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VOZ PASSIVA. 32
10-10-2014 11:13Amar mais a hipótese do que a verdade[1] – Teixeira Rego: filólogo esquecido, filósofo desconhecido[2]
Rui Lopo
I
Talvez venha este número dos cadernos a contribuir para se constatar a importância do tema do discipulado e do magistério na tradição filosófica portuguesa contemporânea em que António Telmo se filiou. Mereceria este tema um longo volume em que se apontassem os sentidos teóricos da relação discipular e da importância do conceito e da experiência da transmissão de uma tradição (ou várias) nesta corrente de pensadores.
É de facto algo que merece amplo e seguro tratamento devendo assinalar-se, por exemplo, o aspecto comunitário de uma filosofia que é entendida como eclodindo em reuniões, mais ou menos abertas, e que criavam um campo ideal de liberdade pensante num contexto institucional pouco propício a inovações pedagógicas ou experiências ensinantes de novo tipo;
Por outro lado, atente-se ao modo como eram estas reuniões presididas por um grande e inspirado orador dotado de grande rasgo raciocinante e fulgor discursivo – José Marinho; e por uma outra figura tutelar que, discreta e subtilmente, orientava os discípulos mediante silêncios e metáforas ou aguardando momentos oportunos onde intercedia de forma pessoal e secreta – Álvaro Ribeiro. Nesta dualidade magistral muito se decidia;
Acrescente-se, em terceiro lugar, que apesar do cariz independente e não oficial deste movimento que viveu como tertúlia mas também como escola, logrou-se realizar uma intervenção cultural pública notória;
Por último, aponte-se que a reflexão de Álvaro Ribeiro sobre o clássico problema do ensino da filosofia, a que se dedica de forma sistemática, é inseparável da sua proposta de reactualização de uma tradição filosófica nacional. Neste como noutros tópicos, a reflexão de Álvaro estava em diálogo com a teorização de José Marinho, que ao mesmo tema dedicará a obra Filosofia, Ensino ou Iniciação? Publicada em 1972, pela Fundação Calouste Gulbenkian, cenário onde Telmo situa um dos seus contos secretos, relembrando não só dados pessoais da vida de ambos como fragmentos de ditos orais de Marinho. A valorização da oralidade é, aliás, outra das características que estatuem a originalidade deste movimento, na sua dupla e mista dimensão de transmissão discipular directa, vertical, e de conversabilidade, horizontal dialogia.
No momento em que estes Cadernos se detêm sobre o oportuno tema das confluências, entendido este conceito como designando a convivial relação de ressonância pensante havida entre aqueles que se designaram ou foram designados como mestres, discípulos e condiscípulos, haveria que conceptualizar, questionar e esmiuçar a problematização do que seja este magistério, correlato ou contrapolar daquele discipulato. Ainda que agora não seja o momento de o fazer, concedamo-nos, pelo menos, recuar a Platão e às suas aporias sobre a ensinabilidade da filosofia, aliás, bem meditadas por António Telmo, seguindo a lição de Álvaro Ribeiro, e expressas em diversos, ainda que parcos e crípticos, comentários ao Crátilo, ao Filebo ou ao Ménon. E está por aferir e explanar de forma exaustiva a presença de Platão na tradição da filosofia portuguesa, de Sampaio Bruno a José Marinho e de Leonardo Coimbra a Agostinho da Silva.
O movimento cultural de que Telmo como um elo nos surge afasta-se do sentido habitual do exercício da razão filosófica, na medida em que assume nexos com outras instâncias mentais e por isso se manifesta em disciplinas também outras, conforme Ribeiro nos adverte:
A razão, por si só, não é inventiva ou criativa. O mestre é senhor de segredos que só revelará aos iniciandos e aos iniciados. Situado no seu quadro sacerdotal, Pitágoras figura evidentemente como o precursor de Platão, filósofo capaz de ver para além do visível[3].
Isto é, se a imaginação e a intuição são valorizadas como faculdades apreensivas, ou de outro modo dotadas de potencialidade gnósica, assumindo que incidem sobre uma realidade intermediária, entre o mundo sensível e o inteligível, será necessário conferir à filosofia âmbito mais amplo que a circunscrição lógico-gnosiológica a que costumeiramente se restringe, auto-reduz ou é constrangida. Neste sentido, a par deste pressuposto, o labor de leitura que caracteriza o exercício exegético, tantas vezes presa de estudos culturais dissolventemente desligados de adequada fundamentação filosófica, é aqui assumido como propiciatório de uma postura hermenêutica aberta ao mistério.
A importância que Álvaro Ribeiro atribuía à reflexão sobre estes temas fica expressa, por exemplo, em carta a Telmo de 30 de Março de 1971[4], onde promete publicar um escrito de ocasião fogoso e piramidal, um protesto contra o mal que se diz na imprensa sobre ensino exotérico e esotérico. Tal escrito surge aí planeado como um opúsculo que, significativamente, se deveria intitular mestrado e magistério.
Com esse preciso título não terá publicado esse trabalho, ao que julgamos saber, mas aferimos o cuidado com que o mestre declarado do discípulo assumido tratou a questão do ensino da filosofia, teorizando-a simultaneamente como uma disciplina cultural: um acervo dado, feito e aprofundável (segundo regras bem explanadas de um trívio e quadrívio redidivos e reinventados), mas também como uma arte a cultuar. Uma arte sempre im-perfeita, isto é, nunca já-dada mas sempre por-fazer e actualizar, arte que nos faz no momento mesmo em que a fazemos, participando de um património tradicional que nos constrói na hora em que a ele acedemos, segundo uma relação dialéctica. Isto é: aparentemente diádica, mas circular; tensional, mas motriz; dinâmica e ininterrupta em ordem a um ascensional movimento perpétuo.
A este propósito não podemos deixar de citar a já referida obra de José Marinho, imaginando-o, a ler em voz alta o seguinte passo a António Telmo:
Importa (…) sugerir a relação de pedagogia, paideia e anagogia, com magistério iniciático, educação e ensino.
A primeira via é ascendente, descendente a segunda. Não é fácil, porém, determinar o ajustamento e correspondência dos respectivos estádios. Resulta a dificuldade de a via ascendente ter mais possibilidades de determinação filosófica, sendo mais propriamente uma via de razão, não perturbada pela acidentalidade das relações humanas, objectivos sociais e programas. A pedagogia será o estádio da razão indiferenciada, a paideia, da razão diferenciada, a anagogia, da razão sublimada. Assim se explicaria que as múltiplas formas do saber não cientifico, saber poético, ou mítico-poético, as artes em geral, a mística, a religião nas suas diferentes formas, e ainda em muitos casos as que se consideram vulgares ou supersticiosas, possam ter sentido e valor anagógico ali e onde o saber da razão razoável se detém. Admitimos assim que pode haver mais fecundo saber anagógico na mãe que ensina o seu filho, do que em tantas formas de filosofia estritamente lógica ou lógico-empírica[5].
II
No sentido do que vimos dizendo, ouçamos o próprio António Telmo, no epílogo do seu trabalho dedicado às tradições heterodoxas da filosofia portuguesa, e vejamos o modo como tudo o que até aqui foi dito se concretiza:
Álvaro Ribeiro deu Sampaio Bruno como o fundador do movimento e acabou por revelar que a Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde foi discípulo de Leonardo Coimbra, Teixeira Rego e Aarão de Lacerda, constituiu “o exemplo de como uma sociedade secreta pode funcionar aberta ao público”. Não se deve falar de “filosofia portuguesa” sem ter absolutamente em conta o conceito que dela formou o seu criador. Álvaro Ribeiro foi o nosso último filósofo; depois dele, a filosofia que criou tornou-se uma “coisa pública”, sujeita às vicissitudes sociais. Tudo depende agora de Hermes. José Marinho nos últimos meses de vida, costumava dizer: “Tudo já foi pensado; agora só precisamos de hermeneutas.”[6]
O texto que foi citado conclui uma longa apresentação de uma figura de seis vértices que correspondem a Leonardo Coimbra, Fernando Pessoa, José Régio, Álvaro Ribeiro, José Marinho e Teixeira de Pascoaes em cujo centro se encontrariam Sampaio Bruno e Guierra Junqueiro. O que aqui chamamos a atenção é que Teixeira Rego não consta como um dos vértices desta ogdoada que figura os oito medianeiros da humanidade portuguesa, peninsular, euro-africana com o sobrenatural[7].
Este mestre de Agostinho da Silva (que chega a afirmar ser dele mais próximo que de Leonardo), de Álvaro Ribeiro e José Marinho, mereceu de António Telmo leitura atenta e olhar decifrante, explicitada em dois momentos bem marcados. Vejamos. Em 1955, publica António Telmo um longo e denso artigo[8], cujas últimas e conclusivas palavras qualificam o autor de Nova Teoria do Sacrifício de filólogo esquecido e filósofo desconhecido que urgiria memorar e compreender. A sua teoria explicita que a origem do estado humano actual radicaria na experiência traumática da mudança de alimentação, do regime frugívoro para o carnívoro, a qual seria rememorada por lendas e mitos de todo o mundo que fazem corresponder à ingestão de um alimento a queda de uma condição humanal anterior e superior decaída naquele conjunto de caracteres que definem a humanidade actual.
No seu artigo, Telmo prefere apontar para a existência de uma teorização (ainda que apenas implicitamente formulada) da renascença na obra de Teixeira Rego, que funcionaria como contraponto especulativo das tomadas de posição poético-doutrinárias de Pessoa e Pascoaes. Apesar do seu trabalho ser eminentemente erudito e de escopo etnográfico, a sua concepção seria tanto mais importante por, parecendo centrar-se no problema do mal, da sua origem e fim, afinal visar o renascimento do homem, ou a recuperação de capacidades julgadas perdidas. Telmo faria assim justiça à afirmação do autor que via na sua Nova Teoria apenas uma base preparatória de um futuro sistema filosófico. Telmo procura então defender o autor das simplificações que o qualificavam como um positivista, rigorosamente o qualificando de materialista, mas apenas na medida em que, preocupado em descobrir os segredos da matéria visava alcançá-la no grau em que já não aparece como sinal negativo de Deus; é neste sentido que se compreende a sua oposição à metafísica tradicional, não sendo todavia possível qualificá-lo como ateu, não só por Rego se auto-definir como agnóstico, mas por afirmar a origem metapsíquica das religiões, firmadas em experiências já não (imediatamente) acessíveis ao homem actual.
