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DOS LIVROS. 15

27-06-2014 10:28

António Telmo está representado em A Serra da Arrábida na Poesia Portuguesa, de António Mateus Vilhena e Daniel Pires, obra que amanhã será lançada em Sesimbra, pela quadra "Foi na Serra da Achada", página inaugural de Congeminações de um Neopitagórico, que ali surgirá acompanhada de uma nota de Pedro Martins, aqui antecipada em jeito de comentário...

[Foi na Serra da Achada]

 

Foi na Serra da Achada

Que julguei ter-me perdido.

Quem se ganha não é nada,

Disse-me Deus ao ouvido.

 

António Telmo

 

(Publicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006-2009)

 

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Comentário

Pedro Martins

Planalto contíguo às cercanias da Serra do Risco, hoje atravessado por uma moderna estrada municipal pela qual, a partir de Santana, se acede à zona nascente da vila de Sesimbra, a chamada Serra da Achada constitui-se como um miradouro privilegiado ao viandante, oferecendo vistas deslumbrantes sobre a baía da camonina Piscosa (a Sul); o “dorso formidável da Arrábida” (a Oriente); o íngreme morro do castelo roqueiro (a Ocidente); e a banda setentrional da Península de Setúbal, por onde o olhar se alonga, até se perder no remoto esfumado de Lisboa e Sintra.

A Serra da Achada foi local de eleição de António Telmo, que, desde cedo ligado a Sesimbra, terra aonde chegou com dezasseis anos, não deixou, quando jovem, de a incluir nas suas caminhadas ao redor da milenar póvoa arrábida. Em 1965, num escrito publicado em O Sesimbrense, o filósofo, muito significativamente, considerava a novel estrada que perpassava a Achada, bem que então ainda imperfeita, muito mais bela que a “actual” – ou principal: a estrada nacional que, coleante, acompanha uma das vertentes do chamado vale de Sesimbra. Anos mais tarde, no final de década de 70, a Achada tornou-se-lhe lugar frequente de momentâneo retiro, nela praticando exercícios de meditação prescritos pela escola operativa do poeta austríaco Max Hölzer. É porventura dessa época que a quadra télmica antologiada, singela e todavia profunda, se permite dar testemunho. Mas ela reflecte também, ou sobretudo, uma concepção de filosofia feita de sonho, risco e aventura. Ou seja: liberdade!

DOS LIVROS. 14

25-06-2014 11:33

Só Deus escreve sobre Deus

 

Os cães caçadores não temem o som poderoso dos tiros, mas entram em pânico com o estoiro dos foguetes e o ribombar do trovão. Assim, o instinto inteligente distingue o alto do baixo ou do rasteiro, o que vem ao rés da terra do que soa alto na nuvem. O galo eleva-se dentro de si mesmo para soltar as cinco notas anunciadoras do Sol. Os pássaros levantam a cabeça para cantar e fazem-no nos ramos cimeiros das árvores ou no alto das torres. Quem está aí que me lê para sentir o que Camões viu ouvindo cantar os pássaros:

“Os pássaros que cantam
Meus espíritos são que a voz levantam”?

“Todos os seres adoram Deus”, assim se diz numa surata do Corão. Mas nós, hoje, nós que dispomos, enquanto homens, da inteligência que concebe no visível e no invisível, como havemos de adorar Deus, perseguidos que somos na rua e nos cafés, em casa, por toda a parte pela rádio e pela televisão, pelo ruído dominador dos metais actuantes fora do seu lugar natural, pelas explosões do petróleo, do óleo que se extrai da pedra multissecular, pelo rock (escreve-se assim, ó portugueses?) tan tan tan minando os interstícios do corpo, como havemos de ser se nos envolvemos do que não é para não sermos e não nos ouvirmos no que de mais fundo e significativo há em nós? Deus adora-se nas Igrejas, mas também aí entrou o jazz e as melífluas músicas próprias de uma espiritualidade inferior. Estamos pois impedidos de vencer a gravidade da alma elevando sentimento e pensamento àquela altura onde vai o instinto dos animais?

Era ainda noite, antes de nascer o Sol, no Cabo Espichel, junto aos pinhais. Eu estava lá, na orla deles, voltado para o Oriente de onde deveriam vir as rolas que assassinamente esperava. Principiava a nascer a alba. Aclareava-se ao fundo o céu. De súbito um sonoro zumbir de insectos feriu-me insistentemente os ouvidos. Eram moscas como abelhas ou vespas dispostas em fila ao longo da orla do pinhal. Alternavam a imobilidade com um voar rápido em círculo que as repunha no mesmo sítio. Estavam todas voltadas para o nascente como eu, mas não para matar. Desapareceram momentos depois do sol ter nascido.

