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VOZ PASSIVA. 23
22-05-2014 10:42
Contos de António Telmo*
Avelino de Sousa
I
De acordo com Álvaro Ribeiro, a perscrutação de uma obra literária coloca em movimento ou pede o exercício de três capacidades fundamentais da mente: «a judicidade que caracteriza o crítico, a compreensão que caracteriza o psicólogo, e a generalização que caracteriza o filósofo». Na ausência ou na insuficiente maturação de cada uma dessas faculdades, melhor seria o intérprete abster-se de comentários escritos, guardando para si próprio as impressões recebidas na leitura de qualquer obra de imaginação, como é o caso dos contos reunidos por António Telmo em volume com o mesmo título. A isto me sentindo impelido, acabei no entanto por aceitar o convite que me foi endereçado para participar nesta singela homenagem a alguém que desde há muito prezo como pessoa e como escritor. Como também há muito que perfilho ou partilho daquela posição de Rilke, que escreveu «as obras de arte são de uma solidão infinita: para as abordar, nada pior do que a crítica», não poderia nunca ser nessa qualidade que me abalanço agora a lançar ao papel estas palavras, mas apenas mas na de amigo do autor. E é somente nessa condição que desejo deverem ser lidas estas linhas que se vão seguir.
Quis António Telmo dar ao seu livro de contos o simples, recto e justo título de “Contos”, sem aposição de outro qualificativo que nos esclarecesse que contos são esses, de que tratam, para que fim existem ou, porventura, a quem se dirigem. Procedeu, a meu ver, acertadamente, pois caberá de preferência ao leitor interessado inteirar-se ou aferir por si mesmo desses motivos, quer dizer, daquilo que terá movido o autor quando os concebeu.
A nudez da designação talvez oculte já, ou embora, o propósito da significação. Se focalizarmos a atenção num pequeno detalhe, constatar-se-á que a palavra “contos” está muito próxima da palavra “cantos”, variando apenas a primeira vogal. Deste pormenor aparentemente anódino, mas significativo, se atendermos a que António Telmo se estreou em livro precisamente com uma “Arte Poética”, quer dizer, com uma reflexão sobre a criação e os seus processos, poder-se-á talvez inferir que estes contos podem ser vistos simultaneamente cada um deles como um canto, do ‘canto maior’ que seria o conjunto de todos eles. E se ‘quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto’, não haverá canto sem encanto. Esse encanto surde como murmúrio de regato no canto de água límpida e pura que atravessa todo o fio narrativo, pontilhando estes contos de reflexos com todas as cores do arco-íris.
Caberia neste momento interrogar qual o estatuto que poderia apresentar um género de obra como esta, de contos, num autor que à meditação filológica e filosófica, aos artistas do pensamento e da palavra, tem dedicado o melhor do seu mester de escritor. Caberia isso interrogar, se não soubéssemos de antemão que para António Telmo é artificial a separação dos géneros literários, derivada de uma classificação em grande medida convencional, exclusivamente por motivos funcionais, próprios de uma necessidade taxiológica do espírito humano. E é por essa mesma razão que a sua obra vem sendo capaz de albergar no seu seio, de forma dispersa mas não díspar, antes formando uma plena unidade, aforismos, contos, histórias, poemas, ensaios, interpretações, filosofemas e outros textos de difícil classificação, se bem que em todos eles se possa constatar a “valorização do pensamento sobre o sentimento” (cf. p. 75), cara ao autor.
Por outro lado, numa hipótese puramente poética, a palavra portuguesa ‘contos’ contém em si, descontada a letra c, o termo grego “oνtωs (óntos), substantivo feminino para dizer a realidade, cuja forma verbal, tα̃ων ou tα̃ “oνtα̃ significa as coisas existentes. Neste sentido, esta obra, estando longe de ser um estudo ontológico ou tratado acerca do ser, mas porque o ser se diz de diferentes modos ou em diversas categorias, não deixa de constituir uma indagação das “coisas existentes” sob a esfera celeste. Mais concretamente da realidade do homem, e do homem situado, pelo que pressupõe a construção de personagens diferenciados em que a tessitura psíquica e lógica, ou psicológica, dos mesmos é pacientemente urdida. O mistério do princípio de individuação sempre há-de interpelar o escritor que se propõe perscrutar a fundo a natureza humana. Vários dos contos aqui reunidos testemunham esse mesmo intento – com especial relevo para o primeiro deles, intitulado “Os Dioscuros” ou mesmo “Doutoramento e Incesto” –, se bem que sob perspectivas ou pontos de vista diversos.
Fiel à tese alvarina, segundo a qual «a literatura, para não dizer a escritura, tem por missão revelar aos homens os acontecimentos de ordem preternatural e sobrenatural», objectivo esse a que o conto, de resto, se presta de forma excelente, pois se caracteriza, no dizer de Álvaro Ribeiro, «pela presença colaborante ou neutralizante de seres sobrenaturais», António Telmo será dos poucos autores vivos que dessa máxima soube extrair todas as consequências. Nos “Contos” se arquitecta uma obra de imaginação de impressiva sugestão sobre os espíritos, que da interrogação sobre as causas dos acontecimentos procuram fazer regra de vida, e da meditação pão quotidiano. Por aqui se vê que estes contos não são especialmente dirigidos a crianças, embora também elas possam lê-los com proveito, educando a imaginação, já que a imaginação futurante e adivinhante do que é ou se mantém incógnito, antecede o movimento da intelecção como factor gnósico e desperta na alma daquelas a perspicácia e o desejo de conhecimento, num trânsito do desconhecido para o conhecido ou, melhor dito, num movimento que está implicado ou implícito no acto de conhecer.
De resto, e será bom dizê-lo neste momento, face ao materialismo estéril e indigesto e à sociologia barata de que boa parte da literatura portuguesa contemporânea está cheia, mesmo aquela de autores tidos como “consagrados”, os quais antes deveriam ser considerados como profanadores da arte de bem escrever, que frescura e limpidez se desprendem destas páginas, em que os diálogos e as descrições, a clareza da linguagem e a variedade de meios expressivos, emprestam ao acto de bem dizer e contar um aroma de rara especiaria e lhe conferem um estilo cuja sublimidade está ao alcance de poucos.
II
Segundo testemunho oral do próprio António Telmo, os contos seriam «a filosofia servida á mesa do pobre», o que talvez possa significar o seguinte: mediante a arte narrativa do conto, sob o véu das imagens e do jogo de relações que as personagens entre si entretecem, qualquer pessoa medianamente culta que os leia poderia aceder, ainda que simbolicamente, ao plano de certas ideias que lhe são dadas de modo translato, como que metaforizadas em elementos sensíveis ou que se apresentam de modo concreto.
Mas esta dialéctica descendente – para utilizar uma terminologia platónica – em que o escritor faz descer a ideia do “céu” dos inteligíveis à “terra” do sensível ou experienciável, encarnando-a em pessoas e acontecimentos visíveis ou audíveis, não se faz sem a correspondente dialéctica ascendente que é a de suscitar no leitor o percurso inverso: levá-lo pela palavra a acordar o poder da imaginação e a conceber na sua alma «a figura do que apenas tem forma», para recorrer uma vez mais a uma expressão de Álvaro Ribeiro. Esse mesmo é o sortilégio da faculdade imaginativa, se entendermos este conceber não tanto como raiz da conceptualização lógica e abstracta, mas como concepção maternal ou matricial, em que o gérmen, ponto ou ideia inicial se vêem envoltos progressivamente, e em simultâneo, da criação “espiritual” (oferecida pelo escritor, em acto de dádiva ou de graça) e da compreensão “subtil” a ser conseguida pelo leitor, mediante um esforço de elevação desde a concreção “carnal” do texto que lhe é dado ao plano ou esfera ideal que, ínsito, nela cripticamente se insinua ou significa.
Se há ou pode haver um convite à decifração que o escritor dirige ao leitor avisado, nem por isso deixa de haver também um convite ao simples leitor, para que imagine qual possa ser o sentido ou trama da história que se lhe apresenta. É a este segundo tipo de leitor que convirá o epíteto de “pobre”, a cuja mesa a filosofia se serve. A subentendida metáfora do manjar ou da degustação – e repare-se que aqui não se fala de banquete, imagem mais apropriada para os iniciados na filosofia, mas de «mesa do pobre» – imediatamente nos coloca na conta de que estes contos, na mestria do seu lavor, são como que um alimento que tanto se pode pôr à disposição do vulgo como, sobretudo, dispensar aos alunos dele necessitados para sua instrução. Porque pelo sabor se pode aquilatar do caminho a percorrer ou que para o saber converge. O que acaba de dizer-se pode ter alguma relação com esta sibilina afirmação do filósofo de “Escritores Doutrinados”: «O dar às obras de arte como títulos, e não como subtítulos que designem o género literário, as palavras contos ou histórias é já uma indicação». Os contos seriam, portanto, uma forma discreta mas eficaz de mapear rotas; de pontuar e apontar caminhos para solver os enigmas de quem se depara com a perplexidade das encruzilhadas, de cruzes silhadas ou tão-só de seladas ciladas.
Não se estranhe por isso que, com este mesmo objectivo, um livro chamado de “Contos” tanto possa conter histórias, que propiciam a evasão, como memórias mais ou menos ficcionadas, como é o caso dessa que se apresenta sob o título de “Trabalho de Grupo”, ou ainda momentos de suspensão e de advertência, como aquela apresentação que surge a páginas 81-82, antecedendo o conto “A Dama de Ouros” e onde se podem ler estas palavras significativas: «Na profundidade de cada um de nós, que é a profundidade de todo o desconhecido, há uma Dama de Ouros. Ela é também aquilo que, em cada um dos restantes contos, se procura. Daqui o poder ter chamado a este livro A Dama de Ouros, se não houvesse os outros a protestar». Pergunta-se: quem ou o quê são os que protestam? Os outros indivíduos, pessoas, amigos, ou os outros contos, se tal fosse possível, porque, cientes da singularidade ou da unidade do seu núcleo expressivo, não veriam de que modo poderiam subordinar-se a um título de apenas um deles, por mais que o autor diga o que diga.
Como julgo já ter referido o que me interessava assinalar a propósito dos “Contos” de António Telmo, e não me assistindo particulares qualificações exegéticas ou interpretativas, não irei entrar pela análise dos mesmos, o que seria errático e fastidioso. Prefiro deixar ao cuidado de cada leitor o escrutínio dos títulos e ver por si como cada um deles se adequa plenamente ao conteúdo das histórias narradas, bem como a eventual relação que estas poderão ter com a “bordadura” das doze gravuras do Zodíaco que as encimam ou ainda ao exame da disposição geral dos contos.
Para pôr fim a este meu excurso, um pouco a voo de pássaro, pela obra, não quero deixar de referir que aos acima mencionados doze contos inéditos, entendeu o autor agremiar uma outra obra anterior, “O Bateleur”, que se vê assim reeditada em diferente contexto, também ele como que uma história, mas desta vez em nove pontos ou capítulos ordenada; terminarei todavia citando um excerto do conto “O Trevo” que bem pode ser considerado a vários títulos exemplar da qualidade intrínseca e da beleza que anima estes contos de fio a pavio. É que esta colecta de histórias-ensinamento, como as da “Mil e uma Noites” ou as histórias da tradição sufi, são mais um dos odoríferos frutos da casta soberba de uma prosa que dir-se-ia tocada pelos fulgores de aurora da Língua, colheita essa que sem exageros e poderia qualificar de paradisíaca, e a que António Telmo, escritor doutrinado, desde sempre habituou os seus fiéis leitores.
«Em dado momento (que momento!) suspendeu a leitura e deixou cair o olhar sobre um tufo de trevos que crescia à volta de uma roseira. Meio alheado do que lera, passou-lhe pelo espírito uma cena de infância. Ia com os outros rapazes para o campo à procura de um trevo de quatro folhas. Tinham-lhe dito que tinha o Dom de dar a quem o encontrasse a perfeita felicidade. Crianças que eram, embora não sabendo ainda o que é a infelicidade, acreditavam, sem a menor dúvida, no poder de tal planta. Procuravam-na, porém, não porque desse a suprema felicidade, mas obedecendo àquele instinto da alma pelo qual ela sente que no excepcional reside o segredo da vida.
De súbito, não soube se estava a ver bem. Tinha diante dos olhos um trevo de quatro folhas. Levantou-se da cadeira e aproximou-se da roseira. Não havia dúvida. Um pouco acima dos outros, estava ali, como que por milagre e sem que tivesse sido deliberadamente procurado, um belo trevo de quatro folhas. Murmurou para si: “Meu Deus, o símbolo da Tétrada e logo no meu quintal!» (cf. pg. 56-57).
____________
*Publicado em António Telmo e as Gerações Novas, Lisboa, Hugin, 2003, pp. 155-161.
Nota: Excepto as citações dos “Contos” de António Telmo feitas neste texto, as referências a Álvaro Ribeiro são extraídas de duas das suas obras, a saber: A Razão Animada (1957) e Escritores Doutrinados (1965).
CORRESPONDÊNCIA. 10
21-05-2014 09:40Carta de António Telmo para José Manuel Capêlo, de 27 de Agosto de 1992
Estremoz
27 – 8 – 92
Meu caro Amigo
José Manuel Capêlo
Bem diferentemente do que lhe disse ao telefone, aqui vai a fotografia que convém, aliás filha do acaso e por essa sabedoria misteriosa que há nas obras do acaso completamente adequada ao conteúdo do meu livro.
V. vê logo isso de seguida.
Cumprimentos a todos e até à próxima um grande abraço do “petit bateleur”
António Telmo
VOZ PASSIVA. 22
20-05-2014 17:56
As ideias são comunicadas pelos anjos[1]
Rui Arimateia
António Telmo nasceu em Almeida, Distrito da Guarda nos idos anos de 1927, a 2 de Maio. Chegou com as Maias, poder-se-á dizer.
Andarilho por meio mundo, por ele peregrinou com grandes da Cultura, da Filosofia, do Pensamento Português. Desde Agostinho da Silva a Eudoro de Sousa, de Álvaro Ribeiro a José Marinho, entre muitos outros que com ele privaram e com eles António Telmo ajudou a re-construir a Pátria da Língua Portuguesa, parafraseando o poeta Fernando Pessoa.
Refere José Marinho na sua obra “Verdade, Condição e Destino no Pensamento Português Contemporâneo”[2]:
Nos pensadores que contamos entre os responsáveis no próximo futuro pelo destino da filosofia entre nós, quatro se nos impõem: Alberto Ferreira, António Telmo, Eduardo Lourenço e Orlando Vitorino. Em todos eles despertou o sentido d’«o que mais importa», pois nos aparecem intimamente atentos com diversa explicitação ao imperativo dizer de Plotino.
É realmente este sentido d’«o que mais importa» que vemos continuamente a ser alvo das preocupações literárias – e a Literatura é aqui usada enquanto veículo de transmissão de mensagens – de António Telmo. E é interessante o facto dele próprio se considerar um esoterista. E encaremos este termo sem cairmos em pré-conceitos, e se lhe dermos a dimensão de Schwaller de Lubicz penso que entenderemos um pouco melhor a obra de António Telmo.
