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DOS LIVROS. 28
06-01-2015 08:56
Taprobana Ilha do Paraíso
Taprobana é uma ilha ao Sul da Índia. Taprobana é uma palavra feia, que tendemos a ler como Trapobana, associando-a automaticamente a trapos. Dir-se-ia que o Poeta a foi buscar por exigência de rima. Todavia, esconde-se aqui um grande segredo.
Taprobana é a Ilha do Ceilão, o lugar que no Oriente se diz ser o lugar do Paraíso. Daí que «passar além da Taprobana» significa realmente «passar além do Paraíso, do lugar onde o homem e a mulher viviam antes da Queda».
Ir além da própria origem, eis tudo. Para compreender, devemos distinguir entre Pequenos Mistérios e Grandes Mistérios. A Maçonaria é o que hoje nos resta como base de elucidação desta obscuridade. As igrejas cristãs também o poderiam ser, mas, infelizmente, ou não têm teólogos ou, se os têm, não prestam atenção a estes aspectos da sabedoria milenária.
Mas falemos de Luís de Camões, poeta católico. Ele sabia superiormente do assunto, embora não o entendessem assim os Inquisidores que o obrigaram, já velho e doente, a deslocar-se a um centro paroquial onde passava pela humilhação de estudar, com alguns rapazes, as noções elementares do catecismo.
Passemos, porém, esta matéria perigosa.
A que corresponde na Maçonaria a celebração dos Pequenos Mistérios? Têm início no grau de Aprendiz e cumprem-se no grau de Mestre (aquele ao qual os Fiéis de Amor, aqui «os varões assinalados», chamavam o Terceiro Céu), quando o peregrino atinge definitivamente o Oriente.
Todavia, o que é que tudo isto significa?
«O que é o número três na realidade?» perguntava Fernando Pessoa pela voz de Alberto Caeiro. Embora aqui o três seja menos significativo do que o nove (como se verá adiante).
Aquilo que na realidade se cumpre nos Pequenos Mistérios é a teatralização da regeneração psíquica, pela qual nos libertamos das escórias que se acumulam em volta da nossa alma e não nos deixam ser o que somos. Somos recebidos na Câmara do Meio, onde, se o rito for vivido como ritmo, reconquistaremos a forma original antes da Queda.
Da horizontal passa-se então à vertical, do esquadro ao compasso. No círculo brilha agora equidistante de todos os seus pontos o centro que é o Meio, «el mezzo di nostra vita» como ensinou Dante. Têm início os Grandes Mistérios pelos quais se cumpre a ascensão aos mundos informais ou angélicos.
Luís de Camões no Canto IX situa a consumação dos Pequenos Mistérios, cujo início equivale ao momento em que as naus se apartam da Ocidental praia lusitana.
Portugueses somos do Ocidente
Irmos buscando as Terras do Oriente
Mas o Oriente encontrado não foi a Índia, foi a Ilha do Amor, o lugar do Paraíso, a Taprobana que não vem nos mapas.
Também no rito maçónico, as viagens partem do Ocidente buscando o Oriente.
No terceiro grau, onde findam os Pequenos Mistérios, o número simbólico por excelência, como sabem os iniciados, é o 9.
No canto X (9+1=10) d’Os Lusíadas assistimos à subida da montanha, por um caminho difícil e árduo e esta ascensão começa ao anoitecer, quando os jasmins, libertos enfim do calor do dia, abrem felizes as suas pétalas.
No canto IX, a Aurora é o tempo da união amorosa.
No canto X, a Noite é o tempo da dádiva suprema do Amor por intermédio da deusa Tethys.
António Telmo
(Publicado em Luís de Camões, 2010)
INÉDITOS. 37
30-12-2014 13:34Escrito no período do Redondo (1971-1973), e dedicado a Armando Carmelo, seu inseparável e dedicado companheiro durante a "gesta revolucionária" do processo de fundação da Escola Preparatória local, este poema inédito de António Telmo reflecte obviamente um acontecimento do quotidiano...