Deus não é o Sol, mas o Sol é um símbolo vivente de Deus. É símbolo quando, através dele, se presta culto a Deus que infinitamente transcende todos os sóis. Isto o sabem os animais, melhor que os ocultistas e outros adoradores de símbolos.

Pediram-me para escrever sobre Deus. Só Deus escreve sobre Deus. E, às vezes, acontece fazê-lo através das nossas pobres palavras. Assim seja!

 

António Telmo

 

(Publicado em Sesimbra, o lugar onde se não morre, 2011)

CORRESPONDÊNCIA. 15

24-06-2014 17:12

CORRESPONDÊNCIA DE ÁLVARO RIBEIRO PARA ANTÓNIO TELMO. 09

 

Lisboa, 13 de Junho de 1977

 

António Telmo,

meu prezado Amigo:

 

Recebi um exemplar do seu livro “História Secreta de Portugal”, que desde já lhe agradeço, bem como a simpática dedicatória e as generosas referências aos meus obscuros e ineficazes escritos.

Li já, por duas vezes, o seu muito admirado trabalho, onde encontrei mais provas de um talento já meu conhecido. Páginas bem pensadas e bem escritas, estudei-as sem lograr aquela coordenação clarificante a que sempre aspira o meu espírito. Espero que à terceira leitura, a praticar brevemente, possa tirar o máximo proveito de uma obra tão generosa e inteligente como aquela que o António Telmo acaba de produzir.

Bem sei que o meu bom Amigo não se contentará com estes justos e merecidos louvores, pois esperará também o diálogo crítico e dialéctico. Ficará para mais tarde. Nesta hora em que a minha mão trémula significa o assalto de quatro doenças (uma das quais me vai matar), não me é possível escrever mais. Desculpe-me. Espero vê-lo e abraçá-lo, para à vista e de viva voz lhe testemunhar a confiança e a estima que há decénios dedico ao seu belo e singular espírito raro entre nós. Queira confiar sempre na admiração e na amizade do

Álvaro Ribeiro

DOS LIVROS. 13

20-06-2014 10:16

O quarto inimigo do guerreiro[1]

 

Com efeito, pelo que me diz respeito, o sonho que vivo há oitenta anos é constituído por uma quantidade mínima de pesadelos. De resto, o que me é contrário deixa-me mais ou menos indiferente. A vida é sonho. Perturba-me às vezes pensar no que haveria de mal por detrás desses pesadelos.

Estou velho. A velhice é, segundo o famoso Índio inventado por Castañeda, o quarto inimigo do guerreiro. Tentei sair deste “deixa andar”, depois de ter visto o meu fracasso a escrever a Gramática para o Abel Lacerda. O I Ching aconselhou-me retomar o caminho que em tempos pratiquei sob o impulso de Max Hölzer. Fiz várias tentativas de praticar a meditação. Vi, mais uma vez, que a minha individualidade vocacionada para a arte poética se dissolvia com a prática dessa meditação, em que, como se sabe, temos de deixar toda a imagem, todo o sentimento, todo o pensamento.

Eu sei que sou, como é cada homem, um misterioso mágico microcosmo que só se conhecerá tendo a coragem de descer ao poço da alma, se é que há alma e não só corpo. Isto hoje já não me entusiasma. Além disso o Jung, apesar do seu nome que parece chinês, está-me indicando que o caminho de um ocidental não é o do Oriente.

 
António Telmo
 
(Publicado em A Terra Prometida, 2014)


[1] Título da responsabilidade do organizador do volume. 

 

CORRESPONDÊNCIA. 14

19-06-2014 13:29

CORRESPONDÊNCIA DE ÁLVARO RIBEIRO PARA ANTÓNIO TELMO. 08

 

Lisboa, 9 de Junho de 1973

 

Meu caro António Telmo:

 

Ao aproximarem-se as férias, volto a nutrir a esperança de ter ocasião de o ver e de o abraçar para em seguida conversarmos sobre os assuntos que mais nos preocupam ou interessam. Custa-me que a distância nos separe. A epistolografia, que poderia servir de intermediária, nunca foi do seu agrado e já não é do meu. Agora sei quão custoso é o trabalho manual de escrever, porque falecem as forças dos braços. A última fase da minha vida está sendo confiada a prescrições médicas; uma das quais é a do máximo repouso.

Apreciarei muito quaisquer notícias vossas: do António Telmo, da Maria Antónia, e respectivos filhos. Diga-me se tencionam vir a Lisboa, ou a Sesimbra, ou se estacionam as férias em Redondo.