Raciocinando por analogia, e vendo a geração da Águia, de algum modo como o renascimento da geração de 70, Álvaro Ribeiro compara Leonardo Coimbra a Antero de Quental e Teixeira Rego a Teófilo Braga:
De Leonardo Coimbra se poderia dizer o que foi dito de Antero de Quental, a saber que a acção comunicativa da sua palavra filosófica parecia ter o condão de abrir a inteligência de quantos o ouviam, como se também fossem como o poeta homens superiores. Mas se o grupo dos colaboradores de A Águia tinha o seu Antero de Quental, também era dotado do seu Teófilo Braga, pois seja dito que a erudição séria, exacta e ampla do professor Teixeira Rego fazia o contraponto grave, terrestre e humano de todas as investigações tendentes para uma conclusão angélica ou divina.
Leonardo Coimbra acusava Teixeira Rego de “amar mais a hipótese do que a verdade”. Em suas lições de filologia portuguesa, o autor de Estudos e Controvérsias fazia nítida distinção entre as leis fonéticas e as leis gramaticais, ou gráficas, na intenção de explicar o fenómeno literário ou poético. Aludia depois às regras elementares da cabala, compendiadas nos capítulos de nomes singulares como Guematria, Notaria e Themuria.
O ilustre professor acreditava no sopro benéfico ou maléfico que da ordem sobrenatural desce à ordem natural, e admitia a inspiração na origem das obras dos génios. Deste modo aventava hipóteses temerárias sobre os relatos da Bíblia, que, no seu dizer autorizado de hebraísta e helenista, provinham de permutações das letras e das sílabas[9].
Álvaro Ribeiro acabou de nos informar que, apesar de se estatuir como elemento contrapolar de Leonardo Coimbra (apresentado como metafísico cujas investigações tendiam para conclusões divinas) assim preparando os discípulos de ambos para a alta compreensão do que sejam opostos especulativos, foi Teixeira Rego quem os iniciou nas regras da cabala. Além disso, apesar do seu pendor grave, terrestre e humano, o seu interesse era todo para os temas da tradição mito-poética universal, assumindo a tradução e a interpretação como modos por excelência de humanização do homem, e crendo na intervenção de elementos superiores na evolução histórica, de ordem ainda incompreendida.
Álvaro Ribeiro continua sua recordação dos tempos em que assistia às conversas entre os dois sábios, confessando a sua juvenil perplexidade não só quanto à diversidade das suas opiniões, mas também perante as aparentes contradições em que por vezes pareciam incorrer:
Causava-me surpresa, espanto e até indignação observar que cada um daqueles intelectuais, tão coerentes no pensamento artístico e político que haviam exposto nos seus livros, formulassem por vezes paralogismos, paradoxos e opiniões aberrantes só para terem ocasião de elevar o “verbo escuro” a uma luz que o tornasse fogoso e brilhante. As contradições licenciosas cruzavam-se no ar com os mais estranhos absurdos.
É notável que tanto Agostinho da Silva como José Marinho admitam a importância do influxo de Teixeira Rego na formulação dos seus pensamentos próprios. E sublinham que tal influxo confluiu com outros para se manifestar. O seu alto contributo é ainda maior quando visto no quadro contextual que o ampara e confere sentido. Álvaro Ribeiro atribui a Teixeira Rego o alto mérito formativo de o levar a adiar o juízo e a suspender conclusões: a partir daí seria necessário não recuar ante paralogismos, não excluir aparentes contradições nem fugir de paradoxos ou filosofias extravagantes. Algum sentido figurado ali deveria estar insinuado e importaria desocultá-lo e decifrá-lo. Foi a partir desta escola de contrapontos que pôde progredir da matemática para a poesia, segundo a injunção leonardina.
É denso e rico o longo trecho memorial que acabámos de citar, mas talvez ele nos ajude a compreender o tom algo áspero de Telmo em artigo que, sendo dedicado à Obra de Pinharanda Gomes, muito se debruça sobre Teixeira Rego, por se centrar no importante estudo que aquele lhe dedicou:
Não se vê pela leitura do livro de Pinharanda Gomes sobre Teixeira Rego se o biógrafo aceita ou não a doutrina do biografado sobre as origens da humanidade. Deve, porém, tê-lo seduzido pelo que nela se envolve da doutrina de Moisés no Génesis. Teixeira Rego situa o antropóide, que descreve coberto de pêlos, feliz entre os outros animais e fruindo dos frutos, no centro do Paraíso. A descrição do homem primitivo não condiz, como se vê, com a de um homem feito à imagem e semelhança de Deus. Uma trapalhada, em que se enreda o seu pensamento e o do seu biógrafo.
Pior do que isto é quando vem dizer-nos que o antropóide perdeu o estado paradisíaco em que vivia por ter cometido um crime horrível, o de ter morto um animal e comido a sua carne. A palavra que, no Génesis, as traduções dizem designar a maçã significa de facto carne. Em consequência deste acto, caem-lhe os pêlos, transforma-se num homem mais à nossa imagem e semelhança e, de frugívoro que era, passa a carnívoro.
O desejo de se querer conciliar o ensino bíblico com o ensino científico, neste caso com o evolucionismo materialista, leva forçosamente a estes disparates[10]
Parecendo ironizar com a posição de Teixeira Rego, na verdade Telmo reitera aqui certos pontos capitais do seu próprio pensamento, deixando no entanto ao leitor o trabalho de o esclarecer e explicitar totalmente. Telmo parece ter-se servido deste pretexto para alertar para os perigos da confusão entre planos de realidade e níveis de significação (do histórico ao alegórico; do erudito, exegeticamente explanado, ao sapiencial só de forma a-racional vislumbrável) e para a necessidade de, tratando de certos autores, manter cautelas interpretativas redobradas, evitando literalismos e precipitações. Recordemos as já citadas Notas sobre Teixeira Rego em que fortemente se valorizava a teoria filosófica do renascimento ainda que ela estivesse apenas implicitamente presente no seu estudo sobre o mito da queda e do pecado original. E o mesmo tema é aqui aflorado, agora em clave interrogativa:
Só há religião por ser necessário re-ligar algo que se cindiu. Mas, no passar do antropóide ao selvagem e do selvagem ao homem, cindiu-se alguma coisa do divino? A Religião é uma Renascença, um nascer de novo em quê? No antropóide?[11]
Mais que uma mudança de perspectiva sobre Teixeira Rego, quase cinquenta anos depois de sobre ele ter escrito o incisivo ensaio a que aludimos, preferimos sublinhar a constância temática da obra de Telmo, pautada pelo prolongado olhar para uma mesma estrela, deixando sinais aos vindouros, e nunca deixando de lembrar os mestres ou, melhor ainda, o que deles foi ficando para que possamos nós agora enfrentar a noite do mundo e prosseguir a demanda. Numa entrevista intitulada “Pensar o Irracional”[12], pedindo-lhe que comentasse uma sua expressão literária de um desejo de renascer, Telmo relembra que
na tradição esotérica do Cristianismo, e não só do Cristianismo, o que conta é a doutrina de que nós somos seres decaídos, em virtude de um mistério tremendo que não se sabe o que seja, a que chamam o pecado original e que eu penso terá sido o aparecimento da antropofagia. Mas isso é apenas uma conjectura. E então nós nascemos para esta vida, mas é como se morrêssemos (…).
Quando, perante qualquer fenómeno, acontecimento, pessoa ou estado de alma, sentimos que está ali qualquer coisa enigmática, que nós não sabemos o que é, e que temos a sensação desse enigma, então isso para mim é que é o saber, o saber autêntico, ou o princípio do saber, que é o que ensinam Platão e Aristóteles. (…) É o que eu digo… não sei como, começo a saber qualquer coisa disso. Mas isso é intransmissível, não é?
[1] Expressão de Álvaro Ribeiro, recordando um dito de Leonardo Coimbra sobre Teixeira Rego, adiante reproduzido no seu contexto.
[2] Expressão de António Telmo sobre Teixeira Rego, adiante retomada.
[3] Álvaro Ribeiro, Memórias de um Letrado, Lisboa, Guimarães editores, 1977, volume 1, pp. 34-35.
[4] Recentemente divulgada por estes mesmos Cadernos no volume Interiores, pp. 133-134.
[5] José Marinho, Filosofia / Ensino ou Iniciação?, Lisboa, Instituto Gulbenkian de Ciência - Centro de Investigação Pedagógica, FCG, 1972, página 103, nota 3.
[6] António Telmo, Filosofia e Kabbalah, Lisboa, Guimarães Editores, 1989, pp. 97-98.
[7] Filosofia e Kabbalah, p. 84
[8] “Notas sobre Teixeira Rego” in Diário de Noticias, ano 91º, nº32185, Lisboa, 29 setembro de 1955, pp. 7 e 6.
[9] Álvaro Ribeiro, Memórias de um Letrado, Lisboa, Guimarães editores, 1977, volume 1, pp. 55-57.
[10] Referimo-nos ao artigo de António Telmo “Pinharanda Gomes – O Filósofo Autodidacta” (incluído em O Pensamento e a Obra de Pinharanda Gomes, Lisboa, Fundação Lusíada, 2004, pp. 193-200). Grande parte do artigo centra-se no facto de P. Gomes ser autor do importante volume: A Renascença Portuguesa: Teixeira Rego, Lisboa, ICLP, 1984.
[11] Op. cit. p. 195.
[12] Entrevista concedida a Américo Rodrigues em Praça Velha, nº 16, Guarda, 2004, reproduzida no volume destes Cadernos dedicado a António Telmo pp. 12-22. V. esp. p.13.
