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VOZ PASSIVA. 37

28-11-2014 10:46

De Paulo Samuel, que no próximo dia 20 de Dezembro irá apresentar, na Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, as Cartas de Agostinho da Silva para António Telmo, oferecemos hoje aos nossos leitores um ensaio sobre António Telmo escrito para o quinto volume dos Cadernos de Filosofia Extravagante, Confluências, que há já um ano (a completar-se no próximo domingo) aguarda a sua saída a lume, dando assim continuidade à publicação de diversos escritos de membros do nosso projecto em idênticas condições.

Carta a Pedro Martins a propósito de António Telmo

Paulo Samuel

 

Caro Pedro Martins

 

A minha consideração e estima por si, de par com o elevado apreço pelo trabalho que o Pedro Martins vem realizando no quadro dos signos, símbolos e mitos do pensamento português, através de estudos e livros que vem publicando, obrigam-me a esta carta, pela qual também quero testemunhar um vínculo de aproximação – à falta de capacidade para uma efectiva colaboração – à revista Confluências, em particular no que concerne ao próximo número, dedicado a António Telmo, em jeito de homenagem póstuma.

Quando recebi o seu amável convite (também subscrito por Renato Epifânio), logo se me figurou a necessidade de dar algum testemunho sobre o singular contributo deste filósofo para a afirmação da autonomia de pensamento do homem português. Na minha perspectiva, a sua importância advém não só no trilho que concerne uma leitura e compreensão aprofundada de certos aspectos da cultura portuguesa (onde se inscrevem mitolusismos fundadores: da gnose da Língua ao segredo das Descobertas, das razões da fundação da Ordem de Cristo à simbólica da arte Manuelina, da sibilina poética dos Trovadores à formação do carácter nacional), mas também nessa lavoura outra, sendo espiritualmente a mesma, que releva do ideário filosófico que caracteriza a denominada “Filosofia Portuguesa”. Por outro lado, creio não ser necessário encarecer o legado que António Telmo deixou, ou mesmo realçar a sedução que exerceu no seio da sua geração e, sobretudo, nas gerações que lhe são posteriores, desde logo aquela em que me incluo, mormente através de um magistério que, em terras alentejanas, se tornou ele próprio autêntica escola socrática para os que tiveram o privilégio de privar da sua companhia.

António Telmo foi senhor de um pensamento e obra que assumem feições muito próprias e singulares no quadro ideográfico do que se conhece de outros pensadores alicerçados na mesma matriz, os quais inteligiram obra de natureza esotérica sob roupagem linguística exotérica, que se tem personificado, com maior visibilidade, nos nomes de Sampaio Bruno e de José Marinho. Para quem conhece os estudos tão aparentemente diversos, conquanto densos, do autor da História Secreta de Portugal, a afirmação que procure radicar na sua obra uma presença de saberes ocultos, iniciáticos, assumirá a natureza de uma mera banalidade. Como sabe, de há muito que essa filiação, de vertente esotérica, se encontra assinalada, desde logo e com particular acuidade por António Carlos Carvalho, no prefácio que escreveu para a primeira edição da referida obra. Recorde-se que a História Secreta de Portugal, segundo livro de António Telmo publicado em 1977 pela Editorial Vega, pouca atenção colheu nos meios letrados e filosóficos da época. A importância dessa obra – que, a título pessoal, continuo a considerar a mais completa e referencial das que assinou, apesar das marcas comparatistas e do lastro de citações que se podem sinalizar – foi, no entanto, marcante quer para aqueles que se encontravam ligados ao grupo da “Filosofia Portuguesa”, ou próximos, quer para os que se encontravam inseridos em círculos de diferente filiação. Em todo o caso, Telmo inscreveu nessas páginas um mapa de conhecimentos e congeminações que vão acompanhar grande parte da sua reflexão e ensaio nos anos 80 e 90 do século findo, ordem de saberes que, todavia, sempre preferiu transmitir pelo meio tradicional comum a todas as transmissões iniciáticas, isto é, a oralidade.

O meu relacionamento pessoal com António Telmo data do início dos anos 80, quando me acerquei, após outras demandas em solo estranho, daqueles que eram figuras emblemáticas do movimento da “Filosofia Portuguesa”. A aproximação fizera-se à distância, por meio de leituras de livros que me chegavam a Paris, de alguma forma no intuito de me transmitirem a mensagem de haver em Portugal um domínio esotérico, diverso na sua expressão e fundamentos, daquele que buscava noutras paragens. Nessa época e na exterioridade pública que a consulta de impressos permitia (ressalvando o facto de se saber da existência de restritos e discretos grupos ocultistas) o chamado “esoterismo” confinava-se a uma certa marginalidade, à qual se pretendia conotar a ideia de práticas ocultistas, de artes divinatórias, a que se misturava a acusação de falta de qualquer saber “legitimado”. É certo que algumas tentativas para contrariar essa “opinião pública” (que encobria a do Poder, desde logo académico) não tinham garantido o caminho mais adequado, desde logo pela prática informativa ou publicitária, como aconteceu em França com a revista Planète (que, apesar das intenções iniciais, acabou por se tornar num repositório de quase tudo, incluindo o descrédito), ou, em Portugal, com a colecção “Esfinge”, das Edições 70, onde tudo coube… Por isso, a leitura de obras de autores como René Guénon, Julius Evola, Paul Naudon, René Alleau, Luc Bénoist, abbé Henri Pierre, Mircea Eliade, Henri Corbin, Ananda Coomaraswamy e tantos outros fazia-se nos originais (e traduções) de língua francesa, donde resultava a falta de interlocutores para um diálogo e discussão aprofundados. Pouco ou nada havia a complementar o conhecimento haurido nessas fontes, nenhuma plataforma de trânsito dessas ideias nos meios cultos portugueses, que ignoravam tais autores. É claro que nessa altura (anos 80) já se tinham instalado em Portugal centros e representações dos Rosa-Cruz e da Nova Acrópole, entre outros, mas com “mestres” e filiações discutíveis. Como é óbvio, não vale a pena sequer aludir à Maçonaria portuguesa, que de há muito se transformara numa organização com meros interesses de penetração e influência sócio-política. Daí que, ter sabido da existência no Porto de uma pensadora como Dalila Pereira da Costa, que frequentava as páginas de alguns dos autores atrás citados, constituiu razão suficiente para criar um elo que me viria a ligar ao núcleo daqueles que tinham em Sampaio Bruno e em Teixeira de Pascoaes (cuja obra entretanto eu descobrira) referências estruturais de pensamento, distantes do saber hegemónico da Universidade.

Nesse contexto, vim a conhecer o que pensava e exprimia um certo escol que, no Porto, mal se conhecia e do qual a Universidade não ousava falar. (O importante posicionamento de aproximação dialogal do Professor José Augusto Seabra, ocorrido em finais dos anos 70, foi determinante para algumas iniciativas que se vieram a concretizar depois na Cidade Invicta.) As circunstâncias que se me propiciaram correspondiam a conferências e colóquios realizados por essa época no IADE, graças ao empenho de António Quadros. Afinal, só um recém-chegado podia admirar-se com o convívio filosófico que em Lisboa decorria, que não dispensava jantares e tertúlias de Cafés, dado que o mesmo prolongava uma prática que desde os anos 50, pelo menos, era comum na roda daqueles que seguiam um magistério e “tradição” mantidos por Álvaro Ribeiro e José Marinho, por sua vez replicando uma vivência que lhes fora proporcionada no Porto, ao tempo da acção educativa de Leonardo Coimbra, na primeira Faculdade de Letras do Porto e fora dela, em consonância com os ideais da «Renascença Portuguesa» e a experiência resultante das Universidades Populares. 

Dos diálogos que então pude manter com alguns daqueles que ficam e ficarão como mestres de pensamento, entenda-se, de um pensamento verdadeiramente imbricado na “razão e mistério” do homem português, recordo-me que poucos privilegiavam essa vertente do conhecimento esotérico (por exemplo, de um esoterismo cristão), da qual ou não detinham, por opção pessoal, leitura e conhecimento aprofundado, ou porque essa atenção colidia com filiações religiosas a uma ortodoxia católica, alicerçada numa catequese doutrinal e creencial. Além disso, invocar o nome de um autor como René Guénon, que criticou de forma veemente as práticas do Catolicismo (que teima em exorcizar os seus próprios fundamentos) e que acabou por se converter ao Islão, considerando que apenas esta via religiosa mantinha os elos de ligação ao saber primordial e à mais autêntica iniciação espiritual, não colhia fácil aceitação. Contudo, o interesse pelos saberes esotéricos já se tornava patente em alguns autores, estudiosos e investigadores, desde logo pelas afinidades da obra pessoana, suscitando interpretações e análises num plano em que Dalila Pereira da Costa, Yvette K. Centeno e, depois, António Quadros foram, ao que sabemos, precursores. Também António Carlos Carvalho prestava a esse domínio e a certos autores atrás nomeados significativa atenção e divulgação, como o atestam alguns dos seus livros e escritos que publicou em jornais e revistas.