[Houve um tremor de terra em Ascoli]
ao Carmelo
“Houve um tremor de terra em Ascoli
Numa paisagem lívida de neve”
Aqui no campo verde lembro-me de ti
Skiando nos Alpes, branca e leve.
A luz lúcida do sol de Ascoli
Brilha sobre o manto lúcido da neve.
Saem das casas sombras em pavor
Só as crianças são reais.
Ainda há criadas que têm seu senhor
Ainda há sombras que mandam nas demais.
Treme a terra funda com fragor
Mas os raios do sol são irreais.
Contigo irei ter em meu ski
Aos Alpes que só conheço pelo mapa
Houve um tremor de terra em Ascoli
Porque alguém que tem capa e sempre escapa
Invocou os espíritos ali
Onde os três pés da terra se afundam na lava
E a palavra dita soa sinistra e cava
Por sobre a mesa de neve de Ascoli.
António Telmo
POEMAS. 07
23-12-2014 12:10
[Com Maria Antónia e Anahi, em Brasília]
[A família é de noite quando se dorme]
A família é de noite quando se dorme
Todos num sono só, juntos lá onde
De Deus se toca a sua sombra informe
Onde de nós secreto Deus se esconde.
E como há crianças a dormir, o esplendor
Diurno dos seus olhos brilha puro
Num magnífico ponto interior
Que é o reflexo de Deus no escuro.
Mas amanhã há Sol. Vamos passear sós
Na manhã tão nítida e clara, nesta manhã de Abril
Vamos trazê-la para dentro de nós
E levá-la para o sono obscuro e vil
Tão límpida como uma gargalhada infantil.
António Telmo
INÉDITOS. 36
19-12-2014 10:18Escrito no Redondo, no início da década de 70, quando António Telmo ali fundou a Escola Preparatória local, o poema inédito que hoje publicamos foi lido em público, pela primeira vez, pelos Jograis U... Tópico, no passado dia 13, na primeira parte do recital "Os poemas e os poetas de António Telmo", e constitui-se como preciosa peça autobiográfica.
[António Telmo na varanda da Oca, em Brasília, na segunda metade da década de 60]
Dostoiewskiana
Pus o meu ser no prego
No dia em que arranjei um emprego:
Professor de Filosofia.
A esmola que se dá a um cego
Em paga da luz que não teve ou perdeu
É mais do que a que se me deu
Para não ensinar o que sabia.
Para não ensinar o que pensava
E o que o meu génio me dizia.
Aristotélico, pregaram-me à cadeira.
Pitagórico, mandaram-me à fava.
Puseram coisa onde havia ideia.
Epicurista, deram-me um horário
E um reitor felizmente hebdomadário
Arrumado como a página dum jornal.
Não faz mal! Não faz mal! Não faz mal!
Se pus meu ser no prego
No dia em que arranjei um emprego,
Se foi essa a minha sorte,
Hei-de levantá-lo
Com o dinheiro da morte.
António Telmo
VOZ PASSIVA. 39
16-12-2014 16:54
António Telmo, António Quadros e as dificuldades de um bolsista em Évora*
Carlos Francisco Moura
Não conheci pessoalmente o ilustre intelectual macaense Luís Gonzaga Gomes, mas de Portugal e do Brasil mantive com ele, durante vários anos, uma produtiva cooperação cultural.
Vale lembrar como essa cooperação começou.
Em 1968, com a situação política se agravando no Brasil – a invasão da Universidade de Brasília pelo Exército e outras ameaças –, o Prof. Agostinho da Silva começou a se preocupar com a sobrevivência do CBEP (Centro Brasileiro de Estudos Portugueses). Tendo conseguido vir para o Brasil, depois de preso por motivos políticos em Portugal, ele desenvolveu intensa atividade cultural nas Universidades de Santa Catarina, Bahia,
Paraíba e Brasília. Mas sua ideias libertárias e utópicas despertavam suspeitas dos então detentores do poder. Reuniu assim os professores, e disse:
– Do jeito que a coisa vai, o CBEP será implodido e, portanto, antes que isso aconteça, vamos organizar a diáspora. Foi determinando o rumo que cada um deveria seguir, e me deixou por último.
