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VOZ PASSIVA. 18

06-05-2014 14:53

Editado com a chancela da Átrio (José Manuel Capêlo), O Bateleur de António Telmo foi lançado no dia 10 de Dezembro de 1992, na Galeria Nasoni, em Lisboa (na Av. Columbano Bordalo Pinheiro), tendo sido apresentado por Afonso Botelho. Viria, mais tarde, a ser incluído nos Contos, saídos a lume na editora Aríon, do mesmo Capêlo, em 1999.

Naquela sessão, e também com a chancela da Átrio, foram ainda lançados os livros Estruturas Simbólicas do Imaginário na Literatura Portuguesa, de António Quadros, apresentado por Artur Anselmo, e Eleonor na Serra de Pascoaes, de António Cândido Franco, apresentado por Francisco Soares.

Então jornalista do Diário de Notícias, António Carlos Carvalho, que esteve presente na sessão (tal como, por exemplo, Natália Correia), escreveu de O Bateleur:

«Le Bateleur» é a primeira carta do Tarot, como se pode ver na capa do livro de António Telmo. E constitui a chave que foi dada ao autor (pelo seu «alter ego» Tomé Natanael) para decifrar o famoso retrato de Pessoa feito Almada Negreiros. Todo o texto (apenas meia centena de páginas, mas deliciosas de ler e profundas nos conhecimentos que encerram e nos transmitem) conduz o leitor a domínios que são caros a António Telmo desde há muitos anos e que fazem dele o mais esotérico (e por isso mais interessante), discípulo de Álvaro Ribeiro, sendo assim o mais original pensador das últimas gerações da Filosofia Portuguesa (que existe e recomenda-se), como salientou Afonso Botelho na apresentação do livro. Um texto de um filósofo do espírito para despertar os que conseguiram sair do adormecimento encantatório em que foram mergulhados pelo chamado «mundo moderno».

É o texto da apresentação de O Bateleur, de Afonso Botelho, que dedicou a António Telmo -- “Ao António Telmo com um abraço do amigo Afonso Botelho” -- o respectivo original dactiloscrito, hoje guardado no espólio do filósofo, que em seguida se publica.

 

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Lançamento de O Bateleur - Dez. 92

Afonso Botelho

 

Primeiro o Autor. Porque a obra que hoje aqui apresentamos, não obstante a forma narrativa por que se exprime, constitui uma teoria de todos os seus trabalhos anteriores. O leitor que não lhes apreendeu o sentido tem, se se deixar conduzir pelo Bateleur, a oportunidade de agora o apreender. E se o seu espírito não se satisfizer, poderá ainda continuar viagem com este barqueiro em direcção ao próximo livro de António Telmo, já que um conto exemplar não se esgota por ser exemplarmente contado. 

Por mais do que uma via, o símbolo pictórico ao significado ideal, António Telmo recupera a figura do Bateleur, trasladada pelo negativo para o retrato de Fernando Pessoa. E recupera-o como Hermes-Mercúrio, conciliador em si mesmo das oposições, mítica personalidade que tanto pode significar o poder, a vontade firme, como as máscaras do ilusionista.

No seu labor criativo, o nosso Autor tem andado sempre próximo do deus hermético, compreendido na sua complexidade; Almada Negreiros seguiu de perto o ilusionista, o bateleur saltimbanco, no duplo sinónimo que encontramos em qualquer dicionário Francês-Português.

Voltemos, porém, ao Autor, para dizer dele o que nenhum crítico literário está em condições de dizer: Das últimas gerações da Filosofia Portuguesa ele é o pensador mais original. E com este juízo não o estou valorizando mas apenas caracterizando-o entre os seus pares. Digo que é o mais original, como poderia dizer que António Quadros é o mais inspirado, Orlando Vitorino o mais racional ou António Braz Teixeira o mais essencial. Tais atributos só fazem sentido, todavia, desde que os consideremos à luz de um movimento que tem o pensamento em língua portuguesa como o mais filosófico dos pensamentos. Bastaria, portanto, a dedução deste universo do pensamento para que a originalidade que atribuímos a Telmo tomasse um sentido oposto ao que o uso literário lhe fixa e para o qual a origem se restringe à causa imediata da mudança, ao aparecimento do diferente, da imagem fugidia e efémera.

A origem que alimenta a narrativa, agora apresentada, não é causa imediata de mudança alguma que os nossos olhos possam detectar. É, pelo contrário, a fonte que nasce entre a imagem primeira, do uno e eterno, e a sua expressão metafísica. Ela manifesta-se ao nosso olhar, desenganando os nossos olhos.

Tal prodígio explica o comportamento dos livros de António Telmo nas nossas bibliotecas pessoais. Tenhamos a coragem, de confessar que as suas lombadas, quase sem espessura, brilham e sobressaem entre os costados volumosos e baços dos tratados ou manuais, parecendo até que tudo o que eles tratam e nós manuseamos pede constante socorro àquelas “miniaturas preciosas”, como chamava Sánchez Albornoz aos livros de Merêa, porque nelas está escrito o que ainda não tinha sido dito nem tratado, sendo verdadeira a secretude que anunciam para a História de Portugal, para a Gramática da Língua Portuguesa, para os Lusíadas ou para a Filosofia e Kabbalah.

É como se nessas poucas páginas se inscrevesse um roteiro de tesoiro escondido, é como se nelas encontrássemos as regras de um jogo humano-divino, que tanto pode valer uma liturgia religiosa, em que o logos inteiramente substitui a vontade, como um jogo de cartas regido pelo best, que tudo ou nada vale.

Ao primeiro jogo escusam-se os moralistas, que preferem a decisão judicativa à liberdade de espírito; ao segundo furtam-se os racionalistas extremos, que a tudo querem atribuir valor imutável, ou os materialistas, que não admitem carta principal em nenhum jogo humano.

No entanto, nestes livros se compreende que não existe qualquer saber lúdico, ou do espírito, sem padrão que assuma o Nada, nem valor que não gere infinitas combinações.

Esta plurivalência dos termos, regra de oiro do secreto, cumpre-se ao longo do texto que hoje vem à luz, ou da Luz, a começar pelo primeiro conto, que emerge da sentença popular: “quem conta um conto acrescenta um ponto”. E o ponto desdobra-se em vários sentidos, que não lhe alterando a essência, lhe permitem que seja contado infinitas vezes, como se novidade fosse de cada vez. Este é o ponto que acrescenta ser ou o renova – é o ponto da tradição, guardado na gaveta do Antiquário, Tomé Natanael e entregue depois ao hermeneuta, cujo nome descende etimologicamente de Hermes, cristianizado e santificado.      

Ponto será também o grau de conhecimento a que o iniciado se eleva. Ponto é com certeza o excesso de luz que o narrador deixa no conto de novo narrado, e, igualmente, a situação do olhar – o ponto de vista – do que narra, propõe ou argumenta. Ponto é um sinal de escrita que dá termo visível a um conceito; ou é sinal inefável que dá início à geometria sagrada, de interpretação infinita e oculta.

Mas o ponto-chave do Bateleur é aquele que medeia os dois grandes temas deste livro, os quais, por essa mediação ou iniciação se transformam nos dois seguintes filosofemas: a magia da primeira carta do Tarot, trasladada para o retrato de Pessoa deu o poder criador do hermeneuta; a unidade essencial da Cabala e das Categorias de Aristóteles deu a adunação do pensamento grego à tradição sófica hebraica através da língua portuguesa

Estes dois mundos de conhecimento apresentam-se em continuidade temática e, por integração, acabam completando um só universo.

O primeiro, através de subtil dedução etimológica, faz participar o Autor do poder mágico de Hermes, e o hermeneuta, de intérprete de enigmas, passa a ser ele mesmo criador de enigmas.      

Embora vários e aparentemente díspares caminhos sejam percorridos, desde o científico ao onírico, desde o lógico ao intuitivo, desde o teatral ao rigorosamente filosófico, todos concorrem para tornar exemplar e único o segundo filosofema.  

Interpretado do ponto de vista do drama existencial do Autor, isto significa que, desde a Gramática Secreta, em que está meridianamente proposta a Cabala de Portugal, como síntese da hebraica e da cristã, António Telmo vem percorrendo a sua estrada de Santiago, na demonstração de que o português tem a energia que promove o encontro do pensamento grego com o pensamento do Ocidente, corrigindo assim a ideia de Heidegger de que só “a técnica constitui o verdadeiro triunfo da metafísica ocidental”.

Tal como outros pensadores do centro da Europa, este filósofo não interpretou a afinidade que perdura no mistério da civilização mediterrânica e no qual a luta religiosa entre judeus e cristãos esconde uma conciliação subjacente dos mútuos saberes, que a língua e filosofia portuguesas singularmente consubstanciam.

Conhecendo esta fonte viva do pensamento não será efectivamente possível afirmar que a técnica é o triunfo da metafísica ocidental, nem que seja inviável uma irmandade dos povos no Espírito, superadora da linguística que concebe a fundação exclusiva do ser pela palavra, como propõe aquele pensador germânico.

O convívio espiritual dos idiomas, e por ele o convívio dos saberes, está secretamente guardado na tradição, da qual os livros de António Telmo levantaram o primeiro véu.

Decerto o Autor desejaria que mais leitores tivessem merecido os benefícios da revelação completa, cônscio da missão que cabe aos que pensam em língua portuguesa, missão que ele assumiu desde que em 1964, no seu primeiro livro, começou a dar-nos o resultado de uma reflexão funda e iluminada sobre os mistérios do falar e pensar humanos.

Possivelmente sentindo aquela solidão para que a sociedade portuguesa remete os filósofos do espírito, António Telmo dispôs-se a fazer mais uma tentativa de encontrar novas vias de acesso às verdades que se ocultam na nossa tradição judaico-cristã e elegeu o conto como o género que mais adequadamente poderia transmitir-nos essa mensagem porque tradicional é a sua própria voz.

Lendo o Bateleur confirmaremos como resultou benéfica essa tentativa.   

 

Lisboa 3/12/92

INÉDITOS. 11

05-05-2014 21:12

O leitor de Doutoramento e Incesto, um dos Contos de António Telmo, encontrará neste breve apontamento do filósofo, ainda inédito, e presumivelmente incompleto, importantes pistas de aprofundamento. Foi escrito por Telmo após a leitura da tradução portuguesa da Autobiografia do cientista britânico, publicada pela Relógio d'Água em 2004. Os três brevíssimos parágrafios finais, dados entre parêntesis rectos, são, ao que tudo indica, notas auxiliares da composição.

 

Charles Darwin[1]

 

Comprei a Autobiografia de Charles Darwin em tradução portuguesa, num só volume cuja capa é totalmente coberta pela reprodução de um retrato do biografado. Observei, elucidando-me, que as arcadas supraciliares do retratado poderiam muito bem ter-lhe sugerido ao espelho as do seu “antropopiteco” original, antepassado segundo ele e os seus numerosos seguidores, de todos nós mesmo tendo em conta, pelo que a mim diz respeito, o lindo rosto da minha mulher, como ainda hoje se vê, nos seus anos jovens. Tais arcadas formam uma plataforma por sobre os olhos.

Fui à procura numa enciclopédia. Aí aparecia de frente com dois olhos vivos muito chegados um ao outro, proximidade que veio confirmar as minhas suspeitas. Alguém verificou tal similitude antes de mim, porquanto fez aparecer na internet um gorila cuja cabeça é a de Charles Darwin.

