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UNIVERSO TÉLMICO. 06
11-07-2014 10:27
Álvaro Ribeiro*
Rafael Monteiro
Algo de insólito se verificou na sessão da Assembleia Nacional, realizada no dia 21 deste mês de Janeiro, ano de 1970.
A evocação tardia (porque feita após o termo da vida terrena) de José Régio permitiu a Veiga de Macedo, associando-se calorosa e sentidamente à homenagem, nobres e justíssimas palavras de apreço por Álvaro Ribeiro, pela obra e pelo escritor, «extraordinário pensador que da sua vida tem feito sacerdócio».
O ilustre deputado leu aos seus pares trechos da «Dedicatória» do último livro do mais português dos nossos pensadores: A Literatura de José Régio – o mais humilde livro que a um homem pode ser dado escrever, «livro porventura único na nossa literatura de pensamento», segundo as certas palavras do editor.
Há muitos anos, certamente, que tão alta e representativa Assembleia não escutava palavras de tão justos louvor e apreço para com a obra de dois dos mais nobres espíritos da nossa terra, de dois dos mais inteligentes portugueses das últimas gerações.
Se podemos pensar que nem toda a assembleia desconhecia o nome de José Régio, cremos ser, para a maioria, nome sem significado, o de Álvaro Ribeiro. Louvemos, por isso, o acto de Veiga de Macedo, o acto de lembrar aos políticos eventos e verdades que, transcendendo-os, importa conhecer: verdades e eventos cujo desconhecimento não dignifica os homens.
Insólito dissemos ter sido o acontecimento; bastará, como demonstração da nossa asserção, o relato da Imprensa, que conta: Veiga de Macedo, a uma interrupção que lhe foi feita, houve que responder, respeitosa e firmemente: «Não estou a fazer retórica! Estou a prestar homenagem a um pensador!»
Tão desabituados andam os homens de ouvir palavras nobres, tão afastados estão da beleza e da verdade!
* * *
Álvaro Ribeiro é, como Régio foi, um vivo entre mortos, ente acordado que pensa e age entre seres adormecidos. Despertá-los tem sido a missão do seu génio; no reino onde dormem, embora adormecidos se entronizem. Se não quereis que vos chamem retóricos, não os desperteis.
Os despertos que durmam – eis a regra de todos os que, à luz, preferem a treva, regra que os obrigou, por feminino temor, ao culto de um deus nocturno; cega-os os raios do Deus luminoso e verdadeiro. Não correspondendo neles a idade cronológica à idade do espírito, continuam adolescentes entre adultos – e o diálogo é de surdos quando estes falam e aqueles escutam.
Álvaro Ribeiro, pensador português agraciado, fez da sua vida – onde há dores e soluços – gratuito dom a todos os portugueses. Entre os anos de 1943 e 1965 escreveu e publicou onze livros magistrais; não podem eles deixar de ser lidos e meditados por todos quantos se dizem honrar com a condição de portugueses.
Depois da influência exercida por Leonardo Coimbra, na Faculdade de Letras do Porto (de 1919 a 1931), Álvaro Ribeiro foi o filósofo português de mais magistral influência em Portugal, quer se reconheça ou se negue tão importante verdade.
Pouco habituados ao reconhecimento, não manifestámos ainda a Álvaro Ribeiro a merecida gratidão que lhe devemos – manifestação que há-de ser, necessariamente, diferente do banquete encomendado ou da homenagem em dia certo…
«Dos trinta anos para cima, e até aos cinquenta, já servi o tempo propício à expiação», escreve o filósofo, citando os Números. Que, para ele, agora, a vida terrena seja de paz, e que nela lhe permitam realizar um dos seus desejos, ainda não há muito manifestado: o de dirigir a publicação de uma edição popular da obra de Aristóteles. Conceder a Álvaro Ribeiro o necessário para – em paz – tornar real o seu desejo, será o modo digno de lhe manifestarmos toda a gratidão que lhe devemos, que todos lhe devemos.
Há, no nosso país, meios suficientes para concretizar aquele desejo; esperemos (a esperança é uma virtude) que os homens inteligentes e bons possam contribuir para que o homem e o pensador viva em alegria e paz os últimos anos da sua vida – entrecortada por dores e por soluços.
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*Publicado originalmente em Jornal da Costa do Sol, de 31 de Janeiro de 1970, e republicado em Sesimbra Eventos, n.º 35, Fevereiro/Março de 2005.
INÉDITOS. 17
10-07-2014 09:10Dando sequência ao trabalho de estudo do espólio de António Telmo, publicamos hoje dois breves apontamentos do filósofo, plenos de revelações autobiográficas, e cujo sentido se ilumina pela leitura astrológica que o autor de O Horóscopo de Portugal neles ensaia. Surgem aqui acompanhados pelo comentário de Eduardo Aroso.
Autobiografia e astrologia: dois apontamentos*
1.
Os vinte e três anos primeiros da minha vida estiveram sempre ameaçados pela sombra temível do mal. Deve-se isso em primeiro lugar ao meu horóscopo. O signo do Touro, onde estava o meu Sol quando nasci, é, como se sabe, oposto ao signo do Escorpião, que, logo por meu azar, preside aos horóscopos de minha mãe e de meu irmão Rui, que Deus tenha as suas almas em paz. Do mesmo lado, a um ou dois graus do Escorpião se encontrava ao nascer, o Sol do meu irmão Orlando.
Éramos três irmãos. Eu era o mais novo com uma diferença para eles de quatro e cinco anos. O Orlando era o mais velho; o seu horóscopo era, por sinal, dominado pelo planeta Marte que é, aliás, o planeta que tem no Escorpião o seu lugar essencial.
O meu Pai era alheio a esta oposição, pois nascera no signo de Virgem. Teve muita dificuldade em amestrar aqueles dois filhos. Eu era dócil e sofria com angústia os conflitos de meu Pai com eles. Foi, neste sentido, uma infância horrorosa no período dos 7 até aos 16 anos, quando deixámos Arruda dos Vinhos por Sesimbra.
2.
Nasci com o Sol e a Lua altos em Touro, quando no horizonte se levantava o signo de Leão.
Fui o último de três irmãos. A minha mãe esperava uma rapariga, veio um rapaz. Cogitou fazer de mim padre para a acompanhar na viuvez. O seu signo era aquele onde o forte Marte tem o seu domicílio. Os meus dois irmãos também nasceram associados a Marte. O signo do Escorpião é oposto ao do Touro.
