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DOS LIVROS. 30

11-01-2015 21:57

As Tradições Heterodoxas da Filosofia Portuguesa

 

É necessário sujeitar-se ao perigo de errar. Não se alcança a verdade sem a experiência do erro. Devemos, por conseguinte, falar do direito de procurar e de errar. Eu reclamo a liberdade para a conquista da verdade.

João Paulo II

 

Quem leu O Papa ou A Inquisição Espanhola, livros de José de Maistre, traduzidos para português por esse inquieto e subtil pensador católico de filosofia portuguesa que é Pinharanda Gomes, não deixará de perturbar-se quando souber que o famoso Conde era um «encoberto»: dentro da própria Maçonaria formava parte de um Colégio secreto, ignorado dos outros irmãos. Disso nos dá notícia Emílio Dermenghem, na introdução a La Franc-Maçonnerie, Mémoire au Duc de Brunswisck, par Joseph de Maistre, escrito que julgaríamos impossível, se não tivesse sido encontrado entre as obras do filósofo com outros documentos de convergente interesse, guardados nos arquivos das lojas do Sul de França. «Dés 1774», escreve Dermenghem, «Joseph de Maistre (né en 1753) faisait partie de la loge des Trois Mortiers où il était  grand orateur, substitut des généraux et maître symbolique. Mais la Maçonnerie vulgaire était un enfantillage, comme il écrivit le 9 décembre 1793 à son ami Vignet, et ses réunions mondaines finissaient par le lasser quand il fut conquis par la Réforme écossaisse. Le 4 septembre 1778, il entre en effet, avec quinze autres frères, à la loge de la Sincérité et il fait, en même temps, partie, sous le surnom de Josephus a Floribus, d’un groupe três secret de quatre initiés supérieurs, le collège particulier de Chambéry, dont les autres membres étaient son ami Salteur (a Cane), le Chevalier de Ville (a Castro) et le bourgeois Marc Rivoire (a Leone Alto). Ces collèges, placés dans les diferents chefs-lieux du rite écossais, étaient formés par la classe secrète ds Grands Profès, chevaliers maçons de l’ordre bienfaisant de la Cité Sainte, ‘dernier grade em France – disait Willermoz – du regime rectifié’. Cette classe était ‘répandue en petit nombre et partout inconnue’. Son existence même était ‘cachée depuis son origine à tous les chevaliers qui n’ont pas encore été reconnus dignes et capables d’y étre admis avec fruit’. On voit à quel rang Joseph de Maistre s’était élevé dans la hierarchie oculte.» (F. Rieder et Cie., Éditeurs, Paris, 1925, p. 14)

O abandono da Maçonaria vulgar correspondeu à descoberta do «martinismo», em cujos «mistérios», teóricos e práticos, Joseph de Maistre foi iniciado pelo citado Willermoz, discípulo, como Saint-Martin, de Pascoal Martins e, por morte deste, seu continuador na chefia da Ordem. É a formação martinista do autor de Os Serões de São Petersburgo que para nós tem interesse, obrigados como somos a ter em linha de conta o que Álvaro Ribeiro escreveu sobre filosofia e tradição portuguesa: «A tradição portuguesa, a esperança de que o Cristianismo reintegrará o Homem e a Natureza no Reino de Deus, durante o século XVIII passa a exprimir-se em termos diferentes dos que ficaram estabelecidos na nomenclatura da teologia católica e da filosofia aristotélica. A obra de Pascoal Martins, vertida maravilhosamente na cultura da Europa Central, dá-nos uma síntese, ainda hoje admirável, das tradições peninsulares.» (A Arte de Filosofar, Portugália – Lisboa, 1955, pág. 142).

Neste mesmo capítulo sobre A Tradição Portuguesa, diz-nos Álvaro Ribeiro ter sido «Sampaio Bruno o pensador que mais inteligentemente no-la revelou». Com efeito, em O Encoberto, depois de ter estudado a influência de Saint-Martin na Revolução Francesa, ao expor a doutrina esotérica pela tríade de Liberdade, Igualdade, Fraternidade, escreve assim:

«O ternário sagrado! Saint-Martin, seu inventor e promotor!»

«Mas, sem embargo de sua peculiar originalidade, cumpre não esquecer que Saint-Martin começara por ser discípulo d’outrem, d’um desses homens extraordinários que gravam a sua personalidade na sua época; e esse homem era português, «misterioso português», consoante (realista, romanescamente) se compraz em lhe chamar o biógrafo crítico do philosophe inconnu, o sr. Matter. Português-judeu, cristão-novo, «de raça oriental e de origem insólita, mas tornado cristão à laia como assim se tornavam os gnósticos dos primeiros séculos». Quem?»    