– Moura, você tem dinheiro de passagem de avião para Portugal?
– Da de ida, creio que sim, mas como vou manter-me lá, e dinheiro para a passagem de volta?
– Se tem para a ida, embarque logo. O resto a gente resolve depois. Desembarcado em Lisboa, siga para Évora, no Alentejo, e procure o Dr. Petronilho, na Câmara Municipal, e o Dr. Armando Perdigão, na Junta Distrital. Lá, a Câmara tem uma casa vazia no Jardim Infantil, que conseguimos pusessem à disposição dos bolsistas do Brasil. Você fica lá sem pagar aluguel, e, enquanto isso, procuramos obter uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, para você se instalar em Lisboa e pesquisar na Torre do Tombo, no
Arquivo Histórico Ultramarino, na Biblioteca Nacional e em outras instituições, para prosseguir nas pesquisas iniciadas no CBEP.
Enquanto a bolsa não sai, você permanece em Évora, pesquisando os mesmos assuntos na Biblioteca e Arquivo Distrital de Évora. E aguarde lá os acontecimentos.
Em Évora
Entretanto, a bolsa demorou muitos meses mais do que o previsto, e eu continuei à espera, em Évora. Enquanto isso, para me manter, consegui algum trabalho, e com o resultado das pesquisas em Évora, e com o material que tinha trazido do CBEP, escrevi alguns artigos que foram publicados em revistas de cultura de Évora e de Lisboa.
No CBEP, havia apresentado uma dissertação de Mestrado sob o título “O urbanismo no Japão no século XVII, segundo o Pe. João Rodrigues Tçuzu”, que foi aprovada pela banca, da qual faziam parte o Prof. Agostinho da Silva e o Prof. João Evangelista, mas o título não foi efetivado em virtude da desativação do Centro.
Em Évora, prossegui na pesquisa sobre a presença dos portugueses no Japão, contando com a colaboração e a simpatia do então diretor da Biblioteca, Dr. Antonio Leandro Alves. Os artigos não eram pagos, mas as revistas forneciam aos autores um bom número de separatas.
Sabendo que eu estava com dificuldades, meu saudoso amigo, o escritor Antonio Telmo Vitorino, colega do CBEP, sugeriu que eu fosse da parte dele procurar o escritor Antonio Quadros, então diretor das Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, e ele adquiriu um bom número de separatas dos meus artigos.
____________
* Da Introdução do livro LUÍS GONZAGA GOMES E UMA PRODUTIVA COOPERAÇÃO CULTURAL: MACAU-PORTUGAL-BRASIL (Instituto Internacional de Macau / Real Gabinete Português de Leitura, Lisboa, 2014)
VOZ PASSIVA. 38
15-12-2014 10:28
António Telmo, os sons, as potências, as essências
Risoleta C. Pinto Pedro
Não me será fácil falar de António Telmo sem me estender excessivamente, porque, tal como Agostinho da Silva, é um autor que parece escutar a voz que sussurra na minha alma. A acrescentar a isto, a erudição, a sabedoria, a beleza.
Por isso centrar-me-ei, neste texto, num único aspecto. Ou melhor, na apresentação dele, apenas.
António Telmo chegou-me através da escrita e personalidade de Agostinho da Silva.
Dele, li alguns dos clássicos, ainda antes de o conhecer. Penso que os primeiros foram a Arte Poética e a História Secreta de Portugal. Entretanto, muitos amigos meus, seus amigos, começaram a falar-me dele. Curiosidades, episódios de vida, acabámos por nos conhecer na estreia de um espectáculo da Companhia de Dança Amalgama e lançamento de um livro meu, no Convento de S. Paulo, Serra d’Ossa, que ele apresentou. Maravilhosamente. Fluentemente. Sem papel.
Outros livros vieram ao meu encontro, Filosofia e Kabbalah, O Bateleur, Contos, A verdade do amor, mas o último por seu punho, chegou via correio, não muito antes de partir. Viagem a Granada.
Aquele que me tem acompanhado persistentemente, Gramática Secreta da Língua Portuguesa, felizmente recém-editado, considero-o uma pérola sobre a nossa língua, um estudo lúcido e profundo sobre as origens, a alma, o mistério do nascimento e da essência da língua. Muitas vezes o citei nas minhas aulas. Muitas vezes continuo a fazê-lo em situações menos institucionais que uma escola oficial, mas igualmente propiciadoras de conhecimento, informação e comunicação. De reflexão. Muito recentemente em Lagos, num workshop de Escrita Cura Criativa.
Com este livro, as minhas intuições de menina, intuições de quase antes das palavras, as imagens que me nasciam no coração e que continuaram a crescer ao longo dos anos, apesar de todas as teorias positivistas acerca da língua e da gramática que tive de estudar, essas intuições, dizia, foram totalmente validadas e eu fiquei a saber o que já sabia. Desde sempre. Que a língua, e particularmente a fonética, é um sistema inteligente, simbólico, coerente, e em total sintonia com o universo e a realidade. Que não há aleatoriedade na língua e que cada som que produzimos tem uma energia própria e uma essência. E um poder. Que é um sistema ligado a todos os outros sistemas cósmicos. Que pode ser uma fonte de conhecimento e, sem dúvida, de criação. Não apenas literária, mas de realidades.
E concluo: somos como magos ignorantes, magos negros usando indiscriminadamente um poder quase atómico que não dominamos, que não controlamos, porque não conhecemos.
A propósito dos sons, António Telmo fala de potências. Porque o são. Que distingue do conceito de fonema.
“No princípio era o verbo”. Como agora. Quando o criador disse “Fiat” pronunciou uma realidade totalmente diferente daquela que seria criada com outras potências. O “F” faz parte das potências sopradas. Sons que expiram. E é labial. Corresponde, na árvore da Kabbalah, à coluna da misericórdia, a que ele chama “ da clemência”. Aqui, começo eu a delirar, ou talvez não, e a ver neste acto de criação, a expressão daquilo que ele denomina a “estrutura sagrada”.
Afirma ele: “O “V”, como o “F” seu correlativo, é um sopro, uma voz. Estas letras marcam a emissão da voz sem resistência violenta.” E acrescento eu: como poderia haver resistência à ordem da criação?
E continuo: acredito que será também por isso que na respiração circular ou conectada, como chamamos à respiração no “Renascimento”, uma terapia respiratória, a expiração deve ser uma pausa ou repouso, não deve ser empurrada, mas o ar deve sair naturalmente, “sem resistência violenta”.
António Telmo fala também deste sopro do “F” como a transformação contínua. E assim é. A respiração assim feita é das tarefas do corpo mais transformadoras que conheço.
Poderia continuar muito tempo estas reflexões, mas não vou maçar-vos mais. Talvez num outro dia. Lamento não ter tido oportunidade (ou não a ter criado) para conversar com António Telmo sobre este específico e apaixonante tema. Mas ele está vivo. Em vós. Convosco partilho, então, o que dele recebo, reconheço e integro. E celebro.
POEMAS. 06
12-12-2014 15:21
Ao Cagica Rapaz
Meu barco quisera
Fazer sem martelo
Sem prego sem ferro
Como a Deus dera.
Só a madeira
Firme e sesgada
As tábuas unidas
Pela força do nada.
E o som que se ouvisse
Fosse o que repetisse
A palavra perdida
Que um marinheiro
Um dia me disse
Palavra que não digo
Nem ao maior amigo.
António Telmo
POEMAS. 05
10-12-2014 08:48
Ao Rafael Monteiro
Balada de Sesimbra
Em Sesimbra me fiquei
A alma de si esquecida
E aquele antigo Rei
No meu ser fundo dormindo
Pretende que assim não é vida.
Aqui no extremo de tudo
A noite é bem mais comprida
E o antigo Rei está mudo
O antigo Rei já é nada
Nem sequer pretende a vida.
E o sol que corre no céu
Essa luz que é só por fora
Fecho os olhos, quem sou eu?
O Rei dormindo que é nada
Na noite que sou agora.
Curso divino do sol,
Trazê-lo p’ra dentro de mim
Ser por dentro um girassol
Aqui no extremo do mundo
Onde estou só porque sim.
António Telmo
POEMAS. 04
03-12-2014 09:15
Ao António Reis Marques
Mestre, vou-me matar
Dá-me espada ou sabre.
Nada se fecha para mim
Porque nada se abre.
Ainda se eu ouvisse
O bater de uma porta
Soando na noite morta,
Sentia-me do lado de cá…
E talvez de súbito me visse
Da porta para lá.
António Telmo
DOS LIVROS. 27
01-12-2014 09:25A influência da Cabala em Portugal*
Para dizer toda a influência da Cabala na cultura portuguesa no decurso dos séculos, seria necessário escrever vários livros e, não querendo limitar a minha intervenção neste colóquio a uma sequência de apontamentos, escolhi um poeta e um filósofo exemplares, onde, mais do que influência, o que ali encontramos é a presença da tradição esotérica hebraico-portuguesa, pela qual o hexagrama de Salomão e a cruz do Templo de Cristo se inscrevem no mesmo fundo azul e branco, comum às bandeiras das duas pátrias.
Um poeta por via popular e um filósofo por via erudita, João de Deus e Sampaio Bruno. Começarei pelo primeiro.
João de Deus deve o seu renome, vibrando com igual ressonância, a dois aspectos distintos da sua imaginação criadora: a poesia de amor e a Cartilha Maternal. Tratarei um após outro estes dois aspectos, do ponto de vista da Cabala.
Apesar das afinidades que existem entre as tradições iniciáticas dos vários povos que as têm, o que permitiu a um estudioso como René Guénon afirmar que a mesma metafísica se exprime nelas por formas distintas, não me parecem acidentais algumas características dominantes na tradição hebraico-portuguesa que fazem dela um caso único que, por si só, altera a fisionomia de um pensamento que se pretende igual em todas as partes. Tratando de João de Deus, o modo de pensar o amor aparece-nos, logo, como decisivo do abismo que nos separa das várias correntes gnósticas dos três continentes interpolares.
O amor, não qualquer forma abstracta do amor, mas aquele que une o homem e a mulher, constitui, na gnose em geral, uma barreira impeditiva da ascese do ser pelos graus da realização espiritual. Daqui a prescrição de um de dois procedimentos, daquele que resiste ao impulso do instinto sexual, abrindo o caminho da castidade entendida como abstinência, e daquele que prepara igual caminho produzindo a saturação e o nojo pela entrega excessiva e desmesurada a todas as modalidades de erotismo. Como vedes, os dois procedimentos, conquanto antagónicos, visam o mesmo fim que é o da neutralização do amor. Podeis ver isto documentalmente exposto no livro magistral de Hans Jones sobre A Gnose.
Desde D.Dinis e demais trovadores galaico-portugueses com as Cantigas de Amigo, passando, no cume, por Luís de Camões com os poemas líricos e sobretudo com A Ilha dos Amores, até João de Deus, Eugénio de Castro e Florbela Espanca, a nossa poesia, com raras excepções, faz a exaltação da companhia física, celebrando em verso o “puro amor” cuja presença invisível se manifesta pela santidade das relações sexuais entre homem e mulher.
A Santidade das Relações Sexuais entre o Homem e a Mulher é o nome de um livro medieval de Cabala, que ainda hoje se oferece aos noivos no dia de casamento, onde Gikatila ensina como, durante a união dos corpos, se cria a atmosfera necessária para que, invocado pelas duas almas, o Espírito Santo desça a fecundar a mulher, na ideia impressionante de que uma inteligência divina encarnará em cada criança assim concebida.
Álvaro Ribeiro, o discutido filósofo da filosofia portuguesa, há trinta anos, e digo trinta anos porque o seu livro A Literatura de José Régio foi escrito por essa altura, não tendo podido ler Gikatila, que ainda não estava traduzido numa língua europeia, contudo expôs doutrina semelhante, ao destacar o matrimónio como o primeiro sacramento.
A Cabala é uma forma de mística que, por isso mesmo, pretende realizar “o conhecimento pessoal de Deus”, para utilizar a definição de São Tomás de Aquino. Todavia, há nos cabalistas uma espontânea repulsa pelas formas de misticismo que defendem a anulação do indivíduo no Grande Ser (todos sabemos qual é o contraponto político desta anulação), fazendo-o por uma união em que o ser do místico se perde nupcialmente em Deus.
Em Portugal, não há exemplos como o de Santa Teresa e de São João da Cruz em Espanha. As visões de Dalila Pereira da Costa, de cuja reflexão nasceu o livro A Força do Mundo, uma das mais belas e inteligentes expressões da alma em língua portuguesa, surgem deslumbrantemente na intercepção da natureza com a sobrenatureza, em pleno campo, sem influência de nenhuma confissão religiosa. Tais visões são outra coisa.
Também não interpretamos O Cântico dos Cânticos, nas traduções de Pero Meogo, de João de Deus, de Herberto Helder e de Leonardo Coimbra, como uma alegoria em termos sexuais das relações místicas com Deus. É certo que uma interpretação de O Cântico dos Cânticos que vá neste sentido não constitui a apologia dos fenómenos parapsicológicos do sucubato e do incubato que ameaçam as mulheres e os homens solteiros ou solitários. Há, todavia, uma relação remota com estes fenómenos de natureza demonológica que pode, talvez, explicar o repúdio de tal interpretação.
O êxito popular da poesia de João de Deus pode explicar-se por razões estilísticas. Teófilo Braga, ao editar o Campo de Flores, sabia, porém, que outro factor mais profundo impressionaria o leitor português e acordaria nele uma imediata ressonância. O cristianismo popular pelo qual a caracterizou e a caracterizaram muitos que se lhe seguiram tem, por uma maravilhosa coincidência, seu sinal no nome do poeta. Se quisermos designar a sua poesia por um adjectivo, assim como dizemos fernandina para a de Fernando Pessoa, teremos de dizer a de João de Deus joanina ou divina.
Não dou exemplos da presença nos poemas do Campo de Flores da teoria do amor que, atrás, referi à Cabala, porque calculo que, dada a sua popularidade, todos os que fazem o favor de me escutar têm, pelo menos, um ou dois de memória.
Uma segunda característica é a da importância metafísica da língua maternal, pela qual pensamos e amamos. Eugénio de Castro tem um livro com o nome de Oaristos. Eis a palavra que caracteriza a poesia portuguesa, pois que significa “conversa entre os amantes” durante a qual toda a banalidade se reveste de um sentido transcendente e até absoluto. Quando eu era novo, na minha terra não se dizia “a minha namorada”, mas sim “a minha conversada”. Álvaro Ribeiro, propondo a língua portuguesa como um órgão universal da filosofia, demorou-se a pensar e a expor uma linguística que, se soubermos ler os seus livros com atenção desperta, vemos que, na verdade, é uma oarística.
Também aqui neste domínio, a gnose hebraico-portuguesa se distingue da gnose oriental valorizando a palavra sobre o silêncio, procurando no silêncio, não o pensamento que se torna inefável, mas o pensamento que se transforma em palavras que iluminem a treva em que vivemos.
Deste ponto de vista, devemos interpretar a Cartilha Maternal como uma tentativa, que as contingências da política fizeram fracassar, de fazer descer a luz ao espirito das crianças. É que a Cartilha Maternal de João de Deus não é como outra qualquer cartilha ; não é um método de ensinar a ler que se caracterize, como os outros métodos que, antes e depois dele, foram praticados, somente pelo mecanismo psíquico que põe em acção. Há nela vários aspectos pelos quais João de Deus conduz sugestões superiores, como a escolha das palavras, das frases e dos textos em que insinua e propõe a ideia de que é na família que está o verdadeiro Templo de Deus, o verídico lugar da nossa adoração, onde a criança aprende a falar e a ler ouvindo a voz da mãe e onde, ouvindo a voz do pai, aprende a cumprir os primeiros mandamentos. Ao mesmo tempo, são gravados na sua memória os fonemas e as letras, quero dizer as vogais e as consoantes, porque a fonética adoptada por João de Deus não é a fonética alemã de Franz Bopp. É, por surpreendente que pareça, a fonética da Cabala.
Na minha Gramática Secreta da Língua Portuguesa, chamei a atenção para o facto, mas de um modo incompleto e, por vezes, errado. Não desisti ainda de vir a escrever um livro a que daria por título A Gramática Cabalista de João de Deus. Neste momento, limitar-me-ei a dar algumas indicações. Quem sabe se alguns de vós não escreverá o livro que eu gostaria se escrever. Ficarei muito feliz se isso vier a dar-se, até pelo trabalho que me foi poupado.
A Cartilha Maternal não começa pelo ensino das vogais. Porquê ? Porque só elas são pronunciáveis na situação de sozinhas. Só elas, em português, podem constituir sílabas. Os restantes elementos do alfabeto só formam sílabas por intermédio das vogais. Daqui a crítica que João de Deus lança contra os métodos que têm por base a soletração. Mas, assim criticando, põe implicitamente o princípio de que os elementos não vocálicos não são fonemas, mas letras, quer dizer aquele princípio que determina o alfabeto hebraico. Neste, com se sabe, não há vogais, só consoantes, isto é, as vogais não têm forma gráfica, por tal modo que se nós tivéssemos perante os olhos uma palavra como, por exemplo, PRT, só pelo contexto poderíamos saber se significava porta, perto, porto ou parto. É esta indeterminação das vogais que possam vir dar sentido à palavra ou à frase ligando as consoantes que as constituem que vem dar à produção de equívocos, de jogos de significados, da intriga de ideias, da cabala enfim, na acepção que a palavra tomou popularmente entre nós. Assim, é bem possível que o adágio “Com papas e bolos se enganam os tolos” tenha sido formado para esconder outro sentido ; para um cripto-judeu hostil à Igreja Católica pode muito bem significar “Com papas e bulas se enganam os tolos”, em que as mesmas consoantes da palavra “bolos” se mantêm, mas que, recebendo outras vogais, altera o próprio sentido que vai contaminar a palavra “papas”. Claro que esta utilização da Cabala nunca esteve na mente João de Deus, conquanto utilize o processo, aqui e ali, principalmente nas sátiras que escreveu, com um fim bem mais elevado do que o do cripto-judeu seiscentista.
Deixemos, porém, o poeta para irmos ao encontro do filósofo.
Para aqueles que, na assistência, não conheçam Sampaio Bruno, recorro a Álvaro Ribeiro e a Fernando Pessoa pedindo-lhes que vo-lo apresente.
Álvaro Ribeiro disse dele que foi o fundador da filosofia portuguesa, o que deve entender-se, julgo eu, como tendo sido o primeiro em Portugal, no curso dos séculos, a manifestar em forma filosófica os princípios e os fins da nossa tradição esotérica.
Fernando Pessoa deixou gravada numa folha escondida no seu famoso baú a seguinte frase: ”Sampaio Bruno é hoje, em Portugal, o único que sabe.”
Feita esta apresentação, tentemos agora conhecê-lo melhor.
Era um revolucionário, em plena tirania de João Franco. Escreveu o manifesto do 31 de Janeiro e fugiu para França, atravessando as terras de Espanha. Era ateu. Nas terras de França, numa rua de Paris, dizem ter conversado com um ocultista, católico e rosacruz Joséphin Péladan que o terá acordado. Com efeito, nas Notas do Exílio, escritas nesse período, vê-se que um novo sopro transformou o seu materialismo materialista no materialismo espiritualista que será, mais tarde, com a solução dada ao problema do mal, a base da sua Ideia de Deus, nome do seu principal livro.
Para aqueles que se interessam pelo problema da conversão de Sampaio Bruno, eu direi que não acredito, como chegou a pensar Álvaro Ribeiro, que o filósofo português tenha sido iniciado por Péladan, à semelhança de Eugénio de Castro, nem sequer depois de haver lido há dias o texto que Sampaio Bruno escreveu exaltando a personalidade e a doutrina do iluminado francês. Este texto foi recolhido por Joaquim Domingues para uma nova edição de Os Cavaleiros do Amor, acrescentada de vinte e um capítulos e lançada desta vez pela Casa da Moeda, com um posfácio do mesmo Joaquim Domingues que nos impressiona pela coragem e pela inteligência com que defrontou o silêncio que até agora tem envolvido e escondido do leitor o pensamento do maior filósofo português.
Não acredito que tenha recebido a iniciação de Péladan. Mais provável me parece que a coisa tenha acontecido, não em Paris, mas em Amesterdão. Ali, onde se deslocou com intuito certamente escondido, não pôde ter deixado de ser atraído pelo demónio da bibliofilia a visitar a biblioteca dos judeus portugueses desterrados na Holanda. O nome dessa biblioteca é, em hebraico, Etz Haiim ; em português, Árvore da Vida. Foi à sombra desta árvore que, no século XVII, se congeminou o movimento conhecido por sabatianismo que revolucionou de todo em todo a comunidade judaica internacional que julgou ter chegado o tempo do Messias, isto nos mesmos anos, estranha coincidência de Palavras e de doutrina !, em que nas terras de Portugal, o Padre António Vieira, julgado por cabalista no Tribunal da Inquisição, propagandeava o sebastianismo.
É possível, pois, que, em Amesterdão, tenha conhecido alguém que o iniciasse nos mistérios da Cabala. É possível, mas não é certo. O que sabemos de certeza segura é que Sampaio Bruno, conforme ele mesmo no-lo narra nas Notas do Exílio, capítulo Erasmo, ali na Holanda conversou com um estranho companheiro, visível só para ele, de quem mais tarde em A Ideia de Deus veio a falar mais explicitamente, caracterizando-o como a sua enteléquia ou natureza perfeita deste modo:
“(Nas notas do Exílio) … a enteléquia recebeu uma confissão psíquica. (O outro eu mesmo com quem confidencio) não é bem um desdobramento, porque o menos (que eu sou) aspira ao mais (que ele é) e a insuficiência lisonjeia a integralidade. Porém, bonda. Sus. Silêncio.”
Neste passo, distinguindo, convém talvez lembrar outra característica peculiar da gnose hebraico-portuguesa. É o modo como concebemos e praticamos o ensino esotérico. As escolas da Índia com os seus gurus ou as terikas muçulmanas dos sufis causam alguma perplexidade nos melhores espíritos, na medida em que sujeitam o aprendiz a uma estrita obediência servil em trabalho de grupo, sob orientação de um mestre venerado que, na qualidade de guia espiritual, exerce sobre ele um poder quase absoluto, reforçado pela prática periódica da “confissão psíquica”. A tertúlia, o convívio interrogativo, a conversa que, como o José Marinho dizia, os mais experientes e sábios não devem deixar degenerar em diversa, é, mais uma vez, no âmbito da filosofia hebraico-portuguesa, a expressão do valor da palavra individualizada. Um dos últimos livros de Agostinho da Silva tem por título Vida Conversada e Agostinho da Silva é, sem dