalando o centenário da morte de José Pereira de Sampaio, nem sequer o único que o jovem filósofo então radicado em Lisboa dedica a esse vulto catalizador da Revolução Republicana Portuguesa de 31 de Janeiro de 1891... A recolha de dispersos em curso, que alimentará a edição das “Obras de António Telmo” e vivifica, por enquanto, este lugar digital, poderá certamente comprovar esta asserção. Até lá, garantem essa particular e até precoce atenção télmica pela obra do obscuro publicista portuense outras fontes e leituras comparatistas. Recorde-se que a memória da bibliografia activa de Bruno apenas está disponível, por essa data, na “antologia” organizada por Álvaro Ribeiro, em 1947, para o elegante livrinho do SNI, na colecção “Idearium”, já que as suas obras não foram entretanto reeditadas – o que só ocorre a partir de meados dos anos 80, enquanto parte das existências de alguns outros títulos estiolam esquecidas em velhos armários de antigo editor portuense –, e só nas bibliotecas públicas se podem ler e folhear. Em Lisboa, todavia, sempre era possível encontrar um ou outro exemplar nos alfarrabistas, por vezes assinados pelo autor e deslocalizados do seu inicial acervo (como ocorre com este de O Encoberto, que agora consulto, com carimbo da Sociedade Literária lisbonense Almeida Garrett, assinatura de posse de Luiz Pacheco no frontispício, datada de 54, e recentemente oferecido a quem estas linhas escreve por Luís Amaro). O mencionado volume antológico rapidamente adquiriu uma notória repercussão, não só atendendo à selecção dos textos recolhidos, importantes para uma aproximação ao pensamento nuclear de Bruno, como pelo facto de registar os estádios da reflexão filosófica do antologiador, que a dado momento escreve que Bruno só admite uma “teologia sem fundamentação metafísica”, ideia que Telmo recupera para a formulação da sua tese aristotélica.

 

Também em 1957 vem a público, em Lisboa, o livro Sampaio (Bruno) – sua vida e sua obra, de José Pereira de Sampaio, com prefácio de Joel Serrão. Em páginas iniciais, o prefaciador reconhece a importância do autor de A Geração Nova para a Cultura portuguesa e a história da filosofia, mas critica “certas interpretações parciais da sua obra” concepções “soi disant filosóficas que na sua obra pretendem enraizar”. Sobre a antologia organizada e prefaciada por Álvaro Ribeiro, a que atrás nos referimos, considera-a “além de pequena” tendenciosa, porquanto o prefaciador “sugere um Bruno que só na imaginação do autor terá existido e existirá, e esboça uma interpretação do pensamento do autor seleccionado que apresenta o leve inconveniente de se não adaptar nem à especulação estudada, em si considerada, nem a declarações expressas do respectivo autor”. (p. 11). Em todo o caso, bastará consultar o livro que o próprio Joel Serrão trará a público um ano depois, em Dezembro de 1958, para se verificar que algumas observações e pistas deixadas por Álvaro Ribeiro ali se encontram retomadas, servindo outras leituras, como a dessa distinção positivista entre “prospectivismo” e “messianismo”. Além disso, a posição do autor contra a “Filosofia portuguesa” não deixa de ser aí reiterada.

 

Ora, António Telmo não havia lido o livro de Joel Serrão quando escreve o seu artigo para o Diário Ilustrado, nem tão-pouco quando cita Bruno nos primeiros parágrafos do seu artigo sobre o “Futuro do Romance português” (e as suas relações com o Lirismo), surgido no 1.º número do jornal 57, com data de Maio desse mesmo ano. Tal como ocorre nas linhas finais deste texto do Diário Ilustrado, também naquele António Telmo acentua a importância do referente filosófico para a literatura, afirmando, no limite, que a “evolução da humanidade se opera […] de harmonia com a doutrina expressa da reintegração dos seres nos seus princípios e nas suas virtudes”. Leitor e discípulo de Álvaro Ribeiro, frequentando as conhecidas tertúlias dos Cafés de Lisboa onde se originou o Grupo da “Filosofia Portuguesa”, Telmo ainda apresenta nesse mesmo número do 57 o escopo de A Razão Animada, em recensão que mantém plena actualidade.