O livro com a sua autobiografia veio abrir caminho a outra possibilidade, a de que a ideia de atribuir ao homem, ser meio divino, a vergonhosa origem animaloide lhe tenha vindo, não por via científica (isso viria depois a documentar), mas por causa de lhe ser insuportável outra ideia, a de se imaginar a ter relações sexuais com a própria mãe, a quem adorava tanto que, ao falar da mulher com quem casou, depois só vê nela o facto de ser mãe; e lembrando-o constantemente aos próprios filhos que o admiravam tanto como ele tinha sempre admirado o próprio pai.

Por que terá nascido nele essa insuportável ideia? Porque terá sido a mãe (e decerto também o pai) a fazê-lo praticar a leitura da Bíblia, por volta dos treze anos, conforme era tradição nas famílias judaicas. O Génesis e o Cantar dos Cantares, o nascimento do homem e da mulher que o origina, são os textos bíblicos que mais atraem os púberes e os adolescentes.

Carlos Darwin era, como tudo indica, muito inteligente. Ao verificar que, para haver continuidade de Adão e Eva para diante na sequência das gerações, tinha sido inevitável o incesto, tinham sido inevitáveis as relações sexuais entre a mãe e o filho, entre o pai e a filha, ou simplesmente entre irmãos e irmãs, a ideia do antropopiteco foi como uma iluminação. Se o homem proviesse do macaco por transformação da espécie, Darwin expurgava a ideia que o atormentava. Substituía-se Adão e Eva pelo macaco e pela macaca e a ideia de geração pela de transformação e evolução e a ideia do incesto perdia grande parte do seu poder. Assim o jovem Darwin enviava para o subconsciente esta possibilidade, tapando-a no consciente com a sua famosa conjectura.   

 

[Dá-se-lhe o nome de símio porque o macaco imita o homem.

Aristóteles: “A arte é a imitação da natureza”.

O macaco não é artista, não imita a natureza do homem, mas apenas aquilo que no homem se desvia da natureza.]

 

António Telmo

 

[1] Título da responsabilidade do editor.

 

INÉDITOS. 10

02-05-2014 09:29

87 ANOS DEPOIS: ANTÓNIO TELMO, SEMPRE!

No dia do 87.º aniversário de António Telmo, oferecemos aos nossos leitores um impressionante dactiloscrito inédito do filósofo sobre a pequena vila de Arruda dos Vinhos, terra das suas primeiras grandes memórias e lugar decisivo na formação do homem e do pensador. O comentário é de Pedro Martins.

 

Arruda[1]

 

Começo a lembrar-me de mim em Arruda. É uma terra dos arredores de Lisboa, formada de ruas estreitas, atravessadas de um a outro lado por uma rua mais larga, de alcatrão, à qual, como em quase todas as nossas vilas, se chama rua Direita. Está rodeada de montes, mas os declives são suaves, cobertos de vinhedos, com algumas manchas de searas. A rua Direita sobe com algumas curvas desde a Quinta da Ponte, que se me representa como um largo portão, desde um rio, que para mim sempre foi maior que o Tejo do livro de Geografia, desde uma ponte que passa por cima do rio, até ao jardim, pequeno e bem tratado, cheio de sombras e árvores, – acácias, freixos, álamos e outras de que não sei os nomes –, até ao campo da feira, todo cruzado por fileiras de plátanos, até à praça de touros, redonda e encarnada, com grandes portas em forma de ferradura e pequenas bilheteiras de um e de outro lado da porta principal, por onde enfiávamos as pedras lestas das fisgas.

Naquelas ruas, cheias de medos e becos, brincávamos aos polícias e ladrões logo que anoitecia. O resto do dia por aí fora (havia tantas férias nesse tempo!) passávamo-lo no adro da Igreja a jogar o pião ou o botão ou a malha ou o berlinde, conforme a estação do ano, mas eu preferia matar toutinegras nas duas grandes pimenteiras tão altas que quase tocavam na torre, onde havia um grande sino de bronze escuro, que não soava só para baptizados, casamentos e enterros, soava também quando nos entretínhamos a atirar-lhe pedradas. Saíamos muitas vezes para o campo, em grupos de dois, e três, e quatro a roubar fruta, a caçar pássaros, a procurar ninhos. No tempo do figo lampo, passávamos tardes inteiras na sombra gelada e febril da árvore de Judas, espiando com olhos atentos o saltitar das flosas entre as folhas largas como mãos. Eu ia poucas vezes sozinho. O silêncio do campo fazia-me pânico. Ainda não tinha lido os filósofos alemães e não podia saber que era a minha própria presença que me apavorava. Procurava os lugares da ribeira onde brotassem juncos e malmequeres; tinham um aspecto de jardim e de família que me tranquilizava e esconjurava os sátiros. À noite, antes de me deitar, e conforme reza a história de todas as crianças, uma criada meio vesga, alta e magra, muito feia, contava-me contos de lobishomens. Ia para a cama cheio de terror, puxava o cobertor por cima da cabeça e suava suores frios muito tempo antes de adormecer. Havia na vila um lojista, o sr. Matos, de quem se dizia que era lobishomem. Íamos até lá e, enquanto aviava os fregueses, púnhamo-nos a olhar-lhe para as mãos a ver se descobríamos calos nos nós dos dedos. Tinha as mãos fortes e cara de cavalo. Sem respeito pela etimologia, a pobre mulher dizia que lobishomens eram homens que, de noite, se transformavam em burros. O sr. Matos não era bem lobo nem bem burro, mas tinha qualquer coisa dos dois por ter cara de cavalo. Anos mais tarde, encontrei-o em Lisboa numa esplanada, conversámos, recordando Arruda, como dois bons burgueses, e, apesar de o ter ali a falar comigo na mais clara língua de gente, não resisti à tentação de lhe investigar nas mãos sinais daquela tara sobrenatural.

 

[…][2]

 

Outra coisa que não posso esquecer foi que, ao chegar pela manhã à escola com os olhos inchados, certamente por uma picada de insecto, apanhei da professora, D. Maria Teotónio Guadalupe (como a primeira professora é importante e também o seu nome!), que deve ter interpretado o inchaço como resultado de uma briga. E que fosse uma briga, meu Deus?

A ideia que se faz da infância como de um paraíso na vida não é tão certa quanto rezam os livros, pelo menos se a minha pode servir de exemplo. Vivia num mundo hostil, povoado de medos. Tremia ao ouvir o trovão, enquanto o meu Pai se sentava a um canto da sala, muito quieto, envolvido numa manta, e mandava fechar todas as janelas. Ouvia falar do comunismo e da guerra, como de uma ameaça terrível, como de uma nuvem negra pejada de coriscos. Uma noite estávamos na sala e tínhamos visitas, as do costume, – o médico e um lavrador chamado Vaz Monteiro –. De repente, a criada irrompeu por ali dentro, gritando: – Uma grande Luz no Céu, Senhor Doutor! Saímos todos em tropel, atrás da criada que nos encaminhou para a varanda da cozinha. Era uma aurora boreal! Estávamos todos contemplando em silêncio aquela poeira de fogo, quando se ouviu alguém dizer: – É a Guerra! O meu coração maravilhado fez-se pequenino como uma espiga.

 

*  *  *

           

Mais tarde, vim a atribuir esta obsessiva sensação de instabilidade interior, que nunca mais me deixou pela vida adiante, não à minha infância, (e como à minha infância, se a criança que fui a vejo, lembrando-a, como vejo qualquer outra criança exterior a mim?), mas à carga de atavismo judaico que transporto comigo. Nos meus tempos de menino em Arruda, os outros rapazes chamavam-me o Chinês. (…)

 

[*  *  *]

 

 

À volta da vila, havia várias ribeiras, a que chamávamos rios. Havia o rio da Ponte, de que já falei; o rio da Verruga, com a sua água feita das fezes amalgamadas da população, mas tão fresco e tão sombrio nas tardes de verão e com tantos pássaros, por causa da sombra e dos insectos amantes dos dejectos, que para nós era o mais belo rio do mundo; o rio da Pipa, sabe-se lá hoje porquê Pipa!, com um largo caminho sempre ao lado e entre um e outro uma fileira de choupos e eucaliptos todos inclinados para um lado; o rio da Fresca, estreito e cavado fundo entre vinhedos, todo cheio de curvas, cotovelos e silvas, por cujas margens era uma aventura ir em fila indiana, todos os sentidos atentos ao surgir dos lagartos, das cobras e das ratazanas. Seguindo o curso dos rios, percorríamos todo o arredor. Só não subíamos para o lado da Quinta de São Sebastião, onde morava a Bruxa, numa casinha branca a meia encosta entre a vila e a quinta. Contava-se entre os garotos que um homem vinha descendo, uma noite, um pouco depois da casa e uma sombra se lhe atravessou no caminho e não o deixava passar.

– Mas uma sombra de quê? Uma sombra duma árvore? Perguntava eu.

– Uma Sombra. Não sabes o que é uma Sombra? Respondia o Malicos.

Malicos era o rei do adro. Todos nós o temíamos. Não costumava acompanhar-nos nas nossas excursões ao campo, onde se sentia em situação de inferioridade nos combates contra os pássaros. Também era dos piores nos jogos, mas aí obrigava-nos a jogar com ele até ganhar e fazia batota. Uma vez que o meu berlinde estava a um palmo do dele e eu jogava a matar, disse para mim:

– Tira-te daí que quem joga por ti sou eu.

– Mas tu não podes jogar por mim.

– Porque não? Não é o mesmo?

– Não, não é o mesmo. As tuas mãos não são as minhas nem os teus olhos são os meus olhos. Tu erras de propósito e se queres jogar por mim, então joga sozinho.

Eu estava revoltado e quase capaz de perder o medo, nem que tivesse de ir para casa com os olhos pisados de murros. Jogávamos com abafadores e o vencido perderia o seu. O meu abafador tinha umas cores muito lindas.

– Já te disse que te tirasses daí. – Empurrou-me para o lado e abaixando-se atirou devagarinho o meu. Meteu os dois berlindes no bolso, andou uns passos, tirou-os outra vez de lá, e fê-los brilhar ao sol saltando-lhe nas mãos. Eu estava pálido, não fazia um movimento, mas com qualquer coisa em mim sinistra se estabelecia um terrível pacto de vingança.

Malicos era baixo, mais forte do que qualquer de nós e tinha um pescoço grosso. Tinha cara de homem com treze anos. A tudo quanto dizíamos para fazer valer os nossos direitos respondia sempre: “Isso não interessa”. Das crianças que brincavam no adro, creio que não havia uma que não lhe desejasse a morte.

Malicos acamaradava com Lucas. Pela época em que se passou o roubo do abafador, Lucas tinha perdido o seu prestígio entre os rapazes, um prestígio de natureza mágica que lhe adviera de ser capaz de cortar um arame com os dentes. Era um cobarde. Malicos também certamente, mas a cobardia não estava à flor da pele como em Lucas. Nunca ninguém se atreveu a responder à sua agressividade com a agressividade e pôde chegar a homem temido por todos. Lucas, porém, era frágil como um caniço e tinha uma cabeça grande de chimpanzé com os seus terríveis dentes. Entre os trapos que o vestiam, parecia estar sempre a tremer de frio. Depois que lhe perdemos o medo e o fizemos fugir à frente das pedras e dos murros, passou a andar sempre com Malicos. No tirano veem os cobardes aquele dos seus capaz de estabelecer uma situação de domínio sobre os humildes, inteligentes e corajosos.