Importa ter presente, sem dúvida, que posicionados na confluência do legado das filosofias e teologias de inspiração cristã, muçulmana e judaica, cabe aos portugueses aferir da via que seja a mais consentânea com o seu génio, no que isto significa de sentido hermenêutico à luz do exposto por Teixeira de Pascoaes. Daí abster-me, nesta carta que começa a ser longa, de considerações que exigiriam outro contexto e amplitude, mencionando tão-só que me parece excessiva uma posição dominante dos ensinamentos da Cabala na compleição do pensamento português.

Como afirmei em parágrafo precedente, conheci António Telmo nos anos 80, na sequência dos contactos que por essa época estabeleci com o grupo da “Filosofia Portuguesa”, dando sequência prática à sugestão feita por Dalila Pereira da Costa que, residente no Porto, aonde eu regressava após alguns anos de permanência em Paris, entendia ser o caminho a seguir para quem pretendia aprofundar o conhecimento do pensamento português. Após os encontros iniciais com António Quadros, Pinharanda Gomes, Afonso Botelho, Orlando Vitorino, Lima de Freitas, Joaquim Braga, Henrique Barrilaro Ruas, ocorridos na sua maior parte no IADE, ou em outras circunstâncias de idêntica natureza, resultaram laços de amizade e de algum convívio, que se estendeu aos elementos de novas gerações, com os quais também passei a conviver aquando de deslocações a Lisboa, de que resultou, por exemplo, a minha ligação à revista Leonardo.

Curiosamente, o meu primeiro encontro com António Telmo foi no Porto, em 1983, na Faculdade de Letras (ao Campo Alegre), instituição à qual se deslocara no âmbito das comemorações do nascimento de Leonardo Coimbra, que se tinham iniciado em Março desse ano. Telmo participara na iniciativa, no dia 12 de Abril, na mesa-redonda subordinada ao tema “Leonardo Coimbra e a Filosofia Portuguesa”, moderada por José Augusto Seabra e com a participação de Afonso Botelho, António Alvim, António Braz Teixeira, António Quadros, Fernando Sylvan e Joel Serrão. Creio ter sido António Quadros (com quem já mantinha uma relação de profunda amizade, documentada em epistolário que venero) quem facilitou esse primeiro diálogo, durante o qual pude transmitir a António Telmo a recepção filosófica e as impressões de leitura que colhera dos seus livros, em particular da História Secreta de Portugal, exemplar que guardava, e guardo, com sublinhados e anotações que marcam uma etapa importante da minha vida. O meu nome nada lhe dizia, excluindo o facto de ele logo lhe imputar um sentido cujo alcance não apreendi na sua secreta dimensão. Nesse tempo, excluindo um ou outro artigo publicado em suplemento literário, nada mais podia apresentar, por via escrita, que indicasse o caminho que estava a trilhar nessa aproximação filial à “Escola Portuense”.

Pouco tempo depois, nos inícios dos anos 90, decorrida uma etapa feliz, mesclada de encontros, ofertas e dedicatórias de livros, troca de correspondência, projectos comuns, que me certificavam uma filiação aceite, podia contar com a adesão da maior parte desses pensadores e ensaístas às iniciativas que comecei a organizar no Porto, com o patrocínio da Fundação Lusíada, cujo presidente, Dr. Abel de Lacerda, entretanto conhecera e com o qual vim a estreitar laços de amizade e colaboração. Pelo meio, ficava uma relação mais estreita com Pinharanda Gomes, que me acolheu no seio familiar, onde pude beneficiar de funda estima e dos seus ensinamentos, envolvendo-me inclusive no trabalho de compilação dos Dispersos de Leonardo Coimbra.

De facto, tanto no Colóquio sobre Álvaro Ribeiro, como no dedicado a Dalila Pereira da Costa ou, mais tarde, no que teve por epígrafe “As Linhas Míticas do Pensamento Português”, contei com a presença e colaboração de António Telmo. Data, aliás, de Março de 1993, a primeira carta que dele recebi, confirmando que aceitava o pedido que lhe fizera de participação no encontro que nessa altura delineei – e organizei em colaboração com Joaquim Domingues –, intitulado “Álvaro Ribeiro e a Filosofia Portuguesa” (Porto, Ateneu Comercial, 14-15 de Maio de 1993), de algum modo dando sequência coloquial à homenagem feita pela Nova Renascença (Março 1993), que dedicara ao filósofo de A Razão Animada um número especial, concretizado pela vontade e esforço organizativo de Pinharanda Gomes, a que José Augusto Seabra deu total adesão, justificando-a em páginas iniciais de “apresentação” desse volume da revista (vol. XIII, n.º 48, Inverno 1993. Número esse que, além da de António Telmo, inclui colaboração de António Quadros, Pinharanda Gomes, Paulo Samuel, Alfredo Ribeiro dos Santos, Afonso Botelho, Orlando Vitorino, João Bigotte Chorão, António Braz Teixeira, Joaquim Domingues, Francisco Morais Sarmento, João Rêgo, João Ferreira. Aí se reúnem também os “escritos de juventude”, de Álvaro Ribeiro, que recolhi para acompanhar o seu “Itinerário Portuense”, os quais, pela importância que assumiam e por serem pouco conhecidos, justificaram que com eles se fizesse separata autónoma. Na sua carta manuscrita de resposta, Telmo afirma que “nenhum admirador ou discípulo” de Álvaro Ribeiro “poderá deixar de estar presente no congresso” e que irá contribuir com “uma reflexão sobre «A Teoria da Imaginação em Álvaro Ribeiro»”, o que de facto se verificou, havendo versão impressa desse texto em Viagem a Granada.

No interim, a minha relação com o autor de Arte Poética prosseguia em ocasionais encontros e conferências, realizadas no Porto e em Lisboa, através da leitura dos seus escritos ao tempo das revistas Nova Renascença e Leonardo, e numa ocasional passagem por Estremoz. Registava, nessas situações, que Telmo mantinha presente a dimensão esotérica subjacente aos seus artigos e comunicações, alimentando os comentários e observações que tornavam as suas intervenções por vezes incómodas ou polémicas. Na verdade, os textos que escrevia e lia, no seu peculiar e quase “alentejano” registo vocal, que iludia tratar-se, afinal, de um ritmo propício ao entendimento cognitivo da relação estrutural da palavra na sua correspondência sígnico-simbólica, sendo em regra breves, caracterizavam-se por  uma densidade que exigia ao ouvinte um atento acompanhamento, aliado a um lúcido entendimento, por sua vez exigente de lépida correlação imaginal e num preclaro domínio hermético da palavra.

Um ano depois, em 1994, surge um projecto que mais me aproxima de António Telmo. Pretende-se conceber e materializar uma “revista-órgão da Filosofia Portuguesa”, com o sugestivo título de “O Encoberto”, cuja capa traria uma imagem moldada sobre o desenho criado por Correia Dias para revista A Águia (esta era a sua proposta), desafio editorial que o entusiasmava e para o qual propunha também a colaboração de Joaquim Domingues. O assunto foi abordado, com detalhe, num diálogo ocorrido aquando de um encontro na Universidade Católica de Lisboa. Em todo o caso, não me foi possível levar por diante a materialização editorial desse projecto, apesar dos passos dados nesse sentido. (Mais tarde, procurei recuperar essa ideia através de uma revista, intitulada Verbo Escuro, que concebi e organizei para dar voz aos estudos pascoaesianos e a outros ensaios do pensamento português. Apesar do patrocínio que obtive do IPLB para custear essa publicação, de ter pronto o primeiro número (com textos e grafismo concluído), não consegui que a direcção da “Maránus” (Associação para a Divulgação da Vida e Obra de Teixeira de Pascoaes), à qual pertencia, concordasse em levar por diante o lançamento daquele que seria o órgão privilegiado dessa associação, da qual pouco depois me desvinculei. Julgo que a excelente revista fundada em 2000 por Joaquim Domingues, Teoremas de Filosofia, codirigida pelo próprio e por Pedro Sinde, é, em certa medida, o símile dessa publicação idealizada por António Telmo, em cujas páginas é nome recorrente, activa e passivamente.)   

Em 1996, enderecei-lhe novo convite, dessa vez para participar no colóquio sob o tema “Dalila Pereira da Costa e as Raízes Matriciais da Pátria”, que levei a efeito no Ateneu Comercial do Porto e no Centro Regional do Porto da Universidade Católica, entre 17 e 18 de Maio, complementado por apresentação pública de obras recentes da autora. Telmo discorreu sobre “Um Passeio por Trás-os-Montes”, dando-lhe versão escrita sob o título “Dalila Pereira da Costa e o Pensamento Místico”, que incluiu no volume de dispersos Viagem a Granada.

