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DOS LIVROS. 07
22-04-2014 10:58De um caderno de apontamentos. 02
Enquanto preparava a sua tese de doutoramento sobre Teixeira de Pascoaes, António Cândido Franco sonhou 97 vezes com o poeta. 95 sonhos foram provocados; o primeiro e o último espontâneos. Antes de adormecer deliberava sonhar com o poeta e o sonho acontecia. Mas o que é mais sensacional ainda é que tinha, enquanto dormia, plena consciência de que estava sonhando. O relato dos sonhos, feito num estilo estupendo, constitui a segunda metade de A Arte de Sonhar; a primeira metade vai de Freud até Novalis, por André Breton e Jean Paul, à procura da melhor teoria sobre o sonho que melhor funde a prática da segunda parte. Sente-se, porém, que por este detrás de tudo, poderá estar Carlos Castaneda. O autor não o diz, como não diz que, depois de certos sonhos com Pascoaes, acordava em pânico. Disse-o mais tarde, quando da apresentação do livro numa livraria em Évora, O Som das Letras.
As palavras de Carlos Castaneda que digo poderem estar por detrás da aventura onírica de António Cândido Franco são as seguintes:
«Vou ensinar-te aqui mesmo o primeiro passo para o poder. – disse D. Juan, como se me estivesse ditando uma carta – Vou ensinar-te como tornar lógicos os sonhos.
Perguntou-me, olhando-me nos olhos, se entendia o que ele queria dizer. Não o tinha compreendido. Soava-me a coisa contraditória. Explicou que tornar os sonhos lógicos significava ter um domínio conciso e pragmático da situação geral de um sonho, comparável ao domínio que uma pessoa tem dos seus próprios actos, decidindo isto ou aquilo.
– Tens de começar por uma coisa muito simples. Esta noite, nos teus sonhos, deves olhar para as tuas mãos.»
António Telmo
(Publicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006/2009)
VERDES ANOS. 04
10-04-2014 00:54Dando continuidade à publicação dos escritos dispersos da primeira fase da produção télmica, o projecto António Telmo. Vida e Obra recupera hoje um artigo importantíssimo que António Telmo deu à estampa no Inverno de 1965, na revista Espiral, de que foi director o seu amigo e condiscípulo António Quadros. Tomando como ponto de partida um estudo, então recente, de Natália Correia, este artigo constitui um precioso documento da visão que o filósofo projecta sobre o surrealismo, e motiva renovado diálogo com António Cândido Franco, membro do nosso projecto que tem estudado profundamente o movimento surrealista, e que agora nos comenta o texto télmico.
Arte Poética e Surrealismo[1]
«Poeticamente as palavras funcionam como elementos que se vão combinando para que seja atingida a sublimação do idioma universal.
Um galináceo com uma estrela no bico é um absurdo. Mas um anjo com uma estrela na fronte é uma fácil relação de coerência.
O que torna insólito o exemplo do galináceo é analisarmos separadamente. Quanto ao anjo, nada mais natural do que figurá-lo com uma estrela na fronte em virtude dos dois objectos serem expressões de mundos afins. A conjugação de elementos do mesmo grau torna-se supérflua no sentido activo da poesia, visto que mais nada implica além do reconhecimento dos sinais duma harmonia independente do poeta».
Estas linhas foram tiradas do opúsculo «Poesia de Arte e Realismo Poético». Autora: Natália Correia. Esta extraordinária poetisa não temeu submeter-se à «prova real». A prosa é a pedra de toque do poeta. Há artistas – e dizemos artistas a pensar também nos pintores, escultores e músicos –, que manifestam nos escritos em prosa uma incompreensível incapacidade para dizer seja o que for de menos escolar e universitário, convencidos talvez de que com o tipo de linguagem muda o «objecto» da primordial interrogação. No entanto, grandes poetas, como Dante e Pessoa, grandes pintores, como Dali e Klee, grandes músicos, como Wagner, deixaram notáveis escritos em prosa, nos quais a inteligência veio dar mais fundo e positivo sentido a tudo quanto haviam eles intuído no domínio do sonho.
Nas linhas citadas, Natália Correia marca a oposição entre dois tipos de poesia bem definidos, mas nós perguntamo-nos se, ao estabelecer a oposição apenas no domínio formal (relação absurda de imagens-relação coerente de imagens), não criará um intervalo ou um vazio no qual se pode dar a inversão do argumento. Assim, alguém poderá vir dizer que à produção do absurdo não se liga nenhum sentido activo, já que as palavras caem, como cartas de jogar, umas ao lado das outras, segundo relações meramente ocasionais, e nem sequer o dizer-se que não há acaso enfraquece a argumentação oposta, na medida em que transfere para o domínio do inconsciente e, portanto, para lá do indivíduo, a actividade criadora que a este se pretende ligar.
E com efeito, os numerosos poetas surrealistas, que utilizam o absurdo, não podem furtar-se à crítica vulgar, mas justa, que os acusa de assim escreverem por não terem nada que dizer ou transmitir. As poesias modernistas que pululam nas páginas dos diários, das revistas e dos livros são, na verdade, manifestações indubitáveis de uma total inércia da imaginação. Deve dizer-se, porém, que Natália Correia não ignora isto, ao referir-se àqueles «poetas líricos que premeditam a defesa do princípio conservador (de que são sentinelas) utilizando o idioma surrealista sem assumir as responsabilidades implícitas no acto de fé surrealista».
A tese que gostaríamos de defender contra a própria Natália Correia seria a de que ela não é surrealista, embora utilize processos da escola de André Breton. Tal como este o definiu, o surrealismo consiste, fundamentalmente, em servir-se da poesia como método psicanalítico, e, de facto, é nesta particular e original relação com o freudismo que a «escola» conquista uma autonomia que permite distingui-la de outras correntes literárias também radicadas nas ciências ocultas. Dir-se-á que a poesia foi sempre um método psicanalítico, de descoberta do inconsciente, mas não se pode dizer que o fosse no sentido especial que o método tem na psicologia de Freud. O poeta deve, pois, como o próprio Breton explica num dos Manifestos, criar em si um estado de completa passividade, depois do que deixará cair sobre o papel, uma após outra, as palavras, sem qualquer preocupação de estabelecer entre elas coerência lógica. O sentido que por acaso venha a formar-se equivalerá a uma autêntica mensagem do inconsciente, cuja manifestação apenas esperava, para dar-se, que se quebrassem as resistências constituídas pelas correntes mentais dominantes na consciência.