Todos os rapazes da vila passavam pelo adro a brincar, excepto um: o filho do Mário das Galinhas. Como o pai, vivia à margem da sociedade. Às vezes, víamos passar os dois em cima da carroça puxada por uma mula. A casa deles ficava por trás da minha, mas levantava-se um grande muro entre os dois quintais e só uma vez trepando ao telhado consegui entrever uma mulher, de certo a mãe do rapazito, a despejar numa sardinheira um balde de água. O Mário das Galinhas era o herói da vila para todos nós, que o procurávamos imitar roubando fruta nos pomares e botões na caixa de costura. Era um homem de cinquenta anos; ao pé do filho, que rodava pela nossa idade, parecia mais avô que pai. Lembro-me de um rosto de ave de rapina cheio de rugas, calado, triste e austero, por baixo dum boné cinzento, e com um bigode grisalho, muito bem tratado como o de meu pai. O filho era gordo e corado, com umas pernas brancas e moles, e tinha um olhar inexpressivo, apagado e doce como o dos bovinos. Uma tarde de outono, [em] que eu e outro rapaz regressávamos pelo rio da Ponte de uma caçada aos pássaros, vimos a carroça parada junto ao muro da Quinta do Tonicas. O rapazito estava em cima da carroça e ia recolhendo as maçãs que o pai lhe passava por cima do muro. Nem sequer olharam para nós, quando nos cruzámos por eles. Faziam aquilo sem pressa, com naturalidade e indiferença, como se a fruta fosse deles e estivessem a apanhar o que era seu.

Este encontro quebrou parte do encanto que em mim despertava o ladrão de galinhas. Os meus roubos de maçãs tinham muito mais emoção e muito mais risco. Nessa mesma tarde, tínhamos limpado dezenas de pêssegos nas barbas do proprietário, que a vinte metros de distância tratava a sua horta e não via o vai-vem contínuo dum bracito saindo dum canavial na margem da ribeira.

O Mário das Galinhas, dias depois, fez vibrar a vila com uma proeza extraordinária. Foi em Vila Franca, terra onde não era tão conhecido. Pelas onze horas da noite, alguém que passava reconheceu a sua carroça junto a um celeiro. Correu a avisar a polícia, tanto mais que reparara estar a porta entreaberta. Juntou-se ali muita gente, mas a polícia quando entrou viu que havia uma abertura no telhado por onde o ratoneiro se escapulira. Subiram para os telhados, distribuíram-se pelas ruas próximas, mas foi em balde que o procuraram. De repente alguém gritou: – A carroça desapareceu! Tranquilamente, Mário esperou que não estivesse ninguém à porta, saiu de sob o trigo onde se escondera e tomou um rumo desconhecido. Durante alguns meses não foi mais visto em Arruda. Dizia-se que estava em Runa.          

– Eh pá, vocês sabem uma coisa? – Dizia-nos o Asdrúbal, a mim e a mais três rapazes. – O Mário das Galinhas já aí está outra vez.

– Viste-o?

– Não vi, mas estava o meu pai a dizer isso a um amigo.

Estávamos no adro e anoitecia. Passavam bandos de pardais para o lado dos freixos do rio da Verruga. Os guinchos voavam em grandes curvas, soltando sons estrídulos. Duas mulheres conversavam ao pé das pimenteiras. O sacristão passou por nós assobiando e entrou para a igreja. O Asdrúbal morava numa das casas que circundavam o adro. A mãe chamou-o da janela. Dois dos rapazes partiram com ele. Eu fiquei com o José Mantas, sentados os dois num recanto do adro sobre um pequeno banco de pedra. Era o meu habitual companheiro de caça e a nossa conversa girava, como sempre, em torno de atiradeiras e pardais. Puxou-me pela manga da camisola e fez-me sinal com o olhar para o lado das pimenteiras. As mulheres já não estavam lá, mas junto ao muro da igreja vi duas pequenas sombras deslizando com cautela que, daí a instantes, se sumiram pela porta da igreja que o sacristão deixara aberta.

– Viste quem era? Perguntou-me o Mantas num sussurro.

– Um deles pareceu-me o Malicos.

– Claro que era o Malicos mais o Cunha. Que é que achas que eles vão ali fazer?

– Sei lá! O sacristão está lá dentro.

– Eu não percebo é por que iam a esconder-se, os tunantes.

Calámo-nos e pusemo-nos a espiar. Pressentíamos qualquer coisa, não sabíamos o quê e os nossos corações sentiam-se bater.

– Se a gente fosse lá ver? Disse eu, mas o Mantas puxou-me outra vez pela camisola. Desta vez era o sacristão que saía. Era já noite fechada e só lhe distinguíamos o vulto. Ouvimos a grande chave girar com estalos na fechadura. Malicos e Lucas tinham ficado lá dentro fechados. Quando o sacristão passava na nossa frente, com a chave suspensa numa das mãos, pensámos ao mesmo tempo ir dizer-lhe, mas foi ainda o Mantas que, desistindo, me segurou pelo braço:

– Fica quieto! Não te mexas! Pôs o dedo indicador a prumo sobre a boca.

O homem recomeçou a assobiar e pudemos assim segui-lo até que o som se perdeu na distância.    

– Ouve! – disse-me o Mantas – Vais jantar, não é? Sais esta noite?

– Esta noite não posso. Tenho lição com o meu Pai.

– Que chatice, mas não tem importância. Amanhã pela manhãzinha, oito e picos, está bem?

encontramo-nos aqui. E não digas nada lá em casa. Parece-me que adivinho o que os bandidos foram ali fazer. Agora vamos!  

 

*  *  *

 

 

O prior da Arruda, padre José Lopes, era, como se está mesmo a ver, uma das figuras familiares da rapaziada do adro, que o via passar a horas certas do relógio, marcadas pelas horas dos ofícios: fora das horas dos ofícios, ou caturrava com os republicanos da farmácia ou andava a apanhar espargos nos caminhos trilhados pelas cabras. Calcorreava terreno que nem um demónio este velho de forte arcabouço, não tivesse ele sido o maior caçador da região, enquanto a vista voava mais que a perdiz e os braços eram mais velozes que o ziguezaguear da lebre. Nas horas certas em que passava pelo adro, lá ia pesado e trôpego, mas rijo, resmungando qualquer coisa que nos parecia latim. Nunca nos fazia festas, nunca nos dirigia a palavra: sabíamos, contudo, que gostava de nós. Quando me confessei por ocasião da minha primeira comunhão, mandou-me embora sem me deixar abrir a boca: – Vai-te! Tu não tens pecados.

Na verdade, olhávamo-lo com respeito, não por ser padre, mas por termos ouvido dizer que dez anos atrás não havia na redondeza melhor atirador de perdizes. Havia um mês que o tinha vindo substituir um homem novo, enquanto ele se não restabelecesse duma operação aos órgãos genitais a que o submeteram em Lisboa. A Igreja tinha agora uma frequência mais assídua de senhoras, mas o padre parecia-nos maricas, com o seu passinho curto a atravessar o adro e aquele jogar do corpo dentro da sotaina. Punha-nos a mão na cabeça e fazia-nos perguntas sobre os nossos pais, os nossos estudos, os nossos deveres religiosos. À sua volta, parecíamos um coro de anjos, um círculo barroco de cabeças morenas com dois grandes rios de ranho jorrando dos narizes. Aconteceu algumas vezes que, logo que voltava costas e entrava na Igreja, era um tal chover de pedradas no sino da torre que todas as mulheres vinham às janelas e o sapateiro do canto deixava de bater na tripeça, abrindo a boca num grande sorriso alvar de satisfação anticlerical. O padre vinha de dentro e encontrava o adro deserto. Das esquinas mais distantes víamo-lo esguio e cómico no meio do portal, a fazer muitos gestos, num jeito de espantalho ou de artista de circo capaz de fazer rir os santos nos altares.

Quando eu e o Mantas, na manhã seguinte, chegámos ao adro, a porta da Igreja estava aberta. Entrámos. Os bancos estavam cheios de mulheres que assistiam à missa, enquanto o padre fazia gestos silenciosos, se curvava, se benzia, umas vezes de costas, outras vezes de frente, e lia num grande livro posto sobre o altar. Deste livro dizia o professor Lança na escola que tinha as letras assim tão grandes por ter sido escrito para analfabetos. A Igreja cheirava a papéis velhos. Eu não gostava do cheiro da Igreja, mas ficava fascinado a olhar os vitrais e aquela misteriosa transformação da luz. Havia um silêncio, um andar nas pontas dos pés como se estivesse ali alguém muito doente, que nos fazia olhar para todos os lados à procura de qualquer coisa de invisível; todavia, se alguém tossia começavam todos a fazer o mesmo e era um rascar de escarros nas gargantas por entre o qual o rito continuava a celebrar-se imperturbável. O Mantas tinha-se apercebido, antes de mim, que a tosse era contagiosa. De outras vezes ali tinha ido, acompanhado de alguns de nós, e, escondendo-se atrás duma coluna, escolhia um momento de perfeito silêncio para tossir; logo, uma aqui, outra ali, as mulheres começavam a tossir também e tínhamos de sair à pressa para fora para poder rir à vontade até chorar. Nesses momentos, enquanto a tosse se propagava e os rapazes começavam a não serem capazes de suster o riso, parecia-me que, pelos rostos dos santos alinhados dum e doutro lado da Igreja, passava uma expressão severa.

Naquela manhã, procurávamos com os olhos o Lucas e o Malicos.

– Foi pena termos chegado já com a Igreja aberta. – Sussurrou-me ao ouvido o companheiro. E, de repente, tendo uma ideia que lhe iluminou o olhar: – Anda cá para fora!   

– É o seguinte. – Disse-me na porta. – Como se arranjaram eles com as famílias para passar a noite na rua? Vem daí! Vamos a casa do Lucas.

A mãe do rapaz disse-nos que o filho não estava, que tinha passado a noite na casa do Malicos. Fomos a casa do Malicos e a mãe deste deu-nos análoga resposta, que o filho não estava, que tinha passado a noite na casa do Lucas.

Um vento frio fustigava a vila. Dentro de casa estava-se bem. Uma criança olhava para a rua por detrás dos vidros da janela. À porta da taverna do Matias, um grupo de homens, embuçados em capotes, conversavam de mãos nos bolsos. Uma camioneta de carga vinha descendo lentamente com um chiar de travões que irritava os ouvidos. Por detrás vinha correndo um  homem com uma grande caixa cúbica suspensa nas costas por correias, toda pintada de branco. Parou em frente do grupo e gritou:

– Esquimó fresquinho!

Os homens riram-se: – Eh moço! Isso aquece a gente?

Mas em cima a janela da criança abriu-se e uma mulher fez sinal ao vendedor de gelados: – Que subisse as escadas!

– Esta gente rica! Disse um dos homens. – Quando é que um filho meu comeria esquimós por um tempo destes? Não sabem o que hão-de fazer ao dinheiro.

Um rapazinho puxou-o pelo capote. Tinha uma expressão espantada e tremia com frio, embora levasse uma camisola de malha, levantada até ao pescoço.

– Não viram por aqui o rapaz dos esquimós?

O homem manteve-se de costas voltadas, enquanto os outros riam. Ficou calado e sério uns instantes e por fim informou sem olhar para a criança:

– Está aí dentro. Deve estar a sair.

Começou a chuviscar. O homem voltou-se:

– Olha lá, gaiato! Que danado de gosto é esse de querer comer gelados com um frio destes?

O outro encolheu os ombros e preparava-se talvez para responder quando surgiu o vendedor de esquimós.

– Quatro. – Disse o rapazito, mostrando quatro dedos levantados.

Abalou a correr rua abaixo com os gelados nas mãos. De dentro da taverna, donde vinha um som surdo de vozes e se ouviam estalar sobre a mesa pedras de dominó, alguém disse para fora, interpelando o grupo:

– É o filho do Mário das Galinhas.

Voltaram-se todos procurando o miúdo com os olhos, mas este já havia desaparecido.

– Filho do Mário das Galinhas. E como está bem vestido o diacho!

– Logo quatro gelados. Aquilo era um para ele, outro para o pai e outro para a mulher.

– O quarto para as galinhas (…)    

 

 

António Telmo

____________

 Comentário

Pedro Martins

 

1. Na obra de António Telmo, nos livros que escreveu, nas entrevistas que concedeu, são várias, porventura abundantes, as referências que o filósofo faz a Arruda dos Vinhos, pequena vila da antiga província da Estremadura, incrustada no limiar indeciso que separa o Ribatejo do Oeste, onde, durante cerca de uma década (após o seu regresso de Moçâmedes, Angola, em 1933, e até à partida para Sesimbra, em 1943), completou a infância e viveu boa parte da juventude. Ali cumprirá com distinção o ensino primário e encetará, como autodidacta (na verdade, não deixará nunca de o ser), a aprendizagem liceal em regime de ensino doméstico, a que seu pai empresta uma tutela branda, mas vigilante.

Antes de mais, tenham-se presentes as páginas, com diversos laivos autobiográficos, de “Os Dioscuros”, narrativa inaugural dos Contos, onde os gémeos protagonistas, Tiago e Túlio, nascem e crescem em Arruda. Ainda neste livro, mas noutro escrito – o extraordinário depoimento intitulado “Trabalho de Grupo” –, deparamos com uma importante revelação de autobiografia espiritual, espacialmente referida ao velho burgo arrudense:

 

    O meu pai foi o meu primeiro Mestre e envolveu o melhor da sua força na forma do filho primogénito. Com efeito, por volta dos meus quinze anos, meu irmão mais velho, que viria a tornar-se famoso como Orlando Vitorino, conheceu o José Marinho e o Álvaro Ribeiro. Por seu intermédio, fui agraciado com a leitura de um livro que decidiu de toda a minha vida espiritual: Literatura e Ocultismo de Denis Saurat.

    É um estudo de poetas ocultistas (William Blake, Milton, etc.), que pretende mostrar a influência na sua obra da Kabbalah. Mas o que me acordou para a ciência do mistério foram os textos do Zohar no fim do volume que o autor selecionou para ilustrar o seu ponto de vista.

 

Tudo isto se dá ainda em Arruda dos Vinhos. José Marinho, impedido pelo Estado Novo de continuar a ensinar nas escolas públicas, ganhara renome como explicador de filosofia. António Diniz Victorino, pai de Telmo e Orlando, solicitou o concurso eficaz do seu prestígio no apoio ao filho mais velho, que pretendia ingressar na licenciatura de Histórico-Filosóficas. Então amiúde se deslocou Marinho à Arruda, onde tomava as refeições com a família Victorino, para habilitar cabalmente o filósofo a haver. O sucedido teve consequências já sabidas: preparou o ingresso de Orlando Vitorino e António Telmo no círculo que ao seu redor, e de Álvaro Ribeiro, se desenhava já, com impressionante vigor, nas tertúlias filosóficas dos cafés lisboetas.

Proporcionada por Orlando, também a descoberta do francês Denis Saurat se revela decisiva na formação de Telmo. À margem das evidências, e para bem avaliarmos a sua importância na formação deste último, bastará considerar que, em apontamento autobiográfico manuscrito que se guarda no seu espólio, o filósofo afirma ter ido para a Universidade de Brasília para ensinar – precisamente – “literatura e ocultismo”.

Fora já em Arruda que uma outra, análoga, descoberta se lhe oferecera à vocação, conforme António Telmo revela na entrevista que, em 1998, concedeu à revista LER – Livros e Leitores:

 

    Eu vivia em Arruda dos Vinhos, e na biblioteca municipal havia uns livros. Um dia, tinha eu dez anos, apanhei um que se chamava Ciências Ocultas, e o que me maravilhou nele foi que, entre muitas outras coisas que lá havia e que eu não percebia, se dizia uma coisa espantosa: que nas nuvens se podia ler o destino. Isso impressionou-me muito, e eu passei a ir para o campo, deitar-me de barriga para o ar a ver passar as nuvens e a ver se era capaz de ler o meu destino. Nunca fui capaz, mas aquela beleza das nuvens impressionou-me e ficou a fazer parte de mim. É aí que nasce tudo, é nesse impulso que começa a minha tendência para estes temas.

 

São afirmações inequívocas, estas; e ilustram definitivamente a seminal, fundamental importância da década de Arruda na formação do futuro filósofo e hermeneuta. E é ainda na pequena vila estremenha que outras leituras – as dos grandes poetas portugueses – se vão insinuando na alma do jovem Telmo, consoante o próprio, já perto do fim da vida, nos revela, a instâncias de Henrique Manuel S. Pereira, na entrevista destinada ao volume À Volta de Junqueiro – vida, obra e pensamento:

 

    Tem presente a época e circunstância em que “descobriu” Guerra Junqueiro?

    Descobri Guerra Junqueiro quando comecei a compreender aquilo que lia. Por volta dos meus treze anos. Nesse tempo, não havia televisão, que veio corromper as noites em família. Jogávamos, conversávamos, líamos. O meu Pai era monárquico e bom cristão. Em jovem, tinha batalhado no movimento do Integralismo Lusitano do António Sardinha e tinha sido preso. Eu e os meus irmãos (éramos três, o António, o Rui e o Orlando, por ordem ascendente das idades) gostávamos de ver a fotografia do nosso pai no Talassa, ali onde se elogiava a actividade monárquica que o levou à prisão. Por esses tempos, também o Agostinho da Silva andava pelo Integralismo Lusitano. Este meu grande Amigo e meu pai devem ter-se conhecido. Ora acontecia que, na pequena biblioteca literária do meu pai (era jurista), só quase havia livros de republicanos anticlericais. É o que acontece hoje com os anticomunistas: todos têm na sua estante, em lugar de honra, o Saramago e o Lobo Antunes.

    Arrisco dizer que um desses livros era A Velhice do Padre Eterno

    Sim, era, e com os Sonetos de Antero de Quental e com o do António Nobre apaixonei-me pela beleza da nossa língua. Lia e relia, nesses serões provincianos de Arruda dos Vinhos, A Velhice do Padre Eterno, mas desse livro só se me imprimiram na memória para toda a vida os dois versos com que começa um dos poucos em que Guerra Junqueiro não ataca o clero: “Minha mãe, minha mãe! ai que saudade imensa, / Do tempo em que ajoelhava, orando, ao pé de ti”. Também eu orava ajoelhado ao pé de minha mãe, que me ensinou a traçar sobre a minha fronte, sobre a minha boca, sobre o meu peito o sinal da cruz, fazendo-me acompanhar os três movimentos do polegar com estas palavras: “Pelo sinal da Santa Cruz/Livre-nos Deus Nosso Senhor / Dos nossos inimigos.”

 

2. A par dos livros, e dos enigmas que neles há, um outro, maior segredo irá interpelar António Telmo: o que se encerra – já que de Junqueiro e d’A Velhice do Padre Eterno (nela inclusos os versos tremendos de O Melro) se vem de falar – nessa “verdadeira Bíblia” de olor franciscano que o grande livro da Natureza contém. São na aparência felizes os anos por si levados em Arruda numa vida ao ar livre, na roda do rapazio: ora no adro da igreja, à sombra do portal manuelino, sugestivo e inspirador; ora à solta nos campos, entre montes e vales permeados pelo assomo copioso das ribeiras: incessante sucessão de jogos, aventuras e partidas em que, por entre as hastes da fisga exímia, desponta já o futuro – e enfim repeso – caçador que Telmo também foi. O excerto de um apontamento tardio, trazido a lume nas Congeminações de um Neopitagórico, constitui-se como o testemunho autêntico do que se acaba de afirmar:

 

    Fazendo por pensar e escrever com a mesma inocência com que vivia o rapazinho de calções armado de fisga; não deixar, por excesso de humildade, de pensar e escrever o que me vai sendo dado como o rio que corre ou o vento sopra. E, cada vez mais, estar retirado do mundo no meu canto provinciano, onde o 666 e as suas manobras se esquecem de atingir-me.

    Vem cá amanhã o Pedro Sinde, vem do Norte ao Sul para conversar. Estou muito contente por termos mais uma vez ocasião de caçarmos juntos ideias com um prazer análogo ao que eu sentia a caçar pássaros com o Mantas pelos campos da Arruda dos Vinhos.

    Mas a dor dos pássaros feridos de morte brada contra mim do outro mundo, de um mundo que é outro mas que está na minha alma. Hoje deixei de caçar, tomado de remorsos. As ideias caçam-se? Aristóteles viu bem quando comparou a filosofia à altanaria? Não somos nós que somos caçados por elas? Não são as ideias aves resplandecentes de luz que uma vez pousadas na árvore do nosso ser íntimo afastam dele todas as aves nocturnas, tenebrosas, inquietantes como o próprio remorso?

 

Bem se vê que tudo lhe começa na Arruda: até o contacto ingénuo com o subconsciente hebraico, que lhe será críptico atavismo, posto a par de um certo fundo anticlerical, ressumado da herança renascente de Bruno e Pascoaes, que será depois também a sua. Ainda num outro apontamento dado à estampa nas Congeminações, conta-nos António Telmo:

 

    Quando eu era criança, por volta dos treze anos, no adro da igreja, em Arruda dos Vinhos, ouvi dizer a um companheiro de brincadeira, no dia de Todos os Santos, que São Tiago só chegava no dia seguinte, porque era coxo. E o rapaz acrescentava, fazendo-me olhar para o céu estrelado, que a poeira luminosa da Estrada de Santiago que, na escola, nos ensinavam ser a Via Láctea, era levantada pelo pé do Santo, arrastando-o enquanto ia ficando mais longe dos outros.

    Sei hoje que São Tiago é o mesmo que São Jacob, aquele que lutou com o Anjo e saiu da luta, que venceu, a coxear. Compreendo agora que o rapaz, falando por tradição, o fazia coxo.

    O que aprendi naquele adro da igreja com os seus arraiais e a sucessão e jogos que jogávamos misteriosamente ordenada como uma liturgia do tempo! Ali começou para todos nós, no domínio da sensação e da imaginação, a aprendizagem do que é a verdadeira liberdade. O filósofo José Marinho, julgo que num dos seus aforismos, se não o ouvi da sua própria boca, dizia: «O que eu amo nas igrejas é o adro».