No âmbito dessas generosas colaborações, acedeu igualmente a prefaciar o livro O Brasil Mental (1997) de Sampaio Bruno, que integrei num efémero projecto de publicação das obras do filósofo portuense, aquando da direcção editorial que assumi na Editora Lello, plano que deixei consignado nesse volume, numa breve nota introdutória. Todavia, desse elenco apenas se publicaram mais dois títulos, a saber, A Ideia de Deus (1998, com prefácio de Pinharanda Gomes) e O Encoberto (1999, com prefácio de Joaquim Domingues). Volvidos poucos anos, retomei essa ideia em «Edições Caixotim», mas apenas pude publicar os três tomos de Portuenses Ilustres (2003), numa aguardada segunda edição desta obra de Bruno, que veio enriquecida com índices onomásticos e desenvolvido prefácio de José Augusto Seabra.

Nesta fugaz evocação, apraz-me ainda registar a colaboração dada por António Telmo à Leonardo – revista hoje raramente lembrada e da qual passam precisamente 25 anos sobre a data do primeiro número e da sua apresentação no Hotel Tivoli, em Março de 1988, na presença de numerosas figuras da cultura portuguesa e, sobretudo, dos mais representativos nomes da “Filosofia Portuguesa”. À Leonardo estive afectiva e idealmente ligado, participando com colaboração escrita ou acompanhando o núcleo directivo em momentos cruciais da revista, como aconteceu aquando da entrevista feita a Sant’Anna Dionísio, cujo encontro propiciei na sua residência ao Campo Lindo (Porto). Verifica-se, ao folhear os fascículos desta publicação – embora efémera, a Leonardo marcou uma época e uma geração… –, que o nome de António Telmo é praticamente constante no índice dos colaboradores. Publicou, no primeiro número, datado de Fevereiro de 1988, o artigo “O Timeu e o conceito de analogia em Leonardo Coimbra”, ocupando 7 páginas. No número 2, Junho de 88, apresenta “A teoria do instante em José Marinho”, artigo que precede a revelação de inéditos do filósofo portuense, acompanhados de uma nota introdutória de Orlando Vitorino. No número 3, de Outubro desse mesmo ano, António Telmo insere uma “Carta a Henrique Barrilaro Ruas”, respondendo às considerações que este tecera a propósito do artigo sobre o Timeu. No número 5/6 e último, datado de Março-Setembro 1989, colabora com o artigo “Sampaio Bruno, o «Encoberto»”, que ocupa duas páginas e se insere no âmbito dos estudos que dedicou ao filósofo de A Ideia de Deus. Estes artigos serão posteriormente integrados em livros do autor, designadamente no eclético Viagem a Granada.

Na revista Nova Renascença também se encontram publicados dois artigos de António Telmo. O primeiro, em data, intitulado “Dois filósofos portuenses e a simbólica do Porto” (vol. II, n.º 8, Verão 1982, p. 386-388), cuja leitura leva a descobrir tratar-se de Sampaio Bruno e de José Marinho, texto que virá a recolher no volume Filosofia e Kabbalah, com variante titular e de amplitude, pois passam de portuenses a “portugueses”. O segundo, sob a epígrafe “Filosofia e Cabala no pensamento de Álvaro Ribeiro” corresponde a uma versão distinta da sua alocução ao Colóquio de homenagem ao autor de A Razão Animada, seguindo uma linha de reflexão que permanecerá aberta até ao termo da sua vida humana.

António Telmo é um pensador arguto, cujas ideias se perfazem na sublimação de um espírito imaginal com um conhecimento de ordem hermética. Desse entrosamento fluem os seus estudos sobre a “História Secreta de Portugal”, a simbólica das Descobertas, ou os ensaios em torno da arte poética ou da linguagem críptica de Os Lusíadas e do mistério saudoso em Teixeira de Pascoaes.

Numa carta remetida em Janeiro de 1997 – na qual ainda se retorna ao projecto da famigerada revista que nunca chegou a passar das nossas intenções – Telmo alude a uma próxima viagem à Galiza e descreve o seu ponto de vista quanto à necessidade de se mudar o nome da publicação para “Portugaliza” (opção que prestes abandonará, para se manter o título original: “Portugal”). Carta dactiloescrita, nela faz, entre outras, estas considerações: “Há cerca de vinte anos, realizou-se em Santiago de Compostela um congresso sobre Prisciliano. Fernando Sanchez Drago, autor de uma História Mitológica de Espanha, em quatro volumes, foi um dos seus organizadores. Por razões que só ele conhece, visto que não tinha, como não tenho, nenhuma relação pessoal com ele, procurou-me então pelo telefone na Veja que o enviou para a Escola Secundária de Estremoz, onde lhe disseram que não havia lá professor com o me nome. Na comunicação que fez ao congresso, referiu-se com entusiasmo ao meu livro História Secreta de Portugal. Uma amiga minha, que estava presente, dirigiu-se-lhe no fim e ouviu dele a tristeza de não me ter podido contactar e de não poder ter tido, assim, os portugueses no congresso. […] Como sabe, o pensamento de Sampaio Bruno e de Teixeira de Pascoaes, para só referir o maior filósofo e o maior poeta portugueses, têm a sua raiz em Prisciliano. Toda a Lusitânia, conforme o ensino insuspeito por adverso de Menendez y Pelayo, adverso mas eminentemente sério, foi, durante cinco séculos priscilianista, abrangendo a Galiza e toda a região portucalense, estendendo-se pelo Alentejo até à Estremadura espanhola e até a Andaluzia. […]”

Estou certo – como explicitei em conferência realizada há alguns anos em Amarante, a propósito de Pascoaes – da importância que a corrente priscilianista tem na cultura e em algumas expressões poéticas e filosóficas do pensamento português. Em contrapartida, estou menos inteirado acerca das influências e sublimações da Cabala na heterodoxia portuguesa, que Telmo vinha revelando, porventura intuindo, nos últimos anos da sua vida, decerto com o precioso contributo do seu alter-ego, Tomé Nathanael.

Para lá do mais importante que foi a sua presença humana, a sua mundividência aliada a um espírito inquieto, interrogador do mistério do Ser, dimensão que alguns puderam fruir na convivência exotérica de um diálogo esotérico mantido ao longo de anos, dele resta a memória a preservar e uma obra que deve ser criteriosa e uniformemente reunida, se possível valorizada com inéditos e prováveis textos éditos, dispersos. Desde Arte Poética, “edição do autor” no ano de 1963, sob a chancela de “Teoremas de Teatro” (2.ª edição, 30(!) anos depois, em 1993, pela Guimarães Editores, acrescida de um texto inédito “sobre a poesia”), livro dedicado a Álvaro Ribeiro, como “sinal de reconhecimento”, passando pela História Secreta de Portugal (1977) , tributo “à memória de José Marinho”, ao qual se seguem Gramática Secreta da Língua Portuguesa (Guimarães Editores, 1981), dedicado “ao Agostinho da Silva” – assim se perfazendo a tríade dos nomes de quem mais se sentiu próximo – , Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões (1982), Le Bateleur (Edições Átrio, 1992), Horóscopo de Portugal (1997, que recolhe na 2.ª parte os III capítulos da História Secreta de Portugal), Contos (1999), O Mistério de Portugal na História e n’Os Lusíadas (2004), Viagem a Granada (Fundação Lusíada, 2005) e Congeminações de um NeoPitagórico (Al-Barzkh, 2006), fica uma obra que importa estudar num cruzamento interdisciplinar de saberes, aliás, implicando noções de ordem gnósica e sófica, que proficientes estudos das novas gerações decerto vão confirmar como uma via unificante do platonismo e do aristotelismo que, cada qual a seu modo, vivificam o rosto jânico do génio português na sua expressão poética e filosófica.

Na verdade, António Telmo não morreu… Apenas se ausentou, numa viagem pelo Mundo, mantendo vivo na esfera das correspondências espirituais o diálogo que permite o entendimento sobre o sentido da Luz, noutras palavras, (re)velando com o cumprimento da sua especulação filosófica a presença da Shekinah na etapa última das operações alquímicas que o espírito lusitano, ou saudosismo,  há-de cumprir. 

Aí fica, pois, este registo recuperado da memória e de anotações avulsas, cujo maior alcance foi ter-me conduzido à revisitação da obra de António Telmo, homem da filosofia e filósofo do homem, numa harmonia que entendeu conciliar, um amigo e mestre a cuja memória tributo um aceno de lembrança.

INÉDITOS. 35

27-11-2014 21:18

"Sou católico pelas festas"[1]

Um dia, durante um ágape, alguém ironizou estupidamente ao dizer que, pretendendo o Afonso Botelho ser um pensador católico, ou deixava de pensar ou deixava de ser católico, significando por esse modo que religião e filosofia são incompatíveis. O Afonso Botelho respondeu secamente:

“Sou católico pelas festas”.



[1] Título da responsabilidade do editor.