Vejo agora pelo I Ching que nós os três, os irmãos, realizámos com grande aproximação, as características que o famoso, muito respeitável livro chinês, o mais antigo do mundo, atribui aos três filhos do Céu e da Terra:
O fulgor para o primogénito.
O perigo para o segundo irmão.
A imobilidade para mim.
Na Idade Média, o primeiro, na classe nobre, ficava o senhor do património.
O segundo filho, de natureza quereria tornar-se militar.
O último tinha por destino o sacerdócio.
Mas o último era, nos contos tradicionais, a pedra que se punha de lado e sobre a qual se haveria de edificar.
A alma do sangue dos meus pais criou-me como terceiro filho em oposição aos meus dois irmãos e à minha mãe. O dado inicial é o horóscopo. Nasci com o Sol e a Lua ao alto no signo do Touro. Do lado oposto, o Escorpião e a agressividade de Marte. Os três contra mim sem que o soubessem. Sabia-o o espírito envolvido pelo sangue.
António Telmo
* Título da responsabilidade do editor.
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Comentário
Eduardo Aroso
Nestes inéditos (1 e 2) de António Telmo podemos observar o que em astrologia se designa por sinastria, ou seja, comparação de horóscopos, embora a situação neste caso não seja completa, pois o filósofo apenas se refere ao seu signo solar e ao dos seus familiares. Isto é, não compara – pelo menos no texto não o refere – cabalmente os horóscopos. Vejamos: «Os vinte e três anos primeiros da minha vida estiveram sempre ameaçados pela sombra temível do mal. Deve-se isso em primeiro lugar ao meu horóscopo. O signo do Touro, onde estava o meu Sol quando nasci, é, como se sabe, oposto ao signo do Escorpião, que, logo por meu azar, preside aos horóscopos de minha mãe e de meu irmão Rui, que Deus tenha as suas almas em paz». A primeira questão que se nos levanta é a que se refere aos «vinte e três primeiros anos da sua vida». A justificação podemos encontrá-la apenas (ou não) na astrologia, já que é disso que o filósofo trata. Assim, feitas as progressões planetárias para os 23 anos de AT, encontramos, entre outros, dois indicadores muito significativos: Vénus (planeta dos relacionamentos) progredido e regente da 3ª casa (irmãos) passou a quadratura - o aspecto planetário mais difícil/desafiador – com Marte e depois com Plutão de nascimento, sendo estes dois os regentes da 4ª casa, a do pai e da mãe e da família em geral. Ao mesmo tempo o Sol progredido no horóscopo de António Telmo tinha saído recentemente de Touro (oposto a Escorpião). É muito provável que AT tivesse feito estas contas para escrever dessa maneira.
A sinastria ou comparação de mapas astrológicos é uma técnica muito antiga e que se baseia no princípio universal das «simpatias e antipatias», princípio esse que opera, por exemplo, na química, ou na botânica. Todo o agricultor experiente sabe que determinadas plantas não se desenvolvem bem, ou nem chegam mesmo a crescer, junto de certas árvores, acontecendo também o contrário. É claro que no caso dos seres humanos as coisas passam-se de modo diferente, como é óbvio, mas ainda assim Goethe deixou claro que as afinidades electivas existem, o que qualquer um de nós comprova no que respeita às nossas relações na vida diária, sabendo, ou não, astrologia.
O cenário “familiar astrológico” tenso, embora apenas quanto aos signos solares, que AT aqui descreve, e de modo muito explícito, refere-se à mãe e aos dois irmãos Rui e Orlando, todos eles do signo solar de Escorpião oposto ao signo de Telmo, o Touro. Veremos de seguida o sentido astrológico da afirmação «O meu pai era alheio a esta oposição, pois nascera no signo de Virgem».
AT aponta como maléfico o signo solar de Escorpião oposto ao seu o de Touro. Na verdade, a palavra mais correcta é complementar, e nisto nos adentramos, por exemplo, no alcance astrológico da profunda relação Touro/Escorpião, Sagitário/Gémeos, Aquário/Leão, etc. Aliás, é bem de ver que a atracção ou simpatia (muitas vezes não isenta de fricções e tensões!) das oposições faz-se, seguindo o meu exemplo dado, respectivamente pelos elementos: Terra/Água; Fogo/Ar; Ar/Fogo. Estes signos complementam-se, tal como as antíteses se resolvem pela síntese ou por um terceiro elemento/signo. E aqui vemos o papel que o pai de AT – houvesse ou não consciência disso – teve no meio familiar. O esquema geométrico seguinte pode elucidar. A oposição (180º) e a quadratura (90º) são considerados os “aspectos maléficos” enquanto os sextis (60º) e os trígonos ou trinos (120º) são “aspectos benéficos”. (1)
Orlando, Rui e mãe – signo de Escorpião; Telmo signo de Touro (como que isolado) e o pai signo de Virgem, originando um ângulo de 120º em relação ao signo de Telmo e um de 60ª em relação ao dos irmãos e mãe. A posição do signo solar do seu progenitor actuou como um ponto astrológico alquímico, conforme o esquema acima, percebendo-se assim o papel do pai de AT na família, tivesse ou não o primeiro consciência disso.
Em jeito de conclusão, poderíamos perguntar o seguinte: conhecendo AT a astrologia, considerando que este texto é escrito nos anos maduros da sua vida, qual a razão por que se referiu ao signo de Escorpião como maléfico, para seu azar? Qualquer condição familiar é íntima e marcante na vida de cada um, a primeira estação do fatum ou destino, onde o nosso livre-arbítrio pouco ou nada dita, já que sem alternativas que mais tarde podemos ter como mudar de emprego, de localidade, etc, nascemos numa única família e a ela herdamos. No caso de AT terá dolorosamente - mas porventura como bênção divina - feito com que escrevesse o texto do modo como o fez. «Os três contra mim sem que o soubessem. Sabia-o o espírito envolvido pelo sangue». Há um indício todavia que nos faz supor que o filósofo conhecia profundamente o sentido da oposição ou do complementar em astrologia (e, como é óbvio, na filosofia), porquanto, vários anos antes – note-se –, escreveu desta maneira em Horóscopo de Portugal, página 26 «uma das singularidades do horóscopo de Portugal é que a inversão do hemisfério superior no hemisfério inferior se produz nos acontecimentos e ideias que se vão dando em cada um deles com o curso do Sol» (…) as Casas opostas se correspondem dando o mesmo movimento na dupla forma luminosa e tenebrosa». Ou seja, mais uma evidência de que não há signos melhores ou piores do que outros, embora cada um deles possa expressar, consoante as situações, ora o seu lado luminoso, ora o tenebroso.
Seja como for, AT entendeu que uma certa forma de realização - dir-se-ia também uma «diversidade na unidade» - acabou por acontecer, pois assim escreve: «Vejo agora pelo I Ching que nós os três, os irmãos, realizámos com grande aproximação, as características que o famoso, muito respeitável livro chinês, o mais antigo do mundo, atribui aos três filhos do Céu e da Terra»
4-7-2014 (dia da Rainha Santa Isabel)
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Nota (1): a fundamentação de aspectos “bons/favoráveis e aspectos maus/desfavoráveis" baseia-se na Tradição e no conceito sagrado, neste caso, da divisão do Círculo.
DOS LIVROS. 16
09-07-2014 10:49De um caderno de apontamentos. 06
A saudade e o amor são manifestações do que a angelografia hebraica designa por Shekina e Metraton?
Pelo menos, é através de uma e de outro que parece passar a luz pela qual as duas potestades angélicas se nos tornam humanamente inteligíveis.
A saudade e o amor, no seu primeiro momento fenomenológico que é o da relação terrestre do amante com a amada, oferecem-se-nos como as duas faces do mesmo. Assim, no amor, a presença corporal da amada acorda no amante o sentimento do fugaz e inapreensível, do que estando presente está ao mesmo tempo ausente, do inviolável; pelo contrário, na saudade, ela é presença na imagem vivida em lembrança e ausência no seu corpo e seu lugar longínquo no espaço e no tempo.
O amor à distância de todo o espaço e de todo o tempo que há entre os dois é saudade; a saudade que se tem do que se possui na proximidade é amor. Nos dois casos, há sempre uma elipse, de que um foco é visível e o outro invisível. Num desses focos está a imagem luminosa e directamente visível; no outro o seu reverso nocturno e inacessível. O movimento de amor ou de saudade é elíptico como o da terra à volta do sol. Se não há, porém, a consciência simultânea do acessível e do inacessível, da presença e da ausência não há amor nem saudade. Haverá lembrança com dor, mas sem alegria, presença satisfeita, mas sem o sentido do mistério que é a amada.
Esta identidade especulativa, e digo especulativa a pensar na inversão pelo espelho, tem sido assinalada pelos poetas, mas ignorada pelos filósofos. Camões diz do amor ser “um contentamento descontente”; Pascoaes diz da saudade ser um misto de dor e de alegria, de presença e de ausência, de desejo e de lembrança.
Metraton é o Anjo da Face, o medianeiro entre a Divindade insondável e a Criação. A sua linha de presença à Divindade insondável que contempla face a face e à Criação de que tem o segredo da origem é a do meio, mas divide-se, de acordo com o desenho ou o desígnio da Árvore da Vida, em duas correntes nele unificadas, à esquerda e à direita. À direita São Miguel é o seu aspecto luminoso, à esquerda São Gabriel é o seu aspecto nocturno. Num é Misericórdia, no outro Rigor. A Shekina levanta-se do abismo, reflectindo a luz que emana de Metraton, descida do alto. É Malcuth, na sua suavidade lunar, mas participando de Geburah, o Rigor ou o Pavor, na sua essência profunda.
António Telmo
(Publicado em Viagem a Granada, 2005)
UNIVERSO TÉLMICO. 05
07-07-2014 12:11CORRESPONDÊNCIA DE ÁLVARO RIBEIRO PARA RAFAEL MONTEIRO. 02
Lisboa, 20 de Setembro de 1973
Exmo. Sr. Rafael Monteiro,
meu prezado Amigo:
Recebi, li e agradeço o seu curioso opúsculo sobre os painéis «de Nuno Gonçalves». Também li, recentemente, o belo estudo que intitulou de «Esclarecimento da história da vila piscatória de Sesimbra».
Bem sabe que muito aprecio os trabalhos históricos do Rafael Monteiro, com suas inteligentes hipóteses e suas ressurreições de vidas esquecidas. O tema dos painéis, além de misterioso e escabroso, é também perigoso para quem o abordar sem os indispensáveis sacramentos, pois causou já muitos desgostos a escritores ilustres e até uma morte por suicídio, mas eu louvo a coragem de quem é capaz de se sacrificar na defesa de causas perdidas. Perdida está a minha campanha em prol do ensino da filosofia portuguesa nas escolas públicas, mas nem por ver a desistência dos que outrora me acompanharam deixei alguma vez de insistir na seriedade do meu propósito.
O espírito arábico-judaico, por assim dizer sefardim, que subjaz na língua e na cultura portuguesas, moldado depois pela cleresia católico-romana, bem merece a atenção do Rafael Monteiro no anunciado estudo sobre o «convento» do Cabo Espichel, cuja publicação se aguarda com o maior interesse. Não é verdade que os cristãos portugueses impedissem que se pintasse a figura do judeu em igreja católica; contra essa objecção milita a abundância de azulejos com temas do Velho Testamento, a pintura de uma admirável e perfeita figura de rabino na igreja do Convento de Cristo em Tomar, e a extraordinária figura da árvore sefirótica, com seus dez judeus, num altar lateral da Igreja de S. Francisco em Estremoz. Grande parte, se não a maioria, dos sacerdotes portugueses protestavam em silêncio contra as barbaridades cartaginesas da Santa Inquisição, e protegeram quanto possível os marranos.
Nossos tempos são diferentes!… Vivemos num período de destruição política da Pátria, e até dos fundamentos históricos da Nacionalidade. O Governo nomeia deputados, governadores civis, presidentes das câmaras entre doutores que ignoram as raízes étnicas e o passado institucional dos povos sobre os quais vão exercer autoridade. Assim se descaracteriza a paisagem natural e social por obediência às instruções da O.C.D.E. e da U.N.E.S.C.O.
Bem hajam, pois, os escritores populares e patriotas que protestam contra a utopia da uniformização cultural num Mundo em que o espaço e o tempo diferenciam as manifestações da vida. Rafael Monteiro merece a gratidão dos sesimbrenses!…
Queira confiar sempre na estima intelectual que já alguns anos lhe dedica o seu amigo e admirador
Álvaro Ribeiro
CORRESPONDÊNCIA. 16
02-07-2014 10:34CORRESPONDÊNCIA DE ÁLVARO RIBEIRO PARA ANTÓNIO TELMO. 10
Lisboa, 30 de Novembro de 1977
Meu caro António Telmo:
Acabo de ler o último número da “Escola Formal”, e apraz-me escrever que distingui o belo teorema intitulado “Gramática Secreta da Língua Portuguesa” de cujo teor recebi muito agrado e muito proveito. Fazer a crítica, revelar as concordâncias e as discordâncias, seria ofender a inteligência de quem leu os meus livros.