«Quanto mais se estuda Saint-Martin, com o tratado de seu mestre, Da Reintegração, à vista, tanto mais se sente, em toda a sua profundidade, a influência do teurgista de Portugal sobre o mais célebre dos seus discípulos de Bordéus.»

O tratado de Pascoal Martins, Da Reintegração, é, de seu título completo, Tratado da Reintegração de Todos os Seres nos seus Princípios Primitivos. Está traduzido por Manuel Joaquim Gandra na Colecção Esfinge das Edições 70.

Não se deduz de tudo isto que haja um exclusivo de identidade entre a tradição portuguesa e o martinismo. Este terá sido durante o século XVIII e para a Europa Central a expressão oportuna dessa tradição. Mas a relação pode constituir o fio que nos conduza à cabala pelo judaísmo, à gnose pelo cristianismo, à sabedoria sufi pelo islamismo. «Três tradições concorrem na formação do pensamento português: a judaica, a cristã e a islâmica.» A filosofia portuguesa terá por fim realizar a sua síntese católica. Porquê a filosofia portuguesa?

A História de Portugal cinde-se em dois períodos radicalmente distintos. Sobretudo através da Pátria e da Mensagem, os nossos poetas, prolongando neste ou naquele sentido o ensino de O Encoberto, os nossos filósofos, tiveram disso perfeita consciência e o correspondente saber. O primeiro período, de um só rei para três Repúblicas – a judaica, a cristã e a islâmica –, vai até D. João III; com D. João III e o estabelecimento da Inquisição em Portugal tem início o segundo período. A tese de Sampaio Bruno é, porém, que foi no segundo período que se deu o maior avanço no aperfeiçoamento dos espíritos, cada vez mais próximos, de vinténio para vinténio, da era messiânica. O segredo deste contrassenso terá sido o aparecimento na história do cristão-novo. Deste ponto de vista, o estabelecimento da Inquisição foi providencial. É certo que os aspectos negativos ou sinistros da nossa sociabilidade se devem à especial complexão dessa criatura híbrida pela qual se define o cristão-novo: os judeus e os muçulmanos que não puderam ou não quiseram partir para o exílio, ao verem-se de repente obrigados a praticarem outra religião, aterrorizados com a destruição das suas mesquitas e sinagogas, tiveram de fingir o fanatismo, de cultivar a hipocrisia e a traição, de praticar a denúncia ou então tiveram de viver em medo e inquietação constantes o seu criptojudaísmo ou o seu criptoislamismo. O ateísmo é também, em certos casos, um dejecto desta situação. A astúcia e o espírito diplomático, a capacidade de falar ou de pensar em duas línguas e o subtil sentido da metáfora ou da ironia são, entre outros, os seus produtos superiores. Esta última é a da nobreza espiritual sufi ou sefardi.

Toda a psicologia do cristão-novo converge para o dar como o elemento activo capaz de realizar a síntese entre duas religiões, a antiga dos seus pais e a nova dos dominadores, isto no caso evidentemente de não ter sido corrompido pela hipocrisia, pela cobardia ou pelo ódio. (...)

 

António Telmo   

 

(Publicado em Filosofia e Kabbalah, 1989)

DOS LIVROS. 29

08-01-2015 21:57

O Adamastor

 

Foi muito aplaudida na revista Colóquio, julgo que pelo António Cândido Franco, a ideia, que lancei em Filosofia e Kabbalah e noutros lugares, de ser a palavra Adamastor, quase só pela simples troca de suas letras, interpretável como Adão astral. O achado não teria qualquer importância, se de achado se trata, se não pudesse dar lugar ao entendimento daquilo que talvez representasse, no espírito do poeta, o tenebroso gigante.

Desde já, há que pensá-lo como uma forma do mundo intermediário ou subtil ou, como se prefere dizer por via de um estrangeirismo, do «mundo imaginal».Vimos como Thetys, a rainha do Oceano que esposou Gama, e Thétis, «das águas a princesa» por quem se apaixonou o Titan, dificilmente se distinguem pelo nome. Parecem ser dois aspectos da mesma entidade feminina. É o que nos leva a conjecturar que o Adamastor será, no segredo do Poeta, a forma astral do Gama, a projecção do seu ser violento no mundo imaginal, a figura do que nele era impulso e desejo incontrolado. Ora, como, por outro lado, Gama é o avatar poético de Camões, tanto faz dizer que a aparição do Titan é Gama como a forma astral de Adão ou Luís de Camões como a mesma forma astral.

Eu sei que esta ideia é muito difícil de admitir, por isso mesmo se deve insistir nela pois, como dizia Sócrates no Crátilo, «as coisas belas são difíceis».

A aparição do Adamastor acontece de noite. É a aparição de um fantasma, uma criação da fantasia que põe perante os olhos do avatar do Poeta a forma horrível do seu próprio ser. É uma fantasia criada a partir de uma «nuvem escura», a matéria subtil da alma tenebrosa, irmã da noite. É na treva que se dão as transformações que depois aparecem à luz do dia. De olhos vendados é que se viajam as viagens de descobrimento. Se, enquanto o corpo se desloca no espaço, a alma permanece ligada às formas de percepção habituais, se não procura ver porque se fez treva, ir de continente para continente ou de mar para mar é não sair do mesmo, é levar consigo todo o peso oco do seu não-ser. 

 

António Telmo

 

(Publicado em Luís de Camões, 2010)

DOS LIVROS. 28

06-01-2015 08:56

Taprobana Ilha do Paraíso  

 

Taprobana é uma ilha ao Sul da Índia. Taprobana é uma palavra feia, que tendemos a ler como Trapobana, associando-a automaticamente a trapos. Dir-se-ia que o Poeta a foi buscar por exigência de rima. Todavia, esconde-se aqui um grande segredo.

Taprobana é a Ilha do Ceilão, o lugar que no Oriente se diz ser o lugar do Paraíso. Daí que «passar além da Taprobana» significa realmente «passar além do Paraíso, do lugar onde o homem e a mulher viviam antes da Queda».

Ir além da própria origem, eis tudo. Para compreender, devemos distinguir entre Pequenos Mistérios e Grandes Mistérios. A Maçonaria é o que hoje nos resta como base de elucidação desta obscuridade. As igrejas cristãs também o poderiam ser, mas, infelizmente, ou não têm teólogos ou, se os têm, não prestam atenção a estes aspectos da sabedoria milenária.

Mas falemos de Luís de Camões, poeta católico. Ele sabia superiormente do assunto, embora não o entendessem assim os Inquisidores que o obrigaram, já velho e doente, a deslocar-se a um centro paroquial onde passava pela humilhação de estudar, com alguns rapazes, as noções elementares do catecismo.

Passemos, porém, esta matéria perigosa.   

A que corresponde na Maçonaria a celebração dos Pequenos Mistérios? Têm início no grau de Aprendiz e cumprem-se no grau de Mestre (aquele ao qual os Fiéis de Amor, aqui «os varões assinalados», chamavam o Terceiro Céu), quando o peregrino atinge definitivamente o Oriente.

Todavia, o que é que tudo isto significa?

«O que é o número três na realidade?» perguntava Fernando Pessoa pela voz de Alberto Caeiro. Embora aqui o três seja menos significativo do que o nove (como se verá adiante).

Aquilo que na realidade se cumpre nos Pequenos Mistérios é a teatralização da regeneração psíquica, pela qual nos libertamos das escórias que se acumulam em volta da nossa alma e não nos deixam ser o que somos. Somos recebidos na Câmara do Meio, onde, se o rito for vivido como ritmo, reconquistaremos a forma original antes da Queda.

Da horizontal passa-se então à vertical, do esquadro ao compasso. No círculo brilha agora equidistante de todos os seus pontos o centro que é o Meio, «el mezzo di nostra vita» como ensinou Dante. Têm início os Grandes Mistérios pelos quais se cumpre a ascensão aos mundos informais ou angélicos.

Luís de Camões no Canto IX situa a consumação dos Pequenos Mistérios, cujo início equivale ao momento em que as naus se apartam da Ocidental praia lusitana.

 

Portugueses somos do Ocidente

Irmos buscando as Terras do Oriente

 

Mas o Oriente encontrado não foi a Índia, foi a Ilha do Amor, o lugar do Paraíso, a Taprobana que não vem nos mapas.

Também no rito maçónico, as viagens partem do Ocidente buscando o Oriente.

No terceiro grau, onde findam os Pequenos Mistérios, o número simbólico por excelência, como sabem os iniciados, é o 9.

No canto X (9+1=10) d’Os Lusíadas assistimos à subida da montanha, por um caminho difícil e árduo e esta ascensão começa ao anoitecer, quando os jasmins, libertos enfim do calor do dia, abrem felizes as suas pétalas.

No canto IX, a Aurora é o tempo da união amorosa.

No canto X, a Noite é o tempo da dádiva suprema do Amor por intermédio da deusa Tethys.

 

António Telmo  

 

(Publicado em Luís de Camões, 2010) 

INÉDITOS. 37

30-12-2014 13:34

Escrito no período do Redondo (1971-1973), e dedicado a Armando Carmelo, seu inseparável e dedicado companheiro durante a "gesta revolucionária" do processo de fundação da Escola Preparatória local, este poema inédito de António Telmo reflecte obviamente um acontecimento do quotidiano...

[Houve um tremor de terra em Ascoli]

 

                                                 ao Carmelo                            

 

“Houve um tremor de terra em Ascoli

Numa paisagem lívida de neve”

Aqui no campo verde lembro-me de ti

Skiando nos Alpes, branca e leve.

A luz lúcida do sol de Ascoli

Brilha sobre o manto lúcido da neve.

 

Saem das casas sombras em pavor

Só as crianças são reais.

Ainda há criadas que têm seu senhor

Ainda há sombras que mandam nas demais.

Treme a terra funda com fragor

Mas os raios do sol são irreais.

 

Contigo irei ter em meu ski

Aos Alpes que só conheço pelo mapa

Houve um tremor de terra em Ascoli

Porque alguém que tem capa e sempre escapa

Invocou os espíritos ali

Onde os três pés da terra se afundam na lava

E a palavra dita soa sinistra e cava

Por sobre a mesa de neve de Ascoli. 

 

António Telmo

POEMAS. 07

23-12-2014 12:10


[Com Maria Antónia e Anahi, em Brasília]

 

[A família é de noite quando se dorme]


A família é de noite quando se dorme

Todos num sono só, juntos lá onde

De Deus se toca a sua sombra informe

Onde de nós secreto Deus se esconde.

E como há crianças a dormir, o esplendor

Diurno dos seus olhos brilha puro

Num magnífico ponto interior

Que é o reflexo de Deus no escuro.

Mas amanhã há Sol. Vamos passear sós

Na manhã tão nítida e clara, nesta manhã de Abril

Vamos trazê-la para dentro de nós

E levá-la para o sono obscuro e vil

Tão límpida como uma gargalhada infantil.

 

António Telmo

 

INÉDITOS. 36

19-12-2014 10:18

Escrito no Redondo, no início da década de 70, quando António Telmo ali fundou a Escola Preparatória local, o poema inédito que hoje publicamos foi lido em público, pela primeira vez, pelos Jograis U... Tópico, no passado dia 13, na primeira parte do recital "Os poemas e os poetas de António Telmo", e constitui-se como preciosa peça autobiográfica.

[António Telmo na varanda da Oca, em Brasília, na segunda metade da década de 60]

 

Dostoiewskiana

 

Pus o meu ser no prego

No dia em que arranjei um emprego:

Professor de Filosofia.

A esmola que se dá a um cego

Em paga da luz que não teve ou perdeu

É mais do que a que se me deu

Para não ensinar o que sabia.

Para não ensinar o que pensava

E o que o meu génio me dizia.

 

Aristotélico, pregaram-me à cadeira.

Pitagórico, mandaram-me à fava.

Puseram coisa onde havia ideia.

Epicurista, deram-me um horário

E um reitor felizmente hebdomadário

Arrumado como a página dum jornal.

 

Não faz mal! Não faz mal! Não faz mal!

Se pus meu ser no prego

No dia em que arranjei um emprego,

Se foi essa a minha sorte,

Hei-de levantá-lo

Com o dinheiro da morte.

 

António Telmo

VOZ PASSIVA. 39

16-12-2014 16:54

António Telmo, António Quadros e as dificuldades de um bolsista em Évora*

Carlos Francisco Moura

 

Não conheci pessoalmente o ilustre intelectual macaense Luís Gonzaga Gomes, mas de Portugal e do Brasil mantive com ele, durante vários anos, uma produtiva cooperação cultural.

Vale lembrar como essa cooperação começou.

Em 1968, com a situação política se agravando no Brasil – a invasão da Universidade de Brasília pelo Exército e outras ameaças –, o Prof. Agostinho da Silva começou a se preocupar com a sobrevivência do CBEP (Centro Brasileiro de Estudos Portugueses). Tendo conseguido vir para o Brasil, depois de preso por motivos políticos em Portugal, ele desenvolveu intensa atividade cultural nas Universidades de Santa Catarina, Bahia,

Paraíba e Brasília. Mas sua ideias libertárias e utópicas despertavam suspeitas dos então detentores do poder. Reuniu assim os professores, e disse:

– Do jeito que a coisa vai, o CBEP será implodido e, portanto, antes que isso aconteça, vamos organizar a diáspora. Foi determinando o rumo que cada um deveria seguir, e me deixou por último.

– Moura, você tem dinheiro de passagem de avião para Portugal?

– Da de ida, creio que sim, mas como vou manter-me lá, e dinheiro para a passagem de volta?

– Se tem para a ida, embarque logo. O resto a gente resolve depois. Desembarcado em Lisboa, siga para Évora, no Alentejo, e procure o Dr. Petronilho, na Câmara Municipal, e o Dr. Armando Perdigão, na Junta Distrital. Lá, a Câmara tem uma casa vazia no Jardim Infantil, que conseguimos pusessem à disposição dos bolsistas do Brasil. Você fica lá sem pagar aluguel, e, enquanto isso, procuramos obter uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, para você se instalar em Lisboa e pesquisar na Torre do Tombo, no

Arquivo Histórico Ultramarino, na Biblioteca Nacional e em outras instituições, para prosseguir nas pesquisas iniciadas no CBEP.

Enquanto a bolsa não sai, você permanece em Évora, pesquisando os mesmos assuntos na Biblioteca e Arquivo Distrital de Évora. E aguarde lá os acontecimentos.

 

Em Évora

Entretanto, a bolsa demorou muitos meses mais do que o previsto, e eu continuei à espera, em Évora. Enquanto isso, para me manter, consegui algum trabalho, e com o resultado das pesquisas em Évora, e com o material que tinha trazido do CBEP, escrevi alguns artigos que foram publicados em revistas de cultura de Évora e de Lisboa.

No CBEP, havia apresentado uma dissertação de Mestrado sob o título “O urbanismo no Japão no século XVII, segundo o Pe. João Rodrigues Tçuzu”, que foi aprovada pela banca, da qual faziam parte o Prof. Agostinho da Silva e o Prof. João Evangelista, mas o título não foi efetivado em virtude da desativação do Centro.

Em Évora, prossegui na pesquisa sobre a presença dos portugueses no Japão, contando com a colaboração e a simpatia do então diretor da Biblioteca, Dr. Antonio Leandro Alves. Os artigos não eram pagos, mas as revistas forneciam aos autores um bom número de separatas.

Sabendo que eu estava com dificuldades, meu saudoso amigo, o escritor Antonio Telmo Vitorino, colega do CBEP, sugeriu que eu fosse da parte dele procurar o escritor Antonio Quadros, então diretor das Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, e ele adquiriu um bom número de separatas dos meus artigos.

____________

* Da  Introdução do livro LUÍS GONZAGA GOMES E UMA PRODUTIVA COOPERAÇÃO CULTURAL: MACAU-PORTUGAL-BRASIL (Instituto Internacional de Macau / Real Gabinete Português de Leitura, Lisboa, 2014)

VOZ PASSIVA. 38

15-12-2014 10:28

António Telmo, os sons, as potências, as essências

Risoleta C. Pinto Pedro

 

Não me será fácil falar de António Telmo sem me estender excessivamente, porque, tal como Agostinho da Silva, é um autor que parece escutar a voz que sussurra na minha alma. A acrescentar a isto, a erudição, a sabedoria, a beleza.

Por isso centrar-me-ei, neste texto, num único aspecto. Ou melhor, na apresentação dele, apenas.

António Telmo chegou-me através da escrita e personalidade de Agostinho da Silva.

Dele, li alguns dos clássicos, ainda antes de o conhecer. Penso que os primeiros foram a Arte Poética e a História Secreta de Portugal. Entretanto, muitos amigos meus, seus amigos, começaram a falar-me dele. Curiosidades, episódios de vida, acabámos por nos conhecer na estreia de um espectáculo da Companhia de Dança Amalgama e lançamento de um livro meu, no Convento de S. Paulo, Serra d’Ossa, que ele apresentou. Maravilhosamente. Fluentemente. Sem papel.

Outros livros vieram ao meu encontro, Filosofia e Kabbalah, O Bateleur, Contos, A verdade do amor, mas o último por seu punho, chegou via correio, não muito antes de partir. Viagem a Granada.

Aquele que me tem acompanhado persistentemente, Gramática Secreta da Língua Portuguesa, felizmente recém-editado, considero-o uma pérola sobre a nossa língua, um estudo lúcido e profundo sobre as origens, a alma, o mistério do nascimento e da essência da língua. Muitas vezes o citei nas minhas aulas. Muitas vezes continuo a fazê-lo em situações menos institucionais que uma escola oficial, mas igualmente propiciadoras de conhecimento, informação e comunicação. De reflexão. Muito recentemente em Lagos, num workshop de Escrita Cura Criativa.

Com este livro, as minhas intuições de menina, intuições de quase antes das palavras, as imagens que me nasciam no coração e que continuaram a crescer ao longo dos anos, apesar de todas as teorias positivistas acerca da língua e da gramática que tive de estudar, essas intuições, dizia, foram totalmente validadas e eu fiquei a saber o que já sabia. Desde sempre. Que a língua, e particularmente a fonética, é um sistema inteligente, simbólico, coerente, e em total sintonia com o universo e a realidade. Que não há aleatoriedade na língua e que cada som que produzimos tem uma energia própria e uma essência. E um poder. Que é um sistema ligado a todos os outros sistemas cósmicos. Que pode ser uma fonte de conhecimento e, sem dúvida, de criação. Não apenas literária, mas de realidades.

E concluo: somos como magos ignorantes, magos negros usando indiscriminadamente um poder quase atómico que não dominamos, que não controlamos, porque não conhecemos.

A propósito dos sons, António Telmo fala de potências. Porque o são. Que distingue do conceito de fonema.

“No princípio era o verbo”. Como agora. Quando o criador disse “Fiat” pronunciou uma realidade totalmente diferente daquela que seria criada com outras potências. O “F” faz parte das potências sopradas. Sons que expiram. E é labial. Corresponde, na árvore da Kabbalah, à coluna da misericórdia, a que ele chama “ da clemência”. Aqui, começo eu a delirar, ou talvez não, e a ver neste acto de criação, a expressão daquilo que ele denomina a “estrutura sagrada”.

Afirma ele: “O “V”, como o “F” seu correlativo, é um sopro, uma voz. Estas letras marcam a emissão da voz sem resistência violenta.” E acrescento eu: como poderia haver resistência à ordem da criação?

E continuo: acredito que será também por isso que na respiração circular ou conectada, como chamamos à respiração no “Renascimento”, uma terapia respiratória, a expiração deve ser uma pausa ou repouso, não deve ser empurrada, mas o ar deve sair naturalmente, “sem resistência violenta”.

António Telmo fala também deste sopro do “F” como a transformação contínua. E assim é. A respiração assim feita é das tarefas do corpo mais transformadoras que conheço.

Poderia continuar muito tempo estas reflexões, mas não vou maçar-vos mais. Talvez num outro dia. Lamento não ter tido oportunidade (ou não a ter criado) para conversar com António Telmo sobre este específico e apaixonante tema. Mas ele está vivo. Em vós. Convosco partilho, então, o que dele recebo, reconheço e integro. E celebro.

POEMAS. 06

12-12-2014 15:21

Ao Cagica Rapaz

 

Meu barco quisera

Fazer sem martelo

Sem prego sem ferro

Como a Deus dera.

Só a madeira

Firme e sesgada

As tábuas unidas

Pela força do nada.

E o som que se ouvisse

Fosse o que repetisse

A palavra perdida

Que um marinheiro

Um dia me disse

Palavra que não digo

Nem ao maior amigo. 

 

António Telmo 

POEMAS. 05

10-12-2014 08:48

Ao Rafael Monteiro

Balada de Sesimbra

 

Em Sesimbra me fiquei

A alma de si esquecida

E aquele antigo Rei

No meu ser fundo dormindo

Pretende que assim não é vida.

 

Aqui no extremo de tudo

A noite é bem mais comprida

E o antigo Rei está mudo

O antigo Rei já é nada

Nem sequer pretende a vida.

 

E o sol que corre no céu

Essa luz que é só por fora

Fecho os olhos, quem sou eu?

O Rei dormindo que é nada

Na noite que sou agora.

 

Curso divino do sol,

Trazê-lo p’ra dentro de mim

Ser por dentro um girassol

Aqui no extremo do mundo

Onde estou só porque sim.

 

António Telmo

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