 

VOZ PASSIVA. 36

24-11-2014 10:44

António Telmo e o bilhar

Hernâni Matos 
 
Palavras proferidas na Homenagem a António Telmo
promovida pela Sociedade Recreativa Popular Estremocense no dia 23
de Agosto de 2014
 
À laia de justificação
 
Creio seguramente que, neste preciso instante e nesta sala, alguns dos presentes estarão a perguntar a si próprios:
 
- O que é que este sujeito está aqui a fazer? Ele não era amigo, nem tão pouco discípulo de António Telmo, não frequentava a Tertúlia do Café Águias de Ouro, não é jogador de bilhar, nem pertence ao Círculo António Telmo. Porque é que o fulano está aqui?
 
Passo a responder:
 
- Estou aqui pela razão exacta de não ser nenhuma dessas coisas. É que António Telmo não se esgotava no conjunto daquelas vertentes.
 
Ao longo da sua permanência em Estremoz, António Telmo teve escassa interacção comigo, mas foi quanto bastasse para eu perceber a consideração que nutria por mim, à qual naturalmente sempre correspondi, não por mera questão de cortesia, mas por reconhecer a sua grande envergadura intelectual e admirar o seu gosto pela autonomia e pela liberdade de pensamento. Foi essa força indomável e insubstituível do seu pensamento que me levou a vir hoje aqui, testemunhar o apreço que tenho pela sua vida e pela sua obra e dedicar-lhe com humildade as palavras que se seguem.
 
Falemos de bilhar
 
Na minha família existe há muito um intenso fascínio pelo jogo de bilhar.
 
Meu pai, alfaiate particular de António Telmo, tinha, tal como ele, o jogo na massa do sangue. Era exímio praticante de bilhar, exercício que praticava na Sociedade de Artistas Estremocense e no Café Alentejano.
 
Nos anos sessenta do século passado, aquele Café encerrava as portas às duas da madrugada, hora até à qual se podia jogar bilhar, xadrez e mahjong. Entre os seus parceiros destes jogos, estava o tenente Graça Gonçalves, combatente da 1ª Grande Guerra Mundial e dentista de profissão, em cuja morada actualmente resido. O seu consultório de tortura é hoje a minha pacífica sala de estar.
 
A minha memória do jogo de bilhar remonta aos quatro anos de idade. Nessa época, o meu tio paterno, recruta em Elvas, sempre que podia vinha passar o fim-de-semana connosco e levava-me a passear com ele. Escusado será dizer que o fascínio pelo bilhar, que ele também partilhava com o meu pai, o conduzia inevitavelmente ao Café Alentejano, onde existia então uma sala de jogo com duas mesas de bilhar. E foi nessas circunstâncias que, certo dia de Carnaval, trajado de lavrador, com farpela confeccionada pelo meu pai, me vejo ali a assistir a um jogo de bilhar. Os jogadores pertenciam à fina-flor das tacadas, pelo que o meu tio seguia entusiasmado a partida. Dali não resultaria mal nenhum, não se tivesse dado o caso de eu ter sido acometido por forte dor de barriga, que me levou a implorar-lhe:
 
Tio leve-me à retrete, que eu quero fazer cocó!
 
A resposta foi peremptória:
 
- Está sossegado rapaz, deixa-me lá acabar de ver esta jogada!
 
É claro que eu, gaiato de palmo e meio, obedeci ao meu tio. Os meus intestinos é que não, pelo que acabei por me borrar pelas pernas abaixo. Contrariado, o meu tio acabou por não ver o fim da jogada e lá teve de me levar para casa, a fim de a minha mãe me lavar. Nessa altura, eu já não tinha necessidade de evacuar, tinha era de ser evacuado urgentemente da sala de jogos, onde o chão e a atmosfera ficaram assinalados pelos meus intensos e infantis fedores fecais.
 
Eu morava então numa casa na rua da Misericórdia, que depois foi derrubada para ampliar o edifício dos Correios. O caminho ainda foi longo, pois tivemos que contornar a vetusta Igreja de Santo André, que ainda não tinha sido derrubada às ordens do Ditador, para ali erguer o mostrengo que é o actual Palácio da Justiça. Ao longo desse trajecto que parecia não ter fim, eu ia deixando marcas da minha passagem. Chegado a casa, o meu tio ouviu das boas e a minha mãe lá teve que me dar banho numa banheira da época, que era um avantajado alguidar de zinco, estrategicamente disposto na sala de arrumações. É pois compreensível que aquele jogo de bilhar tenha perdurado como forte registo da minha memória.
 
Mais tarde e já na juventude, o meu pai procurou iniciar-me nos jogos, entre eles o jogo de bilhar. Todavia, contrariando o adágio, filho de peixe não soube nadar, pelo que nunca passei dum péssimo jogador.
 
Na Universidade formei-me em Física, que grosso modo é uma espécie de râguebi da Ciência, onde só cabem os duros. Foi então que interiorizei a Física e a Matemática do bilhar, das quais passei testemunho ao Manuel, filho do António Telmo, de quem fui professor na Escola Secundária de Estremoz. Comigo, ele trabalhou as noções de momento linear e de momento angular de um corpo, a teoria das colisões, as leis da conservação e de variação do momento angular de um corpo, bem como o teorema da energia cinética. A aprendizagem do Manuel foi fácil, já que o terreno era fértil. Como opção de vida, o Manuel tornou-se seareiro numa área que também foi minha e, curiosamente, no bilhar seguiu também as minhas pisadas, que não as do pai.
     
Quanto a mim e como já disse, apesar de dominar a Física e a Matemática do bilhar, sempre fui péssimo praticante do “jogo de perícia e de saber que António Telmo tanto amava e de que foi praticante emérito”, como nos diz Armando Alves, seu amigo e companheiro de jogo.  
 
Pessoalmente, julgo que me faltam a perícia e o saber-fazer no jogo abordado por Camilo Castelo Branco em “Aventuras de Basílio Fernandes Enxertado”, por Eça de Queirós em “Os Maias” e por Alberto Pimentel em “O Lobo da Madragoa”.
 
A propósito do jogo do bilhar, existe um texto colhido em “Viagem a Granada”, onde António Telmo se entrevista a si próprio, dizendo a certa passo: “…o bom jogador tem de concertar entre si, antes de dar a pancada, mentalmente já se vê, cinco factores: a força com que a bola é impelida, o efeito que se dá na bola, a quantidade de volume a apanhar da bola que primeiro visamos tendo em conta as posições angulares, o ponto da tabela onde a nossa bola vai bater, e tudo isto numa apreensão sintética que implica uma concentração perfeita para que a jogada resulte”.
 
Mas o que é isto? Vindo lá de cima, onde António Telmo parece estar a jogar bilhar com o meu pai, estou a ouvir uma conversa onde o primeiro diz: 
 
- Amigo Matos, o seu rapaz é um artista das palavras, tal como você o foi dos fatos. Porém, a conversa já vai longa...
 
E agora António Telmo está a dirigir-se directamente a mim, proclamando:
 
- Oh Matos filho, são quase horas de almoço e todos estão fartos de o ouvir falar. Despache lá a conversa e depois vá “dar uma volta ao bilhar grande!”
 
É claro que não posso ficar indiferente a esta Mensagem, pelo que peço à Maria Antónia, amor da sua vida, que descerre o retrato de João Albardeiro que a Direcção da Sociedade Recreativa Popular Estremocense, em boa hora deliberou colocar aqui para assinalar e perpetuar a passagem de António Telmo por esta casa, da qual foi um animador incansável do jogo de bilhar e um notável jogador, cujas tacadas deleitaram quem o viu jogar. Casa onde ele soube também interpretar o simbolismo oculto do rico património azulejar das salas, que o levou a concluir estar em presença duma loja de São João.
 
Para o António Telmo, que nos está a ver e a ouvir lá em cima, peço uma calorosa salva de palmas.
 

DOS LIVROS. 26

20-11-2014 16:25


Etimologia Sagrada

 

Para um leitor mais interessado, a reflexão da gramática portuguesa pelos princípios da arte poética não ficará completa se não tentarmos ver como os valores dos fonemas formam os significados das palavras. Neste domínio, o risco de se cair na fantasia, esse falso duplo da imaginação, é tão grande que hesitámos em escrever sobre o assunto. Qualquer pessoa pode conduzir ou desviar uma palavra para o significado que lhe aprouver, considerando nela apenas a letra ou letras que lhe convêm. Todavia, é possível mostrar alguns pontos firmes, perante os quais a fantasia se quede para ceder o lugar à razão poética. 

Os tons e os sons do segundo triângulo (os sopros) imitam facilmente as naturezas sonoras e, por isso, a língua utiliza-os onomatopaicamente para formar palavras. É o caso de silvo, voo, seta, flecha, azagaia, vento, sopro, etc. Análoga relação se estabelece por meio do R em palavras significativas de vários movimentos: correr, carro, roda, corrupio, rio, rua, etc. O til (m-n) é também gerador de palavras onomatopaicas: som, tom, tambor, tímpano, sino, bombo

Outras letras, todavia, que exprimem ideias mais distantemente dos sons naturais e artificiais, não deixam de animar de sentido inúmeras palavras. Assim o N e o L.

Ninho, é o lugar interior da germinação dos ovos.

Certas formas isoladas e definidas na superfície homogénea do mar são designadas por vocábulos em que impera o N: navio, nau, nave, canoa, nadador

A nuvem, a neve e o nevoeiro ou a neblina sugerem a ideia de um elemento compacto, mais ou menos indiferenciado, uma espécie de germe esparso.

Para o L e de acordo com o seu valor temos, por exemplo, leve, ligeiro, ágil, alado, alto.

Poderíamos multiplicar os exemplos nestas e nas restantes letras, mas, em contrapartida, seria fácil apontar inúmeras palavras nas quais a relação procurada não é imediatamente evidente. Por outro lado, há, quase sempre, vários elementos significativos na mesma palavra que a põem em relação com sephiroth, triângulos e colunas diferentes. A unidade semântica deve formar-se com todos esses factores, à volta daquele que se oferece como dominante. O supérfluo foi considerado por Platão, no Crátilo, mero factor de embelezamento.

A multiplicidade de direcções na mesma palavra pode, mais uma vez, constituir o pretexto da fantasia para formar étimos vazios. O rigor que, do ponto de vista histórico-linguístico, falta a este tipo de etimologias deverá dar lugar a um rigor de outra espécie, que é o da própria razão poética.

A chave do problema é dada por Platão no Crátilo. Neste domínio, a razão poética tem como condição da própria actividade a inspiração. É assim que Sócrates, possesso do «daimon» de Eutyphron, desfia perante dois interlocutores atónitos centenas de etimologias falsas. A posição dos participantes no diálogo inverte-se. Sócrates de interrogador de Hermógenes passa a interrogado, como interrogadas são as pitonisas que proferem oráculos. Em certo momento adverte-o de que deve estar vigilante e que não deixe que tudo se explique por tudo. Quando o ritmo da interpretação das palavras se torna mais veloz e saltitante, declara que a inspiração de Eutyphron estava a chegar ao fim. Recebera esta inspiração por contacto com o adivinho, com quem estivera a conversar nessa manhã. Quando tivesse acabado, deveria purificar-se.

Os modernos intérpretes do Crátilo são, na generalidade, concordes em atribuir à ironia platónica estas etimologias, na verdade das quais o filósofo seria o último a acreditar. O principal argumento é a estupidez de Eutyphron, um adivinho de Atenas conhecidíssimo pelo seu fanatismo e que figura, nessa qualidade, noutro diálogo de Platão. Este, em consequência, não podia tomar a sério a inspiração provinda de semelhante espírito.

É um argumento de quem não leu o Fedro. Há, neste livro, uma passagem de exaltação da sabedoria das pitonisas, quando possessas, onde no entanto se diz que, fora dos momentos de inspiração, essas mulheres são seres completamente banais. Outras razões existem, contudo, para considerar destituída de qualquer fundamento a opinião dos modernos. Daremos algumas: 1 – Não se compreende uma ironia tão paciente e demorada, mantendo-se durante várias horas e repetindo-se em cada nova etimologia das várias centenas que Sócrates propõe; 2 – Várias dezenas de páginas teriam sido escritas para nada dizerem; 3 – Noutros diálogos e nos momentos mais sérios e solenes da reflexão filosófica, algumas das etimologias apresentadas no Crátilo servem de fundamento à doutrina que Platão quer transmitir. Ainda por cima, o seu discípulo Aristóteles também as utiliza: é o caso, por exemplo, da etimologia de éther (aei thein) transposta para o livro Do Céu a significar o movimento perpétuo e circular dos seres divinos.

Tudo se torna claro, deixando de haver oposição entre a linguística moderna e a sabedoria, quando admitirmos para cada língua duas espécies de genealogia: uma histórica e terrestre; outra que designamos por urânica. Todavia, já no tempo de Platão essa oposição tomava como hoje a forma de conflito: «os homens que, na Antiguidade, instituíram os nomes não tinham a opinião de que a inspiração, mania, fosse uma coisa vergonhosa e nem sequer um opróbrio. Pelo contrário, ligando a palavra mania à arte mais bela, àquela que permite predizer o futuro, chamavam-na pelo nome de manikê. Olhavam a inspiração como a mais bela coisa, desde que exprimisse um dom divino e, por isso, a denominavam assim. Os modernos, porém, que perderam o sentido do belo, introduziram na palavra um T e chamaram à arte divinatória mantikê. Compare-se a esta a arte dos homens que se dominam, dedicando-se a predizer o futuro por meio das aves e de outros signos; é uma arte, na verdade, que, por meio da reflexão, transmite à opinião dos homens, oiésis, inteligência e conhecimento, noús e historía. Eis por que tal forma de arte foi pelos antigos denominada oio-no-histikê. Hoje, os modernos designam-na por oiônistikê, com um o longo para tornar a palavra majestosa. Todavia, quanto mais perfeita e digna a arte do adivinho! Comparados os nomes e as funções do adivinho e do áugure, como é superior, pela beleza, a inspiração à dedução, a inspiração que provém do deus à ciência que vem dos homens!» (Fedro, 244 c – 244 d).

Perante uma palavra como noite, quem é capaz de sentir, como Pascoaes e Pessoa o fazem, a obscuridade vagamente luminosa do ditongo e a interioridade profundíssima do N? Quem, como o poeta italiano Julius Evola, sabe ver em «Narciso» a auto-reflexão expressa na própria figura gráfica do N – eu sou eu, a face diante da face – e também a morte e a queda, no fascínio das duas dentais sibilantes, deste modo aparecendo o nome a traduzir o próprio mito? 

Duas condições são, com efeito, necessárias nesta arte de formar etimologias pelos valores do diagrama principial: uma alteração da alma e uma lúcida embriaguez pela qual a razão poética organiza as formas da inspiração num sistema universal de pensamento. Em termos já familiares ao leitor, diremos finalmente que no Sócrates, interlocutor do Crátilo, se dá o encontro de Yesod e de Thiphereth.

 

António Telmo

 

(Publicado em Gramática Secreta da Língua Portuguesa, 1981) 

EDITORIAL. 01

20-11-2014 09:26

Projecto António Telmo. Vida e Obra. Ano II: O verdadeiro poder é servir

 

O Projecto António Telmo. Vida e Obra completa hoje um ano de vida. Dizemos vida e não existência, querendo com isso significar o entusiasmo que depositamos em quanto fazemos pela perpetuação da memória do nosso patrono, inventariando, estudando, publicando e divulgando a sua obra e o seu pensamento, no quadro mais vasto do movimento da Filosofia Portuguesa.

Nascido em resposta a circunstâncias as mais difíceis, o Projecto, estamos em crer, impôs-se pela seriedade, pelo rigor e pela perseverança com que procura concretizar as suas propostas.

A nossa página electrónica, onde temos vindo a publicar dezenas de escritos inéditos e de dispersos hoje quase esquecidos de António Telmo, está prestes a alcançar, no ano civil em curso, o patamar das 50.000 visitas.  

As Obras Completas de António Telmo, com um primeiro volume – A Terra Prometida – lançado em Junho e o segundo – Gramática Secreta da Língua Portuguesa precedida de Arte Poética – a sair da tipografia nas próximas horas, são hoje, contra ventos e marés por vezes insólitos, no seio da editora Zéfiro, uma realidade inquestionável a que o Projecto presta o necessário apoio institucional e científico. O terceiro volume encontra-se já em fase adiantada de preparação.

As Tardes Télmicas, levadas a cabo em parceria com a Câmara Municipal de Sesimbra, asseguram à actividade do Projecto uma programação regular, propiciadora do estudo da obra de António Telmo e dos autores que lhe estão próximos, bem como do território arrábido que foi também o de António Telmo.

O ano de 2014 ofereceu ainda ao Projecto António Telmo. Vida e Obra o ensejo de comemorar com dignidade e ambição o 20.º aniversário da morte de Agostinho da Silva, um dos quatro mestres de António Telmo. O ciclo Agostinho da Silva. 20 anos depois: um património télmico, pelos projectos de investigação que estimulou e pela inequívoca expressão nacional que adquiriu – e a sessão de apresentação dos livros Agostinho da Silva em Sesimbra e Cartas de Agostinho da Silva para António Telmo, no próximo dia 26, às 18:00, na Biblioteca Nacional, é disso mesmo um corolário, como o será também a sessão de 20 de Dezembro, na Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, com a presença do Professor João Ferreira –, o ciclo, dizíamos, tem levado a vários distritos de Portugal a memória de uma herança com fortes traços de união: aqueles que, por quase três décadas, uniram Telmo a Agostinho.

Instituição associada ao recém-criado Instituto Fernando Pessoa, o Projecto António Telmo. Vida e Obra é hoje uma realidade irradiante congregando mais de duas dezenas de membros de norte a sul do país, e concitando o respeito de várias instituições que connosco têm estabelecido laços de parceria, às quais, reconhecidos, expressamos agora a nossa gratidão: as editoras Zéfiro e Licorne; o Centro de Estudos Bocageanos, a Fundação António Quadros, a revista de cultura libertária A IDEIA, o Clepul e a Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto; as Bibliotecas Municipais de Sesimbra, Setúbal e Redondo, a Biblioteca-Museu República e Resistência e o Museu Municipal de Sesimbra (e respectivas edilidades); e a Escola Secundária de Estremoz – dão bem a medida da credibilidade que o Projecto já granjeia, somente um ano depois de ter sido criado.

Uma palavra mais, de profunda gratidão, à família de António Telmo, na pessoa de Maria Antónia Victorino, membro honorário do Projecto António Telmo. Vida e Obra, pela confiança e pelo apoio dados a um grupo que saberá continuar a honrar a memória télmica, à margem das ambições que tendem a surgir quando o poder se institui organicamente. É neste espírito libertário de independência e de missão que o Projecto diariamente se alicerça, constrói e reinventa, porque, como muito bem diz o Papa Francisco, o verdadeiro poder é servir.     

DOS LIVROS. 25

18-11-2014 10:14


Propósito

 

O estudo, breve mas condensado, que apresentamos nas páginas seguintes, será talvez o germe de outro, cujas características determinamos nas linhas finais deste escrito. Dizemos propositadamente a palavra «germe». É que, meditado à medida que ia sendo escrito, este livro não obedece ao esquema construtivo habitual, não caminha das teses para as provas pelos argumentos: – é um livro mal escrito. Cremos, porém, que esse será o destino de todos os escritos que vierem a ser elaborados sobre Bergson e que pretendam interrogar para além do que foi definido pelos intérpretes. Não procurámos integrar o pensamento de Bergson dentro da história da filosofia; fizemos sempre por ver esse pensamento à luz da actualidade, isto é, das ideias actuais, das que se pensam hoje, ontem e amanhã. Convictos da importância da literatura, compreendendo neste termo tudo quanto habitualmente se compreende menos a filosofia, cruzámos constantemente a nossa interpretação com as formas da arte poética, no duplo intuito de animar a filosofia e de reintegrar a poesia no pensamento.

Efectivamente, só um critério artificial pôde estabelecer a dissociação entre a literatura e o pensamento, e se é bem certo que no início do processo se vêem agentes estranhos à associação espiritual dos artistas, hoje pode dizer-se que estes representam uma das forças activas que defendem tal dissociação. E é curioso que o bergsonismo, ao distinguir inteligência e intuição, tem servido de apoio à corrente de opinião que circula entre os escritores orgulhosos de não pensarem, de serem intuitivos, sensitivos, imaginativos. Manifestam assim um amargo desprezo pela ciência, que, no fundo, admiram e até temem, e opõem-lhe, como expressões de um valor superior, em que, afinal, não acreditam, as formas em que cai o espírito que perdeu o poder. Procurámos, por isso, interpretar o bergsonismo como uma filosofia que identifica por um lado pensamento e intuição, por outro lado ciência e imaginação. Só esta via, que percorre o caminho inverso da interpretação mais divulgada, se nos afigura fecunda. É evidente, porém, e como consequência do restabelecimento no conceito da primigénia relação da literatura com o pensamento, que muitos escritores têm de continuar a defender o critério oposto se quiserem que os seus livros persistam na admiração do público, embora para viverem apenas uma existência efémera, dependente da extensão da rede tecida pelo elogio mútuo.

Uma palavra sobre a «comédia». Falta neste opúsculo, um capítulo sobre «o riso e a significação do cómico» no pensamento de Bergson. Parece indesculpável num escrito que se chama Arte Poética, mas justifica-se dentro do método de investigação que nos conduziu de princípio a fim. Sobre a «comédia» escreveu o filósofo um livro de trezentas páginas, ao passo que deixou apenas, sobre as restantes formas literárias, algumas observações que, em geral, passam desapercebidas. Como o espírito que actua nos sonhos desenvolve numa trama significativa de imagens os acontecimentos insignificantes da vida de vigília, esquecendo ou desprezando quase sempre os que parecem mais importantes, assim nós procurámos ver o que Bergson calou nas entrelinhas e fixámos, por isso, o interesse sobre a alusão veloz, sobre a imagem fugitiva, cuja aparição, em Bergson, se dá permanentemente em figura comparativa. Aliás, uma interpretação de Le Rire, que não seguisse um método análogo, nada provavelmente viria acrescentar de novo e de positivo a quanto já tínhamos dito: – antes nos atiraria para zonas em que preferimos, por enquanto, não tocar. O riso oferece sempre o perigo de todos os corrosivos, como notou J. Paul Richter ao escrever: «Todas as definições são cómicas».

Fechado o parêntesis, diremos ainda a propósito da relação da literatura com o pensamento que a dificuldade que muitos sentem em estabelecê-la de modo positivo reside na concepção particular que formam da filosofia como uma actividade exclusivamente mental. Não é que ela seja isso e algo mais, – um complexo de raciocínio, sensitividade, imaginação. A distinção é muito mais funda. É a própria distinção entre filosofia especulativa e filosofia operativa. E é até o facto desta poder ter a sua expressão naquela que garante a hipótese de a poesia, o teatro, o romance poderem ser, por sua vez, formas distintas, mas convergentes, da mesma experiência secreta. Contra uma filosofia raciocinante, a que não corresponde nenhuma espécie de transmutação interior, e que constitui, afinal de contas, uma efémera evasão do mundo da acção, da qual sempre se regressa desiludido, sempre protestou Bergson. Mas poderia ter protestado igualmente contra as análogas formas de imaginação artística.

Cremos que o nosso essencial propósito fica assim assinalado. O leitor dirá, depois de ter lido esta meia centena de páginas, se também ficou esclarecido.            

 

António Telmo

 

 

(Publicado em Arte Poética, 1963)

INÉDITOS. 34

13-11-2014 11:14

Duas páginas sobre Verdade, Condição e Destino no Pensamento Português Contemporâneo, de José Marinho

 

O último livro de José Marinho, publicado meses depois da sua morte, Verdade, Condição e Destino no Pensamento Português Contemporâneo, para lá de um esperançoso optimismo, ancorado no contributo filosófico de alguns homens singulares, que permite confiar no destino de um pensamento que, em sucessivos fulgores, se vai aproximando da verdade, mostra como o mais puro e corajoso movimento do espírito português se embaraça e prende na condição da alma mística de um povo, capaz de levar a noção indeterminada de liberdade até á profecia, mas que tende cada vez mais a fixar-se no pior dos fanatismos – o fanatismo da razão. A razão é, sem dúvida, a condição da filosofia, a razão, como disse Leonardo Coimbra, que é sem descanso perante uma intuição inesgotável. É a condição, porque se a razão falece o espírito do homem é avassalado e perde-se num mar de sensações transcendentes que constitui o mundo da intuição. Uma razão, insegura da sua força, fecha-se, para poder subsistir, ou constitui-se à parte, para poder ponderar, da intuição e até da sensação. Por outro lado, não se interroga sobre si própria, une-se a si própria como um fiat instituído ab aeternum. Ficam assim criadas as condições para que se estabeleça definitivamente uma mística da razão, a mais temível e paradoxal das místicas, porque a razão é a própria negação de tudo quanto é místico. Para José Marinho, se bem o entendemos, reside a qui a relação crucial que nos define a nós povo português, se quisermos tirar todas as ilações, como um povo irremediavelmente perdido para a vida do espírito.

   

*

*      *

 

Os amigos de José Marinho ouviram-no repetidamente dizer nos últimos meses da sua vida que se voltasse a nascer na terra não queria nascer português. O seu último livro, Verdade, Condição e Destino no Pensamento Português Contemporâneo, só alguns meses depois da sua morte veio a ser publicado porque o editor receou, conforme carta escrita ao autor, fazê-lo sair em plena ditadura comunista. Este livro só de filosofia, um livro amável, como o próprio José Marinho o era para todos os conviventes pensassem o que pensassem, teve de esperar por Eanes para poder vir a ser lido por alguns portugueses.

É um livro eminentemente paradoxal, porque do país onde não queria voltar a nascer, do país mais anti-filosófico do planeta, José Marinho assenta sobre a própria negatividade a condição que define o destino de pensamento contemporâneo português para a verdade.

Fica-nos a impressão, após a leitura do livro, de que José Marinho, situável entre os pensadores místicos (…)[1]   

 

António Telmo



[1] António Telmo interrompeu aqui a escrita da frase. 

 

INÉDITOS. 33

11-11-2014 10:22


O grande adro de Arruda[1]

 

Acabei de ler, lentamente reflectindo, a sua carta e o seu admirável texto de aproximação católica ao Agostinho da Silva.

Digo aproximação a pensar numa frase que um dia me confidenciou o José Marinho: «Das igrejas só amo o adro.» Foi num adro, o da igreja de Arruda dos Vinhos, que se decidiu (no sentido da cápsula que se abre para libertar as sementes) o que vim a ser depois em participação no espírito ao longo da minha vida. Ali havia uma porta manuelina pela qual trepávamos brincando, por onde saíam e entravam o padre, um simpático velho alentejano, e as suas ovelhas, por onde entravam os caixões que se abriam lá dentro expondo o horror cadavérico de homens sem alma; e havia também o grande sino que eu fazia vibrar com uma pedra da fisga, simultaneamente contente e receoso do que me parecia um pecado contra a Igreja, mas um belo pecado pelo valor da pontaria e de produzir por mim próprio o divino som. Os jogos sucediam-se (pião, berlinde, botão, malha) ao longo do ano numa ordem litúrgica certa, que nenhum individualmente dos rapazes conhecia, mas que vinha não sabíamos de onde cumprindo-se sem erro ou desvio. Só saíamos do adro para caçar pássaros, colher espargos, procurar o trevo de quatro folhas ou encontrar ninhos. Dividíamo-nos em grupos que funcionavam como uma associação secreta. Ai do que dissesse a um de outro grupo em que árvore dos vastos campos se encontrava um dos muitos ninhos que eram propriedade do grupo. A fisga que leva a morte aos corações alados que são os pássaros, a caça aos ninhos, o espreitar dos cadáveres expostos, as pedradas no sino da igreja e também o jogo continham um elemento de mal que hoje me arrepia e espanta quando sinto saudades da infância subitamente despertadas por ouvir um pássaro cantar. O adro, os adros, a sensação de liberdade, os grandes adros como o de Arruda, onde se fazia o arraial de Agosto, onde conhecemos a nossa primeira namorada no meio de tanta gente alegre.

Não digo mais. Não é próprio de uma carta que responde a tão profundamente pensado escrito sobre o Agostinho da Silva e a uma carta de reflexão sobre o mistério do tempo vir com as minhas recordações só para dizer, com o José Marinho, que o importante não é entrar na igreja, mas sair dela, depois de nela ter estado. (…)

 

António Telmo

 


[1] Título da responsabilidade do editor. Dactiloscrito encontrado no espólio. Trata-se de um esboço ou projecto de uma carta destinada a um convivente de António Telmo não identificado no texto, que presumimos ter sido escrito em 2006 ou 2007, atento o contexto agostiniano e a referência pessoal a um terceiro, feita nos dois derradeiros períodos do original, que aqui se não transcrevem por razões de reserva da vida privada. Desconhecemos se chegou a ser enviada a carta de que este escrito, tão relevante no plano autobiográfico como no da ideação de António Telmo, parece ter sido uma versão preparatória.

 

VERDES ANOS. 09

09-11-2014 10:13

Das artes plásticas para a arte poética[1]

 

Líamos um estudo sobre Freud e o espírito perseguia uma ideia que supomos existir nos escritos do pensador austríaco, mas não aparece com nitidez provativa, quando deparámos com uma citação que satisfazia perfeitamente os nossos intentos. Era um estudo sobre «Freud e a Tradição Mística Hebraica», escrito por David Bakan e traduzido do inglês para o francês por P. Osusky e Dr. E. Risler. As linhas da citação tinham sido extraídas de um ensaio de Freud sobre «O Duplo Sentido Antitético das Palavras Primitivas», e eram as seguintes: «Abel» (nome de um filólogo estudado por Freud) cherche à expliquer le phénomene du renversement du son des mots par un redoublement, une reduplication de la racine. Nous aurions peine ici à suivre le philologue. Nous nous rappelerons le plaisir avec lequel les enfants jouent au renversement du son des mots, la fréquence avec laquelle l’élaboration du rêve se sert du renversement du matériel représentatif à diverses fins. Ce ne sont plus, dans ce cas, des lettres mais des images dont l’ordre se trouve inverti. Nous serions donc plutôt disposés à rapporter le renversement des sons à un facteur agissant à une profondeur plus grande[2]. (Os sublinhados são nossos). Estas últimas linhas aludiriam, sem dúvida, a uma importante lei psíquica, segundo a qual, no domínio do inconsciente, as palavras são anteriores às imagens e actuam sobre elas, – modificando-as, transmutando-as, condensando-as, deslocando-as, exercendo enfim uma acção que compreendem muito bem os poetas experientes de como os tropos alteram as imagens.

Como tínhamos em nosso poder as «Obras Completas» de Freud, na tradução espanhola de Luíz Lopez-Ballesteros y de Torres, ordenada e dirigida pelo Dr. Germain, dirigimo-nos imediatamente para o nosso quarto com o fim de ler todo o escrito de onde tinham sido tiradas aquelas linhas. Era muito possível que ali se encontrasse qualquer coisa de mais explicativo. Contudo, esperava-nos uma desilusão. Nem sequer o sentido das últimas palavras sublinhadas era o mesmo, conforme poderá o leitor verificar. O espanhol dizia assim: «Abel intenta explicar el fenómeno de la metatésis por una reduplicación de la raiz. En este punto no sería ya difícil seguir al filólogo. Recordamos lo aficionado que son los niños a invertir en sus juegos las palabras, y cuán frequentemente emplea la elaboración onírica la invasion de su material de representación para diversos fiens. (En esto ultimo caso no es el orden de sucesión de una serie de imágenes). Así, pues, nos inclinaríamos más bien a atribuir la metatésis a un factor de alcance más profundo.» Mais profundo, entenda-se, do que o redobro da raiz e não, como supuséramos, do que a elaboração de imagens.

Talvez que uma sugestão se tenha exercido, durante a leitura do texto francês, vinda da ideia que perseguíamos; não é menos verdade, contudo, que a expressão deste texto é equívoca. Além disso, um sinal de que não devemos confiar absolutamente nas traduções é dado pelos próprios exemplos citados. Compare o leitor as duas primeiras frases que num e noutro texto sublinhámos e repare como o seu sentido é oposto. Aqui, porém, vê-se logo que o tradutor espanhol foi quem se enganou.

Assim avisados dos erros fortuitos ou intencionais das traduções, gostaríamos de consultar o texto original de Freud e o texto em inglês de David Bakan. Uma razão fundamental nos leva a desconfiar que este último pudesse ter dado intencionalmente um sentido equívoco à sua tradução. É que uma das características da tradição hebraica a cujos princípios aquele autor pretende referir a doutrina de Freud consiste precisamente na importância conferida à palavra. Logo nas primeiras linhas do Génesis se lê: «Deus disse: Faça-se a luz!» A luz é um efeito da palavra divina, e portanto também o é todo o mundo das imagens, do sonho e da vigília. É esta uma relação que explica, por outro lado, a atitude hebraica para com os ídolos.

Sabe-se hoje que a tradição hebraica constitui um dos três elementos da tradição portuguesa[3]. Também o cristianismo, situado no vértice supremo do triângulo, não contradiz, mas, pelo contrário acentua a primordialidade do verbo, mais explícita no Evangelho de S. João. Ao autor destas linhas, dado o carácter sagrado e secreto da teologia, tem-no interessado muito mais ver se perscruta algo de correspondente na antropologia. Assim, não deixa de ser curioso e até útil ver como o problema das relações da palavra com a imagem se projecta no domínio artístico.

Para muita gente constitui um desgosto a pobreza exibida em relação a outros povos pelas artes plásticas portuguesas. Não temos pintores ou escultores como os franceses, os italianos, os espanhóis ou os holandeses. Estará aqui um dos motivos, talvez o menos significativo, do interesse criado à volta dos painéis de Nuno Gonçalves. Sem dúvida que, nos nossos dias, aparecem cada vez mais artistas plásticos. É-lhes dado até um lugar nas páginas literárias dos jornais e das revistas que sobreleva o da própria literatura. Cremos, porém, que tal acréscimo se deve explicar em função da influência que a cultura francesa exerce entre nós, influência que sempre dispensámos no domínio das artes poéticas. Por muita admiração que nos mereçam poetas como Rimbaud, Baudelaire ou Breton, bastará compará-los com alguns da era de Bruno, como Junqueiro, Eugénio de Castro ou António Nobre, para reconhecer a superioridade dos portugueses. Ligamos esta superioridade não só à índole da língua portuguesa, como também a uma natural e quase atávica mestria que possuímos dos segredos das palavras.

Utilizando a técnica do «salto»[4], arriscaremos agora uma hipótese: a de que a pintura modernista revela, em relação à pintura do passado, um sentido mais próximo daquele a que tende a arte poética. Perante certas pinturas picassinas, o apreciador, impedido de as referir a qualquer coisa de exterior e até a qualquer conteúdo simbólico, não sabe que dizer, sempre que prescinda dos lugares comuns dos críticos plásticos. Pelo contrário, nas pinturas imitativas ou representativas, que imitam figuras ou representam ideias, há sempre um ponto de referência. O tropo estabelece-se então na forma comparativa, e o apreciador satisfaz-se no fácil exercício intelectual que lhe fornece as palavras do seu juízo estético. Falta, porém, todo o ponto de apoio na arte pura dos modernistas e daqui o dizer-se que ela constitui uma arbitrariedade ao alcance de qualquer. Se isto é parcialmente verdadeiro naquelas manifestações de pintura dependentes dum processo automático no qual se transfere para outro, para alguém, que comunica através do artista, o momento negador da arbitrariedade, o mesmo não pode dizer-se daqueles quadros em que o espírito do pintor procede como um agente livre que exerce um poder. Não deve pôr-se o problema de saber se há artistas que cheguem a realizar mentalmente as formas objectivamente actuantes, porque mais importa reconhecer a possibilidade dessa realização. O facto de fixar na tela o que é uma palavra vivente já nos leva, porém, a pensar que o artista não teve resistência para conduzir o processo até ao fim. É também isto que se dá no poeta, com a variante de desviar para veículos verbais uma energia cujo potencial não foi capaz de suportar?     

Este problema preocupou Bergson e cremos ser nesse sentido que se deve interpretar a sua afirmação de que a arte é inferior à filosofia. Contudo, as palavras dos poetas são muito mais afins às energias livres do que as imagens em que o pintor as fixou. Podem conseguir-se mais surpreendentes efeitos, no domínio da vida interior, lendo uma poesia como a «Oração à Luz», com o espírito a mover-se nos ritmos das vogais e das consoantes, do que a contemplar uma tela. De resto, torna-se indispensável, e como indispensável sentimos, uma legenda, inscrita no quadro ou preparada por nós, para transmitir ao espírito o ímpeto da interpretação. Por outro lado, um pintor que tentasse traduzir a «Oração à Luz» em termos de plasticidade, dificilmente o faria por meio de figuras.

Concluindo: Os tropos alteram as imagens e toda a imagem é a fixação dum tropo. Tanto no domínio da arte como no da natureza. E já que aludimos a Bergson, dizemos que é este um dos aspectos menos atendidos da sua filosofia e que deveria ser relacionado com a Crítica da noção materialista da impenetrabilidade da matéria[5]. Tal relacionação levar-nos-ia demasiado longe. Preferimos ficar por aqui, confiantes agora de que o leitor terá compreendido a razão por que nos interessou tanto a frase de Freud. 

 

António Telmo



[1] Chave, 2.º ano, n.º 4, Lisboa, Fevereiro de 1965, p. 5.

[2] DAVID BAKAN, A «Tradição Mística Hebraica».

[3] V. Álvaro Ribeiro, «Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica».

[4] Consiste esta técnica em estabelecer uma associação que altera subitamente o curso presente das relações mentais.

[5] V. Dados Imediatos da Consciência, pg. 67.

 

DOS LIVROS. 24

07-11-2014 11:59

«Teixeira de Pascoaes é um dos poetas do limiar do tempo, quando o terceiro ciclo da nossa história está prestes a fechar-se para dar lugar ao caldeamento de todas as formas residuais da Pátria. Está situado naquele ponto limite em que o passado e o futuro se cruzam mais uma vez com nitidez absoluta. Não esteve sozinho. Outros, tão videntes como ele (Guerra Junqueiro, Pessoa, Bruno, Leonardo, Régio), viram a mesma estrela.»

Teixeira de Pascoaes, o poeta da Natureza

 

Toda a reflexão sobre a saudade resulta necessariamente pobre se não passar por Pascoaes e não se detiver aí o tempo do pensamento.

É este, quanto a nós, o único senão da “antologia”, seguida de dois estudos de Pinharanda e Dalila[1], sobre a saudade, onde não avultam, como era devido, os textos mais significativos de Pascoaes. A saudade é um sentimento e não se ignora que ele por si só possa constituir objecto de reflexão, como objecto de reflexão tem sido, por exemplo, o amor, sem que necessariamente tenhamos de nos reportar a Camões, a Platão ou a Leão Hebreu. A verdade, porém, é que à saudade está referida a cosmovisão de um povo[2] e, antes e depois de Pascoaes, tudo quanto se disse ou escreve, diga ou escreva, ficará sempre aquém do seu primeiro apóstolo que nela viu a Virgem-Mãe do Evangelho da Pátria. Dir-se-á que o poeta exorbitou, que levou demasiadamente longe a translação de metáfora e que sempre permanecerá um núcleo irredutível – o sentimento, tal como cada um de nós o vive. Restringe-se assim ao plano da psicologia aquilo que o autor do Maranus alargou às esferas envolventes da cosmologia e da teologia. Saber se a saudade é um sentimento exclusivamente português e o galego não importa muito (importa tanto como discutir a nacionalidade de Espinoza, por exemplo), se não soubermos, como soube Pascoaes, encontrar-lhe as raízes na própria substância do mundo e a ideia no próprio pensamento transcendental.

O leonardino Delfim Santos, interpretando Pascoaes, observa que a saudade opera a inversão do tempo linear e causal, porque na saudade o futuro é o passado e o passado é o que dá sentido e conteúdo ao futuro”. Diríamos, desenvolvendo e aplicando, que a saudade é o sentimento da forma cíclica do tempo. Se a cor, a figura e o movimento das coisas criou a vista nos animais e no homem ou o perfume o olfacto, há na alma humana esse sentimento misterioso, órgão subtil de sensação, que apreende a natureza própria do tempo.

Pascoaes vai mais longe ainda. Se o tempo é um movimento serpentino que enquanto se desenvolve se envolve, dobrando-se e apoiando-se, em cada ciclo, sobre um só arquétipo, há que defini-lo por um centro, onde se cruzam o passado e o futuro, o invisível e o visível. Pela saudade, que é num só acto, desejo e lembrança, presença e ausência, a carne se faz espírito e o espírito se faz carne. Ela exprime, na forma de um sentimento, o contacto da alma com o centro misterioso do mundo, donde partem e onde convergem todas as direcções do ser. No Maranus é a Virgem-Mãe do novo Cristo. E Belém desta vez é no Marão.

Pascoaes vê naquele que foi iniciado nos “mistérios” da Saudade o “ser duplo”, uma espécie de “Jano Tetrafonte”, tornando senhor da rebis – a coisa dupla. No homem comum, a saudade é apenas um sentimento, mas o que inquieta, perturba e entusiasma o poeta é verificar que há um povo, o seu, a quem foi dada a graça sem o saber, do sentimento do centro do mundo. Tão espontaneamente como a vista foi dada aos homens de todo o mundo. Por isso defendeu a iniciação poética pela saudade e nela viu o carro de fogo capaz de nos transportar de novo ao Paraíso.

O homem comum não tem consciência dessa estranha vivência mnésica “não só referida a pessoas, mas também a coisas inanimadas” que lhe dá a alegria da presença com a dor da ausência num só acto psíquico, mas está nela e por ela está ligado, embora remotamente, de maneira reflexa e indirecta, ao centro do mistério do mundo. Só quando Maranus morrer, isto é, quando Portugal se perder em Eleonor, a Pátria Celeste de Sobolos rios que vão, só então a Saudade, a Presença Absoluta, se revelará em nós como a forma do próprio Paraíso.

 

* * *

 

Teixeira de Pascoaes é um dos poetas do limiar do tempo, quando o terceiro ciclo da nossa história está prestes a fechar-se para dar lugar ao caldeamento de todas as formas residuais da Pátria. Está situado naquele ponto limite em que o passado e o futuro se cruzam mais uma vez com nitidez absoluta[4]. Não esteve sozinho. Outros, tão videntes como ele (Guerra Junqueiro, Pessoa, Bruno, Leonardo, Régio), viram a mesma estrela.

Hoje quase não é lido. O saudosismo foi apressadamente catalogado como corrente literária, na medida em que fez escola, para ser esquecido no mar dos medíocres onde se perdem e afundam todas as correntes. O papel dos adversários do povo português é este. Não podem fazer outra coisa senão crítica literária ou o análogo. Servidos às vezes por espíritos lúcidos, mas minados de inveja, neles se apoiam, tentando em vão roer o Livro que, por ter sido escrito por todos nós, desde Pessoa a Pascoaes, é indestrutível. É um livro, como disse Régio, que tem as páginas em branco e os caracteres invisíveis. Não se pode catalogar.

 

António Telmo

 

 

(Publicado em História Secreta de Portugal, 1977)



[1] N. do C. - Dalila L. Pereira da Costa / Pinharanda Gomes, Introdução à Saudade (Antologia Teórica e Aproximação Crítica), Porto, Lello & Irmão - Editores, 1976. 

[2] Francisco da Cunha Leão, O Enigma Português.

[3] Ver nota pág. 133

[4] Era tão intenso em Pascoaes o sentimento deste limite que numa carta a Unamuno escreve: “Estamos a viver um momento decisivo, anterior a um novo fiat lux.” (Mário Garcia, Teixeira de Pascoaes, Braga, 1976).

 

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