Em tempos dediquei um volume de “Estudos Gerais” a quem quisesse dizer-se meu discípulo. Comecei pelos estudos triviais de gramática. Vejo agora com alegria que só o António Telmo chegou enfim a prestar-me atenção. Por isso me significo muito grato.
Muito esperei do grupo de colaboradores da “Escola Formal”, mensário de ensino, para não dizer de doutrina. Vi de número para número acentuar-se a intervenção crítica, polémica, ou bélica, em um periódico que mais me parece digno de intitular-se “Quartel General”. Os temas não aparecem racionalmente programados, as teses não aparecem explicadas de modo a persuadir e convencer os ignorantes, os teoremas não se realizam na evidência das figurações geométricas, como seria exigido pela acepção de tão nobre termo helénico. Só o António Telmo, figurando na Árvore Sefirótica a sua doutrinação fonética, parece respeitar a essência do que para Pitágoras, e até para Euclides, se chama verdadeiramente um teorema, apesar da indignação de Hegel no seu grande livro de “Lógica”.
Pena é que o António Telmo continue a descuidar-se, ou a confiar no cuidado de outros, quanto à revisão das provas tipográficas, deixando que os maus espíritos, ou os egrégoros, maculem a expressão escrita de sua inteligência iluminada, ou inspirada. A “Escola Formal” tem sido, sob o aspecto tipográfico, uma lamentável calamidade!... É o caso, que muito bem sabemos, de quantos se recusam a considerar a gramática, – tipos e letras, – como a primeira das artes.
Com longa e profunda amizade pelo António Telmo, sincera estima por sua Esposa e seus Filhos, queira aceitar esta oportuna e prestimosa carta do
Álvaro Ribeiro
VOZ PASSIVA. 25
01-07-2014 09:57
TELMO, António – Horóscopo de Portugal. Lisboa: Guimarães Editores, 1997, 191 p.*
José Gama
Esta obra consta de duas partes: uma primeira com a leitura do Horóscopo de Portugal, do manuscrito de Fernando Pessoa, uma segunda parte com a republicação da História Secreta de Portugal, publicada em 1977. O novo estudo é um aprofundamento da temática tratada há mais de vinte anos, completando o que antes apenas iniciou: “ler toda a sina do nosso país nas linhas traçadas pelo vate”. Trabalho interessante de interpretação de símbolos que falam da “manifestação gloriosa da alma portuguesa”, e que permitem ler na pedra (do Mosteiro dos jerónimos) a transcendente mensagem. Esta incursão na profundidade das profundidades do sentido, ou sentidos, da nossa história não deixa de ser impressionante, e o manuscrito de Fernando Pessoa mostra a importância que tinha para o Poeta, apesar do pendor racionalista que predomina na sua obra. Este perscrutar o oculto e imanente do universo e da história não tem assento no quadro do saber positivo da ciência. Nem por isso poderá ser desclassificado e descartado como inútil e sem fundamento. “Tudo está aí, assim haja quem o veja”, lembra o Autor na introdução do novo estudo, e explica, no final, a exemplo dos últimos cantos do Purgatória da Divina Comédia de Dante: “explicar muito não é o que mais convém, porque há coisas que só ocultando se revelam. Revelar é voltar a velar para mostrar.”
* Revista Portuguesa de Filosofia, ano LVI, Braga, Jan.-Jun. 2000, p. 257.
«OS MEUS PREFÁCIOS». 06
30-06-2014 12:32
APRESENTAÇÃO DE MAPA METAFÍSICO DA EUROPA, DE CARLOS AURÉLIO[1]
Os mapas foram para os portugueses – chamavam-se então cartas geográficas – de uma importância muito grande durante os descobrimentos dos mares e das terras que ficam para além deles. Com um mapa do mundo eu posso, andando ou fazendo-me andar, ir até onde o finito toque o infinito. Claro que estou a falar de um mapa que considere todo o finito, isto é, que abranja, com o terrenal, também o sideral.
Mas há também outras espécies de mapas a que de boa mente se deve dar o nome de cartas transcendentais. Os mapas traçam-se, depois de se terem conhecido as terras, os mares ou os céus, com maior ou menor rigor, rigor que vai crescendo na medida em que se vão sabendo aplicar os segredos matemáticos e geométricos da topografia. Ora, parece que é possível viajar por outras terras, mares e sob outros céus, se deste mundo em que nos movemos a custo nos soubermos alhear para contemplar em espírito e verdade. Só assim se explica que haja, para lá dos mapas vulgares, outros em que se figura o desconhecido, ou se preferirdes, que haja roteiros que indiquem, para quem saiba interpretá-los, como é o mundo à luz do sol divino. Este mesmo mundo.
Um destes mapas ou roteiros, talvez o mais famoso, é o das sephiras. Os esoteristas, os falsos e os verdadeiros, conhecem-no pelo nome de árvore ou balança das sephiroth. É preferível designar as sephiroth, palavra hebraica, por sephiras, um neologismo que cabe aceitar porque, pela forma e pela matéria ou, como dizem os anti-aristotélicos, pelo significante e pelo significado, é analógico da palavra safiras.
Foi esta carta transcendental, este mapa do invisível que Carlos Aurélio sobrepôs ao mapa da Europa e assim por esse modo o pôde ver como um mapa metafísico.
Já o tinha feito com o mapa de Portugal, mas dessa vez através de telas pintadas interpretando o país de Norte a Sul como uma manifestação das sephiras.
Carlos Aurélio é um pintor de arte, nascido em Vila Viçosa, terra natal de Florbela Espanca, de Henrique Pousão e de Espiga Pinto. Viveu, como todos nós, uma fase ingénua, fase dos versos líricos e dos diários íntimos, com tentativas infantis no domínio das artes plásticas. Passada essa fase, descobriu Carlos Aurélio, na hora certa, que entre a figuração do visível e a sua desfiguração, entre a pintura fotográfica e a pintura desfocada e disforme, não há que escolher, porque, em boa verdade, a suprema arte de pintar consiste na transfiguração da natureza, na sua sobrenaturalização. Então, deixou para trás aquilo que até aí o embaíra e aparece-nos em Tomar, no Convento de Cristo, com uma série de imagens pintadas, compondo e recompondo a figura de Portugal pelos seus aspectos essenciais, série essa de imagens que se poderão caracterizar por este lema: exigência de realidade para tudo o que seja do domínio do espírito; de irrealidade para tudo o que seja do domínio da matéria, para que a ideia de Deus esteja presente num Portugal transfigurado.