Sobre o significado de Esoterismo refere então Schwaller de Lubicz:
O Esoterismo não possui nada em comum com uma vontade de segredo, isto é, de um segredo convencional.
(…)
A criptografia e o enigma, na composição de um texto sagrado, não têm senão por objectivo, o de acordar a atenção do leitor, acentuar um ou outro aspecto do texto, enfim, guiar na direcção do carácter esotérico. (…)
O esoterismo não pode ser escrito, nem dito, nem, por consequência, ser traído. É preciso estar preparado para o compreender, o ver, o entender – como o escolherdes. Esta preparação não é um Saber, mas um Poder, e não poderá senão adquirir-se pelo esforço da própria pessoa, por um combate contra os seus obstáculos e uma vitória sobre a sua natureza animal-humana
Existe uma Ciência Sagrada, e após milénios, inumeráveis curiosos em vão tentaram procurar penetrar-lhe os “segredos”. Era como se, com uma picareta, eles quisessem cavar um buraco no mar. A ferramenta deverá ser da mesma natureza da coisa em que se quer trabalhar. Só se encontra o espírito através do Espírito, e o Esoterismo é o aspecto espiritual do Mundo, inacessível à inteligência cerebral.
(…)
O Iniciado verdadeiro poderá guiar um aluno dotado para lhe fazer percorrer o caminho da Consciência mais rapidamente, e o aluno, chegado às etapas da Iluminação pela sua própria Luz interior, lerá directamente o esoterismo de tal ensinamento. Ninguém o poderá fazer por ele.[3]
É uma obra complexa a de António Telmo – A Arte Poética (1964), História Secreta de Portugal (1977), Gramática Secreta da Língua Portuguesa (1981), Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões (1982), Filosofia e Kabbalah (1989), O Bateleur (1992), Horóscopo de Portugal (1997) e agora estes Contos – para só referenciar os livros publicados e passando por cima dos muitos artigos espalhados por importantes Revistas principalmente ligadas com a Cultura, a Filosofia e a Língua Portuguesas, tais como as Revistas “57”, “Leonardo”, “Cultura Portuguesa”, para só citar algumas.
Diz-nos Pinharanda Gomes no seu “Dicionário de Filosofia Portuguesa”[4] que:
O centenário do nascimento de Sampaio Bruno (1957) ficaria assinalado pelo aparecimento do jornal 57 que dimensionava a problemática da filosofia portuguesa em termos de movimento de intervenção social e cultural. O 57 reivindica uma genealogia espiritual (Aristóteles, a Bíblia, Dante, Conimbricenses, Hegel, Bruno, Leonardo Coimbra…) e congrega jovens pensadores todos eles, cada um a seu modo, destinados a uma presença consistente. Mencionando apenas os discípulos [de Álvaro Ribeiro ou José Marinho] da primeira geração, entre eles (…) António Telmo (filologia e simbologia) (…). O 57 tem um vector polemizante: quer suscitar o debate das ideias, e este debate provocará algum radicalismo, mas sem ele o movimento teria ficado fechado em si mesmo.
É interessante referir que este jornal se insere num movimento de cultura portuguesa, cujos mentores e impulsionadores foram Álvaro Ribeiro, José Marinho, António Quadros, Afonso Botelho e Orlando Vitorino. Vejamos um pequeno excerto do «Manifesto de 57» publicado no seu primeiro número:
Nós somos solidários desses milhares de jovens indiferentes à cultura, que enchem os estádios, os cinemas e os cafés. Nós somos solidários dos que viraram as costas a esses brilhantes aparatos racionais e abstractos, os sistemas metafísicos; que viraram as costas às grandes promessas utópicas, brilhantes na sua argumentação falaciosa e desligados das condições humanas e naturais quando não trans-naturais da realidade; que viraram as costas a todos os dogmatismos, contrários à simples prova de reflexão individual e buscando coarctá-la na sua liberdade interior; que viraram as costas a todas as formas da mentira, mesmo quando esta se reveste das aliciantes da beleza ou do bem comum.
Não nos podemos esquecer que quando este «Manifesto» é escrito estamos em pleno Estado Novo e com certeza não seria fácil a qualquer movimento de libertação – cultural, filosófico, ou outro – transmitir e fazer valer a sua mensagem de “ruptura” …
Afinal toda a busca do Homem em geral e neste caso concreto, em particular, a busca de António Telmo, penso ser a da VERDADE. Agora: como procurar essa Verdade? Como a descobrir e a desocultar? E como saber se a Verdade que encontrámos é a VERDADE que pensamos adivinhar no Arquétipo? Lembro-me continuamente daquela deliciosa história narrada por Almada Negreiros sobre a Verdade, escrita em 1921:
Eu tinha chegado tarde à escola. O mestre quis, por força, saber porquê. E eu tive de dizer: Mestre! quando saí de casa tomei um carro para vir mais depressa, mas, por infelicidade, diante do carro caiu um cavalo com um ataque que durou muito tempo.
O mestre zangou-se comigo: Não minta! diga a verdade!
E eu tive de dizer: Mestre! quando saí de casa… minha mãe tinha um irmão no estrangeiro e, por infelicidade, morreu ontem de repente e nós ficamos de luto carregado.
O mestre ainda se zangou mais comigo: Não minta! Diga a verdade!!
E eu tive de dizer: Mestre! quando saí de casa… estava a pensar no irmão de minha mãe que está no estrangeiro há tantos anos, sem escrever. Ora isto ainda é pior do que se ele tivesse morrido de repente porque nós não sabemos se estamos de luto carregado ou não.
Então o mestre perdeu a cabeça comigo: Não minta, ouviu? Diga a verdade, já lho disse!
Fiquei muito tempo calado. De repente, não sei o que me passou pela cabeça que eu acreditei que o mestre queria efectivamente que lhe dissesse a verdade. E, criança como eu era, pus todo o peso do corpo em cima das pontas dos pés, e como o coração à solta confessei a verdade: Mestre! Antes de chegar à Escola há uma casa que vende bonecas. Na montra estava uma boneca vestida de cor-de-rosa! A boneca tinha a pele de cera. Como as meninas! A boneca tinha tranças caídas. Como as meninas! A boneca tinha os dedos finos. Como as meninas! Mestre! A boneca tinha os dedos finos…[5]
A uma pergunta feita pela jornalista Antónia de Sousa[6]: Qual a génese das ideias? Como nascem as ideias? Responde António Telmo muito simplesmente: «As ideias são comunicadas pelos anjos! Só que há quem as pense e quem as não pense. O pensamento é que é nosso.»
Já Agostinho da Silva se “queixava” que uns lhe chamavam heterodoxo, outros lhe chamavam ortodoxo, contudo o que ele realmente reivindicava era o estatuto de ser paradoxo, de viver no paradoxo…
Atentemos mais uma vez no pensamento de António Telmo, desta feita através de uma entrevista à jornalista Antónia de Sousa.
António Telmo faz uma afirmação surpreendente. «Eu acho que os meus livros sabem mais do que eu. Muitas vezes, ao ler alguma coisa que escrevi, fico surpreendido perante o anúncio de um conhecimento e de uma sabedoria que eu não possuo e que tenho de aprofundar como qualquer outro leitor.»
Telmo não nos diz como é isso possível. Mas afirma-nos: «O Universo não é racionalista, nós é que o devemos ser. Aquilo por que me esforço sempre nos meus escritos é por pensar o irracional. Na minha opinião, isto é que me caracteriza e me distingue e julgo também que é o que suscita o interesse das pessoas. É uma vivência pessoal, mas é também o esforço de não perder a razão perante aquele mundo misterioso. Estou convencido de que toda a gente tem a experiência deste irracional, mas resolvem os conflitos de vários modos. Ou negando esse irracional, ficando preso aos limites de uma razão estreita, ou aceitando esse irracional e perdendo a razão.» Há, porém, outra alternativa que é, segundo diz, a de «construir o Todo Completo, que é a verdadeira imagem do Real». E acrescenta: «No fundo, é por onde eu ando.»[7]
Penso ser isso que António Telmo realiza através da sua obra: trabalhar o paradoxo, trabalhar nos limiares da língua, do pensamento, das ideias, fornecendo-nos de certo modo a chave para entrarmos noutra dimensão que não a dimensão meramente analítica, normalizada, feita a esquadro. Desafia-nos a dar um passo em frente, a pegar no compasso e desta vez sair da rectilinearidade para nos embrenharmos numa circularidade de uma compreensão e de um pensamento mais abarcante, mais totalizante – «construir o Todo Completo, que é a verdadeira imagem do Real…no fundo é por onde eu ando.»[8]
OS CONTOS
Em relação aos CONTOS de António Telmo, que em boa hora a Editora Aríon quis publicar, dão-nos realmente a dimensão do artífice da palavra que é o seu Autor. O estudo da palavra como a aprendizagem de um mistério, foi uma das ideias que me vieram ao espírito após ler e reler os Contos.
Gostaria somente de referir meia dúzia de sublinhados de alguns dos Contos, pelo menos para vos aguçar os apetites literário, poético, filosófico, místico até, para que não deixem de ler a obra.
O TREVO
E encontramo-nos no imaginário da criança que habita em todos nós… A partilha da palavra, a conversa, serve «para estabelecer as bases de uma procura que levasse cada um a realizar em si próprio o Homem de Luz».[9]
TRABALHO DE GRUPO
«… nos longos anos em que frequentei a tertúlia da filosofia portuguesa, sempre me foi reconhecida a independência de pensar por mim próprio, não me teria submetido às novas condições de trabalho se não esperasse conseguir, através dele, um mais alto grau de liberdade.»[10]
Contudo António Telmo, fazendo jus à sua liberdade de pensamento e de consciência, teve “desvios doutrinais”, como, a certa altura nos conta, a abordagem aos ensinamentos de Georges Ivanovitch Gurdjieff, referindo nele:
O que aprendi nesse período creio que ficará para sempre ligado à minha memória permanente. É por isso que somente o confiarei àquele que possa vir a considerar o amigo da minha essência.[11]
Dá-nos conta, neste conto, de ter contactado de perto com reconhecidos pensadores da Filosofia Portuguesa, entre os quais ressalta a figura de Álvaro Ribeiro:
Até aos meus trinta e seis anos foi meu Mestre aparentemente só na arte de pensar. Digo aparentemente só, porque essa arte, se for bem exercida, irá transfigurar a nossa vida emocional, e até a nossa vida vegetativa, dando aos nossos automatismos a forma da liberdade.[12]
Este é, no fundo, um Tratado de bem aprender a filosofar, que nos apresenta, como pedras fundamentais – Álvaro Ribeiro que nos ensina a pôr em prática uma autognose, uma metodologia para abordar a Filosofia; Leonardo Coimbra apresentando o criacionismo como resultado último da Inteligência e da Vontade Humanas.
Duas pequenas frases, ou máximas, poderão sintetizar a riqueza filosófica, simbólica deste conto:
– Buscai e encontrareis. Chamai e abrir-se-vos-á.
– Saber: Ousar; Querer; Calar-se.
A CONFERÊNCIA
Põe no papel, recriando-os literariamente, factos, acontecimentos verídicos [na boca do povo], de cariz fantástico e sobrenatural.
Acerca de “verdades” que circulam pela boca do povo, gostaria de fazer um pequeno parêntesis sobre aquele costume de não ser politicamente nem socialmente correcto perguntar as horas em Aguiar…[13] A história subjacente todos nós conhecemos, terei inclusivamente conhecido algumas pessoas que me afirmaram terem por sua vez falado com alguns intervenientes nesse “drama”… Assim, num opúsculo publicado na “Revista Lusitana”[14], nos inícios deste século pelo Professor Doutor José Leite de Vasconcellos, denominado “Tradições Populares Portuguesas do Século XVIII contidas nas poesias (impressas) de Miguel do Couto Guerreiro”, mais precisamente nas “Satiras”, por sua vez publicadas em Lisboa no ano de 1786, assim reza:
Vem cahir sobre mim uma tormenta
Mais atroz, mais cruel e mais violenta,
Do que se eu perguntasse a sangue frio
Ou por Pedro Machado ao de Palmella,
Ou por Manuel de Arês a toda aquella
Pessoa que em Alcacer habitasse;
Ou se lá em Vianna perguntasse
(a de Alentejo) se era ella de Alvito;
Ou se assanhasse o povo tão maldito
De Aguiar, perguntando que horas eram?
Todos estes irados me não deram
Corrimaça maior………………………….[15]
NO HADES OU O ANTIQUÁRIO DE ESTREMOZ
Faz o Autor uma incursão explícita ao complexo universo da Cabala, da Filosofia, da Linguística e da Poética. Realço mais uma vez contínuas referências e apelos ao Autoconhecimento e à Liberdade de cada um perante tudo e todos.
Somente por uma demorada acção sobre si próprio no domínio da imaginação poética, é possível ao homem adquirir a virtude régia que lhe permite passar o grande abismo…[16]
O BATELEUR
Segunda edição de um livro saído na editora Átrio, antecessora directa da Aríon, em 1992. Trata de uma viagem filosófica ao mundo do Tarot, da Cabala, de Platão e de Aristóteles. É favor de lerem e seguirem Tomé Natanael.
INFLUÊNCIAS E CITAÇÕES
Só nesta edição dos CONTOS António Telmo cita acima de cinquenta autores, além de efectuar citações da Bíblia (Antigo e Novo testamento), da Kabbalah, do Zohar e do Corão, assimilando as três Religiões da Península: a Judaica, a Cristã e a Muçulmana, num sincretismo que se denota por toda a sua obra, contudo sem efectuar juízo de valor de uma em relação a outra.
Plotino, Hesíodo, Empédocles, Anacreonte, Safo, Platão, Aristóteles, são alguns dos Clássicos referidos. Qotboddîn Shîrazî, Joaquim de Flora, Dante, Espinoza e mais modernamente Augusto Comte, Kant, Goethe, Milton, Marx e Darwin. E ainda outros como William Blake, Teillard Chardin, Heidegger, Dostoiewsky, Lawrence, Aldous Huxley, Henry Corbin, Max Hölzer, Georges Ivanovitch Gurdjieff, René Guénon, Denis Seurat, James Joyce e Paul Claudel. Continuando com autores não nacionais temos ainda referências a Emílio Benveniste, Franz Bopp, Jacobson, Noam Chomsky, Benjamin Lee-Worf, Eduardo Sapir, G. G. Scholem, Diels, Ferdinand de Saussure e S. Freud. Em relação aos portugueses temos: Camões, José Marinho, Álvaro Ribeiro, Orlando Vitorino, Delfim Santos, Cunha Leão, Eudoro de Sousa, Almada Negreiros, Jorge de Sena, Leonardo Coimbra, Sampaio Bruno, Fernando Pessoa, Rodrigues lapa, Thereza de Melo e António Cândido Franco.
Influências? Apesar das influências e das assimilações culturais e literárias e filosóficas que realizamos continuamente, consciente ou inconscientemente, a originalidade e a criação acaba sempre por vir ao de cima. É o que acontece com António Telmo.
Finalmente, gostaria de mais uma vez agradecer a António Telmo o facto de ter feito o favor e reencarnar nesta época, dando-nos o privilégio de com ele convivermos, conversarmos e partilharmos estas coisas tão extraordinárias que são as palavras e os pensamentos, complicadas in extremis por esta tramada idiossincrasia portuguesa.
[1] Comunicação apresentada no lançamento dos CONTOS de António Telmo (Aríon Publicações, Lisboa, 1999), realizado em Évora, na sede da Sociedade Harmonia Eborense, no dia 8 de Dezembro de 1999.
[2] Lello & Irmão Editores, Porto, 1976. Referência na Capítulo III – “Conceito de razão e formas da filosofia”, na página 218.
[3] R. A. Schwaller de Lubicz – PROPOS SUR ÉSOTÉRISME ET SYMBOLE, Col. Mystiques & Religions, Dervy-Livres, Paris, 1989 (p. 9, 11 e 12).
[4] Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, página 109, artigo sobre a ‘Filosofia Portuguesa’.
[5] José de Almada Negreiros – POESIA, Col. “Obras Completas”, n.º 4, Editorial Estampa, lisboa, 1971 (pág. 179).
[6] “DN Magazine”, 25 de Agosto de 1991, pág. 27.
[7] Entrevista a Antónia de Sousa, in “DN magazine”, n.º 256, de 25 de Agosto de 1991.
[8] Idem.
[9] Pág. 56.
[10] Pág. 65.
[11] Pág. 67.
[12] Pág. 68.
[13] O relógio de Aguiar é uma história picaresca…
[14] Vol. VI.
[15] Págs. 205-206.
[16] Pág. 126.
INÉDITOS. 13
19-05-2014 09:24
Num apontamento inédito, António Telmo parte de Camões, o poeta que mais ama e admira, para, uma vez mais, revisitar "Doutoramento e Incesto", um dos seus mais conhecidos Contos Secretos.
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Filomela[1]
“Ao longo da água o níveo cisne canta;
Responde-lhe do ramo Filomela”.
Canto nono d’Os Lusíadas
Filomela, como se deduz da etimologia, é a música porque a ama. Não se transforma o amador na coisa amada?
Na versão latina do mito, Filomela, antes de se ver transformada em rouxinol pelos deuses, não podia falar ou cantar porque lhe tinha sido cortada a língua pelo homem que a violou.
Assim como não há propriamente órgãos que se dizem da fala, pois tais órgãos a natureza os criou para desempenharem funções biológicas: comer, beber, triturar, rasgar, morder, engolir. O macaco não fala e dispõe, como muitos outros animais, de órgãos fonadores análogos aos dos homens. A língua é, pois, uma realidade espiritual: do mesmo modo a música. É a música que move as teclas do piano ou faz vibrar as cordas da guitarra, porquanto as mãos do pianista ou do guitarrista seguem submissos o comando da Musa. É o que o mito parece significar: Filomela, a quem cortaram a língua, foi transformada pelos deuses em rouxinol, o pássaro cantor por excelência.
Num dos meus contos, escrevi que “a música é a espiritualidade dos estúpidos”. Houve quem me interpretasse mal, no sentido de que eu considerava a música uma arte para gente destituída de inteligência. Não pus naquela frase esta intenção. Pelo contrário, signifiquei com ela que, sendo a música a espiritualidade na sua forma universal, por ela até os estúpidos podem experimentar a sensação do divino. Deste ponto de vista, desempenha na humanidade um papel análogo ao do amor que vem ligar o homem e a mulher.
[1] Título da responsabilidade do editor.
DISPERSOS. 10
16-05-2014 09:22
O batoteiro
Usava monóculo e, como o heterónimo do poeta, chamava-se, que coincidência!, Álvaro de Campos. Aparecera em Borba no verão quente de 197… e, no club que frequentava assiduamente, conjecturavam os esquerdistas que devia tratar-se de algum fascista que fugira para onde ninguém o conhecesse, mas alguns, menos apaixonados, duvidavam que assim fosse porque, então, porque diabo teria escolhido o Alentejo?
Não jogava, mas assistia de pé, longas horas, atrás de um dos jogadores, sem dizer palavra e sorrindo amavelmente para quem olhasse para ele. Várias vezes o tinham convidado, mas recusava o convite, dizendo não conhecer o jogo de poker aberto. Tentaram por meio de perguntas que julgavam hábeis saber alguma coisa sobre o indivíduo. “Gosto muito do Alentejo e dos alentejanos.” “O médico recomendou-me estes ares.” Os argumentos que metam filhos ou doenças convencem toda a gente. Mas a sua presença silenciosa irritava-os. Os mais corajosos lançaram-lhe uma ou outra “indirecta”. Ficava imperturbável.
Jogava ali um barbeiro que fazia dó, quando perdia. Os outros chasqueavam: “Lá se foi o dinheiro de mais dez barbas!”. Não respondia, procurando esconder as mãos que insistiam em tremer, coisa impossível, já se vê, porque as mãos têm que estar sobre a mesa a segurar e a manipular as cartas.
“José Joaquim, lá se foi o dinheiro de mais quatro barbas!”
E repetiam a cada jogada perdida do barbeiro o mesmo estribilho, só com a variante do número calculado pelo valor da importância. Naquela noite, se não fosse a presença do homem do monóculo, o barbeiro, como de costume, teria deixado andar. Como, porém, os chasqueadores procuravam com o olhar a aquiescência do “desconhecido”, o barbeiro teve um súbito acesso de cólera e disparou:
- Ainda vou a casa buscar a navalha para vos fazer a barba a todos.
Foi um troar de gargalhadas. O barbeiro levantou-se e saiu furioso, deixando na cave duas fichas esquecidas. Houve um grande silêncio e todos se voltaram quando o homem do monóculo falou:
- Posso sentar-me e jogar aquelas duas fichas?
Toda a gente se esqueceu do barbeiro, emocionados todos com verem que, finalmente, o homem ia entrar na sua sociedade. Um deles ainda tartamudeou: - Se não traz dinheiro consigo…, mas dois cotovelos sustiveram-lhe a palavra. “Pois não, faça favor.”
Era a vez do barbeiro distribuir as cartas. O desconhecido recolheu-as de sobre a mesa e, antes e começar a misturá-las olhou fixamente para o centro da mesa. Sentia-se o silêncio dos outros. Lentamente, começou a manipulá-las e disse para os lados:
- A mistura dos elementos.
Com a mão esquerda pôs o baralho à frente do jogador a quem cabia “cortar” e falou de novo:
- A troca do que está em cima com o que está em baixo.
Pegou de novo no baralho e, enquanto distribuía as cartas, ouviu-se distintamente como num rito mágico:
- Para Leste, para Sul, para Oeste, para mim. E assim sucessivamente duas vezes. Tirou depois um ás para a mesa.
Não se ouvia uma mosca. O da esquerda abriu. Seguiu a roda das apostas. Metade não foi à jogada, os dos ângulos colaterais. Nova carta: outro ás. Desistiram os outros quatro. O desconhecido recolheu as fichas.
Um deles disse:
- Gostava de saber se tinha os quatro ases.
- Pois não. – E mostrou um oito de oiros e um nove de espadas. Não me digam que nenhum de vocês tinha um ás!
Aqueles homens, habituados ao inusitado, estremeceram na sua sólida auto-confiança. Começaram a sentir-se ridicularizados, mas nada disseram porque não havia um motivo plausível para protestar o que quer que fosse. Todos pensaram no seu íntimo que deviam esperar pelas outras jogadas. Mas, nas outras jogadas, o homem ganhou sempre, por tal modo que, por volta da meia noite, ficou sozinho. O contínuo viu que durante alguns minutos se manteve sentado, olhando tristemente para o pano verde da mesa.
- Não quer rebater as fichas?
- Ah! Sim. Se fizer favor.
Meteu no bolso umas boas dezenas de contos e saiu.
Ninguém o viu mais nem teve qualquer notícia dele. Rosnavam que se tinha abotoado com o dinheiro deles e à custa das duas fichas do barbeiro. Mas este comprou um automóvel e duas cadeiras modernas para a sua barbearia.
António Telmo
DOS LIVROS. 09
15-05-2014 09:47
De um caderno de apontamentos. 04
Quando dei a um dos meus contos o nome de A Dama de Oiros, tive alguma hesitação entre oiros e ouros. A melhor gramática de língua portuguesa, que é uma gramática espanhola, ensina que, nos autos de Gil Vicente, os dois ditongos distinguiam cristãos e judeus. Onde o cristão diz agouro diz o judeu agoiro. Com efeito, a evolução do ditongo au latino de aurum para oi, sendo foneticamente impraticável, terá de explicar-se por importação de outra língua o uso deste ditongo, alternando com o ditongo ou nessas palavras de forma dupla. O mais comum é dizer-se, hoje ainda, ouro e não oiro, tesouro e touro.
A substituição do vau (u) pelo yod (i) na palavra aurum está, como nas outras palavras de forma dupla, como uma marca de um povo em que o yod (i) designa o judeu.
A raiz aur da palavra aurum aparece em aurora e em aura e, como em hebreu aur significará luz, estamos perante um dos muitos casos que torna discutível a separação entre línguas semitas e línguas indo-europeias. O que é surpreendente é que também a palavra aures (orelhas, ouvidos), tenha a mesma raiz, como se o ouvir fosse um escutar da luz.
Ninguém como os judeus do tempo de Gil Vicente estava em condições linguísticas mais bem situado do que eles para interpretar a palavra aurum na sua relação com a luz. Podemos por isso imaginá-los a repelir o som cavo e obscuro ou, achando-o imperfeito para exprimir o esplendor do metal luminoso.
O i, décima letra, enquanto yod, do alfabeto hebraico, é aquele ponto luminoso irradiante (Tipheret) para oito direcções. O vau corresponde a Malcuth, ali onde a luz toca o abismo e as trevas, é, como expliquei na minha Gramática da Língua Portuguesa, o ponto em que a treva se torna luz e a luz treva. Entre a noute (palavra hoje desusada) e a noite há toda a diferença de uma noite escura sem luz e sem estrelas para uma noite límpida de Janeiro.
A Dama de Oiros está impregnada de uma luz que a Dama de Ouros não contém. Daí a minha preferência no titular do conto.
Para o rio Douro não temos a variante Doiro. Mas, se em vez de Minho puséssemos Munho, criaríamos uma palavra sem qualquer luz dentro. Os fonemas são ou não são significativos?
Só não o são para os linguistas de ofício. E, no entanto, são estes linguistas que nos ensinam nas Universidades. Fazem-no de costas voltadas para a Arte Poética, essa Cabala dos loucos.
António Telmo
(Publicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006-2009)
VOZ PASSIVA. 21
13-05-2014 09:36
TELMO, António, Contos, Lisboa, Aríon, 1999, 186 pp.*
Pedro Sinde
António Telmo surpreende-nos agora com um livro de contos. Cada um destes contos surge como aquelas casas antigas dos aldeões portugueses: a partir de um centro, que era a cozinha, onde se mantinha aceso o fogo do lar – como as Vestais no templo sagrado – ia-se acrescentando, ao longo das gerações, novos compartimentos, resultando o conjunto num edifício harmonioso, como se uma só pessoa o tivesse projectado e edificado. Assim, colocado mesmo no centro da casa, vai o olhar de António Telmo (o “olhar místico” como o caracterizou António Quadros) espraiando-se sobre as diferentes personagens dos contos, partindo esse centro comum a todas elas.
Cada personagem julga-se sozinha até encontrar esse ponto comum que a une a uma série de outras personagens; aí ela percebe que os acontecimentos são regidos e unificados por algo que a transcende e orienta pelo meio de “acasos” que passam a ser vistos como efeitos.
Há um jogo mágico de forças que, antes de se realizarem como destino, são pensamentos. São forças que atam e desatam as pessoas umas às outras, forças sempre precedidas por sinais anunciadores dos acontecimentos, sinais que são a linguagem do mundo – por exemplo o trovão em Os Dioscuros ou, no mesmo conto, o facto de Tiago pensar, a certa altura, constantemente em Jacinta, e esta lhe aparecer logo de seguida; é o caso ainda da coincidência de, em A Arte de Olhar, o protagonista se ter visto privado dos óculos, mesmo no período em que lhe é dada a oportunidade de experimentar o método do Dr. Bates. A linguagem do mundo aparece (de) cifrada de modo claro em A Minha História. Que o leitor leia atentamente este relato verdadeiro. Nestes contos há sempre uma íntima união entre as personagens e o que as rodeia, como se tudo convergisse para o mesmo, para a realização do mesmo, como no lar a cozinha.
O mesmo fio misterioso que perpassa os seus livros de Filosofia Cabalística, perpassa aqui estes contos. São experiências, vivências e pensamentos que nascem ora sob a forma de ensaio ora sob a forma de contos, como se estes últimos fossem o laboratório da luz filosófica, onde as concepções de António Telmo se testassem. Por isso nos seus livros de filosofia se entrançam já contos com ensaios – por exemplo Filosofia e Kabbalah ou o Horóscopo de Portugal.
O conto é, tantas vezes, a melhor forma de transmitir doutrina, porque aí os conceitos são obrigados a sair do mundo noético do espírito quase puro para incarnarem, como o Verbo exemplar, e ganharem vida terrena. Esta herança do Álvaro Ribeiro de A Razão Animada é aqui praticada pelo seu discípulo, conforme se diz no Prolóquio a Filosofia e Kabbalah: “No Liceu Aristotélico, que funcionava na Brasileira do Rossio, Álvaro Ribeiro ensinava, no ano simbólico de 1957, que a filosofia é uma arte, a Arte de Bem Cavalgar Toda a Sela, o que pode explicar também como, num livro de Filosofia e Kabbalah, apareçam poemas, aforismos, contos.”
Mas António Telmo não escreve os contos como quem ensaia em laboratório. Os contos surgem da sua vida pelo ímpeto criador, voluntário ou involuntário; surgem como surge o céu e a terra e as flores nela, nesse palco incomensurável de comédias e tragédias. Assim vão sendo dados ao autor, vivendo na sua alma em gestação para serem depois concebidos e incarnarem no corpo estreito ou largo (depende do leitor) das letras.
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*Publicado em Teoremas de Filosofia, n.º 2, Outono de 2000.
VOZ PASSIVA. 20
12-05-2014 09:27O milagre do Le Bateleur*
Ângelo Monteiro
A primeira vez que li o LE BATELEUR (Lisboa: Átrio, 1992), de António Telmo, seu autor me fez lembrar um Jorge Luiz Borges português. Numa segunda leitura veio-me à idéia de que Jorge Luiz Borges bem poderia ser um António Telmo argentino. O jogo de espelhos, a escala de similitudes bem como de contrastes, toda uma infinita série de gradações de sentido levou-me a aproximar um do outro, mas o solo que alimenta a criação do escritor portenho não é o mesmo do escritor português, em que o cruzamento subterrâneo de várias influências, não somente lusas, mas também mouriscas, judaicas ou cristãs-novas, lhe permite um diálogo permanente com um alter-ego perfeitamente à sua altura, que é o personagem Tomé Natanael, com o qual se completa até anagramaticamente.
Outra diferença: Jorge Luiz Borges toma, muitas vezes, como ponto de partida de sua narrativa uma relação com literaturas supostamente existentes ou desaparecidas, para mostrar, no fundo, a evanescência de todas as coisas e, afinal, sua relatividade, ao passo que António Telmo lida com uma tradição viva, de que busca desvelar o misterioso significado para além do campo imediato das aparências.
Os contos de LE BATELEUR formam na realidade uma fabulação única marcada por cogitações que vão desde a criação da linguística no século XIX, na Alemanha, e os problemas provocados pelo choque com a herança hebraica da Kabbalah, – de que António Telmo é um exímio estudioso – até à história secreta dessa mesma linguística, envolvendo, inclusive, uma fantástica teoria conspiratória.
Tudo começa com a história de um poeta que foi pintado por um pintor. A imagem do poeta, de tal maneira se tornou estranha àquela que possuía em vida, que terminou por dominar a primitiva na memória de todos. A pintura do poeta virou um negativo, em suma, da primeira carta do TAROT que traz a figura de um bateleur, uma espécie de arlequim ou prestidigitador. Não se sabe ao certo se se trata da história – como parecem sugerir a capa e a contracapa, onde estão as duas figuras – do retrato do poeta Fernando Pessoa feito pelo pintor Almada Negreiros.
O argumento por excelência do livro é um caloroso debate intelectual entre António Telmo e Tomé Natanael: e não escapa a esse debate nem uma nova interpretação do quadro de Rafael, A Escola de Atenas, - por sinal bastante original, por enfatizar antes o foco interior de uma mesma energia nos olhos dos dois filósofos , Platão e Aristóteles, que a convencionalíssima opinião dos dedos para cima e para baixo de ambos, como representando apenas suas posições opostas – nem uma absolutamente surpreendente comparação ente as Categorias de Aristóteles e o seu equivalente à luz da Kabbalah.
Há, portanto, uma relação de simetria entre o retrato do poeta feito pelo pintor – que nos aparece, prestidigitadoramente, como o negativo de um arlequim – e a A ESCOLA DE ATENAS, de Rafael, - que procura representar a histórica ambivalência entre os dois pensadores gregos mais famosos – à qual somos convidados a contemplar. Para que contemplando essa simetria, possamos participar, subindo os degraus necessários, do conflito eterno e emblemático entre a realidade e a aparência, ou, noutro plano, do antagonismo, em sua função complementar, entre a Arte e a Filosofia.
António Telmo é um dos poucos autores contemporâneos, daqui ou de além mar, de quem realmente podemos aprender algo; via de regra desaprendemos de tudo quando começamos a lê-los, em sua grande maioria, porque o culto da personalidade parece neles ser mais absorvente que a ânsia, afinal legítima, de comunicar sua própria intuição ou uma forma da Verdade que supostamente lhe foi dado captar.
Em LE BATELEUR temos um autor erudito sem deixar de ser sábio, sobretudo pela exemplaridade de seu instinto artístico, onde não há lugar para divagações tão brilhantes quanto estéreis, que se querem imbuídas da mais alta modernidade, porém desconhecem inteiramente o espírito da literatura e a verdadeira marcha do pensamento.
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* Publicado em Encontro - Revista do Gabinete Português de Leitura de Pernambuco, ano 16, n.º 16, 2000, p. 203.
INÉDITOS. 12
09-05-2014 10:18
O escritor justifica-se. Sob a forma dialogal, António Telmo revisita, num conto que deixou inédito, o seu livro de Contos, prevenindo-lhe as críticas e as objecções. É este um escrito em que a sua lúdica inteligência vai a par do humor, sempre subtil, com que nos toca.
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O contador de histórias e a mesa de bilhar
“Li o teu novo livro e quero dizer-te, com toda a franqueza, com a lealdade que se deve ter entre amigos, que achei os teus contos cheios de defeitos. Não há o retrato físico de uma só personagem que seja. Não lhe vemos o rosto. Contentas-te com lançar um nome que é Julião ou Isidro Jorge como podia ser outro qualquer. São apenas um nome e às vezes nem nome têm. Não sabemos se são morenos ou loiros, magros ou gordos, altos ou baixos.
Os lugares onde se passam as histórias são apenas indicados.
Depois, só há praticamente o protagonista e, às vezes, uma segunda personagem para o fazer existir. A intriga, como a palavra o diz, exige, pelo menos, três pessoas. Os teus contos não têm intriga.”
O crítico falou assim e ficou à espera da reacção do contador de histórias.
– “Tens razão.” Respondeu por fim. “É verdade tudo quanto dizes.” E ficou silencioso.
O crítico irritou-se.
– “E então?” Perguntou ele.
– “E então, nada.”
– “Nada não”, vociferou o crítico. “Tens obrigação de dar uma satisfação aos leitores, de te justificares perante eles.”
O contador de histórias sorriu e disse suavemente:
– “Falas dos meus contos como se desempenhassem na sociedade um papel igual aos das pastas de dentes. Verificou-se que a pasta produz a cárie dentária. O fabricante tem de retirar o produto e de pôr no mercado um que satisfaça os seus utentes. Não é isso?”
– “É e não é. É no sentido de que, quando vieres a publicar outro livro de contos, terás o cuidado de não cair nos mesmos defeitos.”
– “Então porque não o escreves tu?”
O crítico guinchou um som indistinto e ripostou:
– “Não sou um contista. Sou um crítico. Um especialista em análise literária. Compete-me orientar o gosto dos leitores.”
– “Ou o talento dos escritores?”
– “Uma coisa e a outra.”
– “Oh meu caro amigo, sempre houve grandes escritores e os críticos não têm dois séculos de existência. Eu não vejo como seja possível, com palavras, tirar o retrato físico exacto de uma pessoa. A palavra não se fez para isso. Talvez, aqui, nos fosse mais útil a foto-espingarda do Julião. Quando leio nos grandes escritores, num Camilo, num Eça, num Domingos a descrição física de uma personagem, não fico a vê-la como ela é, se algum dia foi, no espírito do seu criador. É o leitor que a imagina, se quiser.
Quanto às paisagens, tenho que dizer-te o seguinte. Basta falar em eucaliptos e no alto de uma montanha para que o leitor veja toda a paisagem, aquela que ele gosta de imaginar naquele caso particular.
No que diz respeito ao terceiro ponto, o de não haver intriga, porque só há uma personagem, pergunto-te se achas que um homem é pouca coisa. Tu preocupas-te com mais alguém, além de ti? E não é, preocupando-te contigo e com o teu aperfeiçoamento, que podes melhorar os outros?”
A discussão prosseguiu pela noite fora. Oxalá tivesse antes prosseguido pela noite dentro!
O contador de histórias acordou, no dia seguinte, mal disposto. Tinha a zoar-lhe na alma a crítica do crítico.
Depois de ter mascado na cozinha o pequeno almoço, saiu para o quintal. Ouviu cantar um galo. Como é que diabo poderia ele dar com palavras o canto do galo? Lembrou-se daquele seu professor de Português no Liceu que soltava um assobio e pedia a um aluno que escrevesse no quadro aquele som. “Esta gente só quer artes plásticas”. Rosnou. No entanto, havia no seu espírito qualquer coisa de muito forte que dava razão ao crítico. Entrou em casa e foi ao seu quarto buscar o seu livro de contos que tinha na mesa de cabeceira. Folheou-o e leu aqui e ali. Sentia-se triste, cheio de desânimo. Leu de novo aqui e ali e voltou a não gostar. De repente, viu que estava farto de literatura. “Tenho de deixar de escrever.” Concluiu. “Não tenho paciência”.