 

Meses depois, no suplemento dominical donde foi extraído o presente disperso, o futuro autor de Filosofia e Kaballah escreve, convicto, que a “imensa profundidade” da obra de Bruno “espera ainda o hermeneuta que dela se abisme para dela extrair a luz”. Tão paradoxal podia então parecer esta certeza como a de vaticinar que a figura e obra de Bruno mereceriam, nos anos a vir, uma atenção e estudo que naquela data apenas começava a ser seminal. De particular relevância é ainda o parágrafo em que Telmo suscita a reflexão, por via da recepção e leitura comparada, da influência de Bruno noutros autores, em particular nos de filiação teológica, como Guerra Junqueiro, Pascoaes, Fernando Pessoa. Ainda no elenco dessas reflexões, propõe que se aprofunde o pensamento de Sampaio Bruno na Filologia, na História, na crítica literária. Obscura é, porém, a última menção – ao “médico” –, salvo se se tratar, quem sabe, de uma velada alusão às investigações de Bruno em torno da Cabala e do misticismo judaico.

 

Enfim, aí fica este disperso de António Telmo, compilado por Pedro Martins, a suscitar as leituras que outros, com maior sageza e desenvolvimento, decerto lhe poderão dar…



[1] Diário Ilustrado (suplemento Diálogo, n.º 45), ano II, n.º 381, Lisboa, 24 de Dezembro de 1957, pp. 33 e 39.

 

CORRESPONDÊNCIA. 04

30-01-2014 09:54

CORRESPONDÊNCIA DE REBELO GONÇALVES PARA ANTÓNIO TELMO. 04

 

Lisboa, 31 de Outubro de 1968.

 

                    Meu caro António Telmo:

 

            Não fazia ideia de que estivesse agora mais perto de Lisboa. Supunha que se mantivesse em Brasília, donde me escreveu a sua penúltima carta.

            Estamos de acordo, meu bom Amigo. Aquilo não é país no qual se possa confiar. É um país que tudo promete e nada cumpre, pelo menos no que respeita ao que promete a Portugal. Por isso mesmo, desliguei-o da minha actividade intelectual e universitária, de tal forma que, tendo fundado em Coimbra a «Brasilia» e em Lisboa a «Euphrosyne», subintitulada «Revista Luso-Brasileira de Cultura Clássica», acabei por considerar unicamente portuguesa a segunda série desta última publicação. Não quero mais intimidade com um povo que faz dos tratados farrapos de papel e que só na aparência nos dedica amizade.

            Desejo-lhe as maiores felicidades na sua permanência em Granada. Que dela colha os melhores frutos!

            A Maria Isabel, que lhe manda cordiais lembranças, continua muito satisfeita no seu lugar de bibliotecária da Fundação Gulbenkian. Oxalá assim estivesse também o meu filho, que, coitado, lá está em Cabinda, em clima dos mais inóspitos do mundo, próprio para gorilas, mas não para seres humanos, a seguir o seu fadário militar, como capitão de infantaria. É já a terceira comissão de serviço obrigatória que cumpre no Ultramar. Quando é que isto acabará, meu bom Amigo?

            Aproveito este ensejo para lhe repetir, meu caro António Telmo, que o recordo sempre com muita admiração intelectual, com muita consideração moral e com muita amizade. E pode crer que a sua sincera e tão desinteressada dedicação a este seu velho professor é dos melhores prémios que a minha carreira universitária, por vezes tão atormentada por incompreensões e injustiças, pôde proporcionar-me.

            Há tempo falei a seu irmão Orlando (a quem, como sabe, também muito admiro), numa sessão da Academia das Ciências, mas foi, como se costuma dizer, de raspão. Mal pude pedir-lhe notícias suas.

 

            Com um grande abraço, faz votos pelo seu completo bem-estar e pelo de todos os seus o sempre

 

                                                                                             Seu m.to adm.ºr, am.º e grato

 

                                                                                                                        Rebelo Gonçalves.

 

 

 

INÉDITOS. 02

29-01-2014 11:45

Não Não sabemos ao certo onde terá tido lugar a conversa entre Rafael Monteiro e Agostinho da Silva, cujo excerto brevíssimo se me deparou agora, guardado num dos proverbiais cadernos de apontamentos de António Telmo. Bem oportuna se revelou, porém, a descoberta, levando por destino certo o capítulo sétimo de Agostinho da Silva em Sesimbra, inteiramente dedicado à extraordinária relação de amizade que Rafael e Agostinho puderam manter durante mais de duas décadas. Verdadeiramente, não sabemos sequer se António Telmo teria querido escrever mais do que ali deixou escrito, e assim, porventura, interrompido. Não tem mal. À conversa, podemos imaginá-la travada na casa veneranda de Rafael, no Castelo de Sesimbra, numa daquelas gloriosas tardes de sábado em que por lá também apareciam António Telmo e António Reis Marques para discretearem sobre Deus, a Pátria e o Universo. E quanto à escrita, é outrossim bem possível que Telmo nada mais tivesse pretendido acrescentar à incisa concisão do fulgor que, lapidar, ressuma das parcas linhas manuscritas. O leitor percebe logo porquê…

  

Pedro Martins

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De um caderno de apontamentos: excerto de um diálogo entre Rafael Monteiro e Agostinho da Silva

 

Rafael – Sabe o senhor? Eu em geral tenho o dinheiro para o próprio dia e às vezes para o dia seguinte.

 

A. Silva – Isso é bom. Comigo acontece uma coisa semelhante. Em geral, só tenho dinheiro para a véspera.

 

António Telmo

DISPERSOS. 05

26-01-2014 20:49

Eis um interessante disperso télmico de temática sesimbrense que se escapou por entre as malhas da rede com que em 2011 se organizou Sesimbra, o lugar onde se não morre, volume de edição municipal onde então se reuniram os escritos sesimbrenses de António Telmo. O artigo foi publicado em 1965, na edição de O Sesimbrense comemorativa do 8.º centenário da conquista de Sesimbra aos mouros -- o jornal saiu a lume no exacto dia em que, segundo a crónica, D Afonso Henriques, oitocentos anos antes, tomara o velho burgo acastelado --, e oferece-nos um documento particularmente importante do ponto de vista autobiográfico. Por estes dias em que Telmo está prestes a mudar decisivamente o rumo da sua vida --  em Outubro desse ano conhecerá Maria Antónia na Escola Preparatória de Estremoz e em Fevereiro do ano seguinte encontra-se já em Brasília, com Eudoro e Agostinho, tudo conforme a previsão rigorosa de Hórus --, o filósofo esclarece cabalmente a relação de pertença à camonina Piscosa, elogia, de alguma sorte, o dinamismo sedutor de uma Sesimbra vivendo então a Idade de Ouro turística, revisita as amizades de sua juvenil convivência, num universo povoado de sortilégios e mistérios, e exalta o belvedere deslumbrante da Serra da Achada que, décadas depois, lhe há-de motivar a quadra singela, mas profunda, do pórtico aposto às Congeminações de um Neopitagórico -- poético testemunho arrábido que ora garante o assomo da memória télmica na iminente reedição, pelo Centro de Estudos Bocageanos, da antologia A Serra da Arrábida na Poesia Portuguesa, organizada por António Mateus Vilhena e Daniel Pires, com apresentação aprazada para a Biblioteca Municipal de Sesimbra no próximo dia 22 de Março, pelas 15:00.

 

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Sesimbra[1]

 

 

Há vinte anos que vivemos nesta vila com oito séculos de existência!

 

Em vinte anos deve ter sofrido mais modificações do que em oito séculos! É fantástico!