DOS LIVROS. 21
09-10-2014 16:03ÁLVARO RIBEIRO, 33 ANOS DEPOIS
Oarística
“Cada idioma é um órgão invisível que pode ser configurado mediante sinais gráficos e tipográficos, mas que exerce também funções indiscerníveis pela análise literal ou gramatical. No âmbito de cada idioma vão dialogando os seres humanos, e realizam conhecimento ou ciência, na medida em que continuam a relação de espírito a espírito. Fácil será inferir, portanto, que o diálogo mais profundo, de maior alcance gnósico, sófico e pístico, tem a designação clássica de oaristo.”
A palavra oaristo deriva de oar, termo grego para companheira e para esposa, correspondente ao latino soror. Significa, pois, conversa íntima do homem com a mulher. Sendo que língua é o mesmo que diálogo e dado que o diálogo de maior alcance gnósico, sófico e pístico, mais profundo, é o oaristo, à linguística de Álvaro Ribeiro devemos dar o nome de oarística, fazendo coincidir no neologismo o conceito e a assonância de heurística, termo que designa a arte de encontrar, procurando.
Tudo está orientado, no domínio do aperfeiçoamento da linguagem, segundo duas linhas de educação, a masculina e a feminina, para o supremo acto de conhecimento que é o encontro do homem com a mulher. A identificação do acto sexual com o conhecimento (“E Adão conheceu Eva”), própria da Cabala, não deve deixar-nos julgar que a distinção de sexos é apenas física. Quando se diz ou escreve “acto sexual”, há que imaginar uma relação em que as almas também são sexuadas e só isso permite identificá-lo com o conhecimento. A carne é o envolvimento, a manifestação ou, talvez, a projecção no plano natural de uma alma sexuada e os órgãos de criação também são psíquicos. Analogia activa ou dado da observação profunda, isto explicará, do ponto de vista oarístico, a afirmação de que “cada idioma é um órgão invisível”, em cujo âmbito “vão dialogando os seres humanos”; vão dialogando, “e realizam conhecimento ou ciência, na medida em que continuam a relação de espírito a espírito “.
As almas encarnadas ou as “razões animadas” (“a razão é o espírito do homem”) buscam-se atraídas pelo amor, mas para se encontrarem na mais elevada e profunda comunicação é necessário que a língua não funcione como obstáculo, degradando o pensamento, para que o diálogo assuma a dignidade de relação sexual superior. Daqui o imperativo de uma educação linguística para o rapaz e para a rapariga, diferenciada até à puberdade, a necessidade de que o ensino seja uma oarística.
As doutrinas que explicam a existência de línguas como o resultado de uma evolução animal do grito ou do gemido para a palavra, do desejo para a razão, foram completamente destroçadas pela linguística do século XX. Álvaro Ribeiro teve de mostrar e demonstrar que a língua é um órgão invisível, um órgão do espírito. As palavras que os amantes trocam não são o acompanhamento dispensável de um acto puramente animal.
A língua portuguesa, por ser aquela em que escrevia, pensava, conversava e orava, por ser a língua que a mãe lhe ensinou, aparecia a Álvaro Ribeiro como um perpétuo socorro e é fácil avaliar a repulsa que sentia pela doutrinação gnóstica contra toda a palavra e todo o pensamento, dados nela por impedimentos ao conhecimento que identifica com o inefável. Imagine-se um mundo em que a palavra está ausente, um mundo sem logos, extático na contemplação abismática do próprio não-ser e que, subitamente, no grande silêncio cristalizado, uma palavra soa e mesmo que tenha apenas quatro letras como a palavra Deus eis que tudo estremece e se agita, despertando do sonho para o movimento, da estagnação sublime para a acção criadora.
A oarística estuda os movimentos pelos quais os fonemas, as palavras e as frases atraem o pensamento durante o diálogo entre o homem e a mulher. Neste sentido, constitui-se na forma que a linguística do século XX recebe, quando a estudamos à luz da doutrina cabalista do amor. É possível este desenvolvimento porque o estruturalismo deve ser interpretado como uma adaptação da Cabala às exigências científicas dos anos em que foram publicados o Curso Geral de Linguística de Ferdinand Saussure e o livro sobre A Linguagem de Eduardo Sapir. Não é porque os linguistas mais famosos que desenvolveram e aplicaram os princípios dos dois fundadores do estruturalismo em linguística, como Roman Jacobson, Noam Chomsky, Benjamim Lee-Worf e Emílio Benveniste, tenham nomes judaicos. O modelo dado pela estrutura das sephiras é a forma ideal para que tendem as várias interpretações da fonética, da morfologia e da sintaxe, mas no modo como relacionam língua e pensamento, modo que vai até à identificação, devemos ver a reacção da Cabala recuperando-se da derrota que sofreu da linguística alemã, dominadora de todo o século XIX.
Com efeito, o descobrimento do sânscrito constituiu o instrumento indispensável para estabelecer a Gramática Comparada das línguas indo-germânicas, para abrir um abismo entre as línguas europeias e as línguas semitas e para substituir o mito cabalista do hebraico como língua primordial pelo mito pseudo-científico do indo-europeu. Ao mesmo tempo, foi fundada a Fonética em termos tais que por completo ficaram desacreditados os métodos da Themuria, da Notaria e da Guematria. Trataram Franz Bopp, os Schelegel e os Grim de mostrar que somente os fonemas, pela sua materialidade separável da significação e do pensamento, constituem o fenómeno linguístico, só eles podem constituir o objecto de um estudo rigorosamente científico. Para tanto, havia que os considerar em completa independência das letras ou gramas que os significam. A sintaxe, que relaciona forçosamente a língua com o pensamento, quase foi esquecida durante todo o século XIX.
Eduardo Sapir, fundador com Ferdinand Saussure do estruturalismo em linguística, leva até à evidência o facto de que as próprias interjeições e onomatopeias não podem ser explicadas como a expressão de reacções instintivas, mas, como verificamos pela comparação das diversas formas nas diversas línguas da mesma interjeição ou da mesma onomatopeia, são verdadeiras criações artísticas do génio fonético que as compõe em harmonia com um grande conjunto, em que tudo joga entre si, no grande e no pequeno. Mas Álvaro Ribeiro preferiu utilizar o argumento do mesmo linguista, destinado a mostrar que “a linguagem é um sistema funcional completo que pertence à constituição psíquica ou espiritual do homem”. Esse argumento é o seguinte : “Não há, a rigor, órgãos da fala. Há, apenas, órgãos que são incidentalmente utilizados para a produção da fala. Os pulmões, a laringe, a abóbada palatina, o nariz, a língua, os dentes e os lábios servem todos para esse fim ; mas não podem ser considerados órgãos primordiais da fala, do mesmo modo que os dedos não são órgãos de tocar piano nem os joelhos órgãos da genuflexão religiosa”. No desenvolvimento, Eduardo Sapir rebate a tese dos psicofisiologistas que defende a localização da fala no cérebro.
D’A Arte de Filosofar até às Memórias de um Letrado vão vinte e cinco anos. Nos dois livros, a refutação por Bergson da tese que localiza no cérebro o órgão da fala e o órgão do pensamento se segue à menção do argumento de Sapir. O cérebro é um órgão de acção, de atenção à vida, de escolha de direcções activas para imagens e palavras sem lugar físico. Nenhum cientista sério, observa o filósofo citando Ombredanne, aceita hoje a teoria da localização cerebral das palavras. O pensamento é uma actividade invisível que se incorpora em palavras, por um processo análogo ao descrito na Carta sobre a Santidade para a formação do sémen.
Língua é o mesmo que diálogo ; o que nos engana é o prestígio do monólogo e do monoideismo, possíveis porque há sempre outro imaginado em nós mesmos, e é essa a razão porque o lirismo no plano mental e o narcisismo no plano físico são possíveis. A moderna linguística, ao centrar o acto de comunicação na relação de um emissor com um receptor pela mensagem, e ao determinar em que condições a fonética, a morfologia e a sintaxe tornam possível esse acto, pôs o fundamento sobre o qual Álvaro Ribeiro estabeleceu a sua oarística. Sendo, pois, o diálogo uma relação de espírito a espírito, até quando o homem parece falar só, as doutrinas gnósticas que desvalorizam a palavra, julgando-a impeditiva com o pensamento que transporta e movimenta, da união inefável com que identificam o conhecimento, actuam como um obstáculo ao progresso da filosofia na república dos homens.
Língua e diálogo são o mesmo. Fora da relação de espírito a espírito não há língua, mas, diz-nos Álvaro Ribeiro, se os animais falassem diriam o mesmo que dizem os homens que comunicam entre si diariamente. Diálogo não é, pois, o mesmo que comunicação. Se o acto linguístico é, como o determina a moderna linguística, a relação de um emissor e de um receptor pela mensagem, a qualidade desta é que decide de tudo e tal qualidade é a resultante do encontro de dois verdadeiros espíritos. Por isso mesmo, o oaristo é o diálogo mais profundo, de maior alcance gnósico, sófico e pístico. Por isso mesmo, isto é, porque na conversa íntima entre o homem e a mulher há todas as condições para tornar actual o amor.
António Telmo
(Publicado em Viagem a Granada, 2005)
DOS LIVROS. 20
08-10-2014 09:43Pinharanda Gomes, o Filósofo Autodidacta
«Há, para além do natural e do social, do herdado e do partilhado, um jardim secreto onde ninguém entra, a não ser o próprio homem. Mesmo em Igreja, cada homem tem um modo de dialogar com o seu Deus, onde a igreja não entra: o fiel tem a sua vida de comunidade eclesial, onde a igreja entra e ensina; mas há, no íntimo do homem, um local onde só ele e Deus sabem o que importa. É a vida pessoal inalienável. É o miolo do sobrenatural»
Pinharanda Gomes
O Filósofo Autodidacta do andaluz Abuchafar Abentofail é a história de Hay Benyocdan, o misterioso mestre de Avicena, contada aqui como a de um homem abandonado, após ter nascido, numa ilha deserta de outros homens, cujo espírito atingiu os mais altos conhecimentos especulativos, tendo por primeira e única mestra a gazela que o amamentou. No plano do conhecimento instrumental, o seu itinerário foi em tudo semelhante ao que arqueólogos e historiadores imaginaram para a humanidade: progressiva entrada na civilização por sucessivos aperfeiçoamentos da adaptação ao meio, passando pelas fases que o raciocínio deduz para que a investigação no terreno as confirme. Há só uma diferença: a criança era de ascendência régia, se não divina, inconfundível com o antropóide imaginado pela arqueologia por evolução da matéria.
Teixeira Rego era um autodidacta como autodidacta é Pinharanda Gomes, que o biografou. Causou escândalo nos meios universitários coimbrões ter sido posto por Leonardo Coimbra na Faculdade de Letras da Universidade do Porto a ensinar algumas disciplinas fundamentais. Do ponto de vista universitário, um autodidacta é um analfabeto. Pinharanda Gomes nunca foi chamado a ensinar na Universidade, nem até na Universidade Católica, apesar da sua perfeita ortodoxia e da sua obra monumental. Também é certo que, na Universidade actual, não há nenhum Leonardo Coimbra.
O homem primitivo foi também imaginado por Teixeira Rego como um autodidacta. Aprendeu tudo por si próprio, até o falar, reagindo ao meio e reflectindo. Tivemos que esperar muitos milénios até que viesse a fundar a Universidade e a tornar-se um inimigo dos autodidactas, isto é, de si próprio. Todavia, pelo caminho que assim tomou, parece que se impediu, como veremos, de atingir conhecimentos tão altos como os de Hay Benyocdan.
Não se vê, pela leitura do livro de Pinharanda Gomes sobre Teixeira Rego, se o biógrafo aceita ou não a doutrina do biografado sobre as origens da humanidade. Deve, porém, tê-lo seduzido pelo que nela se envolve da doutrina de Moisés no Génesis. Teixeira Rego situa o antropóide, que descreve coberto de pêlos, feliz entre os outros animais e fruindo dos frutos, no centro do Paraíso. A descrição do homem primitivo não condiz, como se vê, com a de um homem feito à imagem e semelhança de Deus. Uma trapalhada, em que se enreda o seu pensamento e o do seu biógrafo.
Pior do que isto é quando vem dizer-nos que o antropóide perdeu o estado paradisíaco em que vivia por ter cometido um crime horrível, o de ter morto um animal e comido a sua carne. A palavra que, no Génesis, as traduções dizem designar a maçã significa de facto carne. Em consequência deste acto, caem-lhe os pêlos, transforma-se num homem mais à nossa imagem e semelhança e, de frugívoro que era, passa a carnívoro.
O desejo de se querer conciliar o ensino bíblico com o ensino científico, neste caso com o evolucionismo materialista, leva forçosamente a estes disparates. Pinharanda Gomes, enquanto expunha a doutrina de Teixeira Rego, deve ter pensado em Teillard de Chardin, pois não reagiu opondo-lhe qualquer objecção:
«O aparecimento da Nova Teoria do Sacrifício provocou surpresa e originais comentários. Basílio Teles, em seu rigorismo ascético, mostrava dificuldade em entender o emaranhado da floresta de enganos em que o amigo se metera. Bruno, afoito mas precavido, numa fase de ascensão para a ideia de Deus em sua transcendente pureza, evitou dar parecer, por andar molestado. Teófilo Braga, em seu positivismo, adianta que Teixeira Rego deveria ter descrito as três fases nutritivas da Religião: o mito do Éden, ou religião ctoniana; o mito da Serpente, ou o rio gelado; e o mito do Fruto Perdido (sic), ou da bebida fermentada. Não tinha que fazer isso, o autor do livro, para quem a Religião só surgiu após o Pecado Original, sendo, por isso, uma das provas da queda. Segundo a lógica, Rego estava mais certo do que Teófilo: só há Religião por ser necessário re-ligar algo que se cindiu. Só há Renascença por importar nascer de novo.»
Será isso. Só há religião por ser necessário re-ligar algo que se cindiu. Mas, no passar do antropóide ao selvagem e do selvagem ao homem, cindiu-se alguma coisa do divino? A Religião é uma Renascença, um nascer de novo em quê? No antropóide?
Terá reparado Pinharanda Gomes num dos textos de Teixeira Rego que escolheu para figurar no fim do livro, onde ele chama a atenção para “a serpente e esse alimento proibido que foi a causa da civilização e da ciência, esse alimento que foi a origem de todo o mal mas que foi também a origem de todo o bem”? E, se reparou, terá recordado ao mesmo tempo as palavras de Jesus Cristo no Evangelho aos discípulos, “sois Deuses”, que repetem as palavras da serpente no Paraíso?
Não podemos saber se reparou, porque os autodidactas, crescendo e aprendendo sozinhos na sua ilha, têm segredos. É pena, porém, que não tenha explicado melhor o silêncio de Sampaio Bruno sobre o livro do “discípulo amado”. “A ideia de Deus em sua transcendente pureza” era assim tão oposta ao mistério redentor da Encarnação que levasse o filósofo a preferir calar-se, “por andar molestado”, a ter de dizer “não” a uma doutrina que punha nocomer carne a origem de todo o mal e de todo o bem?
Teixeira Rego exerce sobre Pinharanda Gomes um fascínio irresistível. Sente-se irmanado com ele no seu autodidactismo. Protesta. Diz que Teixeira Rego não foi um autodidacta. Teve como mestres Basílio Teles e Sampaio Bruno, assim como ele, Pinharanda Gomes, teve Álvaro Ribeiro e José Marinho… e a Igreja, onde floresceu o seu espírito à semelhança do de Hay Benyocdan naquela ilha paradisíaca donde não precisou de sair para conhecer todo o Universo e, através dele, Deus.
Protesta e tem razão para protestar. No domínio da cultura exterior ao mistério, não há autodidactas. Isso é o que nos querem fazer acreditar instituições que, por fortes e legítimas razões do Estado, têm o monopólio do ensino, no direito que têm de só elas poderem conferir diplomas.
Se tivéssemos de considerar autodidactas Teixeira Rego e, com ele, nobilíssimos espíritos como Eudoro de Sousa e Amorim de Carvalho e tantos mais, porque não passaram da instrução primária ou de alguns anos do Liceu, não obstante terem escrito magníficos livros, então teríamos de aplicar igual critério a todos os escritores. Não se ensina nas Faculdades de Letras para fazer poetas, dramaturgos, filósofos, mas professores e bibliotecários. Ninguém é preso por se apresentar como escritor, mas pode sê-lo se exercer a medicina ou o magistério sem diploma. Ou sê-lo-á um dia?
Houve, porém, uma excepção: a Faculdade de Letras de Leonardo Coimbra. Ali se fizeram escritores filósofos; ali se ensinava, não para que o aluno obtivesse licença para ganhar dinheiro, mas para que pudesse vir a compreender o grande mistério do homem, do mundo e de Deus. Por isso mesmo a calaram. Agostinho da Silva, Sant’Anna Dionísio, Casais Monteiro, Eugénio Aresta, José Marinho, Álvaro Ribeiro ali nasceram de novo. E não foi Pinharanda Gomes discípulo dos dois últimos e, portanto, não se formou, através deles, na gloriosa Escola de Leonardo Coimbra?
Pinharanda Gomes protesta, mas sabe que isso não é o essencial. Ele sabe que o essencial é ser um perfeito autodidacta, isto é, um homem capaz de pensar por si próprio, mesmo quando ensinado por outros, mesmo quando esses outros são Álvaro Ribeiro, José Marinho ou Orlando Vitorino. Como Hay Benyocdan, aquilo que sempre fez e faz é procurar o segredo de salvar a sua própria existência e a dos outros pelo que aprende na sua ilha, orando e interrogando, na sua ilha que, para ele, tem sido a Igreja, cercada pelo mar revolto da humanidade inquieta, onde se viu estar após ter nascido. No andaluz, a ilha é a cifra de um centro iniciático, não de uma organização religiosa, mas de algo que lhe anda intimamente ligado.
E é pelo que nela vê e aprende que se pôs a estudar Teixeira Rego e outros muitos. Tudo ali está porque não conhece mais nada nem precisa de conhecer. A filosofia portuguesa que tanto ama aparece-lhe como uma árvore gigantesca no centro da ilha, mas desgarrada. Avistam-se barcos à deriva, feitos da madeira que os ventos da heresia lhe arrancaram. Sulcam o grande mar da humanidade portuguesa, uns mais próximos, outros mais distantes. Teixeira Rego é um desses barcos. Buscam, em vão, outros portos onde possam atracar. O mais belo de todos, o de Leonardo Coimbra, andou sempre próximo, temendo rochedos e feras para atracar. Um dia, o timoneiro teve a coragem de desembarcar e descobriu que onde havia feras e rochedos estava o Paraíso.
É assim que Teixeira Rego lhe aparece como um católico que se ignora e por isso se diz agnóstico, como alguém que vive fascinado pelo Mistério da Encarnação, de Deus envolvido connosco, e que procura entendê-lo pelo espiritismo, pelo ocultismo, pela teosofia, por tudo quanto lhe proporcione explicar a misteriosa relação do espírito com a matéria. Pinharanda não gosta dos maniqueus, que põem uma espada flamejante entre os dois, deixando a pobre matéria abandonada, sem socorro, consumindo-se no seu exílio de Deus. Não é exílio uma palavra que significa fora da ilha? E não sabemos já o que é a ilha para o nosso filósofo autodidacta?
O regresso de Leonardo Coimbra à Igreja foi tardio. Álvaro Ribeiro, que o conhecia bem, comparou um dia o itinerário espiritual do mestre ao de Huysmans que passou pelo ocultismo, pela teosofia, pela cabala antes de se converter. Mas não foi só Leonardo a cultivar as ciências proibidas. Já o vimos para Teixeira Rego. Pascoaes terá percorrido caminhos análogos. O que é espantoso observar é que, entre os homens da Renascença, os dois que mais parecem ligados ao ocultismo, Sampaio Bruno e Fernando Pessoa, são os únicos que o refutaram.
