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DISPERSOS. 08

03-03-2014 08:58

Completaram-se no passado sábado, 1 de Março, 109 anos sobre o nascimento de Álvaro Ribeiro, mestre por excelência de António Telmo, mestre daqueles que sabem. Aqui o recordamos com palavras do discípulo. Trata-se da comunicação apresentada ao Colóquio A Filosofia Portuguesa de Álvaro Ribeiro, realizado em 5 e 6 de Março de 2005, no Auditório Conde de Ferreira, em Sesimbra, e publicada em Teoremas de Filosofia, n.º 12, Porto, Outono de 2005.   

Apresentação de Álvaro Ribeiro aos Sesimbrenses

 

Compreende-se que a organização desta homenagem a Álvaro Ribeiro me tenha escolhido a mim para fazer a sua apresentação, isto é, para tornar o filósofo presente entre nós como um ser vivente e não como forma abstracta de pensamento. Compreende-se, porque de todos os que aqui vêm falar sobre ele e que com ele conviveram eu sou o mais antigo, aquele que durante muitos anos privou com ele e que sempre o procurou seguir em tudo quanto escreveu, embora por caminhos próprios, que não quer dizer que sejam os melhores.

Álvaro Ribeiro é (com Agostinho da Silva) o mais notável discípulo de Leonardo Coimbra. Não o mais notado. O mais notado, embora também notável, é Agostinho da Silva, já um dia homenageado nesta mesma sala. A sua vida decorreu obscura, repartida entre o modesto trabalho de ganha-pão e o estudo, isto é, o desejo que realmente importa satisfazer um dia. Exprimo-me assim, porque estudo, do latim studium, significa o desejo por excelência.

Não tinha o dom da palavra oral, talvez por ser tímido, talvez por ter sido perturbado no sentimento de segurança e de confiança nos seus próximos durante a adolescência, enquanto viveu aprisionado num colégio de padres em França. Dizemo-lo porque o lemos num dos volumes do seu livro Memórias de um Letrado. Mas o que vamos contar e que mostra a extraordinária inteligência que a sua timidez escondia não foi ele que no-lo disse, mas outro discípulo sublime de Leonardo Coimbra, José Marinho. O episódio revela ao mesmo tempo a presciência de Leonardo Coimbra e já diremos ou se verá porquê.

No último exame do seu Curso na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, apresentou-se perante um júri formado por Leonardo como presidente e dois outros professores que não podemos identificar. Durante o interrogatório feito por Leonardo Coimbra, o jovem estudante praticamente pouco disse. Não encontrava as palavras para o seu pensamento, hesitava, tartamudeava, fazia gestos.

Terminado o exame, os três professores conferenciaram, apresentando uns aos outros as respectivas classificações. Duas notas eram, como seria de esperar, negativas e aqueles que as atribuíram nem queriam acreditar quando Leonardo Coimbra lhes comunicou que tinha dado vinte valores.

- Vinte valores!, exclamaram eles. – Mas o rapaz não disse praticamente nada!

E Leonardo Coimbra:

- Não o disse com palavras. E então os gestos?

A verdade é que estava ali a ser julgado um dos maiores pensadores de todos os tempos. Leonardo Coimbra foi quem soube classificar.

Conheci o Álvaro Ribeiro junto ao elevador do Lavra, no Largo da Anunciada, em Lisboa. Subia-se por ali até ao Campo dos Mártires da Pátria. Se soubermos estar atentos, e temos a obrigação de estarmos sempre atentos, verificaremos sem dúvida que o primeiro encontro entre duas pessoas que virá a ser muito importante e até decisivo para ambas, seja um homem e uma mulher que virão a pertencer-se como marido e esposa, sejam dois homens dos quais um deles abrirá ao outro o caminho de união com o conhecimento de Deus são encontros sempre acompanhados de circunstâncias que se podem e devem interpretar como símbolos. Encontrei-me pela primeira vez com o Álvaro Ribeiro no Largo da Anunciada e daí ascendemos até ao Campo dos Mártires da Pátria. Não é difícil ver a significação destas circunstâncias.

O Largo era o da Anunciada, ao anoitecer daquele dia e também do mundo.

Eu ia com o meu irmão mais velho, o Orlando Vitorino, que muitos de vocês conheceram, e foi ele que me apresentou o grande pensador, em cuja tertúlia militava.

Não me estendeu a mão. Acenou levemente com a cabeça cumprimentando-me. Não me prestou a mínima atenção enquanto subíamos no elevador. E lá em cima, depois de uma acesa conversa com o meu irmão, despediu-se igualmente com um ligeiro aceno da cabeça.

Eu sabia que estava ali um dos homens mais inteligentes de Portugal. Fiquei triste pela indiferença que mostrou comigo, mas no fundo de mim continuei imperturbado, pois era dali, desse fundo do meu ser que eu contemplava a estrela sobrenatural que nos conduz a todos na Estrada Régia.

Três dias depois, entrei na Brasileira do Rossio, um café de gente perdida onde Álvaro Ribeiro tinha o seu Liceu Aristotélico de filosofia portuguesa. O filósofo estava sentado a uma mesa a olhar. Nesse tempo ainda se podia olhar imaginando o infinito (exercício que se recomenda), porque estávamos livres desses pequenos écrans ruidosos que se interpõem entre nós e o mundo (de Deus) verdadeiramente real.

Para meu espanto, minha surpresa e minha alegria fez um gesto chamando-me para a sua mesa. Tinha-me reconhecido!

E ainda foi maior o meu assombro quando me tratou pelo meu próprio nome. Assim que me sentei e após um curto silêncio perguntou-me: “O António Telmo o que é que acha que é a imaginação?”

Reflecti e disse: “Bem. Nós olhamos para o que está à nossa volta. Recolhemos a imagem de um objecto, de um ser no nosso espírito e, se somos imaginativos, transformamos essa imagem, tornamo-la significativa de uma ideia, fazemos com ela um poema.”

Sorriu com agrado e pôs em mim aquilo que viria a ser o germe de tudo quanto escrevi, pensei e vivi até hoje:

“Não é exactamente isso. A imaginação não é isso. A imaginação cria o seu próprio mundo, é senhora do seu próprio mundo, não depende do mundo sensível, do mundo que nos rodeia. Não é o mundo sensível que a produz, servindo-lhe de base. É ela que faz que haja o mundo sensível.”

Foi sobretudo esta última frase que se apoderou da minha inteligência e não a deixou mais sossegar. É a imaginação que faz que haja o mundo sensível. Como é isto? Perguntava-me. Até onde terei de ir em viagem da alma para compreender isto?

Nessa manhã, ele disse-me ainda:

“Quando tirar a licenciatura (anda na Universidade, não anda?) lembre-se sempre de que António Telmo há só um e que o título de doutor é como uma alcunha que se põe a muita gente. Há quem tenha vaidade em ser doutor e daí se segue que nunca procurará conhecer-se a si próprio, conhecer o ser que tem o seu nome e não outro, conhecer-se ali onde o seu espírito procura não ser dominado pela sua imaginação, mas fazer dela o seu trono.”

Foi assim que fui recebido como aprendiz de filosofia no Liceu que funcionava na Brasileira do Rossio.

Mas eu não venho aqui falar de mim e, se falei, foi porque, através de mim, mostrei o que num homem superior é o amor ao próximo. Não me propus traçar a biografia do grande pensador, mas, já que fui convidado pelos organizadores desta comemoração para dizer algumas palavras sobretudo àqueles que de Álvaro Ribeiro só conhecem o nome, contarei ainda um acontecimento da sua vida em que de novo se revela o seu amor ao próximo, desta vez não do mestre para o futuro discípulo, mas do filho para a mãe.

Ele via a mãe como uma pessoa angélica e pura. Aliás, o nome de sua mãe dava-lhe razão. Chamava-se Angelina Cândida.

Um dia, em consequência de um abalo interior a que os médicos chamam, não sei se com propriedade, um acidente cárdio-vascular, esta senhora perdeu a língua portuguesa. Eu digo perdeu a língua portuguesa, porque continuou a falar sem a mínima falha a língua francesa que tinha aprendido e praticado durante uma longa estadia em França. A ser verdade que a memória de uma língua está localizada nos neurónios do cérebro como num computador, a rotura vascular foi de uma precisão cirúrgica. Digo isto ironicamente. Quem leu Álvaro Ribeiro sabe que ele não aceitava a hipótese que localiza o pensamento no cérebro e, portanto, também não uma língua, pois ela é essencialmente pensamento.

Sentou-se na cama ao pé da mãe e começou a ensinar-lhe a língua portuguesa. O B a Ba. Durou muitos dias o ensino, mas por fim a língua portuguesa foi recuperada, regressou ao seu trono naquela alma. Só por má vontade não se vê neste acontecimento um sinal de que o pensamento, como o filósofo asseverava, é inlocalizável na matéria. Não há órgãos da fala, repetia ele baseando-se nas mais recentes descobertas da filologia e da fisiologia. Não há órgãos da fala. Do mesmo modo que os joelhos não se fizeram para rezar e as mãos para tocar piano, assim os órgãos pelos quais comemos, bebemos e respiramos não se fizeram para falar.

Álvaro Ribeiro pensou e escreveu numa época em que já se preparava, nos meios culturais, a integração de Portugal na Europa e a consequente servidão que, a pretexto de uma necessitação económica, invadisse todos os domínios de influência popular. Ao postular a existência de uma filosofia portuguesa, ao proclamar que um povo que não pensa por si próprio perde fatalmente a soberania, que a soberania só por extensão reside no poder do dinheiro, que reside sim sobretudo no poder da inteligência e da imaginação, suscitou contra si o ódio dos bem pensantes do país que tudo fizeram para que o seu nome fosse apagado.

Estamos aqui hoje, passados quase setenta anos sobre a publicação d’ O Problema da Filosofia Portuguesa, livro que abriu a estrada para o que é a verdadeira liberdade de pensamento, que é o pensar por si próprio. Passados quase setenta anos, todos começámos a ver que só pelo Espírito que, como disse Camões, os pescadores têm por Santo será possível levantar a Pátria do chão.

Foi com uma secreta intenção que, de entre o muito que conheci da vida de Álvaro Ribeiro, escolhi três acontecimentos apenas. Três e não mais e também não menos. O número necessário para que do silogismo não se decaia na estatística.

O primeiro episódio é o da relação do discípulo com o mestre, isto é, de Álvaro Ribeiro com Leonardo Coimbra; o segundo episódio é o dele, enquanto Mestre, com o seu discípulo; o terceiro episódio é o da sua relação com a Mãe.

Nos três há isto de comum: a relação do filósofo com a língua portuguesa. E o facto de essa relação ter sido tão difícil no plano da oralidade é o que certamente explica que o pensador, fazendo de uma fraqueza uma força, fizesse passar o pensamento pela filologia para que, através dela, se tornasse filosofia, filosofia que é um esplendor da ideia.

Então, para ele, tudo quanto existe, e tudo quanto é, é a criação ou, se preferirdes, a manifestação de uma palavra original e que é luz e vida e que está com Deus no princípio dos princípios, no que em todos os começos é começo. Por isso mesmo, se compreendermos com a profundidade e o respeito e a exactidão que nasce de uma imaginação disciplinada pela arte, se compreendermos só que seja uma língua e essa língua é antes de tudo o mais a nossa, poderemos ver como todo o universo é uma maravilhosa organização sintáctica, em que as formas manifestadas são na relação dos verbos com substantivos e adjectivos, dotados de energias vibrando múltiplas como fonemas no som primordial. O homem é uma palavra, com os seus predicados próprios, a mulher outra palavra de superior predicação, o amor é o verbo que se conjuga pela imaginação infinita de um e de outro. Este exemplo basta, se não é o mais importante, para que utilizemos ao falar e ao escrever e sobretudo ao pensar as palavras fundadas na etimologia que é a de cada uma e, sem desviar das leis de Deus tais como se manifestam na Natureza, levantar de raiz a árvore da imaginação humana pela arte de poetar e pela arte de filosofar, isto é em suma, pela arte de amar.

Há um livro de Oscar Wilde que tem por título A Importância de se Chamar Ernesto. Falou-me Álvaro Ribeiro, quando o ouvi pela primeira vez, da importância de me chamar António Telmo. Direi agora da importância de se chamar Álvaro Ribeiro.

Quem nasce recebe um nome. Apresentar, segundo o uso social, consiste em dizer o nome da pessoa que se apresenta a outra pessoa ou a outras pessoas que também estão presentes. Álvaro Ribeiro não está aqui presente em corpo. Juntaremos ao seu corpo o que ele significa, ele esse nome, para começarmos a ter o filósofo presente em espírito.

Diz-se popularmente que “é pior enganar-se no nome do que na pessoa”. É que o nome em princípio representa a essência sobrenatural do indivíduo, pelo sacramento do baptismo lançado no mundo para se desenvolver naturalmente. Emprego a palavra “desenvolver” no sentido que Fernando Pessoa pensou para o poema Iniciação.

O nome exemplar é o de Wolfgang Goethe. Poderíamos também lembrar os irmãos Lumière que puseram pelo cinema as fotografias em movimento, ou Bell, o inventor do telefone. Mas com o nome de Goethe descemos mais fundo. O autor do Fausto sabia, através de Herder, que lhe serviu de modelo para a criação de Mefistófeles, que o seu salto do lobo (Wolfgang) ligava sobre o abismo pelas cores a treva e a luz. Herder brincava com os fonemas de Goethe, Goetia e Gott.

Devemos, pois, sempre que nos propomos tornar conhecido um autor, alguém que conseguiu ser ele próprio, começar por imaginar no seu nome. Alvaro Ribeiro escrevia assim mesmo o seu nome de autor, sem acento na primeira sílaba da esdrúxula Álvaro, para que a ideia de luz nascente, de alva, de alvor, de alvorada e de alvoroço fosse a enteléquia da corrente filosófica capaz de remover os portugueses, do ribeiro ao rio e do rio ao mar, ligando-os de novo ao seu destino atlântico.

Eis, por este caminho, que não sou eu, mas o filósofo que se apresenta a si próprio. Em vários momentos dos seus livros, ele dá a inquietação como o estado de alma próprio de quem cultiva “a ciência que se procura”, desde que essa inquietação se revista da forma do alvoroço.

Assim, por exemplo, em Apologia e Filosofia: “Quem for dotado daquele senso linguístico que caracteriza os verdadeiros poetas, saberá que muitas palavras portuguesas, como, por exemplo, saudade e alvoroço representam vivências fundamentais que, fenomenologicamente estudadas, abrem caminho para noções ou estimulam a peculiaridade do nosso pensar.”

De alva ou alba e alvor, antes de chegarmos a alvorada, alvoroço e alvorecer, podemos, por movimento de letras, chegar a um feixe de noções vivenciais como valor, lavor e louvar que encaminham o espírito para ora et labora, famoso preceito de alquimia. O ORA ET LABORA poderia figurar como a legenda do brasão de Alvaro Ribeiro, se nestes tempos do fim ainda persistisse a tradição de ser conferida nobreza a quem se distingue na guerra santa da filosofia.

 

António Telmo

 

DOS LIVROS. 02

28-02-2014 10:40

De um caderno de apontamentos. 01

 

A ideia de que a electrónica funciona hoje como o sistema nervoso da humanidade traz outra: a de que há um cérebro capaz de mexer todos os cordelinhos. O seu aparelho ósseo-muscular foi montado durante o século XIX e tem vindo a ser constantemente aperfeiçoado. Poderíamos estender a analogia a todos os órgãos. É, porém, analogia? Não estamos perante um facto?

Isto quanto ao macrocosmos designado como humanidade. No microcosmos, cada indivíduo é igualmente tratado como uma máquina, cada vez mais subordinada ao sistema geral, na medida em que a máquina vier a ser integrada na rede geral dos computadores. Para a medicina, por enquanto, é um arranjo de peças, substituídas por outras retiradas por outros indivíduos, vivos ou mortos. Aqui, o ideal perseguido é a substituição completa no mesmo ser de todas as peças. Já se tenta implantar braços e pernas de cadáveres nos amputados. A alma passeará um corpo morto, animará um cadáver.

O que parece, porém, que representaria o triunfo da explicação mecanicista da vida e da concepção de um mundo sem espírito deverá ser interpretado como o triunfo daquilo que é negado: a individuação. O homem continuará a ser o mesmo nos seus recessos profundos, a vida nele não cessará apesar da implantação da morte. Não é menos um horror, mas, uma vez mais, a única, primeira e última realidade é o ser essencial de cada homem. Nas operações, permanece para além da anestesia, dotado de um poder comparável ao da ressurreição. A anestesia tem por fim evitar a dor, o protesto do ser durante a transplantação.

Esta palavra transplantação avisa-nos, porém, de que o homem é concebido como um mecanismo vegetal. É o que se verifica pela clonagem, pela qual se realiza o que, nas plantas, é a propagação por estaca.

No Yoga, hoje tão propagado simultaneamente com outros prodígios, o homem é reduzido à sua condição vegetal pela prática da imobilização do tronco, suportada na raiz pelo plano do ânus e das pernas compostas em nó, e pela evacuação do pensamento consciente de si. Aqui, a anestesia do animal produz a estesia da planta, esse vago sentir obscuro e indeterminado que, na natureza, é uma espécie de remota consciência da inteligência que, nos recessos da terra, busca a luz e a flor.

 

António Telmo

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)

DISPERSOS. 07

25-02-2014 09:16

O Encoberto, de Bruno[1]

 

            O esquema traçado constitui a teia através da qual se desenvolve a trama desta obra-prima da história de Portugal. O leitor, se o mantiver presente no espírito durante a leitura de tão complicado livro, não terá grande dificuldade em orientar-se nos caminhos bruninos, – sinuosos e entrecruzados. Julgamos dar nele a imagem operativa que animou e articulou o pensamento de Bruno. No entanto, o próprio esquema necessita de ser explicado e fundamentado.

            Comece-se pelo “sebastianismo” no vértice inferior onde se tocam as duas linhas principais de acção política. O Encoberto é para Sampaio Bruno o Reino de Deus por fim revelado na República dos Homens. Por vicissitude histórica a ideia do encoberto assumiu-se entre nós incorporada no anúncio do regresso de D. Sebastião que viria estender pelo mundo o Reino já fundado de Cristo. Será a ideia católica, tal como a viveu, por exemplo, o Padre António Vieira.

            Todavia, parece querer dizer-nos Bruno que o movimento sebastianista, organizado em torno das profecias de Gonçalo Eanes Bandarra, foi uma criação judaica, de fundo messiânico, lançada contra a Inquisição. Chega mesmo a sugerir, nas últimas páginas do livro, que as profecias não se refeririam a D. Sebastião, como mais tarde um D. João de Castro e um Padre António Vieira viriam dizer, mas aludiam à acção de David Reubeni, misterioso judeu alemão, que terá estado em Portugal no reinado de D. João III, era protegido pelo Papa Clemente VII, dizia-se vindo do Oriente, de onde o enviara o Preste João, e tentara converter ao judaísmo o próprio imperador Carlos V através do seu discípulo Salomão Malcho, o português Diogo Pires.

            O “sebastianismo” surge-nos assim com um duplo sentido e o não ter em conta que umas vezes está ao serviço da ideia católica de domínio universal e outras vezes da ideia judaica de fraternidade universal, ali posta a esperança num homem, herói ou santo, aqui no acesso de todos os homens. O segundo sentido terá sido animado e movimentado por uma organização secreta, depois conhecida cá fora por Maçonaria, tornada activa em Portugal, segundo o mesmo Bruno, no tempo de D. João III, por intervenção do referido David Reubeni, que já ostentava um avental com os sacros símbolos da Ordem. Quase simultâneo foi o aparecimento da Companhia de Jesus.

            Compreende-se, pois, a energia mental que o nosso historiador põe em negar, contra outros notáveis historiadores maçons, a filiação da Ordem nos Templários, servindo-se até do testemunho insuspeito do Conde Joseph de Maistre para mostrar que ela é nos princípios, meios e fins estruturalmente judaica. Este Conde Joseph de Maistre, superfamoso defensor da Igreja Católica, foi iniciado numa loja maçónica martinista e desempenhou na organização importantíssimo papel. Privou com o iluminado Saint-Martin, o promotor da tríade Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Saint-Martin foi o ilustre discípulo de Pascoal Martins, judeu português, que se diz também enviado do Oriente, e fundador, como o nome o diz, do martinismo. Toda a revolução francesa está animada pelo ímpeto contido na famosa tríade.

            Dois séculos antes, houve em Valência, na vizinha Espanha, uma série de insurreições populares à volta de sucessivos encubiertos queimados uns após outros pela Inquisição, que durante vários anos alimentaram a chama da revolta. Defendem já as ideias e as emoções que, mais tarde, se tornariam vitoriosas com a Revolução Francesa. O primeiro encubierto é, como David Reubeni, uma misteriosa figura de judeu.

            Para Sampaio Bruno, o ódio ao judeu em que comungavam não só os dirigentes da catolicidade mas também o povo ululante durante os autos de fé tem como base um conflito étnico remotíssimo. Sucessivas ondas de camitas terão povoado o território português, provindas de África. Este povo camita – do qual os berberes – terá sido vencido pelos hebreus e ter-se-á espalhado pelo norte de África. O que fundamentalmente o caracteriza é o culto pelos sacrifícios humanos por cremação, culto que revivesce nos autos de fé. O catolicismo dominante na Península Ibérica será, pois, um catolicismo africano, fanático e cruel e, por isso, a Sampaio Bruno afigura-se-lhe perfeitamente ridícula a tese de Oliveira Martins que vê no sebastianismo a expressão da alma idealista e sonhadora de todo um povo. O leitor que tenha a paciência de ler toda a documentação apresentada neste livro descrevendo o comportamento popular durante os autos de fé, em uníssono com as acções dos dirigentes, não deixará de sentir-se pelo menos impressionado de pertencer a semelhante Pátria.

            O Encoberto não é, pois, um livro que satisfaça o patriotismo ingénuo de tantos portugueses. Põe-nos perante a realidade da nossa própria natureza, no que ela tem de sinistra e tenebrosa. Sampaio Bruno não é porém um maniqueu, no sentido deturpado da palavra, que é o que vê no maniqueísmo um dualismo do bem e do mal. É um gnóstico, embora do tipo não cristão. O mal é, para ele, um mistério e só a iluminação divina que traz consigo a progressiva reintegração no uno das parcelas divididas poderá finalmente libertar-nos do mal. Daqui o elogio do socialismo como forma de teodiceia. Assim como no alto, pela kabbalah, a Igreja se ligará à Maçonaria (assim pretendia David Reubeni), também em baixo o socialismo abrangerá tanto camitas como semitas no mesmo movimento de aperfeiçoamento moral.

            Podemos discordar de Sampaio Bruno, mostrando como o socialismo constitui uma degenerescência da Maçonaria. Aqueles que, de um ponto de vista esotérico ou simplesmente religioso, formam uma imagem minorativa da Maçonaria porque o socialismo ateu ou igualitário dela derive ou nela se fundamente, deveriam pensar que, também para os católicos, os caminhos sinuosos do clero não alteram a perpétua verdade da Igreja fundada por Pedro. Todavia, Sampaio Bruno vê no socialismo democrático subordinado à ideia suprema de República a aplicação ao progresso da humanidade dos princípios sóficos da Maçonaria. Assim como Leonardo Coimbra dizia ser a “mecânica” o socorro de Deus enviado ao Nada, quererá talvez significar Sampaio Bruno que o socialismo constitui o socorro que o todo homogéneo dos seres integrados envia ao nada dos seres decaídos. O fim da Maçonaria no plano político será assim a participação dos membros dispersos e dilacerados da humanidade numa grande e luminosa unidade interior. Nem um só homem poderá ficar fora do processo universal de realização da Bondade. Todos os homens, pela democracia, serão chamados a cooperar activamente na política, assumindo-se cada um como uma parcela luminosa do universo, pois, enquanto emanação superior, conquanto esquecida de si, possui a potencial dignidade de um “sacerdote-rei” maçon, de um arquitecto. Há então que correr o risco que consiste na subversão dos elementos superiores pelos elementos inferiores. Mais do que o risco, há que viver essa subversão sem a cobardia do egoísmo, a não ser que se aceite a ideia pessimista de que para sempre haverá divisão entre os que sabem e os que não sabem, entre os que podem e os que não podem.

            Neste ponto, cremos ter dado as indicações necessárias. Deixamos ao leitor o cuidado do melhor. Antes de terminar, poremos ainda um aviso quanto ao estilo de Bruno.

            Este livro só pode desvendar-se pela inteligência que a memória dá ou pela memória que a inteligência ilumina. O leitor que, logo nas primeiras páginas, não sinta que está perante um livro secreto ou “encoberto”, como de si mesmo ele diz no título, e que, em consequência, siga por essa estrada das frases e dos períodos desatento ao que já percorreu e desinteressado pelo que vai percorrer ainda ou ficará a meio caminho, enfastiado e confuso, ou chegará ao fim sem nada ter visto de essencial. Tudo nele se liga e tudo está posto a seu tempo e no lugar exacto. É uma fantástica, rigorosa, realista construção mental.

            Em geral, quando lemos, arrumamo-nos ao sentido imediato e deixamo-nos conduzir pela cintilação fácil das palavras. Sampaio Bruno não deixa. Logo no período, se não na frase, troca as habituais relações dos termos do discurso, introduz parêntesis, emprega formas estranhas e desusadas de dizer, amontoa citações, demora propositadamente o ponto final, obriga-nos enfim a um esforço de memória que, a ser feito, nos torna mais ágeis de inteligência. Por ali não se vai desatento e adormecido. As sucessivas barreiras exigem um leitor corajoso e que confie na final revelação de um segredo.      

 

António Telmo


[1] Messianismo Português, colóquio realizado na Casa Municipal da Cultura, em Coimbra, no dia 23 de Outubro de 2004, Lisboa, Fundação Lusíada, 2005, pp. 39 a 45.

 

DOS LIVROS. 01

21-02-2014 09:06

Uma nova secção desta página dá livre curso à difusão do que António Telmo deixou escrito nos livros já publicados, e aqui tanto poderão vir a caber textos na íntegra como passagens dadas em excerto. A escolha inaugural recai sobre a figura de José Marinho, num curto escrito testemunhal pejado de recordações, saído a lume em Viagem a Granada, de 2005. Recorde-se que o suplemento télmico, da responsabilidade do projecto António Telmo. Vida e Obra,  que acompanha o próximo número duplo da revista de cultura libertária A IDEIA, irá publicar a correspondência trocada entre mestre e discípulo, num trabalho de transcrição, comentário e anotação de Jorge Croce Rivera e Rui Lopo.

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José Marinho

 

Lembro-o melhor na Brasileira do Rossio, junto a uma das colunas do velho templo maçónico, que hoje é Banco e então era Café, nos meus anos moços. Movia a cabeça com o garbo de uma águia, atento e flexível aos sopros invisíveis do Espírito, uma espécie de núncio apostólico da luz única. Aquela cabeça era um sol.

Tenho a honra de ter pertencido ao círculo que a sua palavra traçava. Naquele Café de mulheres perdidas, de actores vencidos, de traficantes e de chulos, de bombistas sem préstimo ou de revolucionários sem emprego, a filosofia, que não encontrávamos na Universidade, era uma lâmpada. Formávamos roda sobre a mesa preta, traçávamos o círculo por entre nuvens de fumo. As káfkicas baratas, pré-históricas, tão antigas como o tempo, corriam por todo o lado. À esquerda e à direita, ladeando o rectângulo da grande sala, havia límpidos espelhos paralelos que multiplicavam as imagens até ao infinito.

José Marinho produzia em quem teve a ventura de o conhecer a impressão de se estar, não perante um homem, mas perante o próprio pensamento. A postura do corpo, a maneira de olhar, a subtil e doce ironia do sorriso, o movimento aéreo das mãos, o próprio jeito de compor a gravata acompanhavam o movimento do seu espírito reflexivo. Era muito difícil segui-lo por onde ia. Quando um de nós, entusiasmado com uma ideia, lha dizia com alguma empáfia, não o contradizia, deixava-o para trás para que imaginasse à frente outras e melhores ideias e isto com um simples “Já passei por aí”. Ele ensinou-nos a única religião irrefutável : a de uma inteligência cujo acto é impossível se não regressa continuamente à origem, ao segredo do próprio pensar, ao ponto sem dimensão donde tudo emerge. O pensamento nele era a demonstração de Deus. Por isso foi para nós, seus discípulos, um dos últimos rosacruzes.

Escreveu nessa época a Teoria do Ser e da Verdade, onde, pela visão unívoca e pela cisão, une, numa sucessão de logismos e de intuições, segundo o processo mental da corrente alterna, o que de mais revelador significam a cruz e a rosa. Nunca, porém, nos foi dado racionalizar a filosofia de José Marinho, de tão ligada ao seu misterioso ser singular, tão sua e de Deus e por isso inacessível.

Quinze anos volvidos, nos últimos meses que passou connosco, quis a fortuna que todos os dias almoçássemos juntos. Vi-o pela derradeira vez nesta vida numa cama de hospital. Levei os meus dois filhos, ele com cinco, ela com oito. A magreza de Marinho era impressionante. Era já só espírito. Dois dias depois falecia. Os médicos disseram que morreu em êxtase.

Nos últimos anos da sua vida, foi funcionário da Fundação Gulbenkian. Exactamente, FUNCIONÁRIO  DE  PSICOLOGIA, uma monstruosidade concordante com um mundo em que se desalojam Cafés para se edificarem Bancos e se evanesceu de todo a ideia arqueológica de iniciação filosofal.

Funcionário de psicologia! E de psicologia científica!... Com que suspicaz e penetrante ironia, mas também infinita cautela e até alguma caridade para seus confrades doutos, se referia  ele à vil ocupação inglória do tempo da vida, em que fingia ou fazia por seguir uma ciência definitivamente refutada em todos os livros de gente e, portanto, também nos seus. Este conflito entre a secreta, séria e honrada obediência à luz da verdade e o amor aos seus próximos que, enquanto homens e mulheres, participavam e comungavam, por este ou aquele modo, dessa mesma verdade, explica em grande parte o seu estilo de viver, em que compreensão e interrogação apareciam como um só movimento.

Entende-se assim por que José Marinho não tenha concitado o ódio dos outros homens. Um por um, evidentemente, na terrível miséria cheia de dignidade do seu ser individual. Mas o ser genérico dos homens reunidos pela força dos egrégores, a que os poetas chamam molusco e a teologia diabo, na impossibilidade de o absorver e integrar, haveria de catapultá-lo para lá das portas da morte.

Que Deus tenha em paz a sua alma!

 

António Telmo

 

(publicado em Viagem a Granada, 2005)

 

CORRESPONDÊNCIA. 05

20-02-2014 09:11

Em 2005, a Fundação Lusíada publica as Actas do Colóquio O Messianismo Português, promovido pela revista Teoremas de Filosofia e realizado, no ano anterior, na Casa da Cultura, em Coimbra, por ocasião do centenário do livro O Encoberto, de Sampaio Bruno. Além de poemas então lidos por Eduardo Aroso, o livrinho dá a lume as comunicações ali apresentadas e um escrito de António Telmo (com Pedro SInde e Carlos Aurélio, o filósofo compusera o leque de oradores) que, sem documentar a sua intervenção no encontro, antes consubstanciava o prefácio, escrito muitos anos antes, para uma edição de O Encoberto, de Bruno, que nunca chegou a concretizar-se, consoante se afere pelos informes que nos introduzem na brochura. "O Encoberto de Bruno", assim se intitula o texto prefacial que aqui será publicado dentro de dias. Por ora, e como um fruto do estudo do espólio de António Telmo que o nosso projecto está a realizar, disponibilizamos aos leitores as quatro cartas (três de José Valle de Figueiredo e uma de Luís Sá Cunha) que os responsáveis das Edições do Templo escreveram a António Telmo, entre Junho e Outubro de 1978. Por elas se esclarece grandemente a génese deste importante disperso télmico. De modo significativo, fica-se a saber que foi presumivelmente Álvaro Ribeiro quem indicou a Valle de Figueiredo (na foto) o nome do discípulo para prefaciador...

 

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CORRESPONDÊNCIA DE JOSÉ VALLE DE FIGUEIREDO E LUÍS SÁ CUNHA PARA ANTÓNIO TELMO

 

DATA: 9 de Junho de 1978

N/REF.

V/REF.

 

 

                                                                                              Exmo. Senhor

Dr. António Telmo Vitorino

Rua Marquês de Marialva, 22

BORBA

 

Senhor Doutor e prezado confrade,

                                               Sendo de há muito tempo seu leitor e admirador atento venho agora incomodá-lo por indicação do nosso bom e comum amigo Dr. Alvaro Ribeiro pelo seguinte: está esta editora de que faço parte interessada em publicar o “ENCOBERTO” de Sampaio Bruno. Pensei, entretanto, que seria do maior interesse anteceder o texto com um prefácio ou estudo-prefácio relacionado com o assunto, para o qual o Dr. António Telmo seria a pessoa ideal, se quizesse ter essa generosidade, nas condições que propuser.

                                             Ficando a aguardar notícias suas

sou

             

muito obrigado

 

José Valle de Figueiredo

 

 

[em papel timbrado de

Edições do Templo, Lda.

Rua da Mãe de Água, 13, 4.º F

Telefone 36 21 58

Lisboa - 2]

 

* * *

 

DATA: Lxa. 12 de Junho de 1978

N/REF.

V/REF.

 

                                                           Meu Prezado Amigo,

 

            Muito obrigado pela sua resposta. Ficaria muito satisfeito se me mandasse o prefácio até ao dia quinze de Agosto. Poderá ser? Se tivesse uma semana antes, então seria o ideal.

            Com um grande abraço

do

José Valle de Figueiredo

 

 

[em papel timbrado de

Edições do Templo, Lda.

Rua da Mãe de Água, 13, 4.º F

Telefone 36 21 58

Lisboa - 2]

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DATA: 24 Agosto 1978

N/REF.

V/REF.

 

                                                                  Exmo. Senhor

                                                           Dr. António Telmo

Exmo. Senhor,

 

            Sem prejuízo de recomposição posterior de José Valle de Figueiredo, que pessoalmente invocou a sua disponibilidade amável para o prefácio do Encoberto, apressamo-nos a anunciar-lhe que acabamos de receber o seu texto que passaremos a incluir na edição.

            Manifestando-lhe desde já o nosso agrado e agradecimentos pelo trabalho interessante, enviamos-lhe os nossos cordiais cumprimentos

 

                                               Luís Sá Cunha

 

 

[em papel timbrado de

Edições do Templo, Lda.

Rua da Mãe de Água, 13, 4.º F

Telefone 36 21 58

Lisboa - 2]

 

* * *

 

DATA: 2 de Outubro de 1978

N/REF.

V/REF.

                                                           Meu Prezado Amigo,

 

            Regressado de férias, apresso-me a escrever-lhe para agradecer o magnífico prefácio que, aliás, o Luís Sá Cunha, também se apressou a louvar-lhe.

 

            Queria pedir-lhe o favor de me dizer quanto é que deseja que a Editora lhe pague.

 

                                               Com um grande abraço

                                                           do

                                                           José Valle

 

 

[em papel timbrado de

Edições do Templo, Lda.

Rua da Mãe de Água, 13, 4.º F

Telefone 36 21 58

Lisboa - 2]

 

VOZ PASSIVA. 14

17-02-2014 10:59

É mais um contributo télmico para o próximo número duplo da revista de cultura libertária A IDEIA, este surpreendente ensaio de Paulo Jorge Brito e Abreu que agora antecipamos ao leitor. Recordamos, a propósito, que aquele número, já o 73/74, da publicação actualmente dirigida por António Cândido Franco, sairá a lume no segundo semestre deste ano, tendo já uma sessão de apresentação aprazada para a sexta TARDE TÉLMICA de 2014, a 22 de Novembro, na Biblioteca Municipal de Sesimbra. Desta feita, a revista vem acompanhada de um suplemento inteiramente dedicado à memória e ao legado do nosso patrono, onde se publicarão inéditos deste e as cartas que lhe escreveram José Marinho, Dalila Pereira da Costa e Fiama Hasse Pais Brandão, num trabalho coordenado pelo projecto António Telmo. Vida e Obra, e que conta com a colaboração de António Carlos Carvalho, Jorge Croce Rivera, Pedro Martins e Rui Lopo.    

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António Telmo: os Números, os Nomes e os Numes

Paulo Jorge Brito e Abreu

Dividindo bem o Logos – distribuindo-o bem pelas tuas entranhas.

Empédocles

 

I

 

Seguindo e segundo santelmo António Telmo, eis aqui, e eis agora, as «Congeminações de um Neopitagórico». Pois cada nome é um número, e cada número é um Nume. Abeiramo-nos, em sacral, sagrado esquisso, da Simbologia, da Súmula, da Suma que nos dá o velho Pitágoras. António Telmo ou, então, o Tomé Natanael, António Telmo, na Ágora, o áugure pítico. E aqui surge, dessarte, a pergunta: qual o escopo, e a escola, deste nosso «Bateleur»? E em crítica acribia, eis o repórter, a resposta: adentro do culto, e Cultura Portuguesa, adunar os Hebraicos ao Livro de Thoth. Quero eu dizer, e aduzir: enlaçar a Kabbalah com a Letra de Hermes. Filho de Júpiter, e Maia, o deus Hermes, o Mercúrio, o Hermes Trismegisto, o deus que aos homens deu as palavras, as letras, os nomes e os Numes. E é que a serpente mercurial, ela é superna, e superior, ao cifrão comercial. Ela é a música, o Museu, e Templo das Musas. Unindo entanto, e ligando, o Céu com a terra; eis o seu mágico, ou ático, laboratório. Queremos assertar: aqui hermética hermenêutica, o labor, inicial, iniciando com o oratório. Se tudo é uno, portanto, então tudo está em tudo. E a Kabbalah é o saber que importa desvelar. As Letras activas como o Sol e as estrelas. Pois, na Fonte Cabalina, em Cavaleiros do Amor, foi de acordo com as Letras que o mundo foi criado – e qual Arauto, e Autor, António Telmo é por isso o fogo-de-santelmo, «Philosophus per Ignem» para as quinas de Alquimia. E se ele é, dessarte, o Filho da Viúva, ele é, outrossim, o Tomé Natanael. Elaborando, e operando, na Arqueologia do Ser. Tomando a Bíblia, sobretudo, como a prosódia, e pois ofício, o exercício das metáforas – e esse o múnus, o Nume, da Palavra perdida, da hermética irmandade dos Amigos da Luz. Fazendo, como vimos, do Poeta um «Bateleur». Que o acrobata, pelotiqueiro, ou saltimbanco, é a lâmina prima do Tarot de Marselha. O Iniciado ou o Mago, aquele que, com a Língua, aquele que se dedica aos jogos malabares. Que o Mistagogo, e o Poeta, ele é sempre, ele é sempre, um prestidigitador. Aquele que, no jogo, em ludíbrio da mente, aquele que transmuta a verdade em mentira e a mentira em verdade, o cultor, o místico, e mistificador. «Arte Poética», dedicado, formalmente, ao Álvaro Ribeiro, data, portanto, de 1963, e é o «liber» primeiro do nosso Criacionista. Elaborado nas «sephiroth», na árvore das cifras, ou safiras dessarte – e não remembras, ó ledor, a esfera, e o «Sfairos», parmenidiano? Para bem ser aprendida, e desse modo compreendida, urge bem que esta Lira, já escrita em «Shekinah», seja tomada como estética, e poética, Filosofia. Um pouco como o fazia, professando e proferindo, Agostinho Maldonado, nos anos 70. Imitando o que operava, falante e aflante, o feraz Leão Hebreu, o médico e Filósofo Judah Abravanel. Ou em tópicos e tropos camonianos, adorando o Deus menino por cuja potestade os deuses descem à terra, os homens sobem ao Céu. Considerando, por isso mesmo, e siderando, as três mais claras, e preclaras, expressões do Cristismo, em terras de Luso, são o Mosteiro, dessarte, de Santa Maria de Belém, «Os Lusíadas» da Luz e o paládio «São Paulo», do Teixeira de Pascoaes. Bem longe e distante, bem longe, deveras, da feira de vaidades que é o mundo literário Portugalaico. Pois importa, em «Shekinah», importa, aqui, o proferir: se o bétilo, «Omphalos», se o bétilo, na Pítia, clama por Beth, a «Casa de Deus», ou «Beth-El», se tornou, cristiana, em «Beth-Lehem», em Belém, ou na «Casa do Pão». Que inicial da palavra «Barukh» ( bendito seja Ele ), a letra «Beth» é o começo de «Bereshith», ou «no princípio», a primeira palavra do Antigo Testamento. Ou especulando, em estupor, e estupefacto: em demanda, ou na questa, de um sófico centro, o ministério mais alto do magistério Portugal, ele é ser, ele é ser, um construtor de Catedrais. Não já no fundo e fundamento, mas em preste Firmamento. Ou dizendo, e aduzindo, por vocábulos outros: em frutífera «Efrata», o antigo, avito nome da cidade «Betel» foi a «Luza», Luza gente, ou gente Lusa. Sempre aliando, na Casa de Deus, sempre aliando, e ligando, a terra com o Céu. A Maia ao Pater, afinal. De tal modo que assertamos: se a terra é fértil, de facto, e se chove, deveras, ora urge que os Magos já voltem a Belém…

 

II

 

Trataremos, aqui, do génio poético do mundo ocidental: não é dessarte, António Telmo, ciência fácil e fútil. Pois, ao falarmos do Tarot, falaremos da Torah – e proferindo nós o naipe, o «naib», ou «naibbe», professamos, nós ora, o Vidente e o «nabî». Pois consequente à expulsão dos judeus da antiga Espanha, a diáspora sefardita difundiu, e defendeu, o alado «Liber Mundi». E ora basta e ora bonda. Pois «nomina numina» diremos nós ora: foi nado, António Telmo, em Almeida, a 2 de Maio de 1927. E significa, o nome António, «valoroso» ou «valioso». A abrir sua «persona», corresponde, a letra «A», ao «Aleph» dos patriarcas, e significa, esse «Aleph», «o Touro», o signo precisamente do nosso querido Filósofo. E se o chifre do Touro é o crescente lunar, simboliza «Aleph» a Lua em sua prima semana; se Vénus tem seu domicílio nocturno no signo de Touro, a Lua está nele em altar exaltação. E sabe-se, na Simbologia, que o Touro, ou bovino, representa os deuses celestes nas religiões e nos cultos indo-mediterrânicos. O «Tauros» é símbolo da força, e potência criadoras, ele a-presenta, ou re-apresenta, as forças elementares do sexo e do sangue. Pois a partir, na História, do terceiro milénio antes de Cristo, o Touro era o Deus El, sob a forma, formal, da estatueta de bronze; fixada na ponta de um Pau ou duma Vara, essa estátua é similar à do feraz Bezerro de Ouro. Ou pra aplicarmos, aqui, a Cabala fonética: o «Stauros» dos gnósticos era a Cruz, dessarte, e o Tau dos Patriarcas. E queremos ir até ao imo da ciência de Pitágoras, a Kabbalah é florescência da Linguagem dos Pássaros. Que o Poeta é a chave, o Poeta é qual a ave que as portas nos abre. Pois seguindo e segundo o nosso Livro de Thoth, nasceu, António Telmo, sob o Touro, cognato, e segundo decanato. Quer isso indicar, indiciar, assinalar: um homem com um cinto, e com uma chave na mão direita, a dignidade, a nobreza, o poder e o domínio. O domínio e o poder, afinal, duma Arte Real. Já o «A», de que falámos atrás, significa a independência, a curiosidade e a coragem – e o poder, iniciando, de comando e iniciativa. E na primeira consoante do nome de «António», tipifica, o nosso «N», a imaginação, criatividade, e o cunho inspirador. Que o nascido, alfim, no dia 2, é qual harmónica «persona», ele é sensível, emotivo, e não gosta de discórdias. Fortemente afectuoso, ele ama as Musas, a dança, e o ritmo em geral. Pois importante, e marcante, é o facto seguinte: nos primeiros dias de Maio, concelebra, o povo Luso, a festa das Maias, as Maias promotoras das Artes maiêutas. Se dedica, o mês de Maio, a Vulcano ou Apolo, Apolo consorciado com a Maia mulher. Se o maior é o magno e portanto o maioral, bem magíster, e mágica, é nossa majestade. E qual o magistério? Se nascer no quinto mês dá origem, lilial, a uma certa instabilidade, 1927, agora, é como segue: 1+ 9 + 2 + 7 = 19 – e 1 + 9 = 10, e 1 + 0 =1. É o signo da Palingénese, reencarnação, e da Nova Renascença; ela plasma e ela marca a senectude do sénior. O Arcano do Sol iluminando, alumiando, o ministério menestrel. Ratificando, inicial, e rectificando, no «Karma», indicaremos, em Telmo: 2 + 5 = 7: é o número, deveras, das Artes Liberais e dos dias da semana; se isso é sagrado, o secreto e o segredo, é vista aqui, a sabatina, qual a missa e a missão.

Professoral, a missão, dos Poetas maiêutas. E ora sus, avante, e mais ânimo e Alma para a nossa viagem: pois somando, agora, os dígitos, eis a safra, e pois a cifra, do prestidigitador: 2 + 5 + 1 + 9 + 2 + 7 = 26. E 1927 + 7 = 1934; e concluindo, no conto, 1 + 9 + 3 + 4 = 17, o Arcano e Arcaico da Estética Estrela. Quer num, quer noutro caso, para o Filósofo António Telmo, o 8 é dessarte o Número da Vida. Ou cotejando aqui a causa com António de Macedo: foi nado e nascido, o homónimo do Telmo, a 05/ 07/1931: e 1931 + 5 + 7 = 1931 + 12 = 1943: e 1 + 9 + 4 + 3 = 17; e como sói aqui dizer-se, voam juntas e conjuntas, as aves, liliais, da mesma plumagem. Para António Telmo Carvalho Vitorino, o 8 é portanto o número do Destino – e é a Força da Justiça, e a Estrela está com ele em correlação. Simboliza, a lemniscata, a Rosa dos Ventos e a liderança, a Autoridade, do Autor, e o poder material. São as provas, desafios, e a transmutação – e a verve da Kabbalah, e a Caaba como símbolo da pedra e do Cubo. Mas característica, e carácter, da estética Estrela, é o prospectivismo, professor, e o espírito visionário. A imaginação, dos magistas, a «imago» aplicada à poética razão. Pois liberta, ou liberada, dos instintos e pulsões, realiza-se, a Estrela, na estesia da Esperança e no Fogo do Espírito. Por a Poesia, afinal, como a cura, visionada, e o estado de Graça. E sendo vista, a Psicologia, como a fala da Alma e a Fonte Cabalina – e eis a Luz e a Lira, eis a «lectio», lição, do Álvaro Ribeiro.

Por limitações, na lida, de espaço, terminaremos ora. Não sem antes indicarmos, sinaleiro, e assinalarmos: o número pessoal, ou da Personalidade, de António Telmo Carvalho Vitorino, ele é, dessarte, o 22 – ele em nova, numinosa, é chamado Número Mestre. Significativa, apelativa, oblativa coincidência: é o Número do Destino de Sigmund Freud, o frutuoso; do Destino é o Nume, em vida sana, de António Manuel Couto Viana. Para Mário Máximo, outrossim, 19 + 9 + 1956 = 1984, e 1 + 9 + 8 + 4 = 22. São 22 os capítulos do feraz Apocalipse, 22 as letras do alfabeto hebraico – e 22, argonautas, e em conteúdo, os Arcanos Maiores do Livro do Mundo. Eis a cifra, em «Sephiroth», do grande apostolado, do Génio engenhoso, e Construtor de Catedrais. Ele é «Nabî», o Visionário, e labora, liberal, para toda a Humanidade. Por isso aduziremos, mensurando a mente nossa: vamos todos, com Telmo, até ao novo Tabernáculo. Ou vamos ora, simplesmente, aprender a dançar.

 

Queluz, 05/ 02/ 2014

AMOR MAGISTER EST OPTIMUS

DISPERSOS. 06

13-02-2014 09:57

AGOSTINHO DA SILVA, 108 ANOS DEPOIS

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA, 1967. A fotografia foi tirada de surpresa por António Telmo, rendido ao encanto frenético da máquina fotográfica, uma Canon acabada de comprar. Agostinho da Silva pouco passava então dos sessenta. Por esses dias, ainda nos olha com o rosto glabro e o cabelo hirsuto. Dois anos depois, o renovo drástico e definitivo do semblante, na assunção de uma anciania que lhe há-de celebrar a imagem. Adivinhando o choque presuntivo de compadre Telmo, Agostinho apressa-se a remeter-lhe a prova fotográfica, até hoje inédita, da metamorfose visual, que foi, aliás, acompanhada por uma notória mudança de indumentária, pois em Brasília jamais Agostinho se separou do terno que em solo pátrio viria a dar lugar a roupa bem mais informal...  

  

Há retratos e retratos, e no que agora se propõe ao leitor também António Telmo recorre a uma imagem: a do horóscopo que o autor da História Secreta fizera em Brasília a pedido de Agostinho, e que nos permite conferir a silhueta espiritual do autor de Reflexão. Retrato de perfil, portanto, e traçado para ser mostrado no Colóquio Agostinho da Silva e o Espírito Universal, com que em 2006, sob a égide do mesmo Telmo, comemorou Sesimbra o centenário de Agostinho da Silva. Faz hoje 108 anos que ele nasceu no Porto.

O horóscopo de Agostinho da Silva

 

No filme que fizeram sobre a vida de Agostinho da Silva, há, logo de início, um momento em que ele aparece a dizer mais ou menos isto:

“Nasci no Porto, mas onde eu queria nascer era em Barca de Alva, pois antes de nascer foi a ela que escolhi. Os deuses que movem os astros quiseram fazer a minha vontade, mas como se trata de relações de grandes movimentos não conseguiram ser exactos e daí o Porto em vez de Barca de Alva.”

O que Agostinho continuaria a dizer, se aquilo não fosse um filme, ou que terá continuado a dizer e que o filme não registou é que, tendo nascido no Porto e, logo, muito pequenino, tenha ido com os pais para Barca de Alva, não fez mais do que lançar-se ao mar, afastando-se do porto numa barca capitaneada pela deusa do nascer do dia.

Para quem lê Platão e, para o que vem ao caso, a República ou como quer o seu melhor tradutor, o Elísio Gala, a Politeia, é-lhe fácil calcular que, ao dizer aquilo de ter escolhido Barca de Alva, Agostinho da Silva tinha presente o mito de Er, mediante o qual Platão ensina que as almas, preexistentes à vida na terra, escolhem, cada uma delas, o que gostariam de ter nesta vida, não só o lugar, mas o que daí se segue até morrer.

Assiste-me então o direito, nesta conversa convosco, de pegar na carta astral de Agostinho da Silva para nela procurar ver aquilo que de essencial ele escolheu para que a sua vida na terra seguisse de acordo com o seu mais fundo desejo que foi, como se verá, o de moldá-la pelo arquétipo da alva.

Da alva ou da navegação? Sem dúvida de ambas, como se significa no nome da terra em que nasceu, iluminado do nome da terra para onde foi viver. O que será confirmado pelo horóscopo.

Vou tentar interpretá-lo seguindo dois caminhos combinados um com o outro: o caminho dos astrólogos que tomarei consultando um bom livro da especialidade e o caminho da razão poética ou da mitologia, porquanto é à mitologia que os astrólogos vão buscar os nomes dos astros e dos signos.

Comece-se, pois, pelo tal livro de Astrologia. O leitor que conviveu com Agostinho da Silva pessoalmente ou através do que ele fez, disse e escreveu ficará de certo impressionado por ver que tudo condiz entre horóscopo e horoscopado. Referirei apenas o essencial:

 

1. Sol em Aquário:

Aberto às ideias de vanguarda, vê as relações humanas de uma forma despreconceituosa e informal.

 

2. Mercúrio em Aquário:

Intuição, rapidez e inteligência fulgurante.

Inventivo e aberto às ideias novas.

 

3. Lua em Balança:

Atracção pela música e pela poesia.

 

4. Marte em Carneiro:

Enérgico e resistente. Iniciativa, impetuosidade, audácia.

 

5. Vénus em Aquário:

Comportamento amoroso desprendido. Amor amizade. União livre e independente das convenções sociais.

 

6. Júpiter na Casa IX:

Grandes viagens; actividade filosófica de grande envergadura.

 

7. Neptuno – significação do planeta reforçada por se encontra na casa X, a casa da relação com o mundo político e social):

No plano social, produz o anarquista ou o seu oposto, o comunista.

A renúncia a tudo o que é fácil, lutando pela felicidade do futuro, os contrastes profundos, a oratória, a política, as experiências científicas e sociais audaciosas, o misticismo religioso ou ateu, tudo isso está fortemente impregnado da influência de Neptuno.

 

Até aqui, pôde o leitor ver, conforme já assinalámos, que o acordo do perfil astrológico de Agostinho da Silva com a sua personalidade e o modo de a viver é bem evidente.

Procurarei, no seguimento, abraçar mais profundas considerações.

Considerar é uma das muitas palavras da língua portuguesa que hoje se usam tão afastadamente da sua etimologia, ou originalidade, que é como se esta estivesse para sempre perdida. Considerar tem íntima relação com sidério e com sideral. Lembre-se de Fernando Pessoa “o Sul sidério” que “esplendia sobre as naus da iniciação.” O próprio Agostinho da Silva deu a um dos seus livros o nome de Considerações, sabendo, bem consciente do étimo, que o Céu e a Terra se combinam para urdir os problemas da humanidade, mas também para os resolver.

Admitido que assim seja, sem contudo pôr de parte o que nos disseram os astrólogos e mais alguma coisa que ainda terão para nos dizer, vamos olhar a carta do céu do nosso filósofo, vendo nela um espelho dos altos lugares onde viajam os deuses e donde contemplam o Uno e reúnem o disperso. Porquanto os astros eram, num certo sentido ou sob o seu cosmológico aspecto, identificados com os deuses por gregos e romanos.

Tracei o horóscopo, que estamos considerando, em Brasília, onde primeiro convivi com Agostinho e entreguei-lho com a respectiva explicação astrológica. A meu pedido tinha-me dado a hora, o dia e o ano do seu nascimento. E em vez do Porto, deu-me como o lugar onde isso terá acontecido a terra da sua identidade espiritual, Barca de Alva. Os meridianos são próximos um do outro; do Porto, onde se formou na Escola de Leonardo Coimbra, saiu para capitanear com outros seus pares o movimento atlântico do pensamento português.

Ele não precisava de ter desenhado num papel a sua carta do céu. Tinha-a em si, por tê-la escolhido, porque a recebeu como a forma da sua alma no momento em que saiu das trevas para a luz. E foi como que contemplando essa forma que fez a sua vida e o seu pensamento. Procurando ver alguma coisa no que para nós só pode ser penumbra pediremos à mitologia o que a astrologia mal conseguiu dar-nos.

O principal dado que recebemos da astrologia e que a mitologia irá aprofundar é o de Mercúrio ser a dominante do horóscopo, pois não só se encontra dignificado por estar em Aquário, e por formar com a Lua e com Neptuno aspectos altamente benéficos, mas sobretudo porque os dois signos considerados como os seus domicílios, o duplo espaço do seu reino, estarem, um que é Gémeos no alto do céu, o outro que é a Virgem no Ascendente, ali onde o Céu toca a Terra e todos os astros emergem do hemisfério inferior para o hemisfério superior.

Mas Mercúrio é um deus. É o deus vadio; vagabundeando, faz todas as ligações, a ligação do Céu com a Terra e com o Inferno, dos homens uns com os outros, unindo-os até no mal pelo que eles têm de santo, como o dinheiro, até no bem, o faz no que eles têm de execrável e que é o seu aspecto negativo ou sombrio, porquanto todos os deuses têm duas faces, aquela que é cada um deles e a que é o seu não-ser. O nada de uma rosa é o vazio que guarda a sua forma, não é igual ao nada de uma açucena.

Em Agostinho da Silva, ele é o detentor do caduceu, aquela vara de ouro, que lhe foi dada por Apolo em troca de uma flauta, da flauta que inventara juntamente com a lira. Recebeu assim do seu irmão, porque são ambos filhos de Júpiter, o poder taumatúrgico que a vara confere a quem é seu senhor. Atirou-as para o meio de duas serpentes que lutavam uma com a outra e logo os dois répteis, atraídos pela sua força magnética, deixaram a sua condição de rastejantes, enroscando-se em volta, harmonizando-se entre si, um de cabeça para baixo e o outro de cabeça para cima; todos os livros em que vem narrado este momento do mito identificam as duas serpentes com o bem e com o mal.

Há um texto de Agostinho em Considerações, ia a escrever contradições, admirável texto em que está bem evidente o perfeito acordo do seu pensamento com o seu ser íntimo, tal como podemos imaginá-lo através do horóscopo. Tem por título Quanto a Deus. Diz o seguinte:

“Limitamos Deus atribuindo todos os males ao Diabo. Uma infinita bondade e uma infinita justiça, despidas de todo o pensamento que a moral condena, fazem suspeitar que se empregou na construção uma escala demasiado humana; mais uma vez nos julgamos os senhores absolutos do mundo; mais uma vez nos quisemos centro do universo e nos vimos tratados com atenção e carinho especiais.

Não ousou o homem pôr a maldade entre os atributos de Deus e pecou primeiramente porque foi estreito; e de novo pecou porque foi tímido. Consolava-o a ideia de uma protecção sempre possível e a mente, que se não levantava ao total, só pôde conhecer a explicação infantil e lógica dos dois demiurgos. Fugimos da aspereza e erguemos um palácio de fadas, esplêndido e seguro, mas enervante e mole; tememos a vida e a vida se vingou.

Restituamos a Deus toda a sua grandeza; reconheçamos o seu poder na violência e no terror; tenhamos por divino o abaixamento destes tempos; emana Caim do espírito supremo – como Abel; não tiremos a Deus o que temos como ideal superior: a vontade de progresso; não lhe demos em troca da variedade que roubamos a monotonia a que aspira a alma baixa.

E em face de um Deus pleno e terrível sejamos heróicos; cresçam as forças com que lutamos, seja mais larga a compreensão, mais perfeito o amor; enfrentemos o mal cara a cara, e adoremos o Senhor no inimigo que nos derruba e pisa. Sejamos bravos e tolerantes. Não vacilemos na derrota, nem um instante voltemos as costas ao perigo; mas não abusemos da vitória. É este o dom que nos oferece um Deus liberto de cadeias terrestres.”

Todo o Agostinho está neste texto.

São palavras tremendas e de imensa bondade. Só por serem tremendas a bondade é imensa; só por ser imensa a bondade são tremendas.

Nelas se exprime o valor dos corajosos como o concede Marte aos seus em Carneiro. Assim, a ideia de um Deus, Senhor da vida e da morte, do belo e do, ao mesmo tempo, terrível, paira sobre nós. As nuvens no horizonte são de trovoada, mas por entre elas brilha azul o céu.

Pede-se ao leitor destas linhas que não deixa de ter presente o mapa do céu do Agostinho da Silva, daquele céu que lucilava de estrelas sobre Barca d’Alva há uma centena de anos. Verá então, guiado pelo anjo da mitologia, que não só figuram nele Mercúrio, o caduceu e a dupla serpente, mas também o glorioso Apolo, seu irmão, senhor da lira, que de Mercúrio obteve por troca; Afrodite vai de companhia com eles, todos olhando longe no azul diáfano, a suave e benigna Artemisa, senhora da noite e, lá alto bem alto e dominador, brilha Zeus-Júpiter, Rei e Sacerdote do dia e da noite.

Mas há ainda Neptuno, o das longas viagens pelo mar, o que leva ao Brasil e a todas as partes do mundo. Vem armado do tridente que é anarquismo, mas também misticismo e sociabilidade, que traz consigo a inquietação das águas salgadas da vida, a inevitável inquietação que toca a todos, mas que só alguns compreendem; a todos que não estão contentes com o mundo a desviar-se da rota pelo mar do infinito e é por ele que o alto espírito contemplativo de Agostinho da Silva se torna activo pela palavra política, a humilde, audaz e inteligente serva da cidade dos homens para que um dia nela mandem os pobres e os iluminados.

 

António Telmo

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Comentário

Eduardo Aroso 

 

 

 

O texto em apreço traduz o conhecimento abarcante de António Telmo em matéria astrológica, no que ela tem de simbolismo e mito, para além de evidenciar o que vulgarmente se chama conhecimento operativo astrológico. Quanto a este último, diga-se que não é habitual esperá-lo de um filósofo da estirpe de AT e dos círculos que  frequentou. Tomando o local de nascimento (um dos dados essenciais para o levantamento de uma carta do céu) começa por se referir à questão a que o próprio Agostinho da Silva alude, e bem conhecida de todos, quando este nos informa: «nasci no Porto, mas onde eu queria nascer era em Barca d’Alva, pois antes de nascer foi a ela que eu escolhi. Os deuses que movem os astros quiseram fazer a minha vontade, mas como se trata de relações de grandes movimentos não conseguiram ser exactos e daí o Porto em vez de Barca de Alva.”

Refira-se, desde já, que estas palavras de AS, tanto no domínio escatológico como astrológico, levar-nos-iam muito além do escopo deste artigo. Sublinhe-se apenas que há aqui uma forte convicção do que em poética e filosofia se entende por fado, fatum, ou maktub, ou seja, os complexos meandros do destino, tema que baila constantemente no miolo de um horóscopo. É claro que AS ironiza a verdade, dizendo que «os deuses que movem os astros quiseram fazer a minha vontade, mas como se trata de relações de grandes movimentos não conseguiram ser exactos e daí o Porto em vez de Barca de Alva”! Com isto quis significar que, em última análise, os Céus (ou a divina sophia) suplantam a Terra, o limitado conhecimento individual, ou como diriam os antigos helenos «o todo é maior do que a soma das partes». 

 AT, lucidamente, faz a transposição de sentido para conciliar os opostos ao dizer que «não fez mais do que lançar-se ao mar, afastando-se do porto numa barca capitaneada pela deusa do nascer do dia», ou seja, a Estrela d’Alva. Vénus, na mitologia representando o amor e em «Os Lusíadas» como que um guia superior, na tradição popular é conhecido por este nome, que, consoante a sua posição astronómica, também se chama Estrela da Tarde, quando brilha perto do horizonte ocidental. Curiosamente, este planeta no horóscopo de Agostinho rege a 2ª casa, a 6ª (serviço e saúde) e a 9ª (mestres e conhecimento superior, estrangeiro e longas viagens). Escreve AT que AS quando escolheu Barca d’Alva tinha presente o mito de Er, de que falou Platão, ensinando que as almas antes de virem a este mundo escolheriam, por assim dizer, as linhas fundamentais do seu destino ou projecto de vida. Torna-se mais interessante este ponto se lermos o que Max Heindel, no início do século XX, diz em «Conceito Rosacruz do Cosmos», cap. III, onde se explica que o ser humano, ou espírito puro, antes de vir a este mundo, na missão que têm os chamados «Anjos do Destino» (lipikas, em sânscrito), é-lhe dado escolher alguns «panoramas» ou projectos de vida. Uma vez escolhidos têm que ser cumpridos nas linhas essenciais - sublinhe-se essenciais - pois é só no restante que se pode falar em livre-arbítrio. Havendo fugas, podem resultar dores e sofrimentos, por desobediência às leis da Natureza e, sublinhe-se, ao que nós próprios escolhemos!

AT, na análise do horóscopo de AS, confessa que vai tentar «interpretá-lo seguindo dois caminhos combinados um com o outro: o caminho dos astrólogos que tomarei consultando um bom livro da especialidade e o caminho da razão poética ou da mitologia, porquanto é à mitologia que os astrólogos vão buscar os nomes dos astros e dos signos». Interessante é também o relato que faz de ter levantado o horóscopo em Brasília, pedindo a AS os dados necessários. Este deu-lhe o local de Barca d’Alva e não o Porto, cidade onde aconteceu o seu primeiro gemido ou berro neste mundo.  Porém, astrologicamente não seria correcto se o horóscopo fosse levantado para o local de Barca de Alva. Todavia, AT, em visão de águia altaneira, como que corrige, conciliando os opostos, quando escreve «os meridianos [linhas que marcam a longitude] são próximos um do outro; do Porto, onde se formou na Escola de Leonardo Coimbra, saiu para capitanear com outros seus pares o movimento atlântico do pensamento português». Ora nesta relação Porto (escola de filosofia) e Barca d’Alva (barca), ou seja, o que se aprende e de onde sai (Porto) realiza-se partindo de Barca d’Alva (em barca/caravela/navio), pelo que a ansiedade de AS está bem patente querendo sair metaforicamente do “porto de Barca d’Alva” para o mundo!

Assim, este aparente imbróglio, sem a explicação de AT poderia ficar assim. Quando este escreve que «os meridianos [linhas que marcam a longitude] são próximos um do outro» diz o que um astrólogo já sabe, isto é, a alteração do grau ascendente do horóscopo é quase desprezível, pois não chega a ser de um grau. Mas o dilema, pela lucidez de AT, ganha luz na simbólica e por isso superior interpretação da carta dos céus e, consequentemente, da vida de AS. E recorrendo agora a outra imagem: sem colocar a questão do horóscopo, mas pelo símbolo, o que poderíamos dizer também de António Telmo: o filósofo de Estremoz ou o filósofo de Sesimbra?

O autor de O Horóscopo de Portugal pega no fio de Ariadne e toma a palavra considerar, sidério e sideral  e o «sul sidério», e por extensão, em Considerações,  livro de AS. Ora, isto mais não é do que quando o «Céu e a Terra se combinam para urdir os problemas da humanidade, mas também para os resolver». E acrescenta que AS tinha a sua carta astrológica desenhada em si mesmo, isto é, a sua vida espelhava claramente o que AT via na carta do céu e ainda hoje nela se lê. O filósofo de Estremoz – ou também de Brasília, pois lá fez este estudo e o entregou a AS – continua dizendo que Mercúrio é dominante no horóscopo, pois vemos que não só é regente do signo ascendente, Virgem, como do signo do Meio-do-Céu, Gémeos, e «forma com a Lua e Neptuno aspectos altamente benéficos». Telmo, atentamente, refere-se à dupla natureza de Mercúrio, pois um mensageiro/intermediário (figura associada a este planeta) pode sê-lo de várias maneiras, tanto pode servir a Deus como a Mamon, pelo que AT diz que «todos os deuses têm duas faces». É claro que no horóscopo de Agostinho, tendo este reagido superiormente ao que a tradição chama «mensageiro dos deuses», AT acrescenta o seguinte «Mercúrio em Aquário: Intuição, rapidez e inteligência fulgurante. Inventivo e aberto às ideias novas». Esta tónica aquariana está reforçada pela posição do Sol, ou arquétipo solar, também no signo de Aquário «aberto às ideias de vanguarda, vê as relações humanas de uma forma despreconceituosa e informal». Muito mais se poderia dizer e de suma importância quanto ao signo de Aquário, e que está bem enfatizado no caso de AS, ou seja, um traço bem vincado de individualidade ou individuação (no conceito de Carl Jung), gerando um sentido de independência que, ao mesmo tempo, nos espíritos superiores, se faz altruísta, fraternal e cooperante, mantendo-se todavia consciente de si.

O leitor pode ler o mais que AT descreve, mas vale a pena acrescentar «Marte em Carneiro: enérgico e resistente. Iniciativa, impetuosidade, audácia». Vemos a verdade disto quando AT nos diz que Agostinho, aquando da construção da Universidade de Brasília, carregava tábuas às costas, andava muitos quilómetros a pé e o que comia de manhã dava quase para todo o dia! É mister falar ainda de Neptuno «a renúncia a tudo o que é fácil, lutando pela felicidade do futuro, os contrastes profundos, a oratória, a política, as experiências científicas e sociais audaciosas, o misticismo religioso ou ateu, tudo isso está fortemente impregnado da influência de Neptuno»  

Telmo remata, dizendo que há um «admirável texto em que está bem evidente o perfeito acordo do seu pensamento com o seu ser íntimo, tal como podemos imaginá-lo através do horóscopo. Tem por título «Quanto a Deus». Na verdade, este texto mais que teológico, fulgurante e lúcido - dir-se-ia no Sopro do Espírito Santo - é a perfeita combinação do melhor da lógica, da razão e da expressão enquanto atributos de Mercúrio com a sua oitava superior, Neptuno, «o das longas viagens pelo mar, o que leva ao Brasil e a todas as partes do mundo», planeta do misticismo religioso, da inspiração,  universalidade, da compaixão e do serviço abnegado ao próximo. Repare-se que o Sol, Vénus e Mercúrio (este a entrar) estão na 6ª casa do horóscopo, a do serviço sob formas que necessariamente devem ser visíveis para o mundo.

Há, assim, neste texto, ainda que num espírito de síntese, um raro e profundo estudo de um filósofo para outro filósofo, com a vantagem de um deles ter recorrido à astrologia. Mas a importância deste «arcano sagrado» de sabedoria milenar ainda está por fazer quanto ao que se poderia dizer de influência subliminar na ampla obra de AT, pois do que nos deixou da Cabala temos recebido o suficiente para sabermos o quanto e como ela marca a sua obra. Prossigamos, pois, a «reunir o que está disperso».

INÉDITOS. 04

11-02-2014 23:26

Foi a única das suas pranchas que António Telmo não incluiu n'A Aventura Maçónica e constitui um exemplo flagrante do propósito de rectificação da Ordem que, na senda de Fernando Pessoa, e já desde a História Secreta de Portugal, foi também o seu. Na versão do texto que agora apresentamos ao leitor, suprimimos um curto período, no estrito respeito pela reserva da indentidade de um maçon português que Telmo ali refere. Não assim no caso de José Manuel Anes, igualmente mencionado no escrito, por ser do domínio público, e aliás assumida pelo próprio, a sua condição maçónica, até porque foi Grão-Mestre da Grande Loja Legal de Portugal.

Uma prancha maçónica

 

Venerável Mestre e meus Irmãos

Tenho 71 anos. Sou, do ponto de vista profano, o mais velho da nossa respeitável Loja. Tenho 3 anos. Sou, do ponto de vista iniciático, o mais novo desta respeitável Loja.