O catálogo da exposição em Tomar, como o leitor pode ver em apêndice ao livro, tem, além das reproduções fotográficas dos quadros, explicações, pela palavra, de cada um deles e do seu conjunto, pondo em plena luz o mapa de Portugal como um mapa místico ou metafísico pela sua relação com as sephiras da Santa Cabala. A contemplação do autor torna-se prece. E é assim que surge, alguns anos depois, a realização, mais uma vez na forma de procissão ou de teoria, de uma exposição, mas agora o espírito do pintor imaginando na oração ensinada por Jesus Cristo aos seus discípulos e, através dos discípulos, a toda a humanidade. O que faz desta aventura no perigo uma experiência venturosa são as oito meditações que acompanham cada um dos quadros, em palavras que libertam as imagens da sua fixidez. Estas meditações constituem uma das obras primas da prosa portuguesa, digna de figurar numa antologia do nosso pensamento místico. Cumpre-se em Carlos Aurélio aquilo que é pouco comum entre os pintores, a de serem simultaneamente com a pintura artistas da palavra e do pensamento. Almada Negreiros e Lima de Freitas constituem, entre nós, os melhores exemplos de tão rara associação.
Enquanto estes dois mestres, companheiros na arte de pensar, se preocuparam com determinar as relações secretas da aritmética com a geometria, quarta e quinta ciências na escala pitagórica septenária, Carlos Aurélio, mais fascinado pela beleza do mundo terrestre, pelo mistério dos rios e dos mares, dos vales e das montanhas, das estepes e das florestas, prefere utilizar a sabedoria pitagórica, que bebeu na mesma fonte, pelo estudo metafísico da geografia, isto é, ligando a quarta e a quinta ciências à sexta e à sétima.
Voltamos assim ao ponto de partida desta apresentação. Mas uma surpresa nos espera. Pela magia do desenho, o mapa da Europa, olhado como por Fernando Pessoa e Luís de Camões do Oriente para o Ocidente, transforma-se numa bailarina e essa mesma bailarina, tocada pela magia de um alemão, transforma-se numa princesa coroada em que a coroa é Portugal. Por fim, eleva-se da terra ao céu como Nossa Senhora da Esperança.
A esperança na salvação do mundo pela Europa nada tem que ver, no espírito de Carlos Aurélio, com finanças ou economia. Como a ciência económica nada tem resolvido até agora, das duas uma: ou a ciência económica não é ciência ou aqueles que dedicaram toda a vida a estudá-la ainda não conseguiram penetrar nos seus misteriosos segredos, muito bem guardados pelo companheiro de Fausto. A surpresa a que me referi é que a salvação do mundo terá de ser procurada na literatura.
Verdadeiramente, só na Europa existe literatura, entendendo por literatura as criações literárias individuais no domínio do romance, do conto e da novela, dos vários géneros poéticos, do teatro e da filosofia, sobretudo da filosofia em que um homem, só perante o mundo tem a inteligência e a coragem de o pensar. A literatura nasceu na Grécia, como se sabe. Até aos gregos e longe deles, nunca houve nada de semelhante. A superioridade que, hoje, sobretudo por influência de René Guénon, se atribui ao Oriente pela metafísica é até explicada por ali não haver literatura e isto porque para o francês e seus sequazes, como para as demais correntes de orientalismo, o indivíduo não conta espiritualmente para nada. A negação do valor do que é individualidade espiritual coexiste, nessas correntes, com a negação de Deus pessoal, cuja ideia é completamente massacrada pela ideia do Nada (de um Nada que se supõe ser Tudo) como raiz do Universo. Quando tais negações estão pressupostas no facto de que Deus é aquilo de que nada se pode afirmar, nem sequer que é o Ser porque isso seria já uma afirmação, que é o indeterminado susceptível de receber por emanação todas as formas, porque uma e outra coisa seria fazer dele um ente finito, o que é contraditório, o que se está pondo no conceito é a ideia de matéria, tal como a deduziram Platão e Aristóteles. E há ainda outro pressuposto, o de que a realização espiritual do indivíduo só pode consumar-se pela autonegação. Neste sentido fala-se de abandono ou de entrega do ser ao nada, do que se poderá chamar um suicídio ontológico. A difusão do orientalismo, que beneficia das sucessivas concessões do catolicismo às doutrinas materialistas, tem contribuído em grande parte para o estado demencial que está ao fundo do túnel para o qual nos encaminhamos.
Carlos Aurélio pôs no frontispício do seu livro uma oração escrita por Fernando Pessoa, onde roga a Deus; “Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim.” Claro que o poeta, não obstante a utilização que dele têm feito para combaterem as quatro religiões monoteístas, não pede a libertação do eu que divinamente se oculta e se manifesta em cada um de nós, mas de um eu envolto em escórias. Diferem os indivíduos uns dos outros pelo seu ser profundo e casto, porque Deus, que os criou, não se repete, não é um deus tecnológico, é simplesmente Deus. O nosso primeiro filósofo, Álvaro Ribeiro, aperfeiçoando a doutrina que trouxe do ensino de Leonardo Coimbra, onde este punha que o homem é um obreiro de um mundo a fazer, onde está obreiro pôs criador. O filósofo aristotélico, dizia ele, é o que pratica a contemplação, mas não para se dissolver em qualquer homogeneidade mística, mas para receber do mundo sobrenatural o sopro inspirador das palavras que fazem ver, das palavras criadoras de pensamento.
Também para Carlos Aurélio o que conta é o indivíduo que se ama a si mesmo, pois só assim, na condição de saber-se amar, poderá amar o próximo. Nos homens representativos, pela literatura, da Europa ordenada segundo a árvore das sephiras, o que é cada um deles no que têm de profundo e de verdadeiramente positivo realiza-se na mais significativa das personagens por eles criadas e imaginadas. Assim em Malcuth que corresponde à Rússia, Dostoiévski é o Príncipe Nikoláevitch Míchkin, o Idiota; em Iesod, que corresponde à Alemanha, Göethe é o Fausto; em Netzah, que corresponde à Escandinávia, Balzac é Serafito (o eu verídico do francês Balzac está realmente na Escandinávia, junto a Swedenborg); em Hod, que corresponde à Grécia, Homero é Ulisses; em Tifereth, que corresponde à França, Victor Hugo é Jean Valjean; em Hesed, que corresponde à Inglaterra, Shakespeare é Próspero, o rei taumaturgo; em Gueburah, que corresponde à Itália, Dante é Dante, pois na Divina Comédia Dante é uma criação de Dante; em Hochmah, que corresponde a Castela, Cervantes é D. Quixote; em Binah, que corresponde à Andaluzia, Ibn Arabî é Xerazade; finalmente e superiormente, em Kether, que corresponde a Portugal, Camões é Camões.
Eis o único caso em que o criador é a sua própria criação, em que, portanto, o eu exterior reflecte inteiramente o eu profundo ou como se o mesmo tivesse duas faces.
Esta correspondência de Portugal com a mais alta das sephiras, com a Coroa, que é como em português se diz Kether, não é originalmente do autor do Mapa Metafísico da Europa. Tem por base a figura da Europa na forma da Virgem Coroada tal como foi traçada pelo alemão Heinrich Bünting (séc. XVI). Se fosse um português que tivesse posto Portugal como coroa da Europa, a coisa ia de si. Mas ter sido um alemão dá-nos alguma esperança.
A primeira pessoa que me falou de Carlos Aurélio foi Luís Paixão, o nosso primeiro arquitecto, o arquitecto da filosofia portuguesa. Indicou-mo como alguém que devíamos receber entre nós na tertúlia que, em Estremoz, nos reunia todos os sábados pela manhã. Foi, no entanto o acaso que o trouxe a conversar comigo.
Falámos das imagens préhipnóticas, de que ele tinha alguma experiência. Mais tarde, seria no domínio do sonho que o seu espírito viveria no seu elemento. Desde as visões premonitórias de acontecimentos até àquelas em que dir-se-ia Deus estar presente, muita verdade tem passado pela alma do nosso escritor enquanto dorme. Não digo que alguma vez tenha atingido o estado de alma de que nos fala Salomão: “Durmo, sed cor meum vigilat”. Todavia, durante a noite, o seu espírito é habitado por imagens tão significativas que podemos dizer delas que são metáforas poéticas, daquelas que somente visitam os grandes espíritos.
Nesse mesmo dia em que o conheci, pediu-me que fosse com ele a sua casa ver uns quadros que tinha pintado, pois gostaria de saber a minha opinião sobre eles. Estava no início de uma vida dedicada à arte do desenho e da cor e necessitava de aplausos. Limitei-me, porém, a dizer-lhe: “Gostaria muito de saber o que tem feito de si como artista até agora.”
O que ele fez de si como artista até hoje (já lá vão vinte anos) deve ser avaliado pelas fases progressivas da sua pintura, pois nele são indissociáveis, como o valor de X e de Y numa função, a arte e a vida. Esta relação está sempre presente em tudo quanto pensa, imagina ou faz . E vê-se, acompanhando os momentos por que tem passado o que pinta, acompanhando, isto é, compreendendo, que Carlos Aurélio se vai libertando da dependência de si próprio, sem deixar de ser leal ao eu que pelo nascimento lhe foi confiado.
Há quem procure dirigir, enquanto dorme, os próprios sonhos, como é o caso de António Cândido Franco, o insigne autor da Arte de Sonhar. Quando disse atrás que é no domínio do sonho que o espírito do Carlos Aurélio vive no seu elemento, não empreguei, como se viu, a palavra sonho figurativamente. Falava mesmo de sonhos, daqueles sonhos que se revelam na luz interior de quem dorme, luz tão real como a luz física, mas sem sombras. Carlos Aurélio não procura dirigir os sonhos, a não ser que se entenda por dirigir criar um estado de alma durante a vigília que pela sua religiosidade prática seja propícia à descida dos anjos.
António Telmo
VERDES ANOS. 06
29-06-2014 13:44Como subsídio para o conhecimento da génese de Arte Poética, livro de estreia de António Telmo, de que no ano em curso se comemora meio século sobre o seu surgimento efectivo (pese embora no frontispício surja impresso o ano de 1963), oferecemos agora ao leitor o artigo "Como traduzir Henrique Bergson", saído a lume, em 31 de Janeiro de 1963, no suplemento "Artes e Letras" do Diário de Notícias, coordenado por Natércia Freire. Da comparação deste escrito télmico com o primeiro capítulo, que tem o mesmo título, de Arte Poética, resultam diferenças mínimas, de pormenor, na redacção, sem que as mesmas anulem, por qualquer forma, a essencial identidade da ideação e da própria expressão.
António Telmo encontra-se em Évora nos anos lectivos de 1962-1963 e 1963-1964, onde lecciona na Escola Comercial e Industrial. É nesse período que, certo dia, recebe a visita de seu irmão Orlando Vitorino, então inspector da rede de bibliotecas da Fundação Calouste Gulbenkian, e vivamente empenhado na empresa editorial Teoremas de Teatro. Orlando pergunta-lhe se não quer publicar um livro com aquela chancela e Telmo, em poucas semanas, compõe o texto de Arte Poética, que depositará nas mãos do irmão numa próxima visita deste àquela cidade.
Apresentado, pelo próprio autor, como um livro mal escrito, por haver sido meditado à medida que ia sendo escrito, e não obedecer assim ao esquema construtivo habitual, que manda caminhar das teses para as provas pelos argumentos, será bem de crer que Arte Poética tenha tido no disperso de Janeiro de 1963 o núcleo germinal de onde irradia.
Como traduzir Henrique Bergson[1]
I
Uma primeira dificuldade é a da tradução de souvenir. Várias palavras portuguesas se propõem: «lembrança», «recordação», «imagem», «fantasma», «sombra». Souvenir, de sous - venir, é o que vem de baixo, o que se oculta na profundidade da consciência, mas que, a todo o momento, tende a vir à superfície, animado como é de uma vida própria. A lembrança é um movimento especulativo da memória; a recordação é uma memória activa repassada de emoções. Os verbos respectivos destes substantivos (na língua portuguesa, quase todas as palavras, que não são directamente verbos, produzem-nos ou deles provêm) são quatro: «lembrar» e «recordar»; «lembrar-se» e «recordar-se». Os dois últimos, na sua forma reflexa, significam movimentos do espírito sobre si mesmo, o que os torna aptos a exprimir a actividade inventiva da memória, tal como a concebe Bergson.
Mas o que é que se lembra e o que é que se recorda? A «imagem» aparece, talvez, como a palavra que melhor traduz souvenir. Dir-se-á, portanto, a lembrança, ou a recordação das imagens onde Bergson escreve «le rappel des souvenirs»? Nova dificuldade, que nos leva a procurar determinar o sentido da palavra rappel. Não parece inteligente traduzir «rappel» por «lembrança». Há qualquer coisa de passivo, de jogo de espelhos, nesta palavra que contradiz a actividade que o espírito desenvolve durante o «rappel». Ao lado da «recordação», surgem «evocação» e «invocação». A evocação ou invocação das imagens é uma expressão mais bem achada para traduzir «le rappel des souvenirs». No entanto, surge outra dificuldade, não já, como até aqui, em relação com o idioma de Bergson, mas dentro da língua portuguesa. «Evocação» e «invocação», se atendermos ao valor dos prefixos, são antónimos. Como empregá-los, pois, indiferentemente, para exprimir a mesma relação verbal? É que a antonímia é apenas literal ou aparente. A «evocação» consistirá em trazer à luz da consciência o souvenir, que se esconde na penumbra da memória; a «invocação» consistirá, não em realizar o movimento inverso, que a oposição dos prefixos sugere, mas em ir lá dentro, lá abaixo, à profundidade onde vivem os pensamentos, as recordações e os instintos, chamar a imagem de que precisamos. Se assim é, qual é o antónimo de «evocação»? A sua determinação torna-se indispensável, se quisermos traduzir o pensamento de Bergson com suficiente profundidade.
Supõe-se que uma imagem invocada não chega a ser evocada. Fica detida a meio caminho. Verifica-se que não se adapta ao esquema dinâmico, ao «conceito» de que a memória partiu. Torna-se então necessário repeli-la. Não há poeta que não tenha experiência, mais ou menos consciente, deste movimento. Dir-se-á, pois, a repulsão das imagens, em oposição à sua evocação? A expressão é deselegante e, além disso, equívoca, na indeterminação do sujeito de e do complemento. Ocorre-nos a palavra «reenvio». Se é a mais apta a significar o que queremos, temos assim dois movimentos que exprimem a actividade do espírito que se recorda: a evocação e o reenvio das imagens. O leitor que quiser relacionar esta fórmula com o que seguidamente diremos verá toda a importância de uma sua exacta determinação.
II
Não fará uma boa tradução de Bergson quem, baseado na distinção entre «pensamentos» e «movimentos cerebrais», julgar que os pensamentos, que o filósofo situa, por assim dizer, para lá da actividade cerebral, são aqueles mesmos que formulamos quando o espírito opera num só plano de consciência. Pelo contrário, estes pensamentos são aqueles movimentos. A acção e a reacção das imagens, as articulações mecânicas que entre elas se estabelecem de associação e dissociação, quando só o corpo está interessado em determinada acção, são o acompanhamento motor e exterior dos verdadeiros pensamentos, em relação aos quais o cérebro funciona como receptor, transformando-os em movimentos.
Quem, deslocando pelo «esforço intelectual» o espírito do plano físico para o plano mental, identificando como o centro extracerebral da evocação e reenvio, surpreenda as imagens como origens, isto é, no momento em que se verbalizam e vão ser recebidas pelo cérebro, vê-las-á, ainda antes de serem modificadas, na forma de potências, energias, forças. É o que acontece quando, resistindo ao fluxo ininterrupto de imagens, nos dobramos sobre a nossa própria interioridade, para compreender e para pensar. Verificamos então que o espírito forma um esquema dinâmico, que dificilmente pode ser confundido com uma composição e imagens exteriores umas às outras, mas que é, pelo contrário, uma composição de forças, de potências ou de energias. São estas energias que actuam também na natureza e aí se manifestam segundo a lei da causalidade?
Linhas atrás, referimo-nos à profundidade onde vivem os pensamentos, as recordações e os instintos. Dissemos também que a recordação é uma memória activa, repassada de emoções. Etimologicamente, «recordação» relaciona-se com o centro físico dos sentimentos – o coração. Se a Matéria e Memória incide mais sobre o estudo dos processos intelectuais, é no Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência que devemos procurar as linhas de uma psicologia integral. Será lícito compreender na mesma palavra imagem, tradutora de souvenir, tanto as ideias como os sentimentos? Será uma mesma substância que, conforme o plano – mental, animal ou vital – em que se manifesta, assim é o pensamento, sentimento e instinto? Como quer que seja, parece depreender-se da convergência de certas linhas de ideias traçadas em pontos diferentes por Bergson que os vários planos da consciência em que o espírito se move, quando exerce esforço intelectual, realizam estados progressivos de conhecimento, dos quais o último nos daria o domínio sobre os princípios da vida instintiva, senão até da própria vida mineral, ali onde a vida se cruza com a morte. Isto, porém, como diria Bergson, é uma hipótese simplesmente teórica.
Posto, portanto, o princípio de que os souvenirs (dados na forma de pensamentos, sentimentos e instintos) são dotados de uma vida própria, são forças de energias, nasce o problema de saber como o espírito consegue orientá-los, dirigi-los, submetê-los, enfim, ao seu comando. Bergson responde que por meio de esquemas dinâmicos. O tradutor português verificará que ao «esquema dinâmico» corresponde, na sua língua, a palavra «conceito». Importa, porém, ter presente a advertência de Orlando Vitorino de que o conceito «não se liga a um sentido exterior», mas ao sentido interior, autónomo, real em si, da concepção (Introdução Filosófica à Filosofia do Direito de Hegel, p. 64). Dado um conceito, dado um esquema, logo as imagens acorrem, impelidas por uma necessidade íntima, a que se pode chamar espírito de associação ou de contiguidade, a tentar subordiná-lo. É então que o espírito tem de manter-se bem firma no conceito, actuando como um poder que, em vez de se deixar dominar, pelo contrário a si submente a energia da imagem, dirigindo-a e modificando-a de harmonia com o fim que se propôs. Ao exercício deste poder, que é, aliás, a própria actividade do pensamento, chama Bergson «esforço intelectual». Tal actividade é comparável à espada com que Ulisses afasta os espíritos atraídos pelo sangue do sacrifício.
III
Restaria agora ver como o espírito, que, no homem normal, actua sempre no mesmo plano, limitando-se a receber e a deixar-se conduzir pelas imagens, adquire a actividade própria do pensamento. Todavia, todos nós temos a experiência do acto sui generis pelo qual memoramos voluntariamente determinado acontecimento do nosso passado, mas o que é difícil é dispor sempre da faculdade de concentração, não seguir arrastado, quando se não quer, pelo fluxo mental, deslocar livremente o centro da inteligência para um plano profundo. Aqui conviria então interrogar a função que Bergson atribui aos gráficos, aos símbolos, às mnemónicas, às palavras.
Deixaremos tão importante assunto para outra ocasião. Agora, preferimos convidar o leitor a recapitular os momentos essenciais deste nosso escrito, de maneira a ver como de um aparentemente insignificante problema filológico de tradução fomos descendo gradualmente, ou gradualmente subindo, até ao nódulo do pensamento de Bergson. Traduzir qualquer filósofo, limitando-nos a seguir literalmente a articulação exterior das teses e dos argumentos, equivale a trair, a subsumir, a fazer desaparecer o mais importante. Traduzir um livro secreto (e qual não é secreto?) é também formar um esquema dinâmico, a partir do qual se encontrarão as imagens e as palavras mais aptas da nossa língua. Neste sentido, têm razão quantos afirmam, em Portugal, que, para saber traduzir, o indispensável é conhecer a língua portuguesa.
António Telmo
DOS LIVROS. 15
27-06-2014 10:28António Telmo está representado em A Serra da Arrábida na Poesia Portuguesa, de António Mateus Vilhena e Daniel Pires, obra que amanhã será lançada em Sesimbra, pela quadra "Foi na Serra da Achada", página inaugural de Congeminações de um Neopitagórico, que ali surgirá acompanhada de uma nota de Pedro Martins, aqui antecipada em jeito de comentário...
[Foi na Serra da Achada]
Foi na Serra da Achada
Que julguei ter-me perdido.
Quem se ganha não é nada,
Disse-me Deus ao ouvido.
António Telmo
(Publicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006-2009)
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Comentário
Pedro Martins
Planalto contíguo às cercanias da Serra do Risco, hoje atravessado por uma moderna estrada municipal pela qual, a partir de Santana, se acede à zona nascente da vila de Sesimbra, a chamada Serra da Achada constitui-se como um miradouro privilegiado ao viandante, oferecendo vistas deslumbrantes sobre a baía da camonina Piscosa (a Sul); o “dorso formidável da Arrábida” (a Oriente); o íngreme morro do castelo roqueiro (a Ocidente); e a banda setentrional da Península de Setúbal, por onde o olhar se alonga, até se perder no remoto esfumado de Lisboa e Sintra.
A Serra da Achada foi local de eleição de António Telmo, que, desde cedo ligado a Sesimbra, terra aonde chegou com dezasseis anos, não deixou, quando jovem, de a incluir nas suas caminhadas ao redor da milenar póvoa arrábida. Em 1965, num escrito publicado em O Sesimbrense, o filósofo, muito significativamente, considerava a novel estrada que perpassava a Achada, bem que então ainda imperfeita, muito mais bela que a “actual” – ou principal: a estrada nacional que, coleante, acompanha uma das vertentes do chamado vale de Sesimbra. Anos mais tarde, no final de década de 70, a Achada tornou-se-lhe lugar frequente de momentâneo retiro, nela praticando exercícios de meditação prescritos pela escola operativa do poeta austríaco Max Hölzer. É porventura dessa época que a quadra télmica antologiada, singela e todavia profunda, se permite dar testemunho. Mas ela reflecte também, ou sobretudo, uma concepção de filosofia feita de sonho, risco e aventura. Ou seja: liberdade!
DOS LIVROS. 14
25-06-2014 11:33
Só Deus escreve sobre Deus
Os cães caçadores não temem o som poderoso dos tiros, mas entram em pânico com o estoiro dos foguetes e o ribombar do trovão. Assim, o instinto inteligente distingue o alto do baixo ou do rasteiro, o que vem ao rés da terra do que soa alto na nuvem. O galo eleva-se dentro de si mesmo para soltar as cinco notas anunciadoras do Sol. Os pássaros levantam a cabeça para cantar e fazem-no nos ramos cimeiros das árvores ou no alto das torres. Quem está aí que me lê para sentir o que Camões viu ouvindo cantar os pássaros:
“Os pássaros que cantam
Meus espíritos são que a voz levantam”?
“Todos os seres adoram Deus”, assim se diz numa surata do Corão. Mas nós, hoje, nós que dispomos, enquanto homens, da inteligência que concebe no visível e no invisível, como havemos de adorar Deus, perseguidos que somos na rua e nos cafés, em casa, por toda a parte pela rádio e pela televisão, pelo ruído dominador dos metais actuantes fora do seu lugar natural, pelas explosões do petróleo, do óleo que se extrai da pedra multissecular, pelo rock (escreve-se assim, ó portugueses?) tan tan tan minando os interstícios do corpo, como havemos de ser se nos envolvemos do que não é para não sermos e não nos ouvirmos no que de mais fundo e significativo há em nós? Deus adora-se nas Igrejas, mas também aí entrou o jazz e as melífluas músicas próprias de uma espiritualidade inferior. Estamos pois impedidos de vencer a gravidade da alma elevando sentimento e pensamento àquela altura onde vai o instinto dos animais?
Era ainda noite, antes de nascer o Sol, no Cabo Espichel, junto aos pinhais. Eu estava lá, na orla deles, voltado para o Oriente de onde deveriam vir as rolas que assassinamente esperava. Principiava a nascer a alba. Aclareava-se ao fundo o céu. De súbito um sonoro zumbir de insectos feriu-me insistentemente os ouvidos. Eram moscas como abelhas ou vespas dispostas em fila ao longo da orla do pinhal. Alternavam a imobilidade com um voar rápido em círculo que as repunha no mesmo sítio. Estavam todas voltadas para o nascente como eu, mas não para matar. Desapareceram momentos depois do sol ter nascido.
Deus não é o Sol, mas o Sol é um símbolo vivente de Deus. É símbolo quando, através dele, se presta culto a Deus que infinitamente transcende todos os sóis. Isto o sabem os animais, melhor que os ocultistas e outros adoradores de símbolos.
Pediram-me para escrever sobre Deus. Só Deus escreve sobre Deus. E, às vezes, acontece fazê-lo através das nossas pobres palavras. Assim seja!
António Telmo
(Publicado em Sesimbra, o lugar onde se não morre, 2011)