 

Poder-se-á dizer que só o castelo permanece tal como então, inexpugnável. Naquelas pedras está toda a história de Sesimbra.

 

Há também o mar. O mar e o castelo põem frente a frente o homem e a natureza.

 

Nestes vinte anos, surge o Espadarte, o Náutico, o Hotel do Mar.

 

Nós éramos rapazes e íamos até às sombras da Califórnia: eu, o António e o Francisco Reis Marques, o Jaime e o Rafael, o José Preto e o Gilberto, tão parecido com o Rudolfo Steiner. Conversámos de duendes e de bruxas. O mar era o som fundo das nossas vozes. Havia em tudo aquilo a antiguidade do homem e da natureza.

 

Hoje, porém, os fantasmas foram exorcizados pela luz fria dos edifícios novos. É outro mundo, com belas raparigas estendidas ao sol. Os cabelos claros das estrangeiras afastaram as sombras. Por trás de tudo está a figura imensa de D. Afonso Henriques, o Conquistador!

 

O que é que está na nossa frente?

 

Falarei daquela nova estrada, ainda imperfeita, que começando numa rua de Santana, atravessa a Serra da Achada, onde já houve perdizes, e vai entrar na vila pelo lado da Califórnia, ali onde está o Bairro dos Pescadores. Porque eu creio que o mais importante para qualquer progresso, material ou espiritual, são as estradas. Depois virão as casas, as pousadas e os hotéis. E esta, a que atravessa aquela Serra onde ainda há caçadores, é muito mais bela do que a actual. Só lhe falta a largura e o piso necessários por onde deslizarão, sem ruído, os carros dos visitantes. Hoje, porque ainda é estreita e de mau piso, deslizam por lá, sem ruído, os carros dos namorados.

 

Sesimbra tem de ser uma vila progressiva porque está ao pé do mar. E o mar, com o seu mistério solene, incita ao sonho.

 

Do alto do Castelo, os grandes antepassados mergulham nele a vista.

 

Invoquemo-los, na hora que passa!

 

António Telmo

 

[1] O Sesimbrense, ano 39, n.º 420, Sesimbra, 21 de Fevereiro de 1965, p. 3.

 

CORRESPONDÊNCIA. 03

22-01-2014 11:39

CORRESPONDÊNCIA DE REBELO GONÇALVES PARA ANTÓNIO TELMO. 03

 

P. S. – No caso de vir a Lisboa em Junho ou Julho, agradecia-lhe o favor de me prevenir com alguma antecedência, a fim de combinarmos bem o dia, a hora e o local de encontro.
 
                                               Mafra, 18-V-1963
 
                                        Meu caro Vitorino:
 
            De todo o coração agradeço a sua nova carta, assim como o amável empréstimo da revista «Organon». Muito interessante o trabalho do nosso amigo Eudoro de Sousa: traz a marca da lucidez e da segurança, uma e outra bem características do autor.
            Tem-me à sua inteira disposição para, com todo o gosto, me ocupar da sua dissertação de licenciatura. Pelo que toca, porém, à indicação de um tema, parecia-me conveniente conversarmos: uma troca directa de impressões sempre será preferível à comunicação epistolar.
            Não poderia o meu caro Vitorino, uma vez liberto das suas obrigações docentes deste ano lectivo, aproveitar uma vinda a Lisboa para conversarmos sobre o assunto? Na mesma altura, falaríamos a respeito da assinatura da “Euphrosyne”.
            A Maria Isabel de novo se lhe recomenda.
            Com os melhores votos de bem-estar, reexprimo-lhe a minha firme amizade e a minha afectuosa admiração, e peço-lhe aceite um abraço do
                                                                                  Seu velho e dedicado amigo
                                                                                  Rebelo Gonçalves. 
 


[em papel timbrado da revista EVPROSYNE
Revista Luso-Brasileira de Filologia Clássica
Director
Professor Rebelo Gonçalves
*
Pinheiro – Mafra
PORTUGAL]

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