Sampaio Bruno, para quem a existência e a intervenção dos anjos são factos positivos, não gosta do espiritismo que denuncia como uma prática grosseira geradora de sombrias miragens, troça de Papus, repele o lema idealista da analogia do microcosmos com o macrocosmos, considera ilegítima e ímpia a sistematização matemático-cabalista de Wronski; Fernando Pessoa, que só admira Sampaio Bruno entre os seus contemporâneos, segue-o no trilho, atacando espiritistas, ocultistas e maçons menores.
Os dois, e também Teixeira de Pascoaes, sabiam que é no mundo intermediário que tudo se decide, mas que a maioria das suas manifestações não ajudam o homem. Sabiam, sobretudo, que não está lá quem decide. Por não saber isto ou não querer sabê-lo, Teixeira Rego mete-se “no emaranhado de uma floresta de enganos”, entrelaçando ciência da época e ocultismo. O materialismo, fortalecido pela ciência, e a ciência, fortalecida pelo positivismo, dominavam os espíritos. Para homens religiosos, sem Igreja por se terem decepcionado com os modos de intervenção social do clero, o ocultismo aparecia a abrir caminhos para o sobrenatural. Fenómenos parapsicológicos pareciam provar que havia outro mundo intimamente ligado a este. Só muito tarde Leonardo Coimbra descobriu que esse outro mundo não era o que procurava. Como se vê pela Razão Experimental, pratica a observação, a experimentação e a correlação dos fenómenos espiritistas, aplica aos seu estudo o método científico, que se lhe impunha pelo superior grau de certeza conseguido no estudo dos fenómenos físicos. Viria a combater a ciência, já para o tarde, com A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre, não porque a dialéctica científica lhe aparecesse agora errada, mas por cousar na antropolatria.
A posição de Sampaio Bruno perante a ciência é bem diferente. Vê nela uma disciplina teológica, mas não a aceita tal como é dada. A noção de inércia, que funda todo o mecanicismo e que Leonardo Coimbra integra na sua cosmologia para afirmar a proximidade de Deus, refuta-a demoradamente, assim como o correlativo cálculo de probabilidades e a noção de zero, sobre que assenta toda a matemática moderna, não pitagórica. Não há inércia; há energia. Não há probabilidade, há angelogia. Não há o nada, há o pleno. O movimento é a espontânea reacção nascida de sucessivas rupturas: pela primeira produziu-se o mundo intermediário; pela segunda, o mundo físico. Tudo, porém, converge para “a transcendente pureza de Deus”.
Mas Pinharanda Gomes prefere a todos Leonardo Coimbra e já sabemos porquê. Ele não ama os desinsulados e tem bons motivos para isso.
Há cinco razões, segundo Abd El-Kader, que impedem o espírito, comparado a um espelho, de receber a verdade. Descreve assim a quarta: “existência de um véu interposto entre o espírito e a verdade, véu que pode interpretar-se como uma crença recebida anteriormente, muitas vezes na infância, por via de imitação, e recebida com uma aceitação favorável; um tal obstáculo mete-se entre o espírito e a verdade, impedindo-o de a receber, repelindo o que seja diferente do que aprendeu por imitação.”
Abd El-Kader era perfeitamente ortodoxo dentro do islamismo. É o aviso de um homem sério. Será, talvez, assim. Mas há mais quatro razões e a terceira delas é a que se define pela “orientação do espírito numa direcção que não é a que leva à verdade desejada”.
Voltamos de novo a pôr o problema do autodidacta. É ele por si só capaz de encontrar a verdadeira direcção? Abd El-Kader dá uma quinta e última razão que é o desenvolvimento da terceira: “a quinta razão, diz ele, é a ignorância da direcção que se deve seguir para obter o que se procura (com efeito, quem procura alguma coisa não pode encontrá-la se não tiver na memória as regras das ciências que conduzem ao objecto desejado, por tal modo que a representação e a ordenação destas regras no seu espírito lhe permitam, segundo um processo secreto bem conhecido dos sábios, encontrar a direcção que leva à verdade)”.
Porque será que, neste escrito, já nos apareceram dois muçulmanos a ensinar portugueses? Não escreveu Pinharanda Gomes dois monumentais volumes a pôr na ordem muçulmanos e judeus? Os primeiros, desde que o Corão os criou, já estão meio convertidos ao cristianismo; os segundos é de tradição que, no dia em que reconheçam Cristo como o Messias, será a redenção de toda a humanidade. Entretanto, vamos conversando uns com os outros a ver se nos entendemos.
Um dia, Hay Benyocdan encontrou onde vivia outro solitário, que tinha fugido de uma ilha próxima, povoada pela humanidade do Corão. Aquele tinha atingido a perfeita visão de Deus, mas não aprendera a língua dos homens. Era como um anjo que só por gestos e símbolos comunica a sua divina ciência. Asal, o novo habitante da ilha, ensinou-o a falar com palavras e, depois, ouviu-o. Espantado com a sua sabedoria, instou com ele para que viesse até à outra ilha ensinar e acordar os seus habitantes adormecidos pela religião e pelos prazeres do mundo. Foi e só encontrou hostilidade. Uns ficaram ainda mais arreigados aos seus hábitos; alguns, mais abertos ao que ouviam, tornavam-se piores porque a sabedoria do autodidacta era veneno que os tresloucava. Os dois filósofos regressaram à ilha, persuadidos por experiência de que a prática exterior da religião era o único caminho que convinha àquela gente. Teixeira Rego, com um gesto displicente, obteve mais tarde e quando quis um diploma que lhe permitia ensinar em qualquer Universidade. Foi-lhe tão fácil obtê-lo como a Hay Benyocdan aprender a falar. Infelizmente, a generalidade dos homens só aceita quem fala a sua própria linguagem.
Pinharanda Gomes nunca quis frequentar a Universidade. Ou o querem como filósofo autodidacta ou, se não o querem, que passem muito bem.
António Telmo
(Publicado em Viagem a Granada, 2005)
VERDES ANOS. 08
06-10-2014 09:23Notas sobre Teixeira Rego[1]
Teixeira Rego é, como Bruno, de quem aliás muito significativamente foi amigo, um pensador obscuro. Pertence ao grupo inumerável daqueles que o positivismo combateu e quis fazer esquecer, embora, por um curioso mas frequente mal-entendido, seja em geral considerado um positivista. A ilusão ou engano de que há pensamento claro e expressão clara – criada e prestigiada pelo iluminismo e pelo positivismo que este preparou, continuada –, ilusão ou engano que sustém a existência de certas seitas pensantes e actuantes, tornou difícil o entendimento do que etimologicamente significa obscuridade do pensamento e do estilo. Entre a coerência de sons, que caracteriza a chamada expressão clara, coerência sempre dependente de uma palavra obscura, e a simpatia de significações que se estabelece nas zonas recônditas e cognitivas da alma humana, não há oposição apolínea de luz e treva, mas gradação especulativa, sem termo, pelo menos sentido, de comparação. Teixeira Rego foi um pensador obscuro, quer dizer, alguém inteligente, alguém que primeiro soube toda a verdade do lugar-comum de que o pensamento só vale enquanto profundo.
Consideremos nele, além do pensador, ou a par dele, o professor, o conversador e o escritor.
Ensinou na extinta Faculdade de Letras do Porto, ali onde ressoava a palavra persuasiva de Leonardo Coimbra. Aí mestrou as disciplinas de História das Religiões, Grego Elementar, História da Literatura Portuguesa e Filologia Portuguesa. Possuía conhecimentos vastíssimos que lhe permitiam ensinar os mais variados assuntos. Houve discípulos que, durante conversas fora das aulas, souberam entrever que pensador se escondia no professor que, na Faculdade, preleccionava somente. Esta Faculdade, a de Letras do Porto, foi criada com o fim de continuar o ensino da Renascença Portuguesa. Só Teixeira Rego, entre os professores que nela ensinaram Literatura, cumpriu tal fim.
Infelizmente nós, os leitores de hoje, dispomos de poucas e breves publicações suas. Ao publicar, fê-lo em revistas e jornais, na «Águia», no «Dionisos», no «Diário de Notícias», no «Primeiro de Janeiro», tendo depois reunido em volumes, intitulados, um de «Nova Teoria do Sacrifício», quase toda a sua colaboração na «Águia», dois de «Estudos e Controvérsias», grande número de artigos dispersos, versando sobre linguística, estilística, literatura, arqueologia, religião, etc. Existe também uma «Pequena Antologia Clássica», em que recolhe textos de autores antigos e recentes, textos que se podem encarar como versões e repercussões literárias da teoria do pecado original. De resto, a meditação do problema do mal, da sua origem e do seu fim, é o que motiva e orienta fundamentalmente o seu pensamento.
De passagem, observemos que a sua colaboração na «Águia» pode fazer luz sobre o autêntico espírito do movimento significado naquele símbolo. Terá de ter em conta as figuras de fundo, de ponderar e meditar a sua acção, quem, no intuito de uma apreensão aprofundada, se proponha estudar qualquer movimento literário ou não literário, de irrecusável efectividade. Assim, lendo neste sentido Teixeira Rego, muito se nos revela sobre as autênticas causas e os verdadeiros fins da Renascença Portuguesa. A teoria da «renascença», que adquiriu superior expressão poética em Pascoais e Fernando Pessoa, recebe em Teixeira Rego o tratamento especulativo que nos permite hoje entrelaçar os nomes do «movimento» e da «revista» em significativo monograma.
Vejamos agora a acusação de positivista, a que já nos referimos, e de ateu, que em geral pronunciam aqueles que falam ou escreveram sobre Teixeira Rego, acusação que, a ser verdadeira, anularia o que acabamos de dizer. Admitamos e concordemos, porém, com o seu inegável materialismo.
A confusão entre materialismo e ateísmo é exterior à filosofia, embora penetrasse no domínio do senso comum por intermédio de professores chamados de filosofia. Se o senso comum fosse, de facto, o bom-senso, toda a gente veria que nada tem que ver uma coisa com outra. Vemos Teixeira Rego preocupado em descobrir os segredos da matéria, mas essa interpretação visa alcançá-la no grau em que já não aparece como sinal negativo de Deus.