 

3. Paródico, episódico, picaresco, porém tocado, aqui e ali, pela sombra juvenil do conhecimento do mal, o apreciável conjunto de laudas inéditas dactilografadas que António Telmo dedicou a Arruda parece bem ser o começo de um livro – mais um! – que o filósofo deixou por acabar, e que poderá ter sido lavrado no início dos anos setenta. Ainda assim, e não obstante o carácter algo precário do texto esboçado naquela que presumo ser a sua primeira, inconclusa versão, o que chegou até nós é francamente admirável, por nos patentear um prosador notabilíssimo, num registo estilístico surpreendente, que irá tomar outros rumos no desenvolvimento da obra télmica – compare-se, a este propósito, as páginas simples sobre Arruda dos Vinhos com a elaboração densamente refinada dos Contos do filósofo, de factura, segundo suponho, bem mais tardia.

Transportados para a Arruda pacata e remansosa das décadas de 30 e 40, deparamo-nos com uma escrita límpida, singela, saudável, sem mácula de pretensão, cujos processos descritivos, narrativos e dialogais se impõem com mestria ao prazer do leitor, numa textura de palavras corredias, escorreitas, portadoras de uma fluidez luminosa e, por isso, visual.

Indo muito além do que, nos apontamentos recenseados na obra publicada em vida, e aqui revisitados, nos deu a conhecer do mágico decénio vivido em Arruda, António Telmo, neste memorial melancólico e burlesco, mostra-nos como o germe embrionário da sua inteireza grandiosa logo emerge desse fértil período virginal. Ali encontramos, por via da lembrança, a audácia de uma irreverência travessa, também concretizada na transgressão do pequeno delito, a par do ensimesmamento introspectivo ante o embate do mal e da dor, em que a autognose indispensável à condição filosófica se prenuncia já…



[1] Título da responsabilidade do editor.

[2] António Telmo cortou, no dactiloscrito, a parte do texto que a seguir se transcreve:

 

«Mas o pior, em Arruda, era quando havia um enterro e o caixão entrava na Igreja para ser benzido pelo padre. Interrompiam-se os jogos e as brincadeiras. Esgueirávamo-nos por entre as pernas dos presentes e ficávamos à volta do caixão, a poucos palmos de um rosto lívido sem sangue, que nos gelava o nosso e se metia cá dentro como uma imagem nítida que transportávamos para os sonhos. Por detrás da vila, a uns quinhentos metros e passado o rio da Pipa, um rio que eu amava embora fosse formado dos dejectos da população, havia uma pequena, abrupta elevação, com uma cruz de pedra em cima: chamava-se o Alto da Forca. Só uma vez passei perto da cruz e, por mais que olhasse e reflectisse, não consegui compreender como ali se podiam ter enforcado homens.   

Uma manhã, vinha saindo da escola, uma velha casa de esquina na parte baixa da vila, e andara alguns metros para além da porta, rua Direita acima, quando um homem que estava do outro lado da rua se aproximou de mim e começou a bater-me. Nunca entendi isto, mas fiquei sempre marcado pelo medo que tive.»

 

DOCUMENTA. 03

01-05-2014 10:57

[Eusébio e Cubillas]

 

Introdução

Pedro Martins

 

À ideia de viagem, sempre tão proverbial na vida e na obra de António Telmo, ajusta-se na perfeição o trajecto biográfico evidenciado pelas suas preferências clubísticas.  Adepto do Belenenses desde tenra idade – ao que se sabe, em lance de afirmação diferenciadora perante os seus dois irmãos, um benfiquista, o outro sportinguista –, o filósofo tornar-se-á, mais tarde, nos tempos áureos em que  Eusébio e Coluna pontificam no Sport Lisboa e Benfica, fervoroso simpatizante do clube da Luz. É possível que o aceso benfiquismo de Afonso Botelho e de António Quadros, seus amigos e condiscípulos no magistério filosofal de Álvaro Ribeiro e José Marinho, tenha influenciado a mudança de sentido de Telmo, que,  por um desses anos faustos dos encarnados, ao cruzar-se com Eusébio no Cinema Roma, em Lisboa, requesta um autógrafo ao pantera negra.

É neste contexto de retumbante entusiasmo que, com alguma naturalidade, surge a entrevista concedida pelo filósofo, faz exactamente hoje meio século, a O Benfica Ilustrado, suplemento mensal do jornal O Benfica, à época dirigido por Botelho. Muito longe da futilidade oca e ligeira que tantas e tantas vezes surpreendemos no periodismo desportivo, as palavras télmicas destacam-se pelo seu interesse e pela elevação de quem as profere: um filósofo é um filósofo!...

Telmo, na verdade, vinha de lançar o seu livro de estreia, Arte Poética, e encontrava-se então em Évora, onde fizera tropa e agora ensinava, na Escola Comercial e Industrial, em cuja equipa o surprendemos alinhando, conforme mostra uma fotografia datada de 1962. Tem junto a si a bola, à semelhança do que sucede numa outra imagem, fixada vinte anos antes, em 1942, em Arruda dos Vinhos, em que o jovem António Telmo enverga o jersey do clube local. Praticante de bom nível, o filósofo, aquando da sua primeira passagem por Évora, em 1952, para ali cumprir o serviço militar, terá mesmo chegado a suscitar o interesse do Lusitano local, por quem, uma década depois, conforme se infere da entrevista a'O Benfica Ilustrado, sofrerá a bom sofrer...

Parece que Peyroteo o trouxe ao colo nos anos infantes e remotíssimos – de 1929 a 1933 – em que viveu em Moçâmedes, Angola – mas é como portista, e não como sportinguista, que o adepto do futebol António Telmo Carvalho Vitorino poderá vir a ser lembrado. Aqui, desde há uns bons trinta anos, para seguir as pisadas do filho Manuel, também ele, desde muito cedo, torcedor pelo emblema da Invicta.

O portismo de António Telmo levá-lo-á a tomar parte, mediante convite de Jorge Nuno Pinto da Costa mediado por Pedro Baptista, numa importante jornada de celebração dos dragões: as "Noites do Tri". Foi em 1997, pelo meado de Junho, na cidade em que, com Sampaio Bruno e Leonardo Coimbra, nasceu a filosofia portuguesa de Álvaro Ribeiro e José Marinho, inigualados mestres tripeiros que as agruras do "exílio" irradiante hão-de trazer para Lisboa.

O chauffeur do presidente do Futebol Clube do Porto leva-o e trá-lo de volta a Estremoz. Pelo meio, na cidade da Virgem, por entre as nocturnas notas de Bach que o pianista Paulo Assis e a violinista Lina Turbonet fazem soar, o filósofo profere uma palestra subordinada ao tema "O clube é um mundo"; e tem também tempo para sugerir a mister António Oliveira que aprenda algo de kabbalah, «código velho com que os judeus tentam ainda decifrar o mundo e que pode ser-lhe útil para relançar o movimento que leve do "tri" ao "tetra"». Na verdade – e aqui releva o testemunho que colhi do próprio Telmo –, chega a propor-lhe que disponha em campo o onze azul e branco segundo os ditames das tríades sefiróticas (onze, e não apenas dez, são também as sephirot, se levarmos em conta Daath, ligando Hochmah e Binah no mundo de Aziluth...)!

O jornal O Jogo, que vimos seguindo, dá-nos conta, na sua edição de 13 de Junho desse ano de 1997, das analogias que o pensador estabeleceu entre o jogo e a filosofia. Dois dias antes, em evidente registo lúdico, afirma-se haver quem, na Invicta, espere de Telmo um novo livro, intitulado O Império de Jardel... 

Humano, porventura demasiado humano para alguns, este outro António Telmo. Mas, afinal, o mesmo de sempre. Quando, com António Quadros, acabado o ágape filosófico com os mestres, mãos nos bolsos, assobiando, sorridente, entrava no primeiro café onde se lhes deparasse uma mesa de matraquilhos...  

       

____________

 

Entrevista com António Telmo*

 

António Telmo publicou o seu primeiro artigo no Boletim de Língua Portuguesa.

Após um período em que colaborou nos jornais da capital (Diário de Notícias, Diário Ilustrado, Diário Popular, etc.) fez parte de um movimento de cultura portuguesa, veiculado pela Revista 57, de que foi um dos fundadores. Retirou-se, por necessidade profissional, para Beja, onde durante quatro anos exerceu o professorado no Ensino Técnico. Ali pensou «Arte Poética», livro que só pôde escrever em Évora, em cuja Escola Técnica encontrou aquela tranquilidade de espírito indispensável às criações do intelecto.

«Arte Poética», agora publicado, confirma e revela António Telmo como um dos mais esclarecidos, argutos e poderosos pensadores da moderna geração.

 

P. – Costuma ir ao futebol?

 

R. – Quando o Benfica joga em Évora, nunca falto, assim como nunca perco a oportunidade de o ver nos outros pontos do país.

 

P. – O que o leva lá?

 

R. – O Benfica, os seus jogadores admiráveis, as suas camisolas vermelhas, a sua glória! Devo, porém, dizer que, depois do Benfica, está o Lusitano. Encontro-me ligado a Évora pelo destino: – aqui fui soldado, aqui casei, aqui sou professor. Ainda há dias, sofri nas bancadas para que o Lusitano não descesse de Divisão. Tiveram, porém, de jogar «à Benfica»!

 

P. – Como interpreta a cada vez maior importância do futebol, como espectáculo, na vida do homem contemporâneo?

 

R. – Só posso dizer que as várias explicações que se costumam dar – económicas, sociológicas, políticas e até religiosas –, conquanto verdadeiras dos seus pontos de vista, não me convencem completamente. Há outra, que procuramos. O futebol actua como um anestésico, o futebol representa a luta mítica da luz com as trevas, o futebol entusiasma pela teatralização do heroísmo, o futebol é o substituto moderno das romarias – tudo isto é verdade, mas esta verdade não é tudo.

 

P. – Há reflexos do desporto no plano da cultura ou considera que há total separação?

 

R. – É curioso que a nossa cultura se subordina muito mais ao desporto do que este àquela. Dir-se-á que a mentalidade dos nossos homens cultos é uma mentalidade ridiculamente desportiva. Os escritores são estudados na crítica literária da mesma maneira que os atletas na crítica desportiva. Diz-se, por exemplo, de Domingos Monteiro o mesmo que se diz de Eusébio: – o nível mental a que sobe ou desce a inteligência num ou noutro caso é exactamente o mesmo. Comparam-se os poetas como se comparam os jogadores: – em função da prática, da habilidade, da técnica, dos estilos. Vejam-se algumas correspondências:

 

«Eusébio é superior a Rogério»

 

«Régio é superior a Torga»

 

«Neste jogo, Germano mostrou poder reconquistar o seu lugar na equipa do Benfica».

 

«Neste livro, Fulano (um escritor conhecido), que já não publicava há alguns anos, mostrou-se ainda de posse de todos os seus recursos estilísticos».

 

«Determinado jogador é já uma promessa do nosso futebol».

 

«Determinado escritor é já uma promessa das nossas letras».

 

Deve dizer-se, porém, que os críticos desportivos (que, aliás, escrevem muito melhor que os críticos literários) estão no seu papel. É que a cultura é o domínio do pensamento. Há, também, uma virilidade do espírito, que paira por cima do elogio e da crítica – que são os movimentos característicos da mentalidade feminina. Neste sentido, todos devemos concordar que desporto e cultura se separam por definição. Poderíamos ter levado ainda mais longe aquelas correspondências mentais, se tivéssemos recordado os programas de televisão em que são entrevistados desportistas e intelectuais.

 

P. – O que se oferece dizer sobre o ambiente cultural português?

 

R. – Que é um ambiente em que não se discutem ideias, mas se repetem opiniões, apesar de por ele ter passado o espírito de António Sérgio.

