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VOZ PASSIVA. 24
05-06-2014 09:25O comentário de Eduardo Aroso, membro do projecto António Telmo. Vida e Obra, que hoje publicamos irá integrar, com dois outros comentários de António Carlos Carvalho, a marginália de A Terra Prometida, I volume das Obras Completas de António Telmo, cujo lançamento terá lugar em Sesimbra, na Biblioteca Municipal, no próximo dia 21, durante a terceira TARDE TÉLMICA, com apresentação de António Carlos Carvalho, Miguel Real e Pedro Martins. Versa O Horóscopo de Agostinho da Silva, escrito télmico reunido naquele volume.
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Comentário a O Horóscopo de Agostinho da Silva
Eduardo Aroso
O texto em apreço traduz o conhecimento abarcante de António Telmo em matéria astrológica, no que ela tem de simbolismo e mito, para além de evidenciar o que vulgarmente se chama conhecimento operativo astrológico. Quanto a este último, diga-se que não é habitual esperá-lo de um filósofo da estirpe de AT e dos círculos que frequentou. Tomando o local de nascimento (um dos dados essenciais para o levantamento de uma carta do céu) começa por se referir à questão a que o próprio Agostinho da Silva alude, e bem conhecida de todos, quando este nos informa: «nasci no Porto, mas onde eu queria nascer era em Barca d’Alva, pois antes de nascer foi a ela que eu escolhi. Os deuses que movem os astros quiseram fazer a minha vontade, mas como se trata de relações de grandes movimentos não conseguiram ser exactos e daí o Porto em vez de Barca de Alva.”
Refira-se, desde já, que estas palavras de AS, tanto no domínio escatológico como astrológico, levar-nos-iam muito além do escopo deste artigo. Sublinhe-se apenas que há aqui uma forte convicção do que em poética e filosofia se entende por fado, fatum, ou maktub, ou seja, os complexos meandros do destino, tema que baila constantemente no miolo de um horóscopo. É claro que AS ironiza a verdade, dizendo que «os deuses que movem os astros quiseram fazer a minha vontade, mas como se trata de relações de grandes movimentos não conseguiram ser exactos e daí o Porto em vez de Barca de Alva”! Com isto quis significar que, em última análise, os Céus (ou a divina sophia) suplantam a Terra, o limitado conhecimento individual, ou como diriam os antigos helenos «o todo é maior do que a soma das partes».
AT, lucidamente, faz a transposição de sentido para conciliar os opostos ao dizer que «não fez mais do que lançar-se ao mar, afastando-se do porto numa barca capitaneada pela deusa do nascer do dia», ou seja, a Estrela d’Alva. Vénus, na mitologia representando o amor e em «Os Lusíadas» como que um guia superior, na tradição popular é conhecido por este nome, que, consoante a sua posição astronómica, também se chama Estrela da Tarde, quando brilha perto do horizonte ocidental. Curiosamente, este planeta no horóscopo de Agostinho rege a 2ª casa, a 6ª (serviço e saúde) e a 9ª (mestres e conhecimento superior, estrangeiro e longas viagens). Escreve AT que AS quando escolheu Barca d’Alva tinha presente o mito de Er, de que falou Platão, ensinando que as almas antes de virem a este mundo escolheriam, por assim dizer, as linhas fundamentais do seu destino ou projecto de vida. Torna-se mais interessante este ponto se lermos o que Max Heindel, no início do século XX, diz em «Conceito Rosacruz do Cosmos», cap. III, onde se explica que o ser humano, ou espírito puro, antes de vir a este mundo, na missão que têm os chamados «Anjos do Destino» (lipikas, em sânscrito), é-lhe dado escolher alguns «panoramas» ou projectos de vida. Uma vez escolhidos têm que ser cumpridos nas linhas essenciais - sublinhe-se essenciais - pois é só no restante que se pode falar em livre-arbítrio. Havendo fugas, podem resultar dores e sofrimentos, por desobediência às leis da Natureza e, sublinhe-se, ao que nós próprios escolhemos!
AT, na análise do horóscopo de AS, confessa que vai tentar «interpretá-lo seguindo dois caminhos combinados um com o outro: o caminho dos astrólogos que tomarei consultando um bom livro da especialidade e o caminho da razão poética ou da mitologia, porquanto é à mitologia que os astrólogos vão buscar os nomes dos astros e dos signos». Interessante é também o relato que faz de ter levantado o horóscopo em Brasília, pedindo a AS os dados necessários. Este deu-lhe o local de Barca d’Alva e não o Porto, cidade onde aconteceu o seu primeiro gemido ou berro neste mundo. Porém, astrologicamente não seria correcto se o horóscopo fosse levantado para o local de Barca de Alva. Todavia, AT, em visão de águia altaneira, como que corrige, conciliando os opostos, quando escreve «os meridianos [linhas que marcam a longitude] são próximos um do outro; do Porto, onde se formou na Escola de Leonardo Coimbra, saiu para capitanear com outros seus pares o movimento atlântico do pensamento português». Ora nesta relação Porto (escola de filosofia) e Barca d’Alva (barca), ou seja, o que se aprende e de onde sai (Porto) realiza-se partindo de Barca d’Alva (em barca/caravela/navio), pelo que a ansiedade de AS está bem patente querendo sair metaforicamente do “porto de Barca d’Alva” para o mundo!
Assim, este aparente imbróglio, sem a explicação de AT poderia ficar assim. Quando este escreve que «os meridianos [linhas que marcam a longitude] são próximos um do outro» diz o que um astrólogo já sabe, isto é, a alteração do grau ascendente do horóscopo é quase desprezível, pois não chega a ser de um grau. Mas o dilema, pela lucidez de AT, ganha luz na simbólica e por isso superior interpretação da carta dos céus e, consequentemente, da vida de AS. E recorrendo agora a outra imagem: sem colocar a questão do horóscopo, mas pelo símbolo, o que poderíamos dizer também de António Telmo: o filósofo de Estremoz ou o filósofo de Sesimbra?
O autor de O Horóscopo de Portugal pega no fio de Ariadne e toma a palavra considerar, sidério e sideral e o «sul sidério», e por extensão, em Considerações, livro de AS. Ora, isto mais não é do que quando o «Céu e a Terra se combinam para urdir os problemas da humanidade, mas também para os resolver». E acrescenta que AS tinha a sua carta astrológica desenhada em si mesmo, isto é, a sua vida espelhava claramente o que AT via na carta do céu e ainda hoje nela se lê. O filósofo de Estremoz – ou também de Brasília, pois lá fez este estudo e o entregou a AS – continua dizendo que Mercúrio é dominante no horóscopo, pois vemos que não só é regente do signo ascendente, Virgem, como do signo do Meio-do-Céu, Gémeos, e «forma com a Lua e Neptuno aspectos altamente benéficos». Telmo, atentamente, refere-se à dupla natureza de Mercúrio, pois um mensageiro/intermediário (figura associada a este planeta) pode sê-lo de várias maneiras, tanto pode servir a Deus como a Mamon, pelo que AT diz que «todos os deuses têm duas faces». É claro que no horóscopo de Agostinho, tendo este reagido superiormente ao que a tradição chama «mensageiro dos deuses», AT acrescenta o seguinte «Mercúrio em Aquário: Intuição, rapidez e inteligência fulgurante. Inventivo e aberto às ideias novas». Esta tónica aquariana está reforçada pela posição do Sol, ou arquétipo solar, também no signo de Aquário «aberto às ideias de vanguarda, vê as relações humanas de uma forma despreconceituosa e informal». Muito mais se poderia dizer e de suma importância quanto ao signo de Aquário, e que está bem enfatizado no caso de AS, ou seja, um traço bem vincado de individualidade ou individuação (no conceito de Carl Jung), gerando um sentido de independência que, ao mesmo tempo, nos espíritos superiores, se faz altruísta, fraternal e cooperante, mantendo-se todavia consciente de si.
O leitor pode ler o mais que AT descreve, mas vale a pena acrescentar «Marte em Carneiro: enérgico e resistente. Iniciativa, impetuosidade, audácia». Vemos a verdade disto quando AT nos diz que Agostinho, aquando da construção da Universidade de Brasília, carregava tábuas às costas, andava muitos quilómetros a pé e o que comia de manhã dava quase para todo o dia! É mister falar ainda de Neptuno «a renúncia a tudo o que é fácil, lutando pela felicidade do futuro, os contrastes profundos, a oratória, a política, as experiências científicas e sociais audaciosas, o misticismo religioso ou ateu, tudo isso está fortemente impregnado da influência de Neptuno»
Telmo remata, dizendo que há um «admirável texto em que está bem evidente o perfeito acordo do seu pensamento com o seu ser íntimo, tal como podemos imaginá-lo através do horóscopo. Tem por título «Quanto a Deus». Na verdade, este texto mais que teológico, fulgurante e lúcido - dir-se-ia no Sopro do Espírito Santo - é a perfeita combinação do melhor da lógica, da razão e da expressão enquanto atributos de Mercúrio com a sua oitava superior, Neptuno, «o das longas viagens pelo mar, o que leva ao Brasil e a todas as partes do mundo», planeta do misticismo religioso, da inspiração, universalidade, da compaixão e do serviço abnegado ao próximo. Repare-se que o Sol, Vénus e Mercúrio (este a entrar) estão na 6ª casa do horóscopo, a do serviço sob formas que necessariamente devem ser visíveis para o mundo.
Há, assim, neste texto, ainda que num espírito de síntese, um raro e profundo estudo de um filósofo para outro filósofo, com a vantagem de um deles ter recorrido à astrologia. Mas a importância deste «arcano sagrado» de sabedoria milenar ainda está por fazer quanto ao que se poderia dizer de influência subliminar na ampla obra de AT, pois do que nos deixou da Cabala temos recebido o suficiente para sabermos o quanto e como ela marca a sua obra. Prossigamos, pois, a «reunir o que está disperso».
INÉDITOS. 15
04-06-2014 11:37Sonho mágico*
Os esquilos são animais ágeis, por sua essência ligados às árvores. Armazenam nos seus buracos provisões para o Inverno, constituídas por sementes e frutos duros. Saltam graciosamente de ramo em ramo e de árvore em árvore. Os cientistas não puderam encontrar ainda a razão da cauda, um grande e belíssimo tufo de pelos que parece não servir para nada.
O esquilo tem, evidentemente, o seu arquétipo. A beleza é, em geral, explicada nos animais e nas plantas pelo sexo. Não nos consta, porém, que animais hediondos, como o hipopótamo por exemplo, não tenham sexo. Outros factores virão resolver o problema. No tinteiro dos cientistas não há tinta para as ideias tais como existem na ideação de Platão e muito menos tais como vivem no pensamento de Deus.
Tudo o que escrevi que ler se leia fi-lo como num sonho mágico. Houve aí como que um ir à toa do pensamento e, no entanto, algo que é íntimo em quanto escrevi e a mim estranho tem, não raras vezes, a claridade de um olhar certeiro.
Sempre que leio textos meus antigos, esquecidos entre os meus papéis, mais se me torna evidente que foram elaborados por uma espécie de magia. Sinto-os, pois os esqueci, como alheios. Todavia, encantam-me e seduzem-me como se ouvisse a minha alma falando-me das bandas onde sopra o Espírito.
António Telmo
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* Título da responsabilidade do editor.
UNIVERSO TÉLMICO. 03
03-06-2014 21:53Álvaro Ribeiro*
António Cândido Franco
RIBEIRO, Álvaro (1905-1981). Álvaro Carvalho de Sousa Ribeiro nasceu no Porto e faleceu em Lisboa. Frequentou a primeira Faculdade de Letras do Porto, onde se vinculou a Leonardo Coimbra e a Teixeira Rego, e nela concluiu em 1931 o curso de Ciências Histórico-Filosóficas. Participou activamente nas derradeiras actividades da Renascença Portuguesa, ainda que não tenha chegado a colaborar nas últimas séries do seu órgão, a revista A Águia. Assim como assim, a sua assiduidade na livraria da Renascença Portuguesa, à Rua dos Mártires, levou-o a dirigir com Casais Monteiro e Manuel Maia Pinto a última nova publicação da Renascença, a revista Princípio (1930), que, por uma aproximação à Seara Nova e à revista Presença, se propunha combater nas novas gerações a influência do Integralismo Lusitano e do pensamento reaccionário e antidemocrático.
Dois anos depois, dispersos os discípulos de Leonardo Coimbra e encerradas de vez as portas da Faculdade de Letras do Porto, fechadas ainda as duas últimas publicações da Renascença Portuguesa, as revistas A Águia e Princípio, e desfeita a sociedade cultural portuense, surge em Lisboa o manifesto da Renovação Democrática, assinado por Álvaro Ribeiro e Pedro Veiga. O movimento depressa se tornou um pólo de atracção para os antigos alunos da Faculdade de Letras do Porto ou para os colaboradores mais novos da revista A Águia, como Domingos Monteiro e Eduardo Salgueiro, acabando por se tornar o herdeiro que melhor procurou prosseguir e interpretar em novo contexto, o do Estado Novo, os ideais democratistas da Renascença Portuguesa. As movimentações duraram até 1943, ano em que Álvaro Ribeiro se estreou em livro com O Problema da Filosofia Portuguesa, dedicado a José Marinho e publicado por Eduardo Salgueiro na Editorial Inquérito. Com o opúsculo, procurou Álvaro Ribeiro desenhar a Filosofia Portuguesa como movimento cultural herdeiro da Renascença Portuguesa, mas sublinhando desta vez, quase em exclusivo, as fontes esotéricas ou acroamáticas em detrimento das sociais ou das cívicas.
Depois disso, nos anos ímpares, com uma regularidade quase matemática, publicou Álvaro Ribeiro até ao fim da vida uma vasta obra de prosador, de pedagogo, de hermeneuta e de memorialista, em que pretendeu por um lado actualizar um racionalismo aristotélico muito atento aos problemas da linguagem verbal, no qual via a genuína matriz do pensamento português, desde Pedro Hispano ou de Álvaro Pais (século XIV), e por outro magistralizar a tradição esotérica do saber, sobretudo judaico-cabalista, no qual inseria a renovação moderna do pensamento português, começada para ele com Sampaio Bruno.
Nesse sentido, atendendo à sua dupla filiação racionalista e ocultista, o poeta português moderno que mais vivamente interpelou o Álvaro Ribeiro pensador de enigmas foi Pessoa. Dele compilou em volume os textos publicados na revista A Águia em 1912, dedicados à poesia saudosista; a recolha, A Nova Poesia Portuguesa (1944), foi a primeira compilação de dispersos do poeta e antecedeu muitas outras iniciativas do género, a primeira das quais a recolha de Jorge de Sena, Páginas de Doutrina Estética (1945), que contou com larga e generosa colaboração de Álvaro. Assinale-se por fim a coincidência, decerto consciente, senão procurada, entre as iniciais da «Filosofia Portuguesa» e as de Pessoa.
BIBL.: DOMINGUES, Joaquim, Filosofia Portuguesa para a Educação Nacional. Introdução à Obra de Álvaro Ribeiro, Lisboa, Fundação Lusíada, 1997; GALA, Elísio, A Filosofia Política de Álvaro Ribeiro, Lisboa, Fundação Lusíada, 1999; GOMES, Pinharanda, «Álvaro Ribeiro: Da Renascença Portuguesa à Filosofia Portuguesa», in Aa. Vv., O Pensamento e a Obra de José Marinho e de Álvaro Ribeiro, vol. II [inteiramente dedicado a Álvaro Ribeiro], Lisboa, IN-CM, 2005.
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*entrada publicada no Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, Lisboa, Caminho, 2008.
CORRESPONDÊNCIA. 12
02-06-2014 12:01CORRESPONDÊNCIA DE ÁLVARO RIBEIRO PARA ANTÓNIO TELMO. 06
Lisboa, 7 de Junho de 1972
Meu caro António Telmo:
Há meses que vivo no desejo de ir até Redondo, conversar consigo, cumprimentar Maria Antónia e beijar seus filhos. Não me esqueço do Manuel. Parece ter chegado, enfim, a ocasião de vos visitar. O Germano e a Conchita ofereceram-nos uma “boleia” durante a volta que irão dar pelo Alentejo nos feriados nacionais. Talvez não se demorem em Redondo, mas dar-nos-ão oportunidade, à Maria Júlia e a mim, de mais uma vez exprimirmos a simpatia e a amizade que temos por vós.
Encerro este aviso, enviando os nossos cumprimentos que na epistolografia nunca logram perfeita expressão
Álvaro Ribeiro
UNIVERSO TÉLMICO. 02
30-05-2014 09:45Agostinho da Silva*
António Reis Marques
Por mercê do meu amigo António Telmo, tive o privilégio de conhecer o Professor Agostinho da Silva, e depois com ele conviver durante muitos anos.
Muitas vezes lhe ouvi dizer que gostava de contactar com as pessoas simples, com as quais, como também dizia, sempre aprendera muito.
A esse propósito todos nós conhecemos a referência que faz aos faroleiros do Cabo Espichel, no seu livro “Reflexão”.
Eu sou um dos muitos homens simples que ele conheceu mas, no meu caso, obviamente que fui eu que aprendi com ele, e disso vos quero transmitir alguns, também simples, testemunhos e pequenas notas de recordações que traduzem, para além da alma límpida e da inteligência cristalina, a grandeza humana desse saudoso amigo.
* * *
Uma vez manifestou-me o desejo de visitar uma loja de companha, para os que não sabem uma espécie de armazém onde se guardam os apetrechos de pesca, visto querer conhecer de perto o trabalho dos pescadores.
Acompanhei-o então a uma dessas lojas, infelizmente já desaparecidas, dada a decadência que se tem verificado na vida piscatória.
Um grupo de pescadores, bem como o respectivo mestre, entretanto prevenido da visita, dispuseram-se a explicar, na sua linguagem característica, que por vezes tive de “traduzir”, as várias tarefas em que estavam ocupados para a pesca com aparelhos de anzol.
Sempre atento e interessado por tudo, a certa altura surpreende-nos quando, pedindo para ser ele a fixar o anzol na respectiva linha, o fez com a rapidez e a destreza de um pescador experiente.
Haveria de segredar-me depois que, talvez por ter pensado em ser marinheiro, aprendera a arte de fazer nós, e por isso tinha exposto numa parede da sala da sua casa um quadro com alguns dos nós mais usuais.
Na conversa que manteve com os pescadores, deixou-os admirados com o à-vontade com que falava de pesca, dos peixes e de navegação, emocionando-os até quando lhes disse:
“Vocês são os descendentes desse sesimbrenses que correram mundo nas naus e caravelas dos Descobrimentos.
“Foi com pescadores como vocês que os nossos mareantes aperfeiçoaram a arte de navegar, e foi também com eles que, velas desfraldadas, conseguiram um dos maiores feitos das navegações portuguesas: aprender a navegar à bolina, ou seja, navegar contra o vento”.
* * *
Como todos sabemos, o Prof. Agostinho gostava muito de gatos. E até é bem conhecida uma fotografia sua com um gato ao colo.
Poucos saberão porém que ele se deslocava muitas vezes a Sesimbra, propositadamente, para distribuir comida pelos gatos vadios que existiam perto do seu apartamento na falésia.
Numa dessas vezes convidou-me para conversarmos.
Era um dia de Verão e a praia estava cheia de gente que, à medida que o sol declinava, se ia retirando.
Sentámo-nos na sua varanda, donde se avistava em toda a extensão a praia e a baía, e começou por me dizer: “Veja só! O areal está cheio de gente, que não sei porquê chamam de banhistas, visto que passam horas só a apanhar sol, com o objectivo de se bronzearem, que é hoje uma moda com muitos seguidores.
“Agora que se aproxima aquela hora mágica do entardecer, é que todos se vão embora, quando podiam pelo menos contemplar um daqueles poentes que todos os dias lhes são oferecidos. E que tão belos são, ali para as bandas da serra que leva ao Cabo Espichel.”
“Leonardo Coimbra tem um magnífico texto sobre isso”, acrescentei eu. “É verdade”, respondeu-me, “mas quantos são hoje os que o lêem?”
A conversa prolongou-se noite dentro, com muito gosto e proveito para mim. Os gatos, coitados, é que ficaram prejudicados, pois dessa vez só comeram no dia seguinte.
* * *
Num período difícil e doloroso da minha vida, motivado pela doença incurável dum filho de vinte anos, tive mais uma vez ocasião de verificar a extraordinária dimensão do homem bom, generoso e amigo que ele era.
Por ter deixado de o visitar com a regularidade habitual, e não tendo conseguido contactar-me telefonicamente, procurou saber junto de amigos comuns o motivo da minha ausência.
Logo que o soube, tratou imediatamente de averiguar junto de alguns dos melhores médicos que então havia, quais as possibilidades de tratamento.
Inclusivamente, telefonava para a América, onde então se encontrava uma sua amiga, a cientista portuguesa Maria de Sousa, com quem se aconselhava sobre o problema.
Para além disso, chamou-me a sua casa e disse-me: “Embora eu o conheça, nestas circunstâncias, por mais fortes que sejamos, nunca o somos o suficiente.
“Quero portanto prepará-lo para enfrentar a situação, tanto mais que é casado e tem um outro filho menor, o que torna tudo mais complicado.”
A partir daí, todos os dias passava por sua casa e, com ele, consegui de facto fortalecer o meu ânimo para melhor suportar a fatalidade que se deu.
Nessa altura, falando-me das contingências e fragilidades da vida, ouvi-lhe aquilo que considero um dos seus mais lúcidos aforismos: “Nós fazemos planos para a vida, mas nunca sabemos que planos a vida tem para nós!”
* * *
Certo dia telefonou-me de Lisboa, informando-me de que vinha a Sesimbra no dia seguinte e, se estivesse em casa, aproveitaria para me visitar.
Assim aconteceu e, para minha surpresa e satisfação, presenteou-me com uma miniatura de um veleiro, visto saber do meu gosto pelos barcos.
Perante a honra da visita, e da oferta, manifestei-lhe, naturalmente, o meu agradecimento, e disse-lhe que tinha pena de não saber retribuir-lhe tanta gentileza.
De imediato, me retorquiu: “Uma coisa que nunca deve haver é conta corrente entre os amigos”.
Logo dois dias depois dessa visita, chegava nova surpresa para mim. O correio trouxe-me uma carta dele, acompanhada de uma poesia que me dedicara, e passo a ler, sendo a primeira vez que a divulgo.
Vou pelo justo que houver
No que seja atribuir,
Pelo generoso impulso
Da acção de distribuir,
Ou pela fraternidade
Que vem no contribuir,
Mas por amor do gratuito
Que tem de haver no sentir,
Nem gosto de ouvir falar
No verbo retribuir.
* * *
A última vez que o visitei em Lisboa, já ele não estava bem de saúde.
Toquei à campainha e a porta abriu-se, pensando por isso que teria sido por ele.
Qual não é o meu espanto quando o vejo, sozinho, encostado à parede do patamar do segundo piso. Ele morava no terceiro.
Não respondendo ao meu bom dia, reparei então que estava de olhos fechados e, pouco depois, fez-me sinal para esperar.
Durante alguns momentos, daqueles que em certas circunstâncias nos parecem uma eternidade, entre surpreso e preocupado, esperei que me dissesse alguma coisa.
De repente, abre os olhos, cumprimenta-me e diz-me:
“Sabe, fui aqui surpreendido por uma dor, que me obrigou a parar. Quando você chegou, estava já na fase de conseguir que eu estivesse aqui e a dor ali, lá consegui afastar-me da dor.”
Por alguma coisa que me ensinou, julgo saber o que ele fez.
Como o fez, julgo também saber que isso será apenas do domínio de quem tenha uma preparação especial, melhor dizendo, uma iniciação de grau elevado, a que só podem aceder alguns homens superiores como ele de facto era.
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* Comunicação apresentada ao colóquio “Uma conversa com Agostinho”, realizado em 23 de Novembro de 2002, no Auditório Municipal Conde de Ferreira, em Sesimbra.
FOTOS COM HISTÓRIA(S). 04
29-05-2014 10:0129 de Maio de 2010. Visivelmente doente, António Telmo faz a sua derradeira oração pública na Sala Polivalente da Biblioteca Municipal de Sesimbra, casa de que foi o primeiro director. É manifesto o sacrifício com que o orador, bastante debilitado, fala para a assistência. Surpreende, porém, pelo tom empolgante com que a arrebata num apólogo estrénuo da República, suscitando-lhe, a final, tremenda ovação. No âmbito do colóquio "Anarquia, Monarquia e República", do ciclo Portugal Renascente, Telmo fala sobre "Monarquia e República". A seu lado, António Cândido Franco aborda o tema "Anarquia e República", além de apresentar o livro Luís de Camões, de Telmo, lançado nesse mesmo dia.
VERDES ANOS. 05
29-05-2014 09:37Seja pelo estilo, pela orientação temática ou pelo fundo da ideação, as marcas da influição alvarina estão bem patentes neste artigo ensaístico que António Telmo dá à estampa no Diário de Notícias em Agosto de 1957. Pensamos, notadamente, na reflexão antropológica que pauta o discurso, tributária, como é óbvio, de A Razão Animada, saída a lume meses antes; e na anglofilia que o perpassa, bem conforme ao sentimento de Álvaro Ribeiro. Mas o que neste escrito se assoma e avulta com foros de novidade é a assunção nele implicitada pelo novel filósofo -- ao que sabemos pela primeira vez -- da hermenêutica da épica de Camões como plano de trabalhos para o porvir. Neste sentido, "Características heróicas da novela inglesa" firma um marco histórico na biobibliografia de António Telmo, e permite-nos afirmar que a sua demanda camonina se cumpre, ao menos em potência, por mais de meio século -- uma vida inteira! --, tal o ponto recuado a que a revelação do filósofo faz remontar o início daquela sua gesta espiritual.
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Características heróicas da novela inglesa[1]
[Somerset Maugham]
Ainda que haja outras opiniões, a verdade é que, desde o século XIX, a literatura inglesa sempre atraiu, em primeiro lugar, os escritores portugueses, como se verifica com os exemplos de Almeida Garrett, Alexandre Herculano e Júlio Dinis. Para o observador superficial, pode parecer que esse lugar pertence à literatura francesa, mas só para o observador superficial, distraído da verdade pelos letreiros das livrarias e pelas citações e suscitações dos críticos. O facto de os professores liceais e universitários, geralmente melhor informados de literatura francesa, desviarem os futuros escritores dos estudos ingleses não prova que são inoperantes as afinidades profundas entre os dois povos atlânticos. Todos conhecem a importância das viagens para a revolução filosófica. Se a viagem das três naus «S. Gabriel», «S. Rafael» e «Bérrio» contribuiu decisivamente para o conhecimento do mundo, não menos as viagens do «Mayflower» e do «Beagle» representam movimentos simbólicos na evolução da humanidade.
Conviria, além disso, ver se os escritores franceses, com maior notoriedade entre nós, por sua vez não foram influenciados pelos ingleses, como é o caso de Daudet, considerado pela crítica um imitador de Dickens.
Caracteriza-se a literatura inglesa pela constante evolucionista das respostas que os seus escritores dão aos três únicos problemas filosóficos, indicados por Bergson na «Energia Espiritual»: «Donde vimos, quem somos, para onde vamos?». Muita gente prefere ler contos, novelas e romances a estudar livros de filosofia, talvez porque assim encontra melhor resposta, ou, pelo menos, mais adequada aos enigmas obsessivos. Quando o filósofo interpõe entre a nossa consciência e a nossa inconsciência problemas fictícios ou que parecem longe da temática existencial, como, por exemplo, o problema do ser e do não ser, compreende-se que a consciência proteste em nome da inconsciência, isto é, da ignorância, e busque refúgio na inacção mental e na fantasia aparentemente sem responsabilidade. Mas, ao procurarem passar o tempo, em devaneio, na leitura de romances, homens e mulheres regressam, por esse caminho, à preocupação dos temas e dos problemas a que só a filosofia poderá dar adequada resposta.
Toda a novelística inglesa descreve os homens vivendo em razão das suas obscuras origens. A influência de Darwin tem de ser considerada, porém, ao mesmo tempo, com as influências de Carlyle, Ruskin, Stuart Mill, Herbert Spencer e Matthew Arnold. A tese darwinista da origem animal do homem, aproveitada depois pelos positivistas para negar a nossa progénie heroica, é contrapolar da tese defendida por Carlyle. Os novelistas, atentos, por determinação artística, aos vários processos de enovelamento da intriga, afirmam todos a agência do elemento heróico, como motor da evolução.
Ocorrem-nos os nomes de três romancistas bem representativos do evolucionismo inglês: George du Maurier, D. H. Lawrence e Somerset Maugham.
São três escritores completamente individualizados, no modo de conduzir a narrativa, no tipo de imaginação, na escolha dos temas e caracteres, na forma de articulação do diálogo, da descrição e dos comentários. Todavia, os três convergem pela introdução do elemento heróico na fabulação da intriga. Para George du Maurier, o divino revela-se pela queda no sonho, e todo o enigma humano se desdobra aos olhos de quem pratique sabiamente a arte de sonhar. Este escritor continua em Inglaterra a tradição dantesca que Gérard de Nerval estudou, em França, no seu romance «As Salamandras». – D. H. Lawrence considera, pelo contrário, a reclusão do espírito na autognose adversa do impulso vital, que para ele reside na atracção dos sexos. Imagina, porém, o elemento heróico pela figuração de «os anjos que reduziram as filhas dos homens». – Somerset Maugham é, aparentemente, o mais superficial dos três. O êxito dos seus livros, lidos em todo o Mundo, é, em parte, explicável pela simplicidade do estilo, pela sua admirável arte de contar uma história, pelo interesse que transmite às existências de toda a gente. Em livros como «O Agente Britânico» e «Servidão Humana», sem dificuldade se vê que, para Somerset Maugham, o heróico se revela e realiza pela progressiva consciência do mal.
É oportuno notar, a propósito destes três escritores, como sempre nos romances se incluem teses que podem estar mais ou menos explícitas. O romancista apresenta ao leitor, em imagens adaptadas à sua vivência pessoal, concepções que, expressas na linguagem dos filósofos, seriam apenas atendidas por uma minoria intelectual. É extraordinária e incalculável a influência do romancista na vida dos homens. Ele move, molda e transforma os caracteres, menos pela crítica e pelo riso (como no caso de Eça de Queirós), os quais apenas promovem a dissolução dos caracteres na homogeneidade social, do que propondo modelos imitáveis e admiráveis até aos arquétipos, pelo desenvolvimento, através da vida das personagens, das virtualidades existentes na alma do leitor em estado seminal.
A transmissão do pensamento esotérico aos profanos, os quais emergem em ondas sucessivas da grande noite do subconsciente popular, passou da poesia para o romance, com a decadência da epopeia, mas o cinema, hoje, é sem dúvida a forma artística que maior influência exerce.
Após um dia de trabalho mecânico, o cinema vem ocupar as horas de ócio. Ali, como no mundo do sonho, «onde nunca se vê o sol», é interior a luz que ilumina as imagens; vem essa luz das costas do espectador, e actua, durante a contemplação, como se viesse, por assim dizer, da subconsciência. Forma-se um complexo estado psíquico. O espectador sofre e goza, em completa passividade do corpo, mas a representação íntima das imagens, íntima na sua exterioridade, pois o cinema é um duplicador de vida anímica, provoca movimentos imperceptíveis, que aumentam, por falta de conteúdo, os efeitos tóxicos dados na representação.
É curioso observar como uma das tendências mais marcadas da novelística de hoje, em vários países europeus, é a de representar cinematicamente a vida interior, fluídica e movente. Mas aqui ainda se afirma a superioridade dos ingleses, principalmente por meio de Virginia Woolf e James Joyce.
Sempre o elemento líquido, em imagem sem fim, caracteriza essa literatura de épicos. Não admira, portanto, que para ela vá a nossa simpatia profunda. Serão diversos, certamente, os nossos modos e caminhos de cruzar o Atlântico, mas ainda está por fazer a hermenêutica de «Os Lusíadas» segundo o ensino de Hermes Trimegisto, cifrado pelos mediterrâneos no símbolo do Tridente de Neptuno.
António Telmo
«OS MEUS PREFÁCIOS». 05
28-05-2014 12:41Escrito em 2007 como prefácio ao livro Barros Basto - A Miragem Marrana, de Alexandre Teixeira Mendes, é um dos trinta escritos que, entre dispersos e inéditos, A Terra Prometida, I Volume das Obras Completas de António Telmo, com lançamento aprazado para o próximo dia 21 de Junho, na Biblioteca Municipal de Sesimbra, irá pôr à disposição dos leitores. Nele o filósofo se confessa marrano; nele desenvolve uma significativa classificação dos marranos portugueses, já aflorada em "As Tradições Heterodoxas da Filosofia Portuguesa", ensaio axial de Filosofia e Kabbalah, de 1989. O marranismo será aliás um dos tópicos fundamentais de A Terra Prometida, onde, a este propósito, um inédito télmico sobre Natália Correia e A Madona prepondera. Mas, ali reintitulado de "Sepharad", este é também um escrito fundamental sobre a visão télmica de Agostinho da Silva, assim renovada à luz do marranismo. Aliás, no ano em que se comemora o 20.º aniversário da morte do autor de Um Fernando Pessoa, o livro inaugural da opera omnia de Telmo apresenta-se como um documento fundamental para se compreender o modo como o autor de Arte Poética olhava para o seu compadre. D' "O Horóscopo de Agostinho da Silva" a "Agostinho da SIlva e os Titãs", passando pelas referências nas várias entrevistas coligidas e por este escrito prefacial, Agostinho é uma presença viva e imortal n'A Terra Prometida.
CARTA PREFACIAL A BARROS BASTO - A MIRAGEM MARRANA, DE ALEXANDRE TEIXEIRA MENDES
Meu caro Alexandre Teixeira Mendes
Esta carta é uma coisa íntima entre descendentes de marranos ou, como diz no seu livro, de cabalistas da noite e aqui cabe lembrar a árvore da noite de Sampaio Bruno; mas, sendo íntima embora, se achar por bem publicá-la como prefácio do seu interessantíssimo livro, nada haverá a opor da minha parte, porque estão por aí outros, talvez muitos, que saberão viver connosco na intimidade do que deveria ser inefável.
Pouco ou quase nada sabia, antes de o ler a si, de Artur Barros Basto. Levantou-o do túmulo em que jazia na minha memória e é agora, graças à inteligência do que escreveu, uma figura admirável de «guerreiro», no duplo sentido material e espiritual do termo.
Devo, porém, confessar que o que mais me interessou no seu livro foi a ligação desse «guerreiro» com o movimento heróico da Renascença Portuguesa de Teixeira Rego, de Teixeira de Pascoaes e de Leonardo Coimbra, porque tal ligação poderá trazer muita luz, não só sobre a identidade profunda de Barros Basto, mas, para muitos de modo inesperado, sobre o que realmente foi e é esse heróico movimento sem fim enquanto houver Portugal sem renascer.
Digo que poderá trazer muita luz. O seu livro é já o alvor dessa luz. O Alexandre Teixeira Mendes sabe muito bem e di-lo por vários modos, que Portugal, terra das três religiões do livro até D. João Terceiro, tornou-se, pelas sucessivas investidas da Inquisição, o país marrano por excelência, o país secretamente judaico, subconscientemente judaico, embora disso só tenham séria consciência os cabalistas da noite que, desde 1857, durante cento e cinquenta anos, até Pedro Sinde, Pedro Martins, até si (2007) têm sabido compreender o que é o movimento da filosofia portuguesa que Sampaio Bruno fundou e Álvaro Ribeiro criou.
Teixeira de Pascoaes, como muito bem viu António Cândido Franco, criou o Marános para cifrar o Portugal Marrano contra aqueles traidores que teimam em ver a luz nas labaredas da Inquisição. Sabemos ambos a que traidores aludo. O cristão-novo é, na origem, um ser dividido, dividido entre a religião de seus pais que é obrigado a renegar e a religião cristã que o forçam a praticar. Desse ser dividido formaram-se vários subprodutos: aqueles que foram incapazes de suportar a tensão tornaram-se ou materialistas ateus ou materialistas católicos, esquecendo (no melhor dos casos) ou odiando (no pior) a religião de sangue; outros tornaram-se judeus secretos, praticando ao mesmo tempo as duas religiões, forçados a serem ao mesmo tempo valentes e hipócritas. Mais e diversos resultados são possíveis. Todavia, aquele que me parece decisivo é o dos que procuram os caminhos difíceis, não daquela dificuldade do marrano que pratica às ocultas a sua verdadeira religião, mas de outra mais profunda dificuldade. São os que o Alexandre Teixeira Mendes me ajudou a ver: os da Renascença Portuguesa, os da Faculdade de Letras de Leonardo Coimbra (com Artur Barros Basto o ensino da língua hebraica), por fim os filósofos portuenses exilados em Lisboa e os que se lhes seguiram, vindos de toda a parte.
Nestes, a tensão gera a inquietação e a inquietação é um princípio de movimento silogístico. A tensão é entre dois termos: o judaísmo e o cristianismo; ambos são sentidos como verdadeiros, não na ideia de um prolongar o outro, mas na do segundo ser a antítese do primeiro. Então, ou a inquietação se torna perpétua, sem saída para nada, gerando inacabadas oscilações de alma entre duas luzes ou se transforma no que verdadeiramente ela é, princípio de movimento para uma nova religião: aquela que cada cabalista da noite vê à luz do pensamento como a superior síntese dos dois sublimes contrários.
É nesta linha que devemos entender o Novo Deus Infante do Regresso ao Paraíso, a Igreja Lusitana de Sampaio Bruno e de Teixeira de Pascoaes, a Idade do Espírito Santo de António Quadros e de Agostinho da Silva.
Este homem extraordinário pensava que a Idade do Espírito Santo deveria necessariamente ser precedida de pão para todos e confiava na tecnologia por esta vir resolver todos os problemas materiais, criando o ócio que, vencida a miséria, não serviria para preguiçar mas para viver em activa contemplação o esplêndido renovado mundo.
Na famosa afirmação de Cícero «primo vivere, deinde philosophare» Agostinho da Silva via o seu sentido integral, donde não o devemos acusar de pertencer àquela espécie de cristãos-novos que prestam culto ao Bezerro de Ouro.
Por Bezerro de Ouro ou simplesmente Bezerro entendo aqui a Economia, a Deusa global. Dela esperam muitos a resolução de todos os problemas materiais dos homens e das mulheres. Por enquanto, mantêm-se as longas extensões de miséria, pelo que somos levados a pensar que a Economia ou não é uma ciência exacta ou então os que nela são entendidos não acertam com o seu ritmo.
Num livro meu recente, do qual saíram por enquanto só cinquenta exemplares, Congeminações de um Neopitagórico, lembro oportunamente a função mágica que Fernando Pessoa atribui à letra S e a asserção que faz de vir essa letra a ser a inicial dos homens intelectualmente e politicamente actuantes para bem ou para mal na vida da Pátria.
Com efeito, Sérgio, ainda no tempo de Pessoa, como Sidónio Pais, pelo poeta identificado com D. Sebastião e a que chamou Presidente-Rei, como Salazar, em quem de início acreditou e que depois desprezou foram, por diferentes modos, destacadas figuras de políticos. António Sérgio, explicando toda a nossa gloriosa história medieval com razões economicistas é a cabeça de uma longa série de personalidades cujos nomes começam por S. Será uma curiosidade de almanaque, mas nem por isso menos intrigante essa fileira de nomes: Spínola, Soares, Sá Carneiro, Cavaco Silva, Sampaio, Santana Lopes, Sócrates e outros que de momento não encontro. Estes, porém, são suficientes para mostrar como os cristãos-novos adoradores do Bezerro de Ouro estão, se Fernando Pessoa não erra, sob a influência da misteriosa Ordem da Serpente de que só nos diz um em dez.
Agostinho da Silva, também no último nome com S inicial, passou da Faculdade de Letras de Leonardo Coimbra para o grupo da Seara Nova, destoando do republicanismo romântico dos seguidores de Sampaio Bruno e preferindo de longe Fernando Pessoa a Guerra Junqueiro e Teixeira de Pascoaes. A Seara Nova era uma promessa de pão, uma messe, uma missa, uma mensagem dirigida à acção imediata, esteada em razões susceptíveis de serem ensinadas onde houvesse mente de homem. Todavia, Agostinho da Silva foi ao mesmo tempo um grande admirador de Teixeira Rego e por ele, seu mestre de religião na Faculdade de Letras extinta por Salazar, através dele, autor de uma Nova Teoria do Sacrifício, sabia qual virá a ser o destino do Bezerro no dia do Grande Sacrifício com as águias de Deus voando acima do mundo.
Meu caro Alexandre Teixeira Mendes, a carta já vai longa e não tem assim grande jeito para servir de prefácio. Termino com uma palavra de remorso. Evoco aqueles católicos como António Quadros e Dalila Pereira da Costa, Carlos Aurélio e Pinharanda Gomes e presto-lhes homenagem como a outros por aí ignorados que caracterizo assim: são católicos pelo espírito que não identificam Deus com a Igreja, que acreditam em Deus para além da Igreja e que por isso devem ser associados à heróica linhagem de republicanos para a qual, como ensinou Leonardo Coimbra, «a filosofia é o órgão da liberdade».
Não serve então de prefácio esta carta? É a obra de um marrano, cheia de paradoxos e duplicidades, de desvios súbitos, de contradições, de certezas e de incertezas. Como o seu livro que bem haja! Essa estrada aberta para Sepharad…
António Telmo
DOS LIVROS. 10
27-05-2014 11:12Sobre o mestre e o discípulo, entrevista conduzida por um anónimo
J: Durante o congresso que se realizou no Ateneu Comercial do Porto sobre Álvaro Ribeiro, v. afirmou que ninguém se podia dizer discípulo do filósofo, porque, sendo o mestre quem escolhe o discípulo, não há qualquer declaração de Álvaro Ribeiro que prove que ele tenha escolhido alguém. Eu sinto que naquela afirmação sua se envolvem problemas mais fundos ou escondidos, no quadro das relações, do ponto de vista não digo pessoal mas doutrinal, entre os que se dizem discípulo do filósofo portuense. Ficou patente durante o congresso que eles não formam um corpo homogéneo.
T: O que eu pretendi pôr em questão foi a relação mestre-discípulo, coisa que entendeu muito bem o Paulo Borges. Tal relação não tem, na obra de Álvaro Ribeiro, o peso que tem, por exemplo, na de José Marinho. Como é praticada no Oriente, o discípulo deve ao guru completa submissão e obediência. É o caso mais conhecido. Mas não é só no Oriente que isso acontece. Pratica-se o mesmo tipo de relação nas tarikas muçulmanas, entre os cabalistas hebreus e, entre nós, na Companhia de Jesus, onde o mestre recebe o nome de guia espiritual. Você que é jovem conhece certamente os livros de Carlos Castañeda, onde a recepção do ensino de D. Juan é conseguida à custa da mais completa escravidão da alma. O que porventura ignorará é que esses livros dão a forma idealizada do ensino duríssimo ministrado nas escolas criadas por Gurdjieff.
Aquilo que eu, de facto, pretendi significar com a minha intervenção no Porto é que tal relação nunca existiu nem existe no grupo de filosofia portuguesa.
J: Eduardo Lourenço, no entanto, não deixa de atribuir a Álvaro Ribeiro a função de guru no grupo. E vimos, no congresso, Afonso Botelho, que também lá andou e anda, privilegiar a relação mestre-discípulo.
T: Eu não creio que Afonso Botelho a veja como a viu Eduardo Lourenço. Pelo menos, está mais bem informado. Veja só! No grupo da filosofia portuguesa havia dois mestres. Era um grupo com dois mestres, Álvaro Ribeiro e José Marinho. Como qualquer pessoa pode verificar lendo o que o primeiro escreveu sobre o segundo em Cisão e Indecisão na Casa Portuguesa, estavam longe de pensar o mesmo, de conceber a filosofia do mesmo modo, embora olhassem para a mesma estrela. Logo isto anula à partida a calúnia de Eduardo Lourenço.
J: Acha que é uma calúnia dizer que Álvaro Ribeiro era o guru do grupo? Se, em vez de guru, tivesse dito guia espiritual já não havia calúnia?
T: Meu caro amigo, a filosofia portuguesa ensina a liberdade e não a submissão e a obediência, seja a homens seja a ideologias. Eu admito que por amor de Deus uma pessoa se deixe escravizar por um mestre que diz conhecer o caminho, mas gosto mais de pensar que Deus prefira os homens e as mulheres que o servem livremente. Sabe por que é que no grupo de filosofia portuguesa se privilegia o pensamento sobre os outros modos de mediação? É porque só se pode pensar individualmente. Ali, nunca soubemos o que era trabalhar em grupo.
J: Não havia uma tertúlia?
T: “A tertúlia é o lugar onde sopra o Espírito Santo, quando se reúnem homens de boa vontade.” Conhece esta frase de Álvaro Ribeiro? Acha que há, na tertúlia, assim concebida, qualquer semelhança com o trabalho de grupo? Acha que o Espírito Santo é o promotor da servidão a um líder ou a um grupo?
Na vida, meu caro amigo, só há uma forma de alegria sem mácula, é a de ser pelo espírito.
J: Como é, então, possível falar num grupo de filosofia portuguesa se ele é formado por indivíduos que nada têm em comum?
T: Eu não disse que não tínhamos nada de comum, o que se pode inferir das minhas palavras é que tínhamos em comum o amor da diferença. Nesse sentido, podemos todos dizer-nos discípulos de Álvaro Ribeiro e José Marinho. Eles também tinham isso de comum.
A relação humana que Álvaro Ribeiro mais privilegia é a do homem e da mulher. Por isso considerava o oaristo a forma superior de diálogo. Em geral, a relação entre o homem e a mulher não é olhada com bons olhos pelos partidários da relação mestre-discípulo. Até para amar, o discípulo ou a discípula têm de pedir licença ao mestre. V. conhece sem dúvida, a doutrina que tem a energia sexual e a energia espiritual como duas formas da mesma energia. Por isso mesmo, o guia espiritual julga-se no direito de controlar a energia sexual do discípulo.
J: Falou em oaristo. É a primeira vez que ouço a palavra.
T: Nunca leu Eugénio de Castro? Tem um livro com esse nome.
J: Vou procurar.
T: O oaristo é o diálogo entre os amantes e, sobretudo, a forma que ele assume entre duas almas que procuram conhecer-se na intimidade misteriosa onde se gera a vida. A palavra mais banal tem uma infinidade de sentidos e, no entanto, significa uma só coisa ou uma só ideia.
J: Pareceu-me admitir há pouco não haver diferença entre a relação mestre-discípulo e a relação mestre-discípula. Mas esta última relação não corre o perigo de se transformar numa relação entre dois amantes?
T: Deveria fazer essa pergunta aos partidários desse tipo humano de relação. Álvaro Ribeiro também pensou na hipocrisia de um ensino que, dizendo-se espiritual, tantas vezes decai numa relação infra-animal, isto é, em que as almas não estão ali para nada. É a razão porque afirma que o amor só se realiza integralmente pelo casamento, pela vida em comum na mesma casa. Incapaz de compreender o subtil alcance desta proposição, há logo quem o acuse de retrógrado e de reaccionário. Há também as almas românticas que não vêem como se possa trazer da natureza para casa a forma suprema do oaristo que é o Cântico dos Cânticos de Salomão.
J: O senhor julga-se um génio? Alguém que não precisa de mestre?
T: Não veio entrevistar-me para me insultar…
J: Perdoe-me. Não tinha a intenção de ofendê-lo. Pensei uma série de perguntas e esta é uma delas que me parece, ainda por cima, vir na corrente. Nada mais. Mas considera um insulto perguntar-lhe se se julga um génio?
T: Não há nenhum homem que seja um génio. Os génios pertencem a uma categoria diferente da humana. É a existência dos génios e de outros seres espirituais que permite haver artistas inspirados. Incluo na classe dos artistas inspirados também os homens de ciência. Digo isto porque, quando se fala em inspiração, supõe-se em geral que há nessa ideia qualquer coisa de poético e até de irreal incompatível com o exercício sóbrio e austero da razão.
Sampaio Bruno, nas Notas do Exílio, escreve umas linhas bem interessantes sobre o assunto.
J: O que é que ele diz?
T: Tenho o livro à mão. Sei exactamente a página. Quer ouvir?
J: Sem dúvida.
T: «Para mim, o processo de ideação da descoberta passa por três instantes, bem particularisticamente categorizáveis.»
«O primeiro consome-se na aquisição do problema, no seu conhecimento, na sua relacionação com os elementos conexos, na sua proporcionação com os lemas da ciência geral.»
«O segundo é o da explosão na consciência, por isso, genial, de uma ideia que talvez resolva a dificuldade.»
«O terceiro é o da ulterior verificação desta presunção. Aí vem examinar se os fenómenos conhecidos se comportam dentro da ideia concebida.»
E mais adiante:
«A primeira e a terceira destas fases mentais não exorbitam da mera intelectualidade, a segunda é a região monopolizada pelo génio.»
J: Julgo apreender a relação entre esse texto e o que me disse há pouco sobre a inspiração. Mas o senhor, ao combater a relação mestre-discípulo, não deixa ao acaso o progredir da ciência e a operatividade da ciência e a operatividade poética ou filosófica?
T: Sem aprendizagem, e séria aprendizagem, não é possível o primeiro momento analisado por Bruno. Ele não é só necessário em ciência. Há também o que lhe corresponde em poesia, por exemplo.
Eu não combato a relação mestre-discípulo a não ser quando ela assume a forma de dono e cão. Prefiro os gatos, como o Agostinho da Silva. “Os cães, disse ele, vão para onde a gente os manda; os gatos vão e vêm como querem e quando querem.” É evidente que o homem precisa de aprender com os outros homens, aprender sobretudo a saber estar disponível. É sempre bom que tenhamos alguém acima de nós. Leva-nos a olhar na direcção do céu.
António Telmo
(Publicado em Viagem a Granada, 2005)
CORRESPONDÊNCIA. 11
26-05-2014 09:34[Domingos Monteiro]
CORRESPONDÊNCIA DE ÁLVARO RIBEIRO PARA ANTÓNIO TELMO. 05
Lisboa, 1 de Outubro de 1971
Meu caro António Telmo:
Venho pedir-lhe notícias suas, de sua mulher e de seus filhos. Desejo em especial saber se ainda moram em Sesimbra, aonde os iria visitar num próximo domingo, acompanhado pela Maria Júlia.
Encarrega-me a Conchita de vos pedir a devolução do “parque” que já não deve ser de utilidade para o Manuel. Depois se combinará o modo ou processo de transporte até Lisboa.
O Dr. Domingos Monteiro, que partiu para o estrangeiro onde vai gozar as suas férias de Outubro, deseja mandar compor e imprimir o meu livro durante o mês de Novembro. Avisei-o de que só entregaria o original quando ficasse cumprida a promessa devida ao António Telmo. Estamos de acordo.
Ainda não consegui resolver as dificuldades que resultaram do meu casamento. Mais uma vez terei de viajar até ao Porto, onde permanecerei por cinco dias. Quando voltar para Lisboa, esperarei notícias telefónicas ou epistolográficas do meu bom Amigo.
Com os melhores cumprimentos para a Maria Antónia, um abraço do
Álvaro Ribeiro
[em cartão timbrado da Junta Central das Casas do Povo. Praça de Londres, 2 – 14.º. Tel. 766181-761181. Lisboa-1]