Com os cumprimentos da Maria Júlia, abraça-vos o velho e dedicado amigo

 

Álvaro Ribeiro

 

Rua Infantaria Dezasseis,

70 – 2.º Dto. Lisboa - 3

Telefone 656265

INÉDITOS. 16

18-06-2014 10:29

Sobre o oaristo*

 

Após ter afirmado que as gnoseologias dualistas parecem incapazes de explicar o conhecimento pelas relações do sujeito com o objecto (S–O), Álvaro Ribeiro escreve em A Razão Animada, na página 151 da primeira edição:

“O conhecimento é, como a etimologia ensina [cognoscere] uma relação de Sujeito com Sujeito (S-S) e humanamente uma relação social de espírito a espírito.”

Social, aqui, presumo que significa relação pela palavra. Dado que, para Álvaro Ribeiro, o paradigma da relação S–S é a do homem pela mulher pelo oaristo. O oaristo, ligando os amantes pela palavra, transmite à união amorosa a altitude de um sacramento. Na verdade, como lembra o filósofo no prefácio À Verdade do Amor de Vladimir Soloviev, na realização do matrimónio os noivos são os sacerdotes, é pelas próprias palavras que acompanham o rito que se declaram marido e mulher para toda a vida.

A palavra oaristo, que qualquer dicionário diz ser a conversa entre os amantes, não é de uso comum, nem sequer entre os literatos; não obstante, Eugénio de Castro, o discípulo português de Peladan, ter escrito um livro maravilhoso de poesia com esse nome.

Os amantes que praticam o oaristo juntam às palavras que para os outros são banais, secretas e superiores significações. Cada palavra é uma energia, por vazia e oca que pareça a ouvidos profanos. A relação de espírito a espírito precede, prepara e acompanha a relação das almas e não dizemos dos corpos pois as almas os incluem, para bem ou para mal.

 

António Telmo

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* Título da responsabilidade do editor.

UNIVERSO TÉLMICO. 04

17-06-2014 11:26

CORRESPONDÊNCIA DE ÁLVARO RIBEIRO PARA RAFAEL MONTEIRO. 01

 

 

Lisboa, 27 de Dezembro de 1965

 

Exmo. Sr. Rafael Monteiro e
Prezado Confrade nas Letras:

 

 

Motivada é esta carta pela obrigação normal de lhe agradecer, quanto antes, a bela amabilidade das suas notícias e a gentil oferenda de um livro. Nesta fase última da minha vida sou pouco dado à epistolografia, mas perante factos de significação e valor, como o da sua missiva, não posso deixar de reagir com gratidão.

Folguei deveras com o anúncio de que o Rafael Monteiro vai elaborar, e concluir, um estudo sério sobre uma nova hipótese acerca da origem do fado, e queira Deus dar-lhe perseverança para cumprir tal dever, neste triste país onde é constante a elegia do não vale a pena. Se me expediu tão boa notícia, considerou também o meu exemplo de homem que persiste e não desiste, enquanto os outros se lamentam e desculpam.

Creio verosímil a sua hipótese acerca da origem e da essência do fado, com a correcção do dizer semita onde diz hebraico. A influência arábica foi poderosíssima na Península Ibérica, e também a fenícia…

O meu velho estudo sobre o fado foi um escrito de circunstância que não poderá ser útil ao trabalho do Rafael Monteiro. Quem lhe deu a informação nunca leu o texto, e errou se não mentiu. No entanto, como se trata de escrito publicado, gostosamente envio uma cópia. No mesmo semanário colaborou José Régio com um poema que reproduziu no respectivo livro. Convém não ignorar que também escreveram fados Afonso Lopes Vieira e António Botto.

Envio-lhe os “Parabéns”, ou o “Deus queira” (Oxalá) de bom augúrio e incitamento para o seu estudo. Com os melhores agradecimentos pela sua gentileza, subscrevo também os votos de Boas Festas e de Feliz Ano Novo de quem lhe manifesta tão sincera estima intelectual.

 

Álvaro Ribeiro

DOS LIVROS. 12

16-06-2014 10:37

Meta-História ou a Terra Prometida

 

Quando consideramos, isto é, conjugamos com o sideral, o saturnino espectáculo do mundo não podemos, apesar de todas as promessas, deixar de ficar tristes. São as guerras, as doenças, os assassínios em massa, a progressiva e intencional estupidificação dos homens, o alastramento do vício e a mecanização das inteligências, e, sobretudo, a mediocridade dos contabilistas que se apoderou do mundo, é tudo isso e muito mais, que alguns têm explicado como a manifestação de uma vontade perversa actuando do subconsciente para o consciente da humanidade. O filósofo D. Duarte considerava a tristeza um pecado porque é sinal de que deixámos de acreditar na bondade de Deus. Sempre me espantou que o ensino dos artistas, dos poetas da ciência ou da palavra, dos filósofos ou dos místicos receba dos governos a resposta da mediocridade. Pela sua crucificação, Jesus Cristo aboliu os sacrifícios humanos; a Inquisição, fundando-se no cristianismo, queimou aqueles que protestavam contra esses sacrifícios.

Está anunciada uma terceira idade de que nos aproximamos velozmente, em que, como disse o Bandarra, a paz será em todo o mundo. Como conciliar isto com aquilo? É que a terra em que vivemos é apenas um laboratório; no athanor da humanidade separa-se o subtil do denso. Esta não é a terra definitiva. Para onde vai a energia que, pela entropia, constantemente se perde? Transforma-se em energia espiritual. Tudo quanto de bom e de verdadeiro se pensou e imaginou, se pensa e imagina, é o subtil que se separa do denso e vai formar a Terra Prometida.

As formas do nosso verídico imaginar ficarão à espera de que os tempos se cumpram para se incorporarem numa nova humanidade de que não participarão só os vivos de então, mas também todos os mortos do presente e do passado que não podem ter vivido em vão.

 

António Telmo 

 

(Publicado em O Portugal de António Telmo, 2011)

CORRESPONDÊNCIA. 13

11-06-2014 15:50

 

CORRESPONDÊNCIA DE ÁLVARO RIBEIRO PARA ANTÓNIO TELMO. 07

 

Lisboa, 2 de Março de 1973

 

Meu caro António Telmo:

 

Respondo ao seu pedido, enviando cartão com a nota da minha residência. Ela figurou nos envólucros das publicações que já lhe havia enviado pelo correio...

A Maria Júlia e eu teremos muito gosto de vos ver em nossa casa, para longa e demorada conversa amiga. Apareçam!

De momento não tenho notícias a transmitir-lhe. A minha vida é cada vez mais doméstica e privada, porque me vai faltando saúde e resistência à morte. Espero e esperarei pelo que Deus quiser.

Cumprimentos meus e da Maria Júlia para a Maria Antónia, beijos aos vossos filhos, e um abraço do velho amigo

Álvaro Ribeiro

DOS LIVROS. 11

06-06-2014 14:41

De um caderno de apontamentos. 05

 

Muitos meses depois de ter escrito Os Dioscuros, um conto imaginado por reacção à clonagem, descobri que a escolha do nome Leda para a mãe dos dois irmãos gémeos se deveu a um acto de escrita automática, mas do domínio do mistério.

O nome viera por imposição do ritmo da frase: “Fui encontrar leda a vossa mãe, leda como o seu nome”.

Sempre que, durante esses meses, me lembrava do conto, esse filho do acaso vinha-me à memória em contraste com os nomes das outras personagens que conscientemente escolhera com a mais rigorosa propriedade. Assim Zebedeu era o pai de Tiago e de Túlio, como é no Evangelho, de Tiago e de João, dados pela tradição como gémeos. O duplo aparecimento do T é propositado e o nome de Túlio é censurado no conto pelo vagabundo que repreende o pai por não lhe ter posto o nome de João. Os dois rapazes nascem de um parto difícil ao ribombar do trovão. Cristo chama aos dois discípulos “filhos do trovão” e, por isso mesmo, o vagabundo, o sábio mendigo itinerante os crisma, a Tiago e a Túlio, de Boanergues. Tudo isto está certo dentro do simbolismo do conto. Só o nome de Leda parecia fugir à regra que traçava linhas direitas entre os vários pontos etimológicos.

Eu sabia que Leda significa alegre, mas não sabia mais nada. Qualquer coisa me dizia, eco de alguma reminiscência, que fosse uma figura da mitologia clássica. Fui hoje ver no Dicionário de Mitologia que a minha mulher comprou ontem. Como é possível?! Leda é a mãe dos Dioscuros que os concebeu de Zeus-Júpiter disfarçado na forma de um cisne. Uma coisa traz outra: Zebedeu prolonga a sonância de Zeus e este é, como Júpiter, o deus do trovão. Não é menos espantoso que coincidam a narrativa cristã e a narrativa pagã.

Tudo isto faz-me responsável do modo como apresentei os factos no conto. Devo reescrevê-lo, porque, sem querer, estou lidando com o sagrado e o misterioso.

 

António Telmo

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)

 

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