Pela repetição deste exercício, o poeta tornar-se-á um médium, um visionário, capaz de comunicar e receber pensamentos a distância, de ver nos acontecimentos exteriores significados e intenções secretas que passam normalmente desapercebidas. Eis no que consiste, nas suas linhas gerais, o surrealismo. Como os dons mediúnicos vivem em estado latente em todos os homens, e como o seu desenvolvimento depende de determinados exercícios, o surrealismo aparece como o comunismo da arte, qualquer coisa que está ao alcance de toda a gente, de quantos queiram sujeitar-se aos métodos preconizados por André Breton.
A «arte poética», quando muito, pode aceitar o surrealismo como um dos seus momentos, na linha daquilo que nela aparece designado como «descida aos infernos». A própria desintegração de imagens é elaborada em função de uma actividade interior. É evidente que tal descida implica a produção de estados anormais em que se anula a vigilância habitualmente exercida pela consciência. O ser é transportado para zonas desconhecidas e é rompido o equilíbrio mantido pelo centro corporal de referência. Mas é necessário que ele se restabeleça ininterruptamente em função dos novos elementos que vão surgindo, isto é, que um ponto se afirme em que o espírito concentre uma energia incorruptível. Na lascívia, na viscosidade, no pegajoso que caracterizam os círculos inferiores é preciso que o espírito actue como um momento de absoluta agilidade. E é, por isso, que a «descida» deve ser precedida de determinada preparação. No anel de Aladino ou no ramo de ouro de Eneias vemos nós símbolos dessa energia incorruptível.
Em termos menos vagos, diríamos que nela reside a faculdade de nomear todos os seres, todas as aparências, todas as aparições. Já na vida comum verificamos que só nos assusta aquilo que, apanhando-nos de surpresa, por momentos se agita no campo da consciência sem um nome, pelo qual o conheçamos e neutralizemos. É o caso, por exemplo, das alucinações. Caminho alta noite por uma estrada sem ninguém e, de repente a sombra de uma árvore toma uma forma estranha e desconhecida. Detenho-me hirto de pavor. O que é? Qualquer coisa que está lá fora mas dentro de mim, qualquer coisa que está cá dentro, mas que aparece lá fora. Fico incapaz, dominado pelo medo, de fazer aquilo que realmente quero: – encontrar um nome para aquela disformidade. E quando, recuperada a serenidade penso «a sombra da árvore» tudo se repõe como numa superfície subitamente alterada. Aqui, é certo, foi pela redução a um esquema habitual da consciência que se exerceu o acto de nomear. Mas se da particular imagem da árvore alargamos a todo o mundo sensível a noção de alucinação, conforme o pensamento de Taine que identifica as percepções a alucinações intensas, logo a relação se inverte no sentido de que à função da linguagem, que semeia todas as imagens percebidas em estado alucinatório, corresponde uma agilidade superior do espírito.
Por outro lado, as palavras não são substância fixa senão no papel. Elas progridem produzindo significações que são novas palavras, capazes de nomear, para além do visível, todo o invisível. O que é preciso é manter a potência de conhecer pela palavra até nos estados anormais que correspondem a uma passagem pela morte. Esta faculdade não está necessariamente ligada ao cérebro, a não ser quando temos perante nós o mundo imediatamente sensível. A relação do interior com algo que lhe é exterior será substituída, por meio de uma potenciação, no domínio da vida interna, por uma relação cujos termos correspondentes são o subjectivo e o objectivo, de modo a guardar entre eles uma distância «triangular». Como Bergson demonstrou, o erro comum a idealistas e realistas consiste em raciocinarem dicotomicamente, ao não verem que o representado e o representante irrompem ambos de uma actividade que os transcende.
Voltando a Natália Correia, de quem tivemos de nos afastar, tudo indica que ela, até no passo criticado, procura o sentido activo da poesia e que é, por isso mesmo que defende, contra certo tipo mole de lirismo, os processos metafóricos introduzidos pelos surrealistas. Com efeito, repondo o argumento nos seus primitivos termos, e integrando neles os elementos dados nas linhas anteriores, não há dúvida de que quanto mais audacioso for o poeta, ligando as imagens mais antagónicas, tanto mais penetrará naquele mundo de formações internas segundo uma relação que não é de «reconhecimento» mas de «conhecimento». Esta atitude, porém, é inversa à de Breton. As palavras não vêm do «outro», como acontecia no romantismo e nos seus sucedâneos, através do veículo da «inspiração». As palavras, para Natália, são do poeta, que as vai formando nos sucessivos momentos de criatividade. De resto, todo o escrito «Poesia de Arte e Realismo Poético» é o desenvolvimento deste ponto de vista.
Seguindo talvez o ensino de Wolfgang Kaiser, que recebeu na Faculdade de Letras de Lisboa, o crítico e poeta David Mourão-Ferreira desenvolveu, em nítida polémica com outros críticos, a tese de que a literatura, – em especial a poesia –, é fundamentalmente uma técnica de palavras. O livro de Wolfgang Kaiser «Análise e Crítica da Expressão Literária» é, porém, um livro de técnica rudimentar, onde aparecem desfiguradas as palavras portuguesas e mal ligadas umas com as outras. Para além desse ensino, David Mourão-Ferreira pode ter recorrido a lições de poetas estrangeiros, como Verlaine, Valéry, Edgar Poe. O autor do «Corvo» que, como toda a gente sabe, provocava em si estados psíquicos anormais por meio de agentes líquidos-ígneos exteriores, explica, todavia, a realização daquele poema como se tivesse prescindido da inspiração e recorrido apenas a processos externos de disposição e composição de palavras. Não podemos deixar de concordar com David Mourão-Ferreira num ponto essencial. Importa, com efeito, estar atento, durante a leitura crítica dum texto, aos movimentos das palavras, tradicionalmente designados por tropos. E importa, não porque a poesia seja só técnica, mas porque aos tropos correspondem alterações de significação.
O tropo é, na exacta definição de Álvaro Ribeiro, o movimento que o verbo imprime a um substantivo. Ora, na poesia dum Junqueiro ou dum Pascoais, dado um substantivo, ele permanece nas suas várias transfigurações e é nessa permanência que reside o que poderíamos chamar coerência. A «luz», por exemplo, mantém-se através da «oração», embora sofrendo fantásticas metamorfoses, num movimento que vai de contrário a contrário. A categoria de substância desaparece com a poesia modernista. O leitor põe-se perante esta como perante uma adivinha que, como todos sabemos, é uma construção mental em que nos são dados apenas os atributos de um substantivo oculto. Se agora pensarmos que, nos mais altos exemplos desta poesia, a palavra que se pretende adivinhar não é um substantivo, mas um verbo expresso por múltiplas relações de múltiplos substantivos, teremos uma ideia da transmutação mental que o modernismo veio produzir. Natália Correia utiliza um e outro processo. «Passaporte» e «Dimensão Encontrada» pertencem ao segundo caso; «Comunicação» e «Cântico do País Emerso» ao primeiro caso.
Não basta, portanto, ligar imagens desconexas, se faltar o profundo nexo interior, oculto, agente. Este nexo é menos um significado do que o próprio espírito do poeta, solto e ágil, que, depois de se ter separado de imagens ligadas a percepções exteriores, manifesta o seu poder extraindo de si o elemento imagético, animando-o, vivificando-o, divertindo-se até estabelecer relações absurdas para se reflectir na sua própria liberdade. O modernismo diz: «Todos os objectos são poéticos». Perante este postulado, a poesia de Fernando Pessoa, conforme a aguda análise de Natália Correia, mostra-se superior à de Teixeira de Pascoaes, «restringida por um vocabulário eleito».
Todavia, a crítica, aliás inteligentíssima, que a ensaísta faz ao «saudosismo», pode voltar-se contra o «surrealismo», pelo menos contra o surrealismo de Breton. Vimos já como o autor dos «Manifestos» confia à poesia o processo de restauração do homem nos dons paradisíacos. Com efeito, é evidente que, no estado de queda em que vive, o homem como potência mediúnica é inferior à mulher, à criança e aos animais. Os cães ou os gatos, os insectos ou as aves possuem faculdades de premonição, instintos de orientação e outros dons telepáticos que só raros homens possuem. Toda a natureza comunica. É possível imaginar um espaço remoto, ao qual aludem os mitos de todos os povos, em que o homem não se encontrava nesse estado de inferioridade, antes exercia, por uma prerrogativa especial e espontânea do seu ser, análogos mas superiores poderes sobre as restantes naturezas. A metapsíquica veio mostrar que tais poderes estão latentes no homem, que pode desenvolvê-los por meio de determinadas técnicas. Para Breton, como também já vimos, uma dessas técnicas será a poesia. Para Pascoais, a aquisição desses poderes reintegrar-nos-ia no estado edénico perdido que a saudade recorda.
É esta uma visão cíclica da vida da humanidade que não explica a necessidade da queda e que não justifica o pecado original. Algo deve existir em nós que constitua o elemento da liberdade, quer dizer, algo que actua como um princípio de livre decisão, sem o que teremos de negar-nos o espírito e de pensarmos o nosso ser apenas como natureza e a sua evolução como um processo mecânico. De tal modo é assim que no caso da submissão passiva a uma técnica esse elemento surge e se afirma activamente pela escolha da técnica apropriada que catalizará a natureza nas suas reacções intrínsecas. Todavia, aquilo que melhor define tal actividade é a «separação», movimento em que nos vemos como outros, como algo que é um desconhecido e que procuramos dominar intelectualmente, segundo as várias categorias que constituem o «corpo científico». Momento ilusório, mas necessário, em que o homem se sente como poder de separação, deverá ser transcendido, não pela negação de si deixando-se absorver na primitiva unidade originária, mas elevando-se a uma potência em que é o corpo do próprio que aparece como outro, naquela relação a que José Marinho chama «cisão extrema». Aqui, a separatividade é interna e as categorias científicas têm de ser substituídas por categorias lógicas, conforme ficou explicado anteriormente. É evidente, porém, que a separação do próprio corpo implica que do momento de vigília que caracterizava a relação científica se passe para o momento do sonho e da morte. Era no que pensava o poeta, quando escreveu:
No meio do caminho da vida
Encontrei-me perdido numa selva escura…
António Telmo
____________
Comentário
António Cândido Franco
Publicou António Telmo um curto texto chamado “Arte Poética e Surrealismo” no número duplo 8/9 da revista Espiral (Inverno de 1965, pp. 119-121). Basta o título para o texto se posicionar duma forma singular no conjunto da obra do autor. Digo-o não pela primeira parcela do letreiro, reconhecível em tantos outros momentos do itinerário do seu autor, mas pelo segundo segmento, relativo ao surrealismo. À arte poética acabara António Telmo de dedicar a sua estreia em livro, em 1963, Arte Poética; já antes dera a lume um conjunto de artigos que manifestavam o seu interesse por tudo aquilo que respeitava à linguagem verbal, da gramática à retórica, da génese e natureza da palavra à poesia. Daí os “problemas filológicos” com que abrirá o livro de 1963. Sobre o surrealismo, ao invés, que eu dê notícia, nenhum sinal de interesse anterior, a menos que se aceite o terceiro ponto do segundo capítulo de Arte Poética, dedicado às “descidas ao reino das sombras”, como um diálogo críptico com as mais conhecidas teses do surrealismo. O último período do ponto tem matéria mais do que suficiente para justificar a suposição. Diz assim: Se a identificação da concepção do “inferno” com a teoria real do subconsciente e do inconsciente puder ser mantida, cremos que os grandes poetas do passado terão alguma a dizer-nos que nós mal sabemos.
Regresso ao texto de 1965. Abre ele com a citação de três parágrafos dum opúsculo de Natália Correia, Poesia de Arte e Realismo Poético, publicado por Mário Cesariny numa colecção chamada “A Colecção em 1958”, e onde o editor publicou textos de António Maria Lisboa, de Luiz Pacheco, de Virgílio Martinho, de António José Forte, de Manuel de Lima, de Francisco Sousa Neves, de Jean Schuster (em co-autoria com Gérard Legrand) e dele próprio. O texto de António Telmo posiciona-se pois, ao menos num primeiro nível, como um comentário do texto de Natália, que retoma com desenvoltura as teses de Breton sobre aquilo que na actividade poética supera o mero plano literário. É o que a autora chama a realidade da imaginação, ou o realismo poético iluminador da vida, por contraste com o valor artístico da poesia de arte, que a cristaliza. A tese que António Telmo defende no texto (Natália Correia não é surrealista, embora utilize processos da escola de André Breton), e que lhe permite um excelente excurso naquilo em que mais se sente à vontade, a teoria da palavra e sua ligação às potências mediúnicas do espírito, parece-me sobretudo recorrer aos textos mais antigos, mas também mais conhecidos, de André Breton. Apesar de nunca citar fontes, o Breton que o autor faz comparecer no seu texto é o do primeiro manifesto do surrealismo de 1924 e textos adjacentes como Poisson soluble. Não sei se António Telmo no momento em que escreve o texto, o que deve ter acontecido por volta de 1964, pois o livrinho de Natália Correia terá sido publicado já no início da década de 60 (o opúsculo, de trinta e duas páginas, não tem data), tinha conhecimento dos grandes textos publicados por Breton na década de 50, “Du surréalisme en ses oeuvres vives” (1953) e o livro L’Art Magique (1957). Se os conhecia, não deixa transparecer, ao menos na refutação que faz do surrealismo, já que no resto, naquilo que é o “nexo oculto” e operativo, sem o qual não há reintegração no estado edénico, não deixa de ser admirável a identidade dos seus propósitos com esse último Breton. Se assim é, pode-se defender em relação ao texto de Telmo uma tese idêntica àquela que o autor avança para Natália Correia – a arte poética de António Telmo é surrealista, mau grado a refutação que da escola (de 1924) faz.