 

P. – Atendendo ao extraordinário desenvolvimento conseguido pelo Benfica no campo desportivo e ao grande número dos seus simpatizantes, acha que também no plano da cultura o Benfica poderia desempenhar papel relevante?

 

 R. – Seria interessante que fosse o Benfica a contribuir para a reforma da mentalidade que domina a nossa cultura, dizendo aos intelectuais: «O desporto é connosco; deixai de ser desportistas no plano da cultura; nós acertámos com os nossos valores; pomos sempre o melhor jogador no melhor lugar; isto é que vocês deveriam aprender connosco, a saber seleccionar os atletas, sem burocracias inúteis e perniciosas, sem cursos feitos para que triunfem os menos aptos. Mas não transferi os métodos que se usam no domínio da força física e da destreza física para o domínio do espírito. Este mede-se pelos frutos, é uma árvore cujas raízes mergulham no fundo imensurável da inteligência humana».

 

O Benfica, precisamente porque vive à parte da cultura, livre dos seus preconceitos e dos seus limites, poderia constituir o ponto de partida dum movimento intelectual imenso. Não é a mim, porém, a quem faltam todos os elementos de ordem concreta, que compete apontar os modos de realização desse movimento.    

 

____________ 

* Publicado em O Benfica Ilustrado, suplemento mensal do jornal O Benfica, n.º 80, 1 de Maio de 1964, Ano VII. 

CORRESPONDÊNCIA. 09

29-04-2014 10:27

CORRESPONDÊNCIA DE ÁLVARO RIBEIRO PARA ANTÓNIO TELMO. 04

CORRESPONDÊNCIA DE ÁLVARO RIBEIRO PARA ANTÓNIO TELMO. 03



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Lisboa, 30 de Março de 1971

 

Meu caro António Telmo:

 

Motivo superior à minha vontade obriga-me a escrever-lhe de repente. O António Telmo foi citado por mim na palestra que efectuei a 23 de Março sobre “Filosofia e Filologia” no Círculo de Estudos Filosóficos, promovido e dirigido por António Quadros. Nas conversas das nossas tertúlias muitas vezes rememoramos o nome do autor da “Arte Poética”, infelizmente afastado de nós. Não sentirá o António Telmo o efeito da nossa invocação?...

Ser-nos-ia agradável que António Telmo viesse a Lisboa falar sobre “Filosofia e Kabala”. Sei que hoje conhece bem esse assunto, especialmente na feição sefardim. Lembro-me das nossas conversas sobre interpretação kabalista das doutrinas de Freud sobre a polaridade dos sexos e a mediação da libido, o prazer e a morte. Ultimamente, ao retocar nuns textos de Kant, verifiquei que a psicanálise descobre nos estudos do grande filósofo a profundidade do subconsciente judeu. Não deverá ser novidade para a erudição alemã. Certo é, porém, que o pietismo cristão em que o filósofo foi educado pela mãe admite a tradução para o hassidismo polaco. A leitura da obra de Martin Buber permite a fertilidade da comparação.

Kant dá, efectivamente, expressão laica a certas teses do judaísmo. Fichte, Schelling e Hegel são mais goim, pagãos ou cristãos. É útil rever e reler a obra de Kant.

Volto a pedir-lhe que reconstitua ou elabore o seu ensaio sobre a interpretação filosófica de “O Encoberto” de Sampaio Bruno. Vamos dactilografá-lo e editá-lo. Usaremos da melhor interferência junto da Sociedade de Expansão Cultural.

Espero publicar um opúsculo intitulado “Mestrado e Magistério”. É um escrito de ocasião, fogoso e piramidal. Protesto contra o mal que se diz na imprensa sobre ensino esotérico e exotérico. Não sei desistir. Pinharanda Gomes pôs em foco o meu nome ao editar “Liberdade de Pensamento e Autonomia de Portugal”. A querela da filosofia portuguesa ainda não terminou. Quando se pronunciará sobre o problema, António Telmo?

Os seus amigos esperam.

Eu abraço-o, mando cumprimentos a sua mulher e beijos aos seus filhos.

Creia sempre na boa amizade do

Álvaro Ribeiro

 

DOS LIVROS. 08

28-04-2014 16:47

De um caderno de apontamentos. 03

 

N’Os Cavaleiros do Amor ou a Religião da Razão, Sampaio Bruno mostra-se sempre mais interessado em tornar evidente que o amor, tal como foi vivido pelos poetas medievais e renascentistas, é uma cifra de anti-Roma e daí vai que neles vê uma espécie de revolucionários ao modo moderno, quando por este se entenda a realização do Reino de Deus na República dos homens. Amor é anti-Roma e a Inquisição a monstruosa máquina trituradora do amor. Não dá Sampaio Bruno quaisquer indicações, pelo estudo dos poemas, de qual seria o pensamento, «escondido nos véus dos versos» que estaria na origem da oposição à Igreja de Pedro e aos seus dogmas, talvez porque achasse que disso tinha dito o suficiente na sua Ideia de Deus

António Telmo

 

(Publicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006/2009)

(Publicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006/2009)



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(Publicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006/2009)



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blicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006/2009)



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(Publicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006/2009)



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(Publicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006/2009)



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(Publicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006/2009)



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DOCUMENTA. 02

25-04-2014 10:24

Introdução

Pedro Martins

 

"Quando vim do Brasil, usava barba. E o ministério de Veiga Simão pediu-me para ir fundar a escola do Redondo. E eu vim. Nesse tempo ainda se fundavam escolas -- agora abrem-se escolas. E quem ia fundar uma escola tinha, também, de escolher os professores, etc. Quando lá cheguei, apareceram-me os políticos da terra a impor os professores, mas eu não deixei. Entre os que escolhi, pelo menos dois eram contra a situação, o que, aliado às minhas barbas, fez com que isto chegasse ao Governador Civil e, depois, ao ministério. Lá fui eu a Lisboa. O director-geral perguntou-me: «Você é a favor da situação?» E eu disse: «Não, sou contra.» E ele perguntou-me o mesmo que vocês agora: «Mas pertence a alguma coisa?» E eu disse que não. «Então, volte lá para o Redondo, que tem o nosso apoio», respondeu-me ele. A partir daí não tive mais problemas."

António Telmo in "António Telmo, O Último Cabalista", entrevista à revista LER - Livros e Leitores, n.º 41, Inverno/Primavera de 1998. 

 

Na conversa mantida com Francisco José Viegas e Diogo Queiroz de Andrade, de que acima se retirou um excerto bem significativo, António Telmo conta-nos ainda como, em 1965, anos antes da "saga" vivida no Redondo (vila alentejana onde, nas suas próprias e impressivas palavras, fundara a primeira escola pública democrática de Portugal, ainda antes do 25 de Abril), o célebre astrólogo e quirólogo Hórus, por entre vaticínios que o porvir confirmaria do maior rigor, lhe afirmara ser ele o único homem que podia derrubar Salazar, mas logo o instando, porém, a que o não fizesse. 

O 25 de Abril veio surpreender Telmo quando este, de novo a morar em Sesimbra, concluía o estágio do magistério em Almada. Nessa manhã, chegado ao portão da Escola D. António da Costa, o filósofo, desconhecendo o que se passava no país, deparou-se com um piquete formado por alunos, que logo lhe franquearam a entrada: "Este pode entrar", alguém disse, nele reconhecendo, porventura, o extraordinário didacta que já Agostinho da Silva, após visita ao Redondo, tanto elogiara, no tom superlativo que uma carta datada de 4 de Maio de 1973, e dirigida ao próprio Telmo, nos deixa perceber:

 

Já para não falar de mim, Maria Violante veio entusiasmada com sua Escola – a da liberdade, da familiaridade, da criação. Acho que há que acrescentar o louvor da sua pedagogia de gente adulta, inteligente e corajosa, coisa rara por estes lados. Suponho, pelo que vimos, que sua Escola será do melhor que jamais se fez. Para outro dia, que espero não longe, previno – e gostaria de ver a de Borba.

 

Nesse mesmo dia inaugural da Democracia, António Telmo regressa ao plaino transtagano, levando consigo sua Mãe, que vivia na camonina Piscosa. Tempos depois, em 1975, trará a Sesimbra o recém-formado Grupo de Cantadores do Redondo, onde já então pontificavam os irmãos Salomé, Janita e Vitorino, e o proverbial, inseparável Armando Carmelo. Pelas ruas da milenar póvoa arrábida soaram então, noctívagos, a Grândola, Vila Morena e os cantos solares do Baixo Alentejo, num périplo com prévia estação actuante no velho Grémio, então apinhado de gente, e a que muitos populares logo se juntaram, de braço dado. O regresso ao Alentejo fez-se pela alvorada.

Tempos febris, dias fervilhantes, estes, de que também nos ficou o rascunho, manuscrito pelo punho télmico, de uma declaração de apoio à Junta de Salvação Nacional, documento que, pela primeira vez, aqui se torna público. Não sabemos se a projectada declaração chegou a ser comunicada; não sabemos sequer se o seu esboço teve alguma sequência. Mas ficamos hoje a saber onde estava António Telmo no 25 de Abril.

O caso não é de estranhar. Já em 1962, quando leccionava na Escola Industrial e Comercial de Beja, Telmo se vira exonerado, conforme acta de 31 de Janeiro daquele ano, do cargo de Adjunto do Director dos Serviços de Concursos Literários do Centro da Mocidade Portuguesa. Motivo: 14 faltas injustificadas, pois que o filósofo se recusasse sistematicamente a colaborar com aquele Centro, deixando de comparecer a aulas que eram obrigatórias. A bravata trouxe-lhe ainda outras consequências desagradáveis: não haver obtido, como classificação de serviço, no ano lectivo de 1961-62, mais do que um sofrível "Suficiente", segundo reza uma outra acta, agora do Conselho Escolar daquele estabelecimento, de 11 de Agosto. Esta classificação era raríssima: nos anos anteriores sempre Telmo fora classificado com um "Bom"...

A acta de 31 de Janeiro transporta uma data simbólica. Evoca-nos, nesse mesmo dia do calendário, a "noite de esperança, noite de angústia, menos caliginosa e turva do que o claro dia subsequente, ensolelhado, em demoníaco sarcasmo", consoante Sampaio Bruno, n'O Brasil Mental, nos descreve as horas que perpassaram o frustrado golpe republicano portuense de 1891, na sequência do qual o filósofo d'A Ideia de Deus parte decisivamente para o exílio, na errância fundadora de uma viagem de que a Escola Portuense há-de emergir, entre nós, como o lugar supremo da Liberdade.

Em 1974, em Lisboa, diversamente do que no ano fatal de 1891 sucedera no Porto, o dia não desmentiu a noite; e a manhã que o inaugura há-de merecer a Telmo a elíptica alusão de um poema, somente saído a lume no volume, o terceiro, dos Cadernos de Filosofia Extravagante, que, titulado com o seu nome, rendeu homenagem ao filósofo no ano sequente ao da sua partida:

 

            A família é de noite quando se dorme

            Todos num sono só, juntos lá onde

            De Deus se toca a sua sombra informe

            Onde de nós secreto Deus se esconde.

            E como há crianças a dormir, o esplendor

            Diurno dos seus olhos brilha puro

            Num magnífico ponto interior

            Que é o reflexo de Deus no escuro.

            Mas amanhã há Sol. vamos passear a sós

            Na manhã tão nítida e clara, nesta manhã de Abril

            Vamos trazê-la para dentro de nós

            E levá-la para o sono obscuro e vil

           Tão límpida como uma gargalhada infantil.