Foi então que pensou em comprar um bilhar, a sua grande paixão de quando era adolescente e que, mais ou menos, conservou pela vida fora. Tinha em casa uma sala de que fizera, de concerto com a mulher, o seu escritório e, simultaneamente, a sala de visitas. Era a única divisão na casa que comportaria o tamanho de uma mesa de bilhar. Era ali, porém, que a sua mulher dormia agora, num divã que era ao mesmo sofá e cama. Esse divã teria de sair e as estantes, os livros e o restante mobiliário, para que o bilhar pudesse funcionar, teriam de ir para o sótão, o único lugar onde tinham cabimento. Isto ainda era o mais fácil. O pior era que a mulher voltaria a dormir com ele na cama do casal.
Não era que não se dessem bem. Incomodavam-se um ao outro com o ressono. Se ela adormecia primeiro, com o barulho que fazia ressonando, não conseguia ele pegar no sono; se era ele o primeiro, não conseguia ela. De comum entendimento, decidiram que se montasse no escritório aquele divã e passaram a ter noites separadas. Ela, porém, cedeu dificilmente porque temia que a separação física tivesse consequências físicas indesejáveis.
Se ali pusesse um bilhar, voltariam a ter de dormir juntos e reapareceria o problema causado pelo ressono. Mas a ideia de um bilhar, de praticar nele a série americana, dominava-o com a força de uma obsessão. Consultou a mulher. Fingiu ela que a ideia não lhe agradava; ele ficaria sem escritório, ela sem sala de visitas. Fingiu e sentiu ao mesmo tempo. Mas enfim, era como ele quisesse.
O bilhar foi mais forte do que o ressono e entrou pela casa dentro.
Aconteceu, porém, que, passados uns tempos, nem dormia nem jogava ao bilhar. era aborrecido estar ali estupidamente e empurrar três bolas sem o atractivo da competição. E não encontrou ninguém disposto a vir jogar com ele. Os poucos jogadores que havia na cidade preferiam praticar o bilhar onde fossem assistidos por outros.
Uma noite, apareceu-lhe o crítico em casa. Já não se viam desde aquela discussão. Ficou admiradíssimo de ver a modificação da sala.
– “Por um miserável jogo de bilhar, perdeste o teu reduto de escritor, tens os livros a apodrecer no sótão e não tens onde receber decentemente as visitas.”
– “A ti se deve. – Disse o contador de histórias.
– “A mim se deve?!”
– “Sim. por causa de, ti perdi o gosto de escrever e reapoderou-se de mim a paixão do bilhar. Voltei a dormir com a minha mulher. Foi, afinal, a única coisa positiva. Difícil, mas positiva.”
E contou-lhe a história do ressono.
O crítico riu a bandeiras despregadas. E repetia: “O ressono! O ressono!” E concluiu: “Aí está um belo conto!”
O leitor desta história pode ver que ela foi escrita e sem o retrato físico das personagens.
António Telmo
VOZ PASSIVA. 19
08-05-2014 11:39
António Telmo – Fábulas com pinturas*
António Cândido Franco
Eu podia dizer que a Filosofia Portuguesa é uma rosa brava que se usa na lapela sem se desfolhar ou então um bordado selvagem, mas prefiro abster-me, que o assunto é sério e tem andado resfriado de equívocos.
A chamada Filosofia Portuguesa encarada à distância de 50 anos nada tem de desperdício cultural ou de transigência política. Para desperdício cultural há trabalho em demasia e para transigência política oposição a mais. Por detrás da benevolência tartamuda de um Álvaro Ribeiro esconde-se um invejável cepticismo ou até um racionalismo de esquadro e compasso, como por detrás da expressiva eloquência de um José Marinho se depara com um espantoso inconformismo, apostado em livrar o homem de todos os incómodos. Marinho não foi só o mais saudoso dos discípulos de Leonardo Coimbra; foi também o bravo que suportou corajosamente 30 anos de exclusão social, por ter sido implicado no atentado de 1937 contra Salazar.
A Filosofia Portuguesa parece assim um admirável ardil da História. Há humores que só se percebem 50 anos depois e este bem pode ser o estratagema a que a História inteligentemente engendrou em clima adverso e frio para salvar do esquecimento os sóis quentes da cultura espiritual republicana da Renascença Portuguesa.
É lástima que um tal trabalho de resistência possa ter sido visto, mesmo por argutos, como pouco menos que o afortunado dizer da sensibilidade média da época. Mais que demolir, interessou aos homens da Filosofia Portuguesa demandar o espírito que sobrevive às ruínas, mas isso só abona o talento raro de que dispunham e a desamparada situação de orfandade em que viviam.
António Telmo foi um dos jovens que há 40 anos se deu conta que o diálogo de Álvaro Ribeiro e José Marinho a uma obscura mesa de café não era assunto de rotina. Deixou-se então ficar na roda e estreou-se aos 36 anos com uma Arte Poética (1963). Hoje com mais de setenta, o autor passa por ser um caprichoso esotérico, quando não um perdulário que desperdiça em charadas e horóscopos a inteligência que Deus generosamente lhe confiou. Outros ainda, mais prosaicos e rasos, dizem-no tão só apreciador da batota e do bilhar, quando não da tourada portuguesa ou da caça às perdizes.
Eu nada sei disso. Conheço-lhe bem as letras, mas mal os passos. Por isso, digo que ele é um homem discreto, que foge da vaidade do mundo, sem precisar para isso de se fazer hipócrita ou insuportável. Tem o gosto inato do convívio, mas não se presta a fazer de pavão nas montras dos passeios públicos. Tal como Herberto se fica por um recanto de uma anónima tasca do Largo da Misericórdia, também Telmo não troca o café da cidade onde vive pelas docas de Alcântara ou os bares do Bairro Alto.
Julgo que isto só lhe fica bem. E julgo ainda que esta modéstia pessoal não é uma questão de feitio mas de justiça. Mais do que um hábito, ela é uma vontade. Há em tal cuidado a nobreza de um propósito, que tem sido de resto o centro de todo o seu trabalho literário. Este homem tem procurado em tudo quanto escreve, e não tem sido muito, o esforço de um aperfeiçoamento moral. De nada lhe vale a beleza, se tal encanto não se traduzir para ele num acréscimo de melhoria interior.
O que anda por aqui não é nenhum idealismo requentado, mas o lastro bem apetrechado do Aristóteles que desfibrou a tragédia, encontrando no suor amargo da poesia um superior sentido purgativo. O resultado é António Telmo ser um dramático, antes de ser um filósofo; mais vale para ele a beleza sem efeito que o raciocínio sem catarse. A primeira é só postiça, sem chegar a ser pérfida; o segundo é diabólico, sem ser inofensivo.
Daí o requintado domínio que este escritor de ideias pôs desde a sua estreia nos processos poéticos. A poesia é que monta, já que só ela garante, através do efeito purgativo, a operacionalidade moral e emotiva das ideias. E daí ainda este seu novo livro de contos, que sendo porventura o primeiro parágrafo do seu testamento espiritual é também o lugar onde a filosofia se dramatiza. Telmo parece dizer: – Não se pode chegar a uma arte de pensar sem primeiro viver uma arte de ver; quer dizer, não há filosofia sem o espectáculo prévio da poesia. Eu sei que coisas destas se esquecem facilmente. Mesmo um livro como este, em formato de álbum e com sete pinturas de Armando Alves, se abandona a correr. É muito mais fácil lembrar Mónica Lewinsky ou o cartão multibanco. Mas mesmo que nada disto mexa com a nossa vidinha, pode vir a bulir com a dos deuses, que esses, parece, nada sabem de televisão. Então aí o assunto ganha uma transcendência insuspeita. A palavra dos poetas, tão desabonada na terra, faz de vez em quando rugir o Céu.
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* Publicado em JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, de 1 de Dezembro de 1999.