Isto de ser, por um lado, o mais velho e, por outro lado, o mais novo, isto de ser, ao mesmo tempo, o mais velho e o mais novo tem, para mim, uma especial significação, e só para mim, pelo que peço desculpa de o lembrar. Podeis, no entanto, imaginar o que senti quando, no acto de investidura do nosso Venerável Mestre, fui eu quem entregou as vestes simbólicas, como se a corrente espiritual se concentrasse toda no último, como se o último dos últimos detivesse todo o poder da Loja naquele momento de aparente ocultamento do Oriente. É bem certo que o rito terá outras e, sem dúvida, mais profundas significações do que esta. Não é disso que vou falar, até porque o nosso Irmão Orador, na reunião em que ele se celebrou, já foi muito além do que eu seria capaz de dizer.  

No dia 17 de Abril, entrei nesta casa com 70 anos e saí dela com três. Na noite da minha iniciação, alguém me perguntou pela razão por que só tão tarde bati à porta do Templo. Não houve uma razão, houve várias razões. Direi apenas uma.

É que eu, embora visse na Maçonaria uma instituição admirável, formava muito má opinião dos maçãos portugueses. Conheci de perto alguns e dos Altos Graus com quem conversei algumas vezes sobre a Maçonaria. Sentiam-se orgulhosos de pertencerem a tão elevada instituição, mas lamentavam que se mantivesse nela a palhaçada dos símbolos e dos ritos. Estavam muito mais interessados na acção social da Ordem do que na realização espiritual de cada um dos seus membros. Pareciam mesmo ignorar o que fosse essa realização. Estavam assim incapazes de compreender que só através dela seria possível constituir o escol da Pátria e dar ao humanitarismo e ao universalismo que defendiam um núcleo irradiante concreto.

O ritual uma palhaçada! Estranho enigma este! É espantoso como foi possível conservar, ao longo dos séculos, inalteráveis, no que lhes é essencial, ritos e símbolos maçónicos, quando enormes forças, cá dentro como lá fora, tudo têm feito para os adulterar e corromper! Lá fora, o exemplo da Igreja Católica, degenerando ritualmente até à americanização da Missa, deveria constituir um aviso para aqueles que, embora respeitando o rito, valorizam muito mais a acção social da Maçonaria. Tão certo é que o predomínio conferido aos objectivos sociais sempre esvazia de conteúdo instituições que nasceram para nos ligarem a Deus e não para dominar os outros homens. Além disso, que acção social pode ser legítima se não arranca de um núcleo de luz irradiante? E, sem a relação com o Oriente que o rito conserva, como é possível agir a partir desse núcleo?

Aos setenta anos, tive a sorte de conhecer um verdadeiro Mação: o José Manuel Anes, que, ainda por cima, segundo soube na altura, desempenhava dentro do Regime Escossês Rectificado um papel de grande relevo. Eu tinha notícia do RER pela leitura de Jean Tourniac. O ilustre francês descobriu-lhe raízes na Ordem de Cristo e na Ordem de Avis. Isto surpreendia e atraía o autor da História Secreta de Portugal. (…). Pedi para ser iniciado e assim vim a pertencer a este admirável povo maçónico.

Emprego propositadamente a palavra povo. Todos sabemos como a verdadeira sabedoria se conserva e transmite, ao longo dos séculos, e dos milénios, através do povo. Os intelectuais que o têm governado e pretendido ensinar têm vindo a cindi-lo, pouco a pouco, dessa sabedoria. Afrancesaram-no ontem, americanizam-no hoje. O saber esotérico que os homens, as mulheres e as crianças receberam dos iniciados por um processo misterioso, que se conserva nas danças, nos cantos, nos adágios, nas festas, nos jogos e, sobretudo, na língua que ele criou, ele o povo, que dizem analfabeto, degenerou em folklore. Os turistas apreciam-no em espectáculos que deixaram de estar relacionados com a vida. Até a língua passará a ser um espectáculo, quando toda a gente em Portugal falar inglês ou espanhol.

Na Loja Quinto Império, pelo que tenho observado, o povo maçónico não deixará que o mesmo aconteça. Podemos não compreender o que de mais fundo significam ritos e símbolos, mas não há um gesto, uma palavra, um movimento que não sejam cumpridos como se obedecêssemos a uma ordem, não há gesto, palavra, movimento em que o espírito da Ordem Maçónica não esteja presente mandando tudo. Assim procede o nobre povo maçónico. A sua ignorância é a sua sabedoria, porque só quem tem consciência de ignorar pode vir a saber.

Gosto de estar entre o povo maçónico e de ser um deles. Sinto que o sou de pleno direito, não porque perfilhe esta ou aquela ideologia, mas porque fui iniciado e passei pelo rito que me abriu a porta do Templo. Não é com orgulho que digo isto, mas sim para expressar que o que define um Mação enquanto Mação é a passagem pelo rito. Se há um ensinamento ou uma doutrina que todos nós devemos seguir e até aplicar no nosso campo de influência social, esse ensinamento ou essa doutrina derivam do próprio rito, onde as palavras, ritualmente proferidas, os tornam suficientemente claros.

É tal a força do rito que mesmo aqueles que o têm por uma palhaçada e que, deixando-se iniciar, passaram por ele talvez indiferentes, orgulhosos do que aprenderam ao longo da vida em quaisquer livros ou em qualquer Universidade, também esses foram impressionados. Ao empregar esta palavra tomo-a no sentido que ela tem, por exemplo, em fotografia ou em tipografia; não a tomo no sentido de emocionados. Ensinou Aristóteles, na sua Arte Poética, que, nos mistérios de Elêusis, o neófito nada aprendia, mas recebia uma impressão. O ritmo interior que comanda o rito (não me refiro ao cerimonial, que pode ou não acompanhá-lo) envolve o neófito, durante a iniciação, no profundo e inefável mistério que por ele se exprime, envolve-o como uma onda, donde sai atordoado, mas limpo, prende-o numa cadeia magnética de que não se libertará jamais, a não ser por cima, se assim o quiser o Grande Arquitecto do Universo. É por isso que se diz que um Mação nunca deixará de o ser, mesmo que abandone a Ordem.

Podeis assim ver, meus Irmãos, como eu estava errado e estão todos aqueles que julgam a Maçonaria pelos Maçãos. É que não há nenhum, por mais superficial e irregular que seja a sua interpretação da nossa augusta Ordem, que não esteja marcado pelo seu sinal, que não seja um “varão assinalado”.

Este sinal é o que foi traçado como uma cruz no seu corpo subtil pelo raio de luz que recebeu durante a iniciação. Isto que parece uma imagem poética tocada de irrealidade tornar-se-á mais claro e concreto com a seguinte comparação. Imaginemos o nosso espírito como um espelho, não como um aparelho produtor de formações mentais, que é a habitual e errada representação que se faz do espírito, assim o confundindo com o aspecto cerebral da alma ou do corpo se preferirdes. Para que o espírito, assim concebido como um espelho, receba a verdade são necessárias, pelo menos, três coisas. É necessário que esteja limpo para que não receba turva e distorcida a imagem da verdade; é necessário que entre ele e a verdade não se interponha nenhum obstáculo impeditivo da reflexão; é necessário ainda que seja orientado na direcção da verdade. A iniciação no grau de Aprendiz realiza isto mesmo. A verdade é a luz que brilha no Oriente. Deixamos as joias cá fora, isto é, as nossas convicções, a fim de que elas não se interponham entre o espelho e a luz da verdade; passamos pelas três regiões elementares, onde nos libertamos das sujidades mentais pelo fogo, das sentimentais pela água, das instintivas pela terra. Por fim, o nosso espírito, tornado uma matéria límpida perfeitamente disponível, é voltado para o Oriente. Pelo compromisso feito à maneira dos Maçãos, o espírito está pronto. Quando o espírito está pronto, a luz aparece.

Nos dias seguintes à minha iniciação aconteceu aparecer-me esta interrogação: “Muito bem. Recebi do Oriente uma centelha de luz que agora reside algures no meu ser. É como uma semente, como o grão de mostarda de que fala Jesus Cristo no Evangelho. O que é que devo fazer para que essa semente de luz germine e se transforem numa árvore, numa grande árvore em cujos ramos voam as aves do Paraíso?”

Não respondo a esta pergunta porque não sei responder. Ponho-a à consideração dos mestres. “A arte é longa e a vida breve.” Ars longa, vita brevis. Este lema, que os iniciadores de Goethe extraíram de uma ode de Horácio para a carta de aprendizagem do grande poeta alemão, se eu pudesse adoptá-lo fazendo-o meu, sentir-me-ia simultaneamente infeliz e feliz. Infeliz porque tenho 71 anos e a morte à minha frente; feliz porque tenho três anos e à minha frente a vida. Aos Mestres desta respeitável Loja, que me iniciaram, a devo. Muito obrigado. 

 

António Telmo

VOZ PASSIVA. 13

10-02-2014 08:56

O bilhar

António Cagica Rapaz 

 

O bilhar era o cartão de visita do Central, sendo o patrão Arménio um fino executante, embora lhe faltasse fôlego para disputas sérias. Exibia-se de vez em quando, com o seu taco e as suas bolas, jogava sempre em casa, ao seu ritmo tranquilo, por prazer, ciência compassada, tacada suave.

Achava graça aos meus onze ou doze anos e à paixão pelo jogo da carambola, e chegou a dar-me algumas lições que saboreei como dádiva rara, embora o meu verdadeiro mestre tenha sido o Tó, o filho do doutor do Registo…

O bilhar seduziu-me cedo e comecei a praticar no Chagas, por bondade do João do Hospital que simpatizava comigo e me deixava jogar clandestinamente de graça, andava no primeiro ano do colégio do Dr. Costa Marques e só tinha aulas de tarde.

Por isso, às nove e meia lá estava caído no Chagas onde ninguém jogava de manhã. Abria a janela que dava para a cocheira do Fartura, tirava o pano que cobria o bilhar e começava o treino. Depois de me passar as bolas através do postigo, o João ia deitar um olho à Pensão Chic onde trabalhava uma moçoila com quem viria a casar. Entretanto já tinha acendido a telefonia para ouvirmos, a partir das dez, “O Talismã, o seu programa da manhã”, produção associada de Armando Marques Ferreira e Gilberto Cotta. Ao microfone, o próprio Armando e a Eugénia Maria. Mas também por lá passaram o António Miguel e o nosso Vítor Marques, do Forno. Era o tempo dos românticos sul-americanos, Ivon Curi, Lucho Gatica e Lorenzo Gonzalez. De tanto treinar, acabei por ganhar algum jeito e chamei a atenção do Dr. António Telmo, o Tó, que teve a gentileza de me ensinar a jogar com preceito, com os efeitos adequados e, sobretudo, a juntar. Fiz grandes progressos e pratiquei com gosto e proveito, ganhando uma experiência que viria a servir-me, anos depois, em Coimbra, para ganhar uns oportunos patacos, no snooker, na cave do Café Montanha…

Para além do patrão Arménio, também os empregados praticavam. O António Luís jogava bem, embora fosse pouco concentrado, o Cândido tinha bom toque de bola, mas o Hernâni, o saudoso inspector Cachopa, era melhor no ping-pong do que às três tabelas.

Da freguesia habitual, ficaram-me na memória as impagáveis partidas entre o Zé Romão, pequeno e risonho, e o António Casa Pia, cheio de retórica, passes de tauromaquia, verónicas e chicuelinas, acompanhando o movimento caprichoso das bolas, trejeitos e requebros, uma coreografia notável à volta da mesa. O Orlando, dos táxis, chorava-se muito, só jogava pela certa, para ganhar. Do mesmo estilo era o Pai do Céu que ganhava quase sempre ao Leste, apesar de o bom Daniel ter melhor técnica. Porém, abusava da fantasia, da tacada artística, e acabava por encostar a barriga ao balcão.

Mas os mestres incontestados eram o Tó e o Chico Cagica. Dotado para todos os desportos, talento inato, o Chico era um bilharista admirável. Nas raras vezes em que jogava, o Central em peso vinha assistir, apreciar a facilidade dos predestinados, a fluidez, o engenho, jogo corrido, com o taco a transformar-se em varinha mágica, sortilégio raro…

O Tó era um filósofo, um poeta, um artista que cultivava a arte pela arte, queixo esticado, gesto ousado, em busca incessante do lance de génio.

Os bons jogadores de bilhar adaptaram-se facilmente ao snooker que consideravam como arte menor e a que só a novidade deu algum interesse. Os menos hábeis jogavam na retranca, sem arriscar, com o único objectivo de ganhar, ao passo que outros davam largas à imaginação e à ousadia em partidas memoráveis como as que opunham o Tó e o Nicola filho. Eu ficava todo contente quando o Tó ganhava.

O Cândido folgava à quarta-feira e ia à pesca. O António Luís também. Eu permanecia fiel ao Central, até a minha mãe me chamar para jantar…

 

1982

«OS MEUS PREFÁCIOS». 02

09-02-2014 13:09

[Café “A Brasileira do Rossio”]

 
 

INTRODUÇÃO A DIONISO EM CRETA E OUTROS ENSAIOS, DE EUDORO DE SOUSA[1]

 

Julgo lembrar-me de ter ouvido ao Eudoro de Sousa dizer que os livros verdadeiramente dignos de atenção se devem ler do fim para o princípio, que é como quem diz, da direita para a esquerda ou da luz para a sombra… Amava destroçar os lugares-comuns, desmontar o que é evidente. «O meu nome, Eudoro, não diz, como parece sugerir a etimologia, que eu sou uma bela dádiva dos deuses ao mundo; o que ele quer dizer, e pela mesma etimologia, é que eu sou uma boa prenda.» 

Ler do fim para o princípio é como Aristóteles procedia perante o grande livro da natureza. Ensinou, como se sabe, que a melhor das causas é a final. Terá alguém reparado que esta ideia se exprime, antes de tudo o mais, no seu nome: Aristóteles? Claro que ainda há, de acordo com a etimologia do nome, uma ideia mais alta: a do perfeito iniciado.

Obedecendo à sugestão, e tomando à letra o que ela nos diz, se começarmos a ler o livro do próprio Eudoro pelas últimas linhas, ali depararemos, com efeito, na conclusão o princípio regulador do imenso e lúcido silogismo que é todo o Dioniso em Creta. Essas linhas são, como pode ver-se, as seguintes: «Os comentadores de Platão, que a todo o passo citavam livros órficos, e para os quais Orfeu era o Téologo-Poeta-Músico-Hierofante, não podiam chegar à síntese, porque a síntese é irrealizável no sentido da tese ou da antítese. Mas Orfeu era um símbolo do anseio por realizá-la. Estaria ela já realizada, ou a caminho de realização, no Cristianismo? Uma pedra conservada no museu de Berlim ostenta, sob um Cristo crucificado, esta inscrição: ORPHEOS BAKKIKOS.»

Nos termos do autor do que citamos, a tese era a imanência de uma religião cosmobiológica, a antítese foi a transcendência do «deísmo filosófico ou metafísico». E escreve: «Os neoplatónicos, comentando Platão, conheciam a primeira pelos cultos de mistério e a segunda pela metafísica platónico-aristotélica. Plotino não soubera, nem quisera tentar a síntese.»

Quem, pois, realizou a síntese foi o Cristianismo, um Cristianismo de «um Cristo quase pagão», como escreveu Leonardo Coimbra, um deus que dança: Orfeu Dionisíaco. Como entender, porém, a legenda sob a imagem do Crucificado?

Eudoro de Sousa não cessa de interrogar e de se interrogar sobre o que terá sido o segredo nunca revelado dos mistérios gregos. «Culto verdadeiro», escreve ele, «e, por conseguinte, religião autêntica, era ainda e sempre a dos mistérios.» Tudo leva a suspeitar que, no espírito do grande helenista, a Missa católica seja a forma revelada dos mistérios de Elêusis, onde a espiga pode muito bem ter representado o que na Missa é o pão da Eucaristia e, se, em vez de Elêusis, pusermos os mistérios de Dioniso, logo a analogia se completa pelo vinho. Todavia, para que seja como se não diz mas se intui em Eudoro de Sousa, necessário se torna que Cristo não seja só o Crucificado, mas o deus, como Baco ou Dioniso, que ressuscitou da morte.

Eudoro não o diz. Perante o enigma do que seriam in nuce os mistérios gregos, enigma insolúvel pelo método dito científico de indução a partir do pouco que saiu para fora, o filólogo português segue na peugada dos helenistas alemães para lhes passar adiante com a soberana intuição de que ali, onde quer que no templo se celebrem tais mistérios, algo se passará que pela música e pela dança realize as núpcias do Céu e da Terra, do transcendente apolíneo e do imanente dionisíaco. Todavia, para que tal se dê, impõe-se que pelo neófito o deus antes desça aos infernos. De novo o cristianismo projecta a sua luz nas sombras do passado.

Introdução é, como a palavra o pode sugerir, a abertura de uma porta que dê para um caminho pelo labirinto da discursividade. É, todavia, verdade, que o que vimos propondo como introdução a Dioniso em Creta está longe de estar explícito. Eudoro de Sousa como que não se arrisca a dizer claramente o que pensa. Limita-se a apontar, a indicar, como quando diz, por exemplo: «Historiável, na Grécia, é só uma religião que, saturada de imanência e apelando para a transcendência, mas não podendo ‘esperar o inesperado’, só o achará quando chegar a hora da Revelação. Para as almas mais abertas aos quatro ventos do espírito, não teria sido a impossibilidade de realizar a pressentida coincidência dos opostos, uma eficientíssima praeparatio evangelica?» Ao escrever isto não terá Eudoro de Sousa em mente São Paulo?

A religião católica tem por base não um mito, mas um evento histórico. É o que geralmente se apresenta como garantia de veracidade.

Claro que poder-se-ia responder, recorrendo a Aristóteles, que a poesia é mais verdadeira do que a história. Eudoro de Sousa, neste ponto, diria certamente que, sendo na Grécia de Homero o mito a própria poesia, só quando o mito é a matéria que busca no rito a própria forma é que a verdade está garantida. Isto aconteceu, antes de Homero, no mundo minoico e persistirá nos mistérios para cá de Homero, mas só com o Cristianismo se realizará perfeitamente. Porquanto o Cristianismo será a única religião em que o mito é história e a história é mito ou, noutros termos, é a religião em que o mito do deus báquico que ressuscita da morte se realiza historicamente e é depois presente, e não apenas memorado, na Missa cristã.

A revista brasileira Humanidades dedica todo o quinquagésimo número, como se do seu jubileu se tratasse, a Eudoro de Sousa, ostentando na capa o seguinte elucidativo subtítulo: Presença da GRÉCIA, Prémio Eudoro de Sousa. Apenas um português colabora na revista. Trata-se do filósofo hermeneuta Joaquim Domingues, que foi, aliás, quem estabeleceu a bibliografia completa do grande helenista. Mostrando a íntima relação entre O Culto e a Cultura no pensamento de Eudoro de Sousa, lança simultaneamente a sugestão, documentando e raciocinando, que procurei desenvolver nas linhas anteriores. Sem a sua sugestão, tudo ficaria encerrado no círculo fechado, conquanto vastíssimo, da pesquisa pela erudição.

A Joaquim Domingues devo o convite para escrever esta introdução. Sugeriu o meu nome ao grande amigo da filosofia portuguesa e, também ele, filósofo português António Brás Teixeira, fazendo-o, julgo eu, por saber que a minha vida intelectual esteve, no início e no fim, intimamente associada ao magistério pessoal de Eudoro de Sousa. Fê-lo talvez pensando que a introdução a um livro, além de uma ou de outra chave de abertura no sentido do pensamento, deve dar uma ideia bem pessoal do autor, sem o que a relação do leitor com o livro corre o risco de não ser de «razão animada».

Fui discípulo de Eudoro de Sousa nos meus anos moços, por volta dos vinte. Veio isto em consequência de eu ter sido recebido no círculo da filosofia portuguesa, onde pontificavam do natural para o sobrenatural Álvaro Ribeiro e José Marinho. Na fantasia do adolescente, Álvaro correspondia a Aristóteles e Marinho a Platão. Eudoro, até pela fisionomia, lembrava a figura espiritual de Sócrates. Um mês depois de lhe ter sido confiado, deu-se um acontecimento que foi o meu primeiro encontro com o espanto e que ainda hoje se repercute em mim como um aviso e um chamamento.

Todos quantos, ainda imaturos, leram René Guénon sabem como os envolveu e subjugou uma estranha convicção de que a sabedoria do metafísico francês, expressa num tom infalível, passou para eles, transmitindo-lhes um sentimento de superioridade sobre os outros que chega a roçar a idiotia. Foi o que se deu comigo. Eu viera de completar a leitura em segredo de O Reino da Quantidade e os Sinais do Tempo e dirigi-me para a Brasileira do Rossio, café hoje transformado em banco, onde encontrei o Eudoro de Sousa. Eu estava cheio de mim e, por conseguinte, oco.

Pedi delicadamente licença para me sentar à sua mesa. Não fiz nem disse nada, julgava eu, que pudesse revelar o meu baixo estado de espírito. De repente, ó espanto!, interpelou-me com violência: «– Olha lá! Tu estás parvo? És um rapaz simpático e todos nós te temos por muito inteligente. Queres dar cabo de ti?»

A minha alma deu uma volta sobre si mesma e varri o demónio da auto-suficiência. Varri-o até hoje. Ele viu isso e, olhando-me em silêncio, pôs-se depois a conversar como se nada se tivesse passado.

Contarei ainda outro episódio bem significativo da sua superior personalidade que se deu em Brasília, para onde, vinte anos mais tarde, ele me chamou como colaborador no Centro de Estudos Clássicos, que dirigia.

Eudoro de Sousa era um professor extraordinário. Durante o ano dava uma meia dúzia de aulas. Acabavam todas com os ouvintes de pé batendo palmas. O seu estilo de ensinar era espantoso. Não conheci nada de igual em toda a minha vida de aluno e de professor.

O episódio a que me referi passou-se numa aula sobre o Egipto. O anfiteatro onde decorreu a aula estava repleto de alunos e de professores. Eudoro de Sousa caminhava de extremo a extremo da parte inferior do anfiteatro com movimentos que lembravam os de uma fera. De repente parou e começou a falar. Falava com os próprios silêncios que fazia entre as frases. Em dado momento, referindo-se às pirâmides, disse que elas eram o resultado da criação religiosa de um povo. Lá em cima, na última fila, junto ao último degrau da escada de acesso, um indivíduo, em tom insolente, interrompeu-o vociferando que as pirâmides tinham sido feitas pelos escravos subjugados pelos senhores do dinheiro e do poder. A resposta de Eudoro de Sousa foi memorável. Começou a subir os degraus que levavam até ao homem. Em cada degrau parava e dizia o nome de um egiptólogo. Subiu assim toda a escada. O silêncio era a expressão da enorme expectativa de toda a assistência. Quando chegou em frente do homem, depois de ter mencionado alemães, ingleses, russos, franceses, olhou-o cara a cara com os seus grandes olhos socráticos, dizendo sílaba a sílaba: «– Todos estes sábios ensinam que as pirâmides foram uma obra de devoção de todo um povo.»

Desceu lentamente a escada, bebeu um golo de água e continuou tranquilamente a falar. A assistência interrompeu-o para o aplaudir de pé. Eudoro de Sousa foi para o Brasil porque em Portugal não o deixaram ensinar.

Hoje, ali, nos meios culturais, bem conhecido e muito admirado, é aqui, nos meios universitários, vagamente referido, quando não é totalmente ignorado. A edição de Dioniso em Creta pela Imprensa Nacional, seguindo-se à de Origem da Poesia e da Mitologia e Outros Ensaios e de Horizonte e Complementaridade e de Sempre o mesmo acerca do mesmo, também pela Imprensa Nacional, pode ser que torne mais popular, entre nós, o estudo da Grécia, através de um homem nado e criado «na terra mais antifilosófica do planeta».      

 

António Telmo



[1] Eudoro de Sousa, Dioniso em Creta e outros escritos, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2004, pp. 7 a 11.

 

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