 

____________

 

 

                                                                À

                                                                Junta de Salvação Nacional

 

Um grupo de democratas de Sesimbra vem manifestar o seu incondicional apoio e adesão ao programa político apresentado por essa Junta ao país.

                                O grupo de democratas:

                                António Telmo Carvalho Vitorino    

                                Aurélio de Sousa

                                Manuel Pereira Crespo    

                                António Baptista

                                Alfredo Marinheiro Cândido        

                                João Pereira Ramada Crespo

                                Augusto Cunha Pinto Covas

                                Manuel José Alves Pereira    

                                João António Carapinha Chagas

 

CORRESPONDÊNCIA. 08

24-04-2014 10:39

CORRESPONDÊNCIA DE ÁLVARO RIBEIRO PARA ANTÓNIO TELMO. 03

 

Lisboa, 16 de Fevereiro de 1971

 

 

Meu caro António Telmo:

 

De há muito que tenho desejado falar consigo. Faz-nos falta a sua convivência em Lisboa. Se no próximo domingo, dia 21 de Fevereiro, estiver o dia esplendoroso, descerei até Sesimbra depois do almoço, e à tarde irei bater à sua porta, para o abraçar, como também para cumprimentar sua Mulher e beijar seus filhos.

Não irei só, porque estou casado desde o dia 9 de Janeiro. (Acompanhar-nos-ão, se quiserem, o Germano, a Conchita e a Mónica). A Maria Júlia, leitora da “Arte Poética”, deseja felicitar o autor e conhecer o meu melhor amigo.

Esperando que motivo de força maior não seja impedimento a este projecto que lhe comunico, limito-me por agora a enviar-lhe um cordeal abraço e a subscrever-me com muita estima

Álvaro Ribeiro

 

DOS LIVROS. 07

22-04-2014 10:58

De um caderno de apontamentos. 02


Enquanto preparava a sua tese de doutoramento sobre Teixeira de Pascoaes, António Cândido Franco sonhou 97 vezes com o poeta. 95 sonhos foram provocados; o primeiro e o último espontâneos. Antes de adormecer deliberava sonhar com o poeta e o sonho acontecia. Mas o que é mais sensacional ainda é que tinha, enquanto dormia, plena consciência de que estava sonhando. O relato dos sonhos, feito num estilo estupendo, constitui a segunda metade de A Arte de Sonhar; a primeira metade vai de Freud até Novalis, por André Breton e Jean Paul, à procura da melhor teoria sobre o sonho que melhor funde a prática da segunda parte. Sente-se, porém, que por este detrás de tudo, poderá estar Carlos Castaneda. O autor não o diz, como não diz que, depois de certos sonhos com Pascoaes, acordava em pânico. Disse-o mais tarde, quando da apresentação do livro numa livraria em Évora, O Som das Letras.

As palavras de Carlos Castaneda que digo poderem estar por detrás da aventura onírica de António Cândido Franco são as seguintes:

 

«Vou ensinar-te aqui mesmo o primeiro passo para o poder. – disse D. Juan, como se me estivesse ditando uma carta – Vou ensinar-te como tornar lógicos os sonhos.                           

Perguntou-me, olhando-me nos olhos, se entendia o que ele queria dizer. Não o tinha compreendido. Soava-me a coisa contraditória. Explicou que tornar os sonhos lógicos significava ter um domínio conciso e pragmático da situação geral de um sonho, comparável ao domínio que uma pessoa tem dos seus próprios actos, decidindo isto ou aquilo.

– Tens de começar por uma coisa muito simples. Esta noite, nos teus sonhos, deves olhar para as tuas mãos.»

 

António Telmo

 

(Publicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006/2009)

 

VERDES ANOS. 04

10-04-2014 00:54

Dando continuidade à publicação dos escritos dispersos da primeira fase da produção télmica, o projecto António Telmo. Vida e Obra recupera hoje um artigo importantíssimo que António Telmo deu à estampa no Inverno de 1965, na revista Espiral, de que foi director o seu amigo e condiscípulo António Quadros. Tomando como ponto de partida um estudo, então recente, de Natália Correia, este artigo constitui um precioso documento da visão que o filósofo projecta sobre o surrealismo, e motiva renovado diálogo com António Cândido Franco, membro do nosso projecto que tem estudado profundamente o movimento surrealista, e que agora nos comenta o texto télmico.

Arte Poética e Surrealismo[1]

 

«Poeticamente as palavras funcionam como elementos que se vão combinando para que seja atingida a sublimação do idioma universal.

Um galináceo com uma estrela no bico é um absurdo. Mas um anjo com uma estrela na fronte é uma fácil relação de coerência.

O que torna insólito o exemplo do galináceo é analisarmos separadamente. Quanto ao anjo, nada mais natural do que figurá-lo com uma estrela na fronte em virtude dos dois objectos serem expressões de mundos afins. A conjugação de elementos do mesmo grau torna-se supérflua no sentido activo da poesia, visto que mais nada implica além do reconhecimento dos sinais duma harmonia independente do poeta».

Estas linhas foram tiradas do opúsculo «Poesia de Arte e Realismo Poético». Autora: Natália Correia. Esta extraordinária poetisa não temeu submeter-se à «prova real». A prosa é a pedra de toque do poeta. Há artistas – e dizemos artistas a pensar também nos pintores, escultores e músicos –, que manifestam nos escritos em prosa uma incompreensível incapacidade para dizer seja o que for de menos escolar e universitário, convencidos talvez de que com o tipo de linguagem muda o «objecto» da primordial interrogação. No entanto, grandes poetas, como Dante e Pessoa, grandes pintores, como Dali e Klee, grandes músicos, como Wagner, deixaram notáveis escritos em prosa, nos quais a inteligência veio dar mais fundo e positivo sentido a tudo quanto haviam eles intuído no domínio do sonho.

Nas linhas citadas, Natália Correia marca a oposição entre dois tipos de poesia bem definidos, mas nós perguntamo-nos se, ao estabelecer a oposição apenas no domínio formal (relação absurda de imagens-relação coerente de imagens), não criará um intervalo ou um vazio no qual se pode dar a inversão do argumento. Assim, alguém poderá vir dizer que à produção do absurdo não se liga nenhum sentido activo, já que as palavras caem, como cartas de jogar, umas ao lado das outras, segundo relações meramente ocasionais, e nem sequer o dizer-se que não há acaso enfraquece a argumentação oposta, na medida em que transfere para o domínio do inconsciente e, portanto, para lá do indivíduo, a actividade criadora que a este se pretende ligar.

E com efeito, os numerosos poetas surrealistas, que utilizam o absurdo, não podem furtar-se à crítica vulgar, mas justa, que os acusa de assim escreverem por não terem nada que dizer ou transmitir. As poesias modernistas que pululam nas páginas dos diários, das revistas e dos livros são, na verdade, manifestações indubitáveis de uma total inércia da imaginação. Deve dizer-se, porém, que Natália Correia não ignora isto, ao referir-se àqueles «poetas líricos que premeditam a defesa do princípio conservador (de que são sentinelas) utilizando o idioma surrealista sem assumir as responsabilidades implícitas no acto de fé surrealista».

A tese que gostaríamos de defender contra a própria Natália Correia seria a de que ela não é surrealista, embora utilize processos da escola de André Breton. Tal como este o definiu, o surrealismo consiste, fundamentalmente, em servir-se da poesia como método psicanalítico, e, de facto, é nesta particular e original relação com o freudismo que a «escola» conquista uma autonomia que permite distingui-la de outras correntes literárias também radicadas nas ciências ocultas. Dir-se-á que a poesia foi sempre um método psicanalítico, de descoberta do inconsciente, mas não se pode dizer que o fosse no sentido especial que o método tem na psicologia de Freud. O poeta deve, pois, como o próprio Breton explica num dos Manifestos, criar em si um estado de completa passividade, depois do que deixará cair sobre o papel, uma após outra, as palavras, sem qualquer preocupação de estabelecer entre elas coerência lógica. O sentido que por acaso venha a formar-se equivalerá a uma autêntica mensagem do inconsciente, cuja manifestação apenas esperava, para dar-se, que se quebrassem as resistências constituídas pelas correntes mentais dominantes na consciência.

Pela repetição deste exercício, o poeta tornar-se-á um médium, um visionário, capaz de comunicar e receber pensamentos a distância, de ver nos acontecimentos exteriores significados e intenções secretas que passam normalmente desapercebidas. Eis no que consiste, nas suas linhas gerais, o surrealismo. Como os dons mediúnicos vivem em estado latente em todos os homens, e como o seu desenvolvimento depende de determinados exercícios, o surrealismo aparece como o comunismo da arte, qualquer coisa que está ao alcance de toda a gente, de quantos queiram sujeitar-se aos métodos preconizados por André Breton.

A «arte poética», quando muito, pode aceitar o surrealismo como um dos seus momentos, na linha daquilo que nela aparece designado como «descida aos infernos». A própria desintegração de imagens é elaborada em função de uma actividade interior. É evidente que tal descida implica a produção de estados anormais em que se anula a vigilância habitualmente exercida pela consciência. O ser é transportado para zonas desconhecidas e é rompido o equilíbrio mantido pelo centro corporal de referência. Mas é necessário que ele se restabeleça ininterruptamente em função dos novos elementos que vão surgindo, isto é, que um ponto se afirme em que o espírito concentre uma energia incorruptível. Na lascívia, na viscosidade, no pegajoso que caracterizam os círculos inferiores é preciso que o espírito actue como um momento de absoluta agilidade. E é, por isso, que a «descida» deve ser precedida de determinada preparação. No anel de Aladino ou no ramo de ouro de Eneias vemos nós símbolos dessa energia incorruptível.

Em termos menos vagos, diríamos que nela reside a faculdade de nomear todos os seres, todas as aparências, todas as aparições. Já na vida comum verificamos que só nos assusta aquilo que, apanhando-nos de surpresa, por momentos se agita no campo da consciência sem um nome, pelo qual o conheçamos e neutralizemos. É o caso, por exemplo, das alucinações. Caminho alta noite por uma estrada sem ninguém e, de repente a sombra de uma árvore toma uma forma estranha e desconhecida. Detenho-me hirto de pavor. O que é? Qualquer coisa que está lá fora mas dentro de mim, qualquer coisa que está cá dentro, mas que aparece lá fora. Fico incapaz, dominado pelo medo, de fazer aquilo que realmente quero: – encontrar um nome para aquela disformidade. E quando, recuperada a serenidade penso «a sombra da árvore» tudo se repõe como numa superfície subitamente alterada. Aqui, é certo, foi pela redução a um esquema habitual da consciência que se exerceu o acto de nomear. Mas se da particular imagem da árvore alargamos a todo o mundo sensível a noção de alucinação, conforme o pensamento de Taine que identifica as percepções a alucinações intensas, logo a relação se inverte no sentido de que à função da linguagem, que semeia todas as imagens percebidas em estado alucinatório, corresponde uma agilidade superior do espírito.