A acusação de positivismo parece-nos derivar da sua oposição à metafísica. Tal oposição não traz, porém, o sinal do positivismo. O problema que obsidiava o pensador era o problema do mal. Várias vezes dá a entender que a metafísica, visando separar o espírito das suas condições psíquicas e somáticas, contribui assim para o aumento da dor no mundo do homem e da natureza, contrariando a evolução natural dos seres. Representa, com efeito, a metafísica, sempre uma acção violenta contra a natureza, que, hoje, se encontra referida particularmente a cada ser. E, reflexamente, atribui-lhe a origem de todos os nossos males. Há, porém, que distinguir cuidadosamente entre mal e sofrimento, entre malefício e corrupção, a fim de evitar que, por inversão e subversão dos termos, se dêem novos malefícios.
Não nos surpreende a incompreensão que aqui referimos para com o inteligente, obscuro pensador. Raramente não atinge os homens superiores. Atinge-os, com o propositado esquecimento, pois se vemos citados e elogiados hoje, em trabalhos feitos por linguistas e outros especialistas, homens como Leite de Vasconcelos, Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Adolfo Coelho, filólogos talentosos mas sem génio, raramente lemos o nome de Teixeira Rego. Vemos frequentemente os homens superiores acusados de defenderem teses e assumirem posições que toda a vida combateram. Assim acontece ao pensador que ousa e sabe pensar na sua língua, mas apresenta nas línguas diversas dos diversos leitores o que foi pensado na origem. Na língua dos positivistas se exprimiu demasiadamente o autor da «Nova Teoria do Sacrifício».
Todavia, o seu estilo, correcto, sóbrio, sombrio e grave, menos descritivo do que narrativo, lembra o dos ingleses, particularmente o do americano Edgar Pöe. Profunda, se entrevê, em Teixeira Rego, intérprete original e representante da nossa tradição atlântica, a influência dos pensadores da ilha, como, aliás, acontece também com o autor das «Notas do Exílio». Com eles e também com Max Müller adquiriu aquele saber filológico, para o qual possuía excepcionais dons. Temos, por isso, de encará-lo mais cingidamente neste aspecto.
Para Teixeira Rego, a filologia era fundamentalmente uma arte de decifrar. Quem escreve, inscreve, grava, grifa, cifra, porque o escrito nunca é expressão e pressupõe sempre o oral e o auditivo, numa gradação em que apreendemos o conceito de personalidade e tradição. Descobrir a personalidade e a tradição que se escondem e se revelam ou velam repetidamente, constituiu o fim da investigação literária de Teixeira Rego. Assim aconteceu com o problema da personalidade de Bernardim Ribeiro, que ele dizia ser a de Cristóvão Falcão, apoiando a tese de Delfim Guimarães, como também a do filósofo Leão Hebreu. Estes três seriam heterónimos do judeu Abarnabel, nome que é anagramático de «Bernardim».
O problema dos heterónimos que, como é sabido, tem ocupado para com Fernando Pessoa os modernos investigadores da literatura, relaciona-se com o problema dos pseudónimos. Se, no caso de Fernando Pessoa, este houvesse sido considerado também um heterónimo, diversa teria sido a posição do problema. De resto, personalidade é conceito somente vivo e fecundo dentro de uma teoria evolucionista e, por isso, não nos surpreendem as posições a este problema dadas pelos passadistas.
Evolucionista, Teixeira Rego, da nossa literatura, pôde apresentar uma visão só comparável à de Teófilo Braga. Não copiou, para isso, os métodos lá de fora, nem as fórmulas de decifração que utilizou podem ser aprendidas em qualquer manual estrangeiro de interpretação literária. Os seus estudos de literatura, na sua brevidade e sucintez valem, por isso, muito mais do que muito trabalho extenso. A divisão da história da nossa literatura em períodos paralelos aos que dividem a história da literatura francesa, falsamente embandeirada de universal, não se coaduna nem explica os actos pelos quais evolui o génio do povo. Demonstrou Teófilo Braga que na história da língua e da literatura, no campo evolutivo das formas políticas, na arte e nas ideias, combinam-se sempre dois elementos – um, íntimo, orgânico, criador, outro, exterior, mecânico e separativo. Do primeiro, a apreensão da evolutiva forma somente se alcança por entre dificuldades e erros. Aqueles que não querem errar, porque temem o perigo, preferem fazer história, à sombra protectora do universal fictício, embora, no plano da sentimentalidade subjectiva se mostrem contra os inimigos da pátria, os quais, por vezes, se chamam por um nome derivado deste vocábulo. O bosquejo de «História da Literatura Portuguesa», que Teixeira Rego publicou na «História de Portugal» de Damião Peres, é, na orientação, comparável à «História da Literatura» de Teófilo Braga. Cremos que isto já sugira ao leitor uma ideia deste trabalho.
Impossível referirmo-nos aqui a tudo o que o pensador português escreveu. Não deixamos contudo de observar que essa obra segue um movimento unitário, emerge de uma doutrina única. É a própria doutrina pensada e atingida na meditação audaz e concentrada do cosmos, do homem e de Deus. Alguns elementos demos que pretendem ser introdutórios. Terminamos estas notas, com o desejo e a esperança de que tenham, porventura, a virtude de levar alguém a ler e a estudar a infelizmente restrita obra do filólogo esquecido e do filósofo desconhecido que foi Teixeira Rego.
António Telmo
[1] Diário de Notícias, Lisboa, 29 de Setembro de 1955.
DISPERSOS. 12
02-10-2014 09:39
A caça à baleia[1]
20 anos atrás, ainda se caçava a baleia no mar de Sesimbra. Para se poder assistir, assinava-se um termo de compromisso:
– Responsabilizo-me pela minha morte.
Isto de uma criatura de Deus se responsabilizar pela própria morte só no mar, onde toda a gente é livre, livre como os longos horizontes e o infinito que há neles.
Eu fui dos que assistiram a uma caçada à baleia. Um barco a motor, do tamanho dum cacilheiro, um canhão à proa, toda a tripulação atenta ao grito que vinha do cesto da gávea lá no alto do mastro:
– Baleia a bombordo!
– Baleia a estibordo!
E o barco mudava de rumo para onde a voz o mandava, um rumo que incidia no vértice dum ângulo de que ele era uma das linhas e a outra o esfumegar constante da baleia. Encontravam-se matematicamente no vértice desse ângulo, barco e baleia.
A tripulação parava de respirar, olhos postos na grande massa escura que aparecia, desaparecia, reaparecia, grande força rítmica como a do próprio mar obedecendo à energia misteriosa que faz as marés. O profeta Jonas comparou a baleia ao abismo. No ventre desse abismo esteve três noites e três dias, tantos como Cristo nos infernos. A baleia é, de facto, a força do abismo em movimento.
Ao meu lado estava um pescador, de agudo perfil hebreu, que, devo dizê-lo, me estava a interessar muito mais do que a baleia. Sentia, não sei porquê, que esse homem, repassado de mar e tempestade, estava ali completamente indiferente ao êxito da caçada.
– Já caçou muitas baleias? Perguntei-lhe.
– A minha mulher, senhor. Gorda como uma baleia, que me engoliu em vida como ao profeta Jonas e me faz andar aqui a arranjar sustento para os filhos.
Aquele homem era um humorista, sério como todos os humoristas, humorista como todos os portugueses que pelo riso se vingam da rotina miserável dos dias. Ao ouvi-lo, nem sequer reparei que a baleia se tinha escapado, antes que o arpão partisse, mergulhando na profundidade das ondas, para não mais aparecer. Era só mar de novo, extenso e interminável, que o homem do cesto da gávea perscrutava a bombordo e a estibordo, de olhar atento e veloz como o de uma ave de rapina…
António Telmo
[1] Título da responsabilidade do editor. A crónica foi escrita entre 1971 e 1972, talvez ainda em Sesimbra, ou já no Redondo, consoante resulta do teor do caderno em que foi encontrada na espólio de António Telmo. Daqui se infere que o relato se reporte a factos ocorridos pelo meado do século XX. Saiu a lume em O Sesimbrense em 1 de Junho de 2013.
DOS LIVROS. 19
30-09-2014 11:58
Esotérico e exotérico
Esotérico é relativo a exotérico. Não são opostos, como vulgarmente se entende. Estão assim como o interior em relação ao exterior, pois só há exterior por haver interior e só há interior por haver exterior. Exterior não é, porém, o mesmo que exotérico ; só é exotérico aquele exterior em que vive o interior e dele recebe a forma. Ou, por outras palavras, só é exotérico o exterior enquanto nele se revela o esotérico. Consiste a revelação em, mostrando, ocultar de novo. Não se deve dizer, pois, que Shakespeare ou Camões escreveram livros esotéricos.
A revelação do esotérico, por isso mesmo que é revelação, faz-se através de formas superiores, como as da arte ou as da religião, desde que estejam de acordo com o que de sua essência são. Tudo quanto é apresentado como esotérico por isso mesmo que é apresentado como tal não é esotérico. Apresentando-se independentemente daquelas formas, é o “material” de que se serve o espírito inferiorizante para edificar a sua Babel. Uma comédia de Shakespeare, com o seu enredo de conflitos aparentemente banais, é exotérica ; um romance de Alan Cardec, por mais que nos fale de “astral”, de “perispírito” ou de “reencarnação”, não é exotérico.
Daqui se infere que, para atingir o esotérico, é condição necessária a aprendizagem da filosofia ou, por outras palavras, da arte de pensar a intuição e a imaginação. Só pela filosofia pode haver compreensão das formas superiores de arte ou de religião do exotérico para o esotérico. Mas as pessoas não querem pensar ou porque são indolentes ou porque não se dispõem a aprendê-lo, por excesso de orgulho ou por falta de interesse. É verdade que é difícil. Bem mais fácil é acreditar em qualquer espiritismo ou em qualquer teosofismo com a auto-suficiência de quem conhece os mistérios do sobrenatural e não é, no entanto, capaz de compreender uma página de Hegel.