Uma tal tese, apesar do tom assertivo, é para ser tomada como ponto de partida dum reconhecimento mais vasto, dum encontro de potências em estado alterado, e nunca como uma mera habilidade dialéctica. É de resto o que me parece suceder na tese quase provocatória de Telmo sobre Natália, em que o regime onírico da ruptura, isso a que ele chama “cisão extrema”, indispensável para se contactar o automatismo psíquico, domina sobre o da ordenação diurna da arte, que estabelece os códigos semiológicos e sociais, religiosos incluídos, que vampirizam no humano as potências telepáticas da alma e o fundo cratiliano do verbo.
1 de Abril de 2014
CORRESPONDÊNCIA. 07
08-04-2014 23:05CORRESPONDÊNCIA DE ÁLVARO RIBEIRO PARA ANTÓNIO TELMO. 02
3/ III / 1964
Meu caro António Telmo:
Recebi e agradeço a sua “Arte Poética”. Já a li duas vezes. Considero-a como a obra mais original de filosofia portuguesa que se publicou depois da “Teoria do Ser e da Verdade”.
O seu livro tem dado motivo aos mais elogiosos comentários de tertúlia. Agradou deveras. Vamos a ver como será recebido pela crítica de imprensa.
Esperamos que o António Telmo venha a Lisboa por ocasião de férias da Páscoa; então conversaremos, como convém.
Muito gosto pela sua atenção, envio-lhe um abraço amigo.
Álvaro Ribeiro
DOS LIVROS. 06
03-04-2014 00:21No 20.º aniversário da partida de Agostinho da Silva...
[Agostinho da Silva na Universidade de Brasília, fotografado por António Telmo]
De uma conferência de 19-V-06 (6.ª Feira) na Associação Agostinho da Silva
Fuimus simul in Garlandia. Estivemos juntos em Brasília. Eu nem sequer ainda licenciado, com o mais insigne helenista e o supremo latinista lusobrasileiro Eudoro de Sousa, o exímio tradutor da Poética de Aristóteles e o Agostinho da Silva que traduzia um texto do latim para o português com a velocidade do pensamento.
Não exagero. Um dia, deparei com um não sei quê numa ode de Horácio que me feriu a alma de espanto e, como Agostinho da Silva estivesse por ali, quis que ele participasse comigo do mesmo espanto. Pegou no livro, correu a ode com o olhar e, devolvendo-mo, interpretou cada verso, c ada palavra, até cada fonema da ode perturbadora.
De outra vez, pedi-lhe que me explicasse, pelo que ao latim dizia respeito, um passo difícil de Tácito. A pergunta que lhe pus caiu, por um destes acasos inexplicáveis, na sua única zona de ignorância. Tirou das estantes uns livros e pôs-se a estudar o assunto. Passados uns minutos, voltou para junto de mim, disse-me como a coisa era e, esfregando as palmas das mãos uma pela outra, exclamou com um ar de gaiato: «Agora já ninguém me ganha. Era o que me faltava saber do latim.»
A simplicidade na complexidade é o que caracteriza o homem superior. Daí a tentação que todos sentimos perante essa complexidade que logo nos é evidente de a reduzirmos a uma ideia simples que nos dê o homem todo feito e quase sempre à medida dos nossos pequenos ideais. Alguns têm procurado ver em Agostinho da Silva apenas o homem de acção, o político, o comprometido com este ou aquele sentimento geral e, porque geral, sem a nota pura da singularidade. Assim, há quem queira ver nele só o monárquico que confessou ser perante as câmaras da televisão ou então só o comunista, que nunca confessou ser, mas que se deduz da sua apologia do municipalismo medieval. Uns vêem nele o católico, outros o heresiarca; uns o místico, outros um dos epígonos, no domínio do pensamento, da ciência moderna. Agostinho da Silva é isto tudo e muito mais, e também muito menos, porque terá sido, durante a vida, no modo como a viveu e pensou, um dos homens que mais de perto esteve de realizar o ideal do «pobre de espírito» de que nos fala Cristo no Evangelho, sabido como, para pedir a dádiva divina do espírito, necessário é que nos sintamos nada, mas um nada que é tudo, supremo paradoxo!
António Telmo
(Publicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006/2009)
«OS MEUS PREFÁCIOS». 04
02-04-2014 11:40[SOBRE OS SONHOS] POSFÁCIO A ARTE DE SONHAR, DE ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO[1]
Estremoz
s/d [Setembro de 1993]
Meu Caro António Cândido Franco
[…]
Dizem que o sonho é uma produção da alma, o mundo que a alma se cria em si mesma. E quem o diz (os leibnizianos, por exemplo, com a ideação das “mónadas sem janelas”) pensa igualmente para com o estado de vigília. Aqui, os acontecimentos, por exemplo, são também produções e manifestações da actividade da alma do indivíduo a quem acontecem. É, de facto, muito difícil distinguir o sonho da vigília. Nele há espaço e há tempo, matéria e resistência, dor e prazer, como na vida em que julgamos estar acordados. E, se estivermos atentos aos fenómenos da vigília, nem a grande capacidade de metamorfose que caracteriza o sonho constitui uma diferença decisiva, isto é, que cinda um estado do outro. Embora haja a possibilidade de o sonhador ter consciência de si, influindo deliberadamente no próprio sonho, o que é comum é que saibamos do que sonhámos lembrando e daí o engano de pensarmos que foi uma ilusão, uma fantasmagoria subjectiva. Mas se, exercendo aquela possibilidade, formos capazes de nos lembrar sonhando o que fizemos durante o dia em que estávamos acordados, então será o sonho que nos aparecerá como real e a vigília como fantasmagórica.
Quando eu tinha vinte e tantos anos, aconteceu-me o seguinte. Tinha acabado de me deitar e, antes de me voltar para a esquerda ou para a direita, de súbito uma força entrou pelas pontas dos meus pés e percorreu o meu corpo todo, subindo por mim acima e saindo pela “coroa” da cabeça. O movimento, como uma onda poderosa, era acompanhado de um som maravilhoso de guizos, que se detinha subitamente logo que a força saía. Mas passados momentos de absoluto silêncio, o processo repetia-se e no plexo solar era como se a alma se separasse do corpo.
No Egipto havia uma prova de iniciação em que os guizos constituíam um elemento fundamental. Onde foi a sua imaginação secreta buscar isso dos guizos vegetais?
É que se o sonho, como dizem, é uma criação da própria alma, como é que se opera a comunicação entre as mónadas? Não, evidentemente, dentro da excepção, por uma relação de causa a efeito que é a única que admitem a ciência e o senso comum. Temos de falar então de harmonia pré-estabelecida ou de simpatia de todas as partes do universo no seu voltarem-se para o uno.
[…]
António Telmo
[1] António Cândido Franco, Arte de Sonhar: 87 sonhos com Teixeira de Pascoaes, Évora, Casa do Sul, 2001, pp. 121-122.
CORRESPONDÊNCIA. 06
01-04-2014 15:43CORRESPONDÊNCIA DE ÁLVARO RIBEIRO PARA ANTÓNIO TELMO. 01
Lisboa, 30 de Outubro de 1958
Meu caro António Telmo:
Muito agradeço o favor da sua carta, porque sei ter sido uma das raras pessoas a quem V. quis dar essa expressão de amizade. Muito obrigado.
Sei que V. não gosta de cultivar a epistolografia, género adolescente e feminil de literatura, mas agora leio com tristeza a notícia do seu intempestivo desvio da carreira literária. Ao pensar que em 1959 vai ser celebrado em França, e no resto do mundo culto, o centenário do nascimento de H. Bergson, lamento que V. cesse os seus prometidos trabalhos, em que muitos de nós víamos uma segura esperança.
Quanto a mim, que no escrever para o público, ou para o futuro, encontro alívio de inconfessados sofrimentos ou digna reparação de conhecidas injustiças, não me envergonho de dizer que estou coligindo mais notas para o próximo livro ou opúsculo. Disse-lhe já que estou meditando na filosofia do jogo, que é a filosofia do comércio, e não me esqueço de que tive ocasião de lhe pedir o favor de me emprestar um livro clássico sobre o assunto. Mantenho, todavia, esse pedido.
O meu livro sobre a “Escola Formal” ainda não foi dado à luz, e tenho já a certeza de que só depois de distribuído em todo o País me será lícito obter exemplares para ofertas aos amigos. É assim a avareza da casa editora.
Nesta Lisboa dos cafés vão-se desmoronando as tertúlias, em consequência das invejas e das intrigas. Há duas semanas que não vejo o António Quadros. As conversas habituais causam desânimo. O que me vale, acredite, é o vício de escrever para longe...
Na madrugada de 13, minha Mãe sofreu uma queda. Já não se levanta da cama; passa as tardes, e principalmente as noites, a gemer. Sofre muito. O médico manda suspender este medicamento, experimenta outro, e assim sucessivamente. Para a Conchita, significa isto tudo uma inexplicável provação: falta-lhe a piedade religiosa.
Para completar a amargura deste fim de ano, a Junta Central das Casas do Povo é transferida para outro local, onde cessam as liberdades de que gozámos durante os últimos tempos.
Creia, meu caro António Telmo, que recebi a notícia da sua adaptação a Beja com a esperança de que ainda melhores caminhos lhe dê Deus. Abraça-o o amigo grato
Álvaro Ribeiro
DISPERSOS. 09
31-03-2014 11:29[Ernst Jünger]
O número 13: página de autobiografia espiritual*
14 de Outubro de 1998
Ontem, dia 13, encontrei, sem que o procurasse, o texto de que precisava, desde que, há quatro anos, colhi no meu quintal um trevo de quatro folhas. Foi tão importante este encontro como o do trevo. Ambos são como o início e o fecho de um ciclo de vida. Mais uma vez a significação tornou interior e actuante o que, não obstante o seu carácter insólito, não diferia pela sua opaca exterioridade de tudo quanto vamos vendo no decurso dos dias.
O texto é de Ernst Jünger. “Um trevo de quatro folhas traz felicidade. Todavia, há uma condição, que o encontremos sem o termos procurado.” Ignorava esta condição. Vejo que no meu caso ela se deu. Lia no meu quintal o Homem de Luz de Henry Corbin. Ao suspender a leitura por uns momentos., o meu olhar caiu num trevo de quatro folhas, bem distinto num tufo que se amontoava à volta de uma roseira.
“Julgaremos estar perante um paradoxo e, no entanto, muitas pessoas têm o dom de descobrir trevos de quatro folhas sem que estivessem à procura deles. A minha mãe era uma dessas pessoas. Muitas vezes, passeando com ela ao longo de um campo de trevos, baixava-se para colher um de quatro folhas. Eu punha-me à procura, mas, apesar de todos os meus esforços, nunca consegui encontrar um que fosse portador da felicidade.”
Em rapaz, eu e outros da minha idade, por muito que o tentássemos, nunca nos foi dado encontrar a excepcional planta. Fi-lo muitas vezes depois. Cheguei a convencer-me que não existia o trevo de quatro folhas e que a tradição popular queria apenas significar com isso que a felicidade é impossível.
“Conheci – prossegue Ernst Jünger – outras pessoas que tinham adquirido esta faculdade. “Adquirido” não é, a bem dizer, a expressão justa; é antes um dom que se manifestou um belo dia. Data importante para elas.”
Data importante, pois, para mim. Importante por se ter manifestado o dom e não porque, depois disso, tenha acontecido alguma coisa que se pudesse interpretar como a vinda da felicidade. Tudo continuou a correr tranquilamente como antes.
“Desde que a “procura” me deixou
Aprendi a encontrar.
Desde que um ventre me fez frente
Navego com todos os ventos.”
“Nietzsche chamou a estes versos “A Minha Felicidade”. Os dois primeiros são ambos aplicáveis aos trevos de quatro folhas, os dois últimos dão a receita da arte da descoberta: a equanimidade.”
No meu caso, o encontro com o trevo de quatro folhas associa-se ao número treze que, desde aí, durante os quatro anos que entretanto passaram, começou a perseguir-me e a marcar acontecimentos e seres à minha volta. A página em que, ao acaso, o guardei era a 113. Ter-se-á fechado um ciclo de vida com o texto de Ernst Jünger, que me apareceu no dia 13 de Outubro? Ou terei de ver nele o portador do sentido que por mim mesmo não era capaz de ver naquele encontro e na repetida emergência do 13, factos que, não obstante o seu carácter insólito e excepcional, me apareceram envolvidos de invencível e opaca exterioridade? Não será, juntando uma coisa a outra, que um novo ciclo de vida se abre pela revelação desse sentido?
O trevo de quatro folhas é 1+3. Não é propriamente um trevo, mas qualquer coisa como um quadrevo.
Em todas as emergências do número treze, a mais espantosa é a seguinte. Desde a publicação da História Secreta de Portugal, caí nas redes do prestígio. Desde então tenho recebido cartas e visitas de muitos desconhecidos que seria capaz de esperar me viessem procurar para aprender qualquer coisa de mim. É, porém, divertido, observar que todas essas pessoas se põem a ensinar-me. Leio as suas cartas e, salvo um ou outro caso, não respondo; se vêm ver-me, escuto-os placidamente e, em geral, não voltam a procurar-me.
Ultimamente, recebi de um desses desconhecidos por três vezes uma série enorme de poemas patrióticos, católicos, messianistas, claros de dizer, mas sem a força da metáfora vidente. Nenhuma mensagem em prosa os acompanhava, talvez porque os fez a pensar em mim, que aliás, interpela aqui e além. Todavia, na última desses três cartas, havia uma página em A-4, onde estava escrito só o seguinte: Dedução do número 13 pelo três e pelo quatro e umas contas arbitrárias mostrando o procedimento dedutivo. Apesar de quanto isto me aparece como estranho e digno de atenção, não respondi. Responderei?
António Telmo
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* Título da responsabilidade do editor.
INÉDITOS. 09
28-03-2014 09:46Dos símbolos[1]
A incapacidade de pensar por outro modo que não seja o que tudo compreende por relações mecânicas, se pode dar a ilusão de inteligência onde não há a vida do espírito ou nem sequer a vida, revela-se, pelo contrário, como opacidade quando tal modo aparece a descrever e a circunscrever aqueles domínios que se caracterizam pela ausência de relações mecânicas na produção dos fenómenos. É o caso do esoterismo. Observamos aqui, naqueles que hoje parecem incumbidos de o destruir divulgando-o, que se nega ao pensamento ou ao espírito qualquer eficácia ou até realidade se não o interpretarmos como energia ou força ou vibração actuando sobre a matéria ou sendo essa mesma matéria actuando sobre si por diferenças de nível ou de tensão.
Ninguém nesse domínio aceita ou reconhece o sobrenatural como aquilo cujas leis são inacessíveis à Física, isto é, que sejam outras que as leis da natureza e somente acessíveis a uma espécie de intuição que seja, ao mesmo tempo, a revelação de outra coisa. Por isto mesmo é que os símbolos (e a natureza é símbolo da sobrenatureza) constituem a linguagem de acesso ao que sem eles permanecerá abscôndito.
Só neste sentido se pode dizer que a poesia é superior à história e a metafísica à física. O diálogo da razão com o que se intui simbolicamente é o que verdadeiramente constitui a filosofia. Pela imaginação as metáforas compõem-se com os conceitos para formar a poesia. Mas o modo como os esoteristas que vimos referindo pensam os símbolos, se é lícito e próprio falar aqui de pensamento, ou é um jogo infantil em que pelo fio das associações por semelhança se prolongam indefinidamente as comparações ou decai novamente na tenebrosa redução do superior ao inferior, como quando se diz, por exemplo, que Cristo é o símbolo do sol ou na indefinição do superior, como quando se diz, ao invés, que Cristo é o sol espiritual de que o sol físico é o símbolo. O verdadeiro caminho, neste último caso, seria o de ver no sol físico o sol espiritual por um modo de o olhar de que só os contemplativos têm o segredo.
Daqui se compreende que o que quer que se consideremos (pois tudo é símbolo) vemo-lo sempre depois de se ter produzido, o nosso ser está sempre em atraso em relação ao fiat do ser. Um símbolo vive-se ou não se vive, explica-lo é perdê-lo. Só há um processo de vencer esta dificuldade, é o de descer à fonte do nosso próprio ser.
António Telmo
VERDES ANOS. 03
26-03-2014 13:02O princípio de individuação na literatura[1]
Triste ideia, sem dúvida, faria da poesia aquele que nela apenas visse uma cinematografia do sentimento. É certo que, quando se fala de «pensamento», raras vezes se anuncia aquela actividade invisível que nos envolve, domina e exalta sempre que lemos um grande poeta. Quando de «pensamento» falamos, temos em mente uma ideia de arranjo e composição, de discernimento e análise de imagens e, nesse sentido, nos exprimimos ao declarar, por exemplo, Antero de Quental um poeta filósofo. Mas a poesia não é comparável à cinematografia. Resulta de uma actividade secreta invisível e subtilmente audível e, por isso, se projecta primeiro em ritmos, depois em imagens, por fim em figuras, que constantemente se dissolvem durante a leitura em alta voz.
Não é possível negar a existência do pensamento sem reduzir a literatura a figura contingente. E com efeito, os estudos literários em que transparece ou se afirma essa negação denunciam-se cúmplices da sociologia positivista. Alguns positivistas, como o linguista francês Belly, chegam até a propugnar a eliminação da poesia do mundo social e só devemos admirar-lhe a coerência se subentendemos nesse desejo o intento mais fundo de combater a filosofia.
A corrente positivista, que domina em superfície a nossa cultura, aparece ligada a outras anteriores, tais o iluminismo e o humanismo da Renascença. Na história da cultura portuguesa, tais correntes, entre si comutadas, não impedem, contudo, a originalidade da nossa literatura. Para Fernando Pessoa, consumado o ciclo das descobertas marítimas, retomou-se um movimento de descobrimento no invisível, de que a epopeia última será a expressão suprema.
À filologia incumbe imprimir-se uma orientação eficaz no domínio do pensamento. Quem queira estudar a filologia portuguesa desde os inícios até hoje, ganha, sem dúvida, mais em considerar os escritos de natureza artística do que em cingir-se aos trabalhos compostos por linguistas. Diz-se que a filologia como ciência é recente, o que só pode interpretar-se como afirmação de que passou pela classificação das ciências positivas. A palavra «ciência» já se não impõe como se impunha e, por isso, deixou de actuar eficientemente como instrumento de propaganda e domínio positivistas, a não ser, evidentemente, nas zonas sempre retardadas da vulgaridade. Todas as vezes que a filologia é apresentada como novidade científica, não só se veda qualquer possível verdade dos estudos anteriores, como se contraria a liberdade de pensar a filologia noutra direcção, porventura mais fecunda.
Se os efeitos que o escritor produz e se configuram em beleza manifestam a actividade das causas, não surpreendem ninguém os limites duma sistematização filológica que para se constituir teve de negar os difíceis caminhos da hermenêutica. A hermenêutica não se cinge somente aos textos literários, mas é também uma interpretação filológica das várias expressões da actividade plástica. No problema das relações da filosofia com as artes manuais, das causas com os efeitos, a filologia fornece a fórmula de solução. O artista plástico que compõe conforme vê, e não conforme ouve ou imagina, na fase de imitação acreditará na mediação geométrica e matemática da sua arte para a filosofia, em inconsciente oposição ao ensino de Aristóteles. A oposição à estética aristotélica explica também a predominância na escultura de representações do corpo humano e a supremacia dos estudos anatómicos sobre os biológicos na Escola de Belas Artes.
As artes plásticas mais divulgadas, arquitectura, escultura e pintura, na medida em que se cindem da biologia, tornam-se representações do visível tendentes a isolar a luz em figuras poliédricas definitivas. Será talvez a Oração à Luz a poesia mais própria para ser meditada por plásticos. Para Guerra Junqueiro, a luz é uma energia ou uma força, não é mera representação passiva; energia ou força que percorre invisivelmente a natureza e se redime em oração e pensamento, no fenómeno transcendente da maternidade natural. Fixar a luz, como fazem plásticos, em formas geométricas perfeitas, acabadas ou passadas, cujo paradigma é a figura humana, equivale a produzir um fascínio que impede a assunção invisível do pensamento.
A cultura humanística estatifica e estratifica os poetas e, ao estudar os recíprocos reflexos, a que chama influências, utiliza um jogo de espelhos, com mestria de ilusionista para quem a luz é sem segredo. Já vários escritores pensam que Camões foi ultrapassado por Pascoais, por Junqueiro ou por Pessoa. Não há, todavia, dúvidas que os quatro são superiores. Superiores, quer dizer, poetas que em versos exprimem o sobrenatural. E o que vimos dizendo no decorrer destas linhas, que a literatura, enquanto sistema de artes verbais, sempre se refere àquela realidade, de que a palavra é o meio revelador, da figura para a imagem e da imagem para o ritmo.
A desconfiança para com o poder revelador da literatura, revelador em sentido substantivo, anda ligada à decadência do princípio de individuação, como sua consequência. Quando tal princípio é desatendido pelo modernismo transparece sobretudo no romance, em seu aspecto relativo ao tratamento dos caracteres. Estes, no escritor de tradição humanista, são tomados como tipos gerais, e é em função de características de natureza social que são descritas a fisionomia, a linguagem, os gestos, o vestuário, todos os actos do personagem. Sociedade opõe-se a colectividade. Inábeis sempre que se trata de coleccionar e distinguir, de reconhecer o princípio de individuação, omitem os romancistas nos personagens os actos que melhor revelam as potências singulares. No primeiro momento, o princípio de individuação aparece como uma negação, classificável pela escala dos sentimentos negativos, que culmina no orgulho e, enquanto tal, ainda constitui objecto do romance modernista. No segundo momento é já a promessa duma infinita dádiva. Evite-se, porém, considerar este momento como negação do primeiro. Não é a sua negação, mas a sua antítese, isto é, posto em vez da tese que aquele representa, pois o inicial obscurecimento produzido pela negatividade do sentimento contém em si o princípio da luz e da liberdade. No terceiro momento transforma-se em movimentada e libertada energia, pelo socorro da colectividade, que elegeu alguém único no seu princípio e, nessa promoção, lhe deu os meios de nobilitação.
Não se percebem claramente os motivos, as razões ou os fins que levam muitos a menosprezar o grande romancista que é Somerset Maugham. Quem leu as «Férias do Natal» a pouco tempo do «Nome de Guerra» de Almada Negreiros não pôde deixar de notar o paralelismo dos entrechos nos quais uma mulher conduz o protagonista de metamorfose em metamorfose pelos ciclos da vida. Recordamos aqui o «Nome de Guerra» porque é talvez o único livro entre nós nos últimos trinta anos que merece o nome de romance.
António Telmo
[1] Diário Popular, suplemento Letras-Artes, ano XIV, n.º 5006, Lisboa, 12 de Setembro de 1956, pp. 7 e 15.
DOS LIVROS. 05
25-03-2014 16:16O mito do Encoberto*
O mito do Encoberto em Portugal conta-se em poucas palavras. Durante a batalha derradeira, em Alcácer-Quibir, D. Sebastião morre sem deixar cadáver atrás de si e, em novo corpo, mora agora numa ilha bem-aventurada donde regressará numa manhã de nevoeiro para ressuscitar o seu povo que é o seu exército, o que foi derrotado e o que somos nós todos sempre que confiamos na estrela sobrenatural da filosofia.
O mito tem quatro momentos: a batalha, a ressurreição do Rei que é para nós o seu desaparecimento, a ilha que foi habitar e o seu regresso numa manhã de nevoeiro. Meditemos cada um destes momentos sem os degradarmos ao nível da história. Cumpriremos assim um dos principais preceitos aristotélicos da Poética. Fazendo-o, ergueremos a história, quando for caso disso, à altura da poesia.
A BATALHA
O nome de Sebastião é, como todos os nomes aziagos, isto é, como todos os nomes com sestro, portador de glória conseguida com desgraça. Quem o baptizou ou ignorava certamente o preceito antigo de que o nome de Sebastião não deve ser dado aos reis, talvez porque signifique o que só pode ser dito de Deus. Deriva de sébas, palavra grega que envolve as ideias de veneração e de terror religioso.
A preparação da batalha foi longa e meticulosa. Ninguém deve defrontar a morte e a imortalidade que vem no seu seio sem uma longa preparação que, tanto para o guerreiro como para o filósofo, que é uma outra espécie de guerreiro, se faz harmonizando a teoria com a prática no próximo e no distante. Depois, “tudo o mais é com Deus”. No fragor da batalha, foi a voz de um anjo que se ouviu mandando parar, quando, senão se parasse, ela estaria ganha. Não importa que o anjo tenha gritado pela boca de um espanhol ou de um traidor. D. Sebastião, ao ver tudo perdido, ao ver o exército deter-se e recuar, continuou a avançar em espírito. Mas já o seu corpo estava repassado de espanto e encobriu-se na nuvem.
A ILHA
Como disse aqui ontem o Orlando Vitorino, os Descobrimentos não tiveram por fim a conquista das rotas comerciais, a não ser que nelas vejamos etimologicamente as rodas de Mercúrio, daquele Mercúrio que é, segundo Camões, o Espírito Santo revelando-se a Vasco da Gama. O fim dos Descobrimentos foi, na verdade, o inesperado encontro com a Ilha dos Amores.
É essa mesma Ilha aquela onde reside o Rei.
Numa das notas escritas por Fernando Pessoa sobre o sebastianismo, o poeta impõe a si próprio o seguinte: “É preciso ver o que significa a Ilha”. Aprendemos da Escola: “Ilha é uma porção de terra cercada de água por todos os lados”. Na terminologia dos filósofos uma ilha é um absoluto, o ab-soluto ou então, recordando Leibnitz e Leonardo Coimbra que o segue, uma mónada representativa do Universo. Um ponto de vista que tem, em relação aos pontos de vista a partir dos quais abrangemos um panorama, esta importantíssima diferença: a de o objecto da visão ser produzido pelo próprio ponto que o apreende. Uma estrela é uma ilha cercada de todos os lados pelo infinito, mas é a sua luz que cria a visibilidade.
A mónada é propriamente o indivisível, isto é, o indivíduo, quando o compreendemos pela imagem da ilha, não este ser inquieto e dividido, não este egoísmo que somos, este pedaço onde se quebra o tempo. Eis o sentido em que a mónada é a mónada sem lugar nem tempo. Cada um de nós a é na sua altitude profunda e por isso Fernando Pessoa pôde pensar que D. Sebastião regressou à terra dos «egoismos» em 1888, data do nascimento do poeta.
O mundo encoberto, presente por toda a parte como uma ilha que pode surgir inesperadamente em qualquer ponto do percurso da nossa navegação, não é o mundo vazio de vida dos nossos pobres conceitos. Swedenborg viu-o como uma terra em que os vivos, que são os nossos mortos ou de que nós somos a imagem morta, nascem, casam-se, viajam, amam e até têm os seus Cafés onde se encontram formando tertúlias de pensamento. “Os Anjos também investigam”, escreveu Leibnitz.
Cada um de nós ao morrer encontra do lado de dentro aquilo que se foi formando no seu subconsciente por dejecto, no seu supraconsciente por assunção. Levamos connosco o nosso Inferno e o nosso Paraíso. Só os heróis têm a revelação da Ilha com os seus três outeiros, as suas aves, as suas flores e as suas águas onde o Amor abre o acesso ao Paraíso, onde a mónada se conhece enquanto mónada na forma de “um globo diáfano e profundo”.
O ENCOBERTO
O contrário de encobrir é descobrir, mas é no descobrimento que nasce o encoberto, os Descobrimentos precedem e preparam a ocultação do Rei.
Encoberto sugere esotérico. Hoje, é corrente falar-se de «esoterismo» como sinónimo de «ocultismo», depois que Éliphas Levi escreveu pela primeira vez esta palavra. Por este caminho, até a confusão de esoterismo com satanismo é possível dentro da conhecida homologação de ciências ocultas com ciências malditas. A verdade, porém, é que o «ocultismo», na sua acepção vulgar, nem sequer chega aos calcanhares do «exoterismo».
Esotérico é um relativo. Relativo a exotérico, segundo a quarta categoria indicada por Aristóteles. Não é um substantivo (primeira categoria), mas um comparativo, o que sabe muito bem quem conhece um mínimo de grego. Teros é desinência do comparativo.
Esotérico significa, por conseguinte, “mais dentro” e não digo “mais interior” porque a terminação -ior é desinência do comparativo latino. Interior significa propriamente “mais dentro” e essa palavra sim é que é sinónima de esotérico. Exotérico é o mesmo que “mais fora”. Como é que foi possível opor exotérico a esotérico, quando, pelo contrário, um não pode existir sem o outro?
O que fica dito não constitui apenas uma distinção linguística. Repare-se só no seguinte para avaliar a importância da distinção: quem combate o esoterismo cristão por isso mesmo combate o cristianismo ali como ele nos aparece, por exemplo na Religião Católica, como um sistema exotérico.
Se admitirmos com Álvaro Ribeiro que não há filosofia sem teologia, ficamos a saber que o «meio» ou, como dizia Hegel, o «éter» da filosofia está na relação do esotérico com o exotérico.
A filosofia é a vida do pensamento como fenómeno da luz. A inteligência é o meio onde a luz se torna consciente de si e é a esse movimento que José Marinho chama “a descoberta da subjectividade”. A inteligência é, porém, um fenómeno universal que toma progressivamente consciência de si do exotérico para o esotérico e daí que a descoberta da subjectividade venha a ser o caminho, sempre percorrido jamais percorrido, para a perfeita objectividade que só é a forma como Deus pensa o mundo que criou. Objectividade é, neste caso e só neste caso, sinónimo de verdade.
A nuvem encobre o sol como o exoterismo o esoterismo. Se a nuvem passasse, teríamos de desviar a vista para não ficarmos cegos.
Por isso o Rei regressará numa manhã de nevoeiro.
O REGRESSO
Fernando Pessoa e Sampaio Bruno interpretaram o nevoeiro da manhã do regresso como o estado de extrema degradação mental que se foi progressivamente adensando, no país, a partir da derrota de Alcácer-Quibir, estado que precede e anuncia a vinda do Rei, em Bruno do “novo Cristo cujos milagres são argumentos”. Há, porém outra interpretação que não subordina o mito à história. É a de conceber o nevoeiro, já repassado de sol, como um caos cintilante, a forma que a alma expectante assume no momento em que imagina o surgir do sol levante.
Na definição que abre a Ética, Espinoza escreveu: “Por causa de si entendo aquilo cuja essência envolve a sua existência”. O que nos interessa nesta definição nuclear de toda a filosofia do filósofo português desterrado na Holanda não é a relação que ela possa ter com a prova ontológica da existência de Deus. O que nesta definição nos fascina é o facto de o definido, isto é, a substância que é causa de si mesma dever ser concebida em analogia com a luz. A luz é, com efeito, aquilo cuja essência é o aparecer. O que é próprio da essência do oculto é o aparecer. Não é o que se esconde, mas o que nos escondem e de que a primeira notícia em nós é a formação do “caos cintilante”.
Aqueles que, sempre que ouvem proferir a palavra oculto ou a palavra esotérico, sentem acordar em si ecos de um reino tenebroso deveriam libertar-se da própria treva que os não deixa ver. Veriam talvez então que o encoberto é o lugar da luz esplendorosa de que a luz sensível é véu sobre véu. Numa perfeita diafaneidade do nosso ser íntimo, o regresso pode ser vivido hic et nunc. Mas aí também o longe de nós se revelará. A demanda do Encoberto é sem fim.
Eis o que me ocorreu dizer em tão boa companhia como a vossa. Falei de pé, porque é de pé que se deve evocar o Rei. Sentado, só num cavalo branco e em Alcácer-Quibir.
António Telmo
(Publicado em Viagem a Granada, 2005)
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* Comunicação aperesentada ao Colóquio sobre “As Linhas Míticas do Pensamento Português” realizado no Ateneu Comercial do Porto.