Por outro lado, as palavras não são substância fixa senão no papel. Elas progridem produzindo significações que são novas palavras, capazes de nomear, para além do visível, todo o invisível. O que é preciso é manter a potência de conhecer pela palavra até nos estados anormais que correspondem a uma passagem pela morte. Esta faculdade não está necessariamente ligada ao cérebro, a não ser quando temos perante nós o mundo imediatamente sensível. A relação do interior com algo que lhe é exterior será substituída, por meio de uma potenciação, no domínio da vida interna, por uma relação cujos termos correspondentes são o subjectivo e o objectivo, de modo a guardar entre eles uma distância «triangular». Como Bergson demonstrou, o erro comum a idealistas e realistas consiste em raciocinarem dicotomicamente, ao não verem que o representado e o representante irrompem ambos de uma actividade que os transcende.        

Voltando a Natália Correia, de quem tivemos de nos afastar, tudo indica que ela, até no passo criticado, procura o sentido activo da poesia e que é, por isso mesmo que defende, contra certo tipo mole de lirismo, os processos metafóricos introduzidos pelos surrealistas. Com efeito, repondo o argumento nos seus primitivos termos, e integrando neles os elementos dados nas linhas anteriores, não há dúvida de que quanto mais audacioso for o poeta, ligando as imagens mais antagónicas, tanto mais penetrará naquele mundo de formações internas segundo uma relação que não é de «reconhecimento» mas de «conhecimento». Esta atitude, porém, é inversa à de Breton. As palavras não vêm do «outro», como acontecia no romantismo e nos seus sucedâneos, através do veículo da «inspiração». As palavras, para Natália, são do poeta, que as vai formando nos sucessivos momentos de criatividade. De resto, todo o escrito «Poesia de Arte e Realismo Poético» é o desenvolvimento deste ponto de vista.

Seguindo talvez o ensino de Wolfgang Kaiser, que recebeu na Faculdade de Letras de Lisboa, o crítico e poeta David Mourão-Ferreira desenvolveu, em nítida polémica com outros críticos, a tese de que a literatura, – em especial a poesia –, é fundamentalmente uma técnica de palavras. O livro de Wolfgang Kaiser «Análise e Crítica da Expressão Literária» é, porém, um livro de técnica rudimentar, onde aparecem desfiguradas as palavras portuguesas e mal ligadas umas com as outras. Para além desse ensino, David Mourão-Ferreira pode ter recorrido a lições de poetas estrangeiros, como Verlaine, Valéry, Edgar Poe. O autor do «Corvo» que, como toda a gente sabe, provocava em si estados psíquicos anormais por meio de agentes líquidos-ígneos exteriores, explica, todavia, a realização daquele poema como se tivesse prescindido da inspiração e recorrido apenas a processos externos de disposição e composição de palavras. Não podemos deixar de concordar com David Mourão-Ferreira num ponto essencial. Importa, com efeito, estar atento, durante a leitura crítica dum texto, aos movimentos das palavras, tradicionalmente designados por tropos. E importa, não porque a poesia seja só técnica, mas porque aos tropos correspondem alterações de significação.

O tropo é, na exacta definição de Álvaro Ribeiro, o movimento que o verbo imprime a um substantivo. Ora, na poesia dum Junqueiro ou dum Pascoais, dado um substantivo, ele permanece nas suas várias transfigurações e é nessa permanência que reside o que poderíamos chamar coerência. A «luz», por exemplo, mantém-se através da «oração», embora sofrendo fantásticas metamorfoses, num movimento que vai de contrário a contrário. A categoria de substância desaparece com a poesia modernista. O leitor põe-se perante esta como perante uma adivinha que, como todos sabemos, é uma construção mental em que nos são dados apenas os atributos de um substantivo oculto. Se agora pensarmos que, nos mais altos exemplos desta poesia, a palavra que se pretende adivinhar não é um substantivo, mas um verbo expresso por múltiplas relações de múltiplos substantivos, teremos uma ideia da transmutação mental que o modernismo veio produzir. Natália Correia utiliza um e outro processo. «Passaporte» e «Dimensão Encontrada» pertencem ao segundo caso; «Comunicação» e «Cântico do País Emerso» ao primeiro caso.

Não basta, portanto, ligar imagens desconexas, se faltar o profundo nexo interior, oculto, agente. Este nexo é menos um significado do que o próprio espírito do poeta, solto e ágil, que, depois de se ter separado de imagens ligadas a percepções exteriores, manifesta o seu poder extraindo de si o elemento imagético, animando-o, vivificando-o, divertindo-se até estabelecer relações absurdas para se reflectir na sua própria liberdade. O modernismo diz: «Todos os objectos são poéticos». Perante este postulado, a poesia de Fernando Pessoa, conforme a aguda análise de Natália Correia, mostra-se superior à de Teixeira de Pascoaes, «restringida por um vocabulário eleito».

Todavia, a crítica, aliás inteligentíssima, que a ensaísta faz ao «saudosismo», pode voltar-se contra o «surrealismo», pelo menos contra o surrealismo de Breton. Vimos já como o autor dos «Manifestos» confia à poesia o processo de restauração do homem nos dons paradisíacos. Com efeito, é evidente que, no estado de queda em que vive, o homem como potência mediúnica é inferior à mulher, à criança e aos animais. Os cães ou os gatos, os insectos ou as aves possuem faculdades de premonição, instintos de orientação e outros dons telepáticos que só raros homens possuem. Toda a natureza comunica. É possível imaginar um espaço remoto, ao qual aludem os mitos de todos os povos, em que o homem não se encontrava nesse estado de inferioridade, antes exercia, por uma prerrogativa especial e espontânea do seu ser, análogos mas superiores poderes sobre as restantes naturezas. A metapsíquica veio mostrar que tais poderes estão latentes no homem, que pode desenvolvê-los por meio de determinadas técnicas. Para Breton, como também já vimos, uma dessas técnicas será a poesia. Para Pascoais, a aquisição desses poderes reintegrar-nos-ia no estado edénico perdido que a saudade recorda.

É esta uma visão cíclica da vida da humanidade que não explica a necessidade da queda e que não justifica o pecado original. Algo deve existir em nós que constitua o elemento da liberdade, quer dizer, algo que actua como um princípio de livre decisão, sem o que teremos de negar-nos o espírito e de pensarmos o nosso ser apenas como natureza e a sua evolução como um processo mecânico. De tal modo é assim que no caso da submissão passiva a uma técnica esse elemento surge e se afirma activamente pela escolha da técnica apropriada que catalizará a natureza nas suas reacções intrínsecas. Todavia, aquilo que melhor define tal actividade é a «separação», movimento em que nos vemos como outros, como algo que é um desconhecido e que procuramos dominar intelectualmente, segundo as várias categorias que constituem o «corpo científico». Momento ilusório, mas necessário, em que o homem se sente como poder de separação, deverá ser transcendido, não pela negação de si deixando-se absorver na primitiva unidade originária, mas elevando-se a uma potência em que é o corpo do próprio que aparece como outro, naquela relação a que José Marinho chama «cisão extrema». Aqui, a separatividade é interna e as categorias científicas têm de ser substituídas por categorias lógicas, conforme ficou explicado anteriormente. É evidente, porém, que a separação do próprio corpo implica que do momento de vigília que caracterizava a relação científica se passe para o momento do sonho e da morte. Era no que pensava o poeta, quando escreveu:

 

No meio do caminho da vida

Encontrei-me perdido numa selva escura…

 

António Telmo



[1] Espiral, ano II, número duplo 8/9, Inverno de 1965, pp. 119-122.

 

____________

Comentário

António Cândido Franco

Publicou António Telmo um curto texto chamado “Arte Poética e Surrealismo” no número duplo 8/9 da revista Espiral (Inverno de 1965, pp. 119-121). Basta o título para o texto se posicionar duma forma singular no conjunto da obra do autor. Digo-o não pela primeira parcela do letreiro, reconhecível em tantos outros momentos do itinerário do seu autor, mas pelo segundo segmento, relativo ao surrealismo. À arte poética acabara António Telmo de dedicar a sua estreia em livro, em 1963, Arte Poética; já antes dera a lume um conjunto de artigos que manifestavam o seu interesse por tudo aquilo que respeitava à linguagem verbal, da gramática à retórica, da génese e natureza da palavra à poesia. Daí os “problemas filológicos” com que abrirá o livro de 1963. Sobre o surrealismo, ao invés, que eu dê notícia, nenhum sinal de interesse anterior, a menos que se aceite o terceiro ponto do segundo capítulo de Arte Poética, dedicado às “descidas ao reino das sombras”, como um diálogo críptico com as mais conhecidas teses do surrealismo. O último período do ponto tem matéria mais do que suficiente para justificar a suposição. Diz assim: Se a identificação da concepção do “inferno” com a teoria real do subconsciente e do inconsciente puder ser mantida, cremos que os grandes poetas do passado terão alguma a dizer-nos que nós mal sabemos.

Regresso ao texto de 1965. Abre ele com a citação de três parágrafos dum opúsculo de Natália Correia, Poesia de Arte e Realismo Poético, publicado por Mário Cesariny numa colecção chamada “A Colecção em 1958”, e onde o editor publicou textos de António Maria Lisboa, de Luiz Pacheco, de Virgílio Martinho, de António José Forte, de Manuel de Lima, de Francisco Sousa Neves, de Jean Schuster (em co-autoria com Gérard Legrand) e dele próprio. O texto de António Telmo posiciona-se pois, ao menos num primeiro nível, como um comentário do texto de Natália, que retoma com desenvoltura as teses de Breton sobre aquilo que na actividade poética supera o mero plano literário. É o que a autora chama a realidade da imaginação, ou o realismo poético iluminador da vida, por contraste com o valor artístico da poesia de arte, que a cristaliza. A tese que António Telmo defende no texto (Natália Correia não é surrealista, embora utilize processos da escola de André Breton), e que lhe permite um excelente excurso naquilo em que mais se sente à vontade, a teoria da palavra e sua ligação às potências mediúnicas do espírito, parece-me sobretudo recorrer aos textos mais antigos, mas também mais conhecidos, de André Breton. Apesar de nunca citar fontes, o Breton que o autor faz comparecer no seu texto é o do primeiro manifesto do surrealismo de 1924 e textos adjacentes como Poisson soluble. Não sei se António Telmo no momento em que escreve o texto, o que deve ter acontecido por volta de 1964, pois o livrinho de Natália Correia terá sido publicado já no início da década de 60 (o opúsculo, de trinta e duas páginas, não tem data), tinha conhecimento dos grandes textos publicados por Breton na década de 50, “Du surréalisme en ses oeuvres vives” (1953) e o livro L’Art Magique (1957). Se os conhecia, não deixa transparecer, ao menos na refutação que faz do surrealismo, já que no resto, naquilo que é o “nexo oculto” e operativo, sem o qual não há reintegração no estado edénico, não deixa de ser admirável a identidade dos seus propósitos com esse último Breton. Se assim é, pode-se defender em relação ao texto de Telmo uma tese idêntica àquela que o autor avança para Natália Correia – a arte poética de António Telmo é surrealista, mau grado a refutação que da escola (de 1924) faz.

Uma tal tese, apesar do tom assertivo, é para ser tomada como ponto de partida dum reconhecimento mais vasto, dum encontro de potências em estado alterado, e nunca como uma mera habilidade dialéctica. É de resto o que me parece suceder na tese quase provocatória de Telmo sobre Natália, em que o regime onírico da ruptura, isso a que ele chama “cisão extrema”, indispensável para se contactar o automatismo psíquico, domina sobre o da ordenação diurna da arte, que estabelece os códigos semiológicos e sociais, religiosos incluídos, que vampirizam no humano as potências telepáticas da alma e o fundo cratiliano do verbo.

 

1 de Abril de 2014

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