O esoterismo, neste último sentido, tornou-se contrário do que é. Se o seu modo de revelação é o artístico (a religião também é uma arte), a sua democratização é a sua negação.
Este fenómeno social de democratização do indemocratizável é próprio de todas as épocas de decadência. A do império romano é nitidamente exemplar. Freud explicou aquilo de que estamos falando pela relação das fezes com o dinheiro ou com o oiro. A magia, a astrologia e as demais ciências ocultas são nas bocas dos porcos uma porcaria. As pérolas foram devoradas por eles e expulsas na forma de fezes.
Um exemplo que faz ver a degenerescência dos homens com suficiente evidência é o da missa cristã na televisão. Podemos estar felizes. A mensagem cristã chega a todos os lares entre anúncios da pasta de dentes e anúncios de preservativos. Há quem tenha televisão na casa de banho. Eis um belo mundo sem discriminações!
Há quem confunda o império de Satan com o império do Espírito Santo. E, no entanto, se ambos estão anunciados para o fim dos tempos, é bem difícil distingui-los. Perante a Matéria todos somos iguais, perante o Espírito todos somos diferentes. Ali somos iguais e não nos entendemos uns com os outros ; aqui somos diferentes e entendemo-nos uns com os outros.
(Publicado em Viagem a Granada, 2005)
António Telmo
VOZ PASSIVA. 31
28-09-2014 15:38As Encruzilhadas de Deus de José Régio
Eduardo Aroso
As Encruzilhadas de Deus, título de uma das obras mais profundas de José Régio, tem logo o condão de nos fazer pensar se as encruzilhadas de Deus não serão muito provavelmente as encruzilhadas dos homens! Que os homens tenham encruzilhadas é natural; que Deus as tenha, é assunto complexo. Creio que com este título Régio lança-nos no mistério do ser, e não no homem «cadáver adiado que procria», mas no homem no nevoeiro mais baixo e pesado da encarnação. No hermetismo «o que está em cima é como o que está em baixo», melhor dizendo, o que está em baixo corresponde, ou deve corresponder, ao que está em cima. Não sabemos o que estaria na mente de José Régio quando deu o título ao seu livro As Encruzilhadas de Deus. Seja como for, a obra fala do dilema de sempre do homem religioso. Aliás, num livro seu intitulado Confissões de um Homem Religioso, o poeta anda sempre à volta do tema, nomeadamente nos capítulos «a ausência de fé», «os graus de Deus» e «a vocação mística».
Durante a sua vida física Régio movimentou-se num triângulo ou numa tripeça que assentava em três locais: em Vila do Conde onde nasceu, em Coimbra, onde estudou e escreveu uma parte significativa da sua obra e em Portalegre onde exerceu a docência. No seu livro intitulado «Fado», se este não representa propriamente as encruzilhadas de Deus, faz parte sem dúvida das encruzilhadas da sua vida, um mosaico poético que canta não só essas três cidades, como outras paisagens geográficas e humanas do Portugal que via e sentia, ao mesmo tempo que o poeta sabe de um «Portugal de todo o mundo», título do primeiro poema «Meus avós que o mar levou,/ Rasgaram águas sem fim./ Neto sou de quem n-o sou!/ Se canto, é que o mar que entrou/ faz ondas dentro de mim…».
Se recorrermos à expressão «pensamento situado», poderíamos também falar de um Régio poeta situado, tanto no espaço que foi o seu neste mundo, e para isso bastaria lermos Fado, como na sua condição de homem religioso, se lermos, por exemplo, Filho do Homem ou A Chaga do Lado, obra esta que António Quadros comenta da seguinte forma «a situação de José Régio na cultura portuguesa é tal que num livro como A Chaga do Lado vem pôr em causa, não apenas a posição espiritual do seu autor, como também o próprio sentimento profundo dessa cultura nas suas relações com a religião».
Como não poderia deixar de ser, é em Coimbra que Régio se integra no movimento Presença, nos anos 20, na companhia de Edmundo de Bettencourt, João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca, entre outros, onde surgem as inevitáveis polémicas. Tomemos apenas a seguinte, aliás uma das mais habituais e que, diga-se, ainda hoje permanece. Mas dêmos a palavra ao poeta: «Pelo que me toca, nunca pude aceitar qualquer arte-pela-arte que não fosse um livre e peculiar meio de expressão do humano; e do integral humano, embora a cada artista possa não caber senão uma parte. Não creio no futuro de quaisquer tentativas de arte desumanizada – por mais em voga que possa estar esta em certas épocas de crise, sendo até sinal de tal crise. Se, de facto, aceito aprovativamente a fórmula arte-pela-arte, é porque, atribuindo um específico independente de qualquer outro, creio que ela a si mesmo se basta. Mas sempre arte-pela-arte foi para mim sinónimo de arte viva».
António Telmo em Arte Poética diz-nos que «na introdução que escreveu para os seus Poemas de Deus e do Diabo, - o indefinível e o definido -, José Régio defende-se dos critérios que têm pretendido diminuir o valor da sua poesia, quando o acusam de se alhear dos problemas sociais para se entregar a uma constante reflexão da intimidade. José Régio faz-nos então ver que mistério é o do homem nas suas ramificações profundas e independentemente de qualquer compromisso social». Também, por exemplo, um Vergílio Ferreira viria a escrever sobre este assunto, na clara radicalidade da sua assumida condição humana individual da arte que se basta a si, para não morrer em si e poder assim chegar aos outros. Na verdade, as desejáveis preocupações de assistência social e humanitária não se podem confundir com aquilo que é mais singular e sagrado no ser humano: o seu pensamento e a sua arte.
«Sei que não vou por aí» eis o verso de ordem que a sociedade retirou habilmente do poeta. E não só pela necessidade ocasional, bem ao gosto de muitos, como por certos critérios de fazedores de antologias mais ou menos ministeriais. Nem sempre vemos o que queremos ver, mas o que podemos ver, ou então o que mais nos interessa. Ou seja, o poeta, do «Sei que não vou por aí», longe de ser procurado na sua inteireza, como é, ou pelo que é, surge como a excelência da citação. Infelizmente muitos poetas em Portugal têm servido apenas para citação ocasional.
Por certo que o que nos traz aqui é um Régio mais alto e complexo. Não é apenas o poeta do académico e do social, mas aquele do permanente conflito entre fé e razão. Ao considerarmos a sua natureza do divino e do humano, ou do transcendente e imanente, é bem de ver a lógica natural de uma certa aproximação ao movimento da filosofia portuguesa. No capítulo «o labirinto», do livro Confissão de um Homem Religioso, diz-nos que «durante anos vivi numa espécie de labirinto quanto a vida religiosa. Isto não é só porque em mim se digladiavam a razão e os sentimentos obscuros, profundos, mas também porque a própria razão se contraditava a si mesma, usando de argumentos contrapostos uns aos outros, e se contrariavam os próprios sentimentos profundos e me atraíam a posições opostas ou diversas».
Régio foi de algum modo atraído ao movimento da filosofia portuguesa. Elogiou a Faculdade de Letras do Porto como base para uma universidade reformada e moderna, referindo as suas amizades vindas algumas de tempos mais recuados. Fala de Leonardo Coimbra como «poderosa personalidade» à volta da qual todos gravitavam, filósofo que aliás interrogou Régio num exame, tendo-lhe atribuído uma boa classificação. Nesse ambiente, como sabemos, cresceram José Marinho, Álvaro Ribeiro, Delfim Santos, Casais Monteiro e Santana Dionísio, entre outros. Cabe aqui referir um episódio que atesta bem a personalidade do poeta, conforme as suas palavras: «Uma vez, José Marinho, com quem eu mantinha um estreito convívio que me foi muito fecundo, pois me ajudou a desenvolver-me sem me alterar, ofereceu-me esse belo livro injustamente mal conhecido que é A Alegria, a Dor e a Graça com a seguinte dedicatória: Ao Reis Pereira (eu ainda não era o José Régio) do Mestre para o futuro discípulo. E eu escrevi ao lado, a lápis, esta coisa ingénua e pretensiosa: O Reis Pereira não quer ser discípulo senão de si mesmo.» Ora, o sucedido mostra-nos por um lado uma certa faceta do poeta e por outro que José Régio sempre esteve mais próximo da poesia do que dos trilhos da filosofia propriamente dita.
Assim, seguindo rumo até à cidade do Mondego, escreveria mais tarde «nem o prestígio de Leonardo nem a perspectiva de camaradagem de estes meus amigos me desviaram da opção por Coimbra». Deste modo, passaria na rota da grande maioria dos poetas portugueses, numa época em que surge o movimento Presença, criando o ambiente literário que o poeta desejava. Todavia, há que dizê-lo, dele depois se afastaria, desse ambiente académico que ao poeta já não preencheria verdadeiramente a alma, pois, ele próprio o diz «Creio ter sido durante esses anos de Coimbra que a minha religiosidade se manifestou mais superficialmente». Todavia surgem nesse tempo Poemas de Deus e do Diabo, Sonetos de Biografia, Romance da Cabra Cega e vários poemas de As Encruzilhadas de Deus, obra que seria concluída em Portalegre.
Podemos dizer que As Encruzilhadas de Deus existem em toda a obra do poeta e não apenas no livro que tem este título. Mas é neste que a sua poesia tem porventura o seu Getsmani, ou seja, a não recusa da matéria, do sensível, daquilo que amarra o homem, mas também o pode libertar, se quisermos, do erro como meio de salvação. E nisto podemos ver a antítese do nirvana oriental. Teria sido interessante que Antero tivesse conhecido Régio, ou vice-versa, porque essa tensão do nirvana anteriano com as preocupações sociais e políticas do mesmo Antero fariam um bom diálogo com os contrários de Régio, a tal «razão que se contraditava a si mesma» e «os próprios sentimentos profundos» que o «atraíam a posições opostas ou diversas». A assunção do corpo, como instrumento sagrado para transmutação ou retorta para alquimia é um dos traços que distinguem a via do discípulo ocidental do discípulo oriental, e foi a luta que, enquanto poeta, Régio sempre travou em si. Este cume é atingido no «Poema da Carne-Espírito», quando escreve «Sonho-te! Para te humilhar/ E me vingar da tua ausência,/Nesse instante supremo, estrídulo e vulgar,/ Em que o delírio atinge o cúmulo da urgência. (…) Evadir-me-ei, então, por sei lá bem que espaços,/ Cego de raiva e de ternuras loucas,/ Eu, com duas cabeças, quatro pernas, quatro braços,/ E só uma língua em duas bocas! (…) O não te desejar é impossível/ Porque tu sabes, sempre moça e eterna amante,/ Pairar!, virgem suprema!, inatingível e intangível…,/ Prostituída a cada instante.»
Todavia, encontramos também em Régio uma necessidade e quiçá redenção dir-se-ia pela mediação, na figura da mulher Eva e de modo mais elevado no feminino transcendente ou Virgem Maria. No primeiro caso, escreve o poeta «Mulher, como o universo/ Cabe nos seis centímetros de um verso,/ Em ti, nossos sentidos,/ Os conhecidos e os desconhecidos,/ Sentem caber, reunida, a natureza inteira./ Nesses regatos, nessas sombras, nesses altos, nessas praias, /Meu corpo, quando desmaias,/ Não escutes os meus gritos!/ A ti, Deus ensinou-te a resolver os meus conflitos. (…) Compreenderás/ Que em toda a terra há céu atrás!/ Alma e corpo em um só, então, um Eu maior/ Transponha, Deus lho ensina!, / A síntese do amor, /Este abismo que sempre há-de permanecer/ Entre estes pobres dois: eu homem, tu mulher…» Mas é na excelsa figura da Mãe de Jesus que o poeta encontra uma mediação superlativa ainda que na imagem de uma «Nossa Senhora de madeira/ Arrancada a um Calvário de Capela» (…) «“Porque choras, Mulher?” – docemente a repreendo./ Mas à minh’alma, então, chega de longe a sua voz/ Que eu bem entendo: -“Não é por Ele”... / “Eu sei! Teus filhos somos nós».
No que falei há pouco de um dos traços da poesia de Régio, o da não recusa da matéria, do sensível, daquilo que amarra o homem, mas também o pode libertar, cabe aqui citar de novo António Telmo em Arte Poética ao dizer que «o movimento da filosofia deverá consistir, pois, não em fugir para um mundo suprassensível, mas em tomar consciência da imensa força na qual vivemos e somos, - em encontrar o dissolvente universal.» Ora, este assumir a condição mais difícil do ser humano em trânsito, a sua passagem neste mundo, traz-nos ainda as palavras do filósofo de Estremoz que amava Sesimbra, ditas numa conferência na Faculdade de Psicologia de Lisboa, 1996 «Também (...) a gnose hebraico-portuguesa se distingue da gnose oriental valorizando a palavra sobre o silêncio, procurando no silêncio, não o pensamento que se torna inefável, mas o pensamento que se transforma em palavras que iluminem a treva em que vivemos».
Se tempo houvesse, agora e aqui, alargaríamos a nossa análise, partindo do outro lado da obra de Régio, de traços irónicos, lúdicos e até humorísticos, para chegarmos a uma poesia de ascese feita oração, que fere benignamente esse silêncio – repito que fere benignamente - para iluminar a treva do poeta e do próprio mundo, ao mesmo tempo que nessa ascese surge a nota dissonante de certo sentimento de culpa entranhado não só no poeta, como em todo o nosso inconsciente, fruto de momentos históricos que todos conhecemos.
Caros amigos, não venho dizer nada que já não tenha sido falado, nada que já não se saiba, mas apenas recordar um poeta português tão caro a António Telmo e Álvaro Ribeiro, entre outros. A sua poesia que teve que lutar para não se perder no efémero de cada época, na chamada “intervenção”, conduz-nos para a poesia enquanto caminho e matéria de transmutação e redenção pessoal, nesse andar no caminho quando «Deus esconde a Sua face». Neste sentido importa sobremaneira a poesia como profecia, anunciando o que ao Homem falta colher da «árvore da vida». Assim, penso que a propósito dos tempos que vivemos, onde para além da patologia do «politicamente correto» se pretende impingir também o «literariamente correcto», e o «artisticamente correcto» (basta ver os apadrinhamentos oficiais), e para concluir estas minhas palavras, nada melhor do que um contraponto no tempo, de António Carlos Carvalho para José Régio, ou vice-versa, do presente para o passado, ou o contrário, o que dá no mesmo. Diz António Carlos Carvalho na introdução da obra A Profecia dos Papas de S. Malaquias «O fim da profecia não é, não anuncia, o fim da História – em termos de exegese judaica da Bíblia. Aliás, segundo o Zohar, quando a profecia se cala, o céu fala pela voz dos sábios, à falta de sábios o sentido das coisas é revelado nos sonhos, e à falta de sonhos pode-se tê-lo no piar dos pássaros… ou então o espírito profético continua vivo nas crianças e nos loucos…» Palavras estas que se irmanam com as de José Régio quando escreve «na crise espiritual deste nosso mundo moderno em que todos os mais permanentes princípios morais, religiosos, até estéticos (independentemente da sua cor) tantas vezes são atropelados ou se representam por letra morta, - ainda é talvez nos desgraçados, nos miseráveis, nos repelidos, nos malfadados, nos ignorados, nestes e não nos felizes superficiais, não nos príncipes de quaisquer poderes, não nos reconhecidos e constituídos valores sociais de qualquer ordem, que melhor perdura o eterno germe da redenção do homem; que sobrevive a mais autêntica virtualidade da Graça».
Nesta pátria desgraçada que é Portugal (se é que ainda há pátria), com esta graça ficamos ou a esperança paraclética que sopra sempre onde lhe apraz, sejam quais forem os desmandos dos homens, e permanece por todos os tempos, além das estatísticas e planos previsíveis.
Biblioteca Municipal de Sesimbra, 25 de Maio de 2013
INÉDITOS. 28
26-09-2014 09:39
Presumível esboço de uma carta para Max Hölzer[1]
Sobre o que me diz de uma coincidência das suas interpretações de Fernando Pessoa, cada vez estou vendo melhor que é possível dizer a verdade sem a experiência dela, apontar a realidade sem verdadeiramente a conhecer. É isto, parece-me, que produz a ilusão do conhecimento teórico. Donde ver na sua e na minha interpretações mais uma “confluência” do que uma “concordância”. Partimos, suponho eu, de planos diferentes da consciência e encontramo-nos num ponto, que considerado por outrem parece ter a mesma origem. O enigma está em saber como é dado àqueles que apenas são capazes de uma interpretação teórica falar com relativo acerto de um plano prático de que creio não têm nenhuma experiência.
Parece-me por exemplo (este parecer é apenas como uma suspeita) que os poemas de Fernando Pessoa ele próprio, poemas que começam pela fixação ou determinação dum fenómeno natural (a brisa, os montes ao longe, o sol nulo dos dias vãos, a onda que enrolada torna, etc.) constituem a expressão dos “exercícios práticos” que Pessoa fazia, de exercícios de “rappel”. Será assim?
António Telmo
[1] Título da responsabilidade do editor.
VOZ PASSIVA. 30
23-09-2014 10:32Pr´Além!
Teresa David
Distinto Mestre,
A sede
de Acordar
está em todos
Os Seres!
E Nunca
se perde
o Fruto Divino
nem
o Seu Cântico!
Amanhece-Nos
Embala-Nos
nas Alegorias
e nas
Fontes!
Sussurra-Nos
nas
Pontes
dos Dias!
Inclina
O Seu
Rosto
Sonhado
na Luz
da Nossa
Estrela!
Apenas,
Vivermos
A Paz
Magna
Confia-Nos
A Dádiva
Altíssima
Lúcida!
Que Só
Perto
O Esperto
Intenso
Firmamento
Nos
Desprenda!
Por Tudo
e Todos
no
Jardim
Intacto
e Profundo
Clamemos
O Novo Mundo!
Aí
Há
Um Grande Coração
Justo
que Nos
Chama!
Chama
lisa
solenemente
Pristina
que Nos
Adivinha!
Vinha
de Júbilo
e Paixão
de
Grinalda
Vivaz:
Essa Benigna
Memória
que Nos converte
no tenaz
Mistério!
Querido Mestre,
no Verdecer do Inesquecível
Aconchegado
Sempre
e
com a
Benção
de Equinócio Repousado
sobre o brilho do
Nosso
Mar,
O Poema Universal,
Criação,
Lê-se
na Língua Invisível
da Eternidade!
INÉDITOS. 27
23-09-2014 10:27Sobre Linguística. 03[1]
[Noam Chomsky]
O mais famoso discípulo de Eduardo Sapir é Benjamin Lee-Whorf. Pouco falado em Portugal, diríamos mesmo totalmente esquecido a favor de Jacobson, cuja teoria da comunicação começa a comandar os programas de ensino do texto literário, e de Noam Chomsky e da sua “gramática generativa”, também adoptada nesses programas, Benjamin Lee-Whorf é, todavia, o linguista que estabeleceu os princípios capazes de trazerem ao estudo de uma língua, como o português, a objectividade e a verdade reveladoras do que uma língua é singular, distinto e, por assim dizer, único. A “gramática generativa” é um método de redução. Como se sabe, Chomsky adopta o postulado cartesiano de que o pensamento do homem é por toda a parte o mesmo, que sempre opera através dos mesmos mecanismos, das mesmas categorias mentais e das mesmas combinações, de tal modo que as diversas, múltiplas línguas e idiomas não fazem mais do que exprimir essa constante de fundo. Benjamin Lee-Whorf, no seguimento de Boas e de Sapir, pretende mostrar o contrário. Embora admita a existência de grupos por afinidades dos seus elementos, considera o método de redução uma violência que esquece ou destrói processos singulares de pensamento, estruturas viventes verbais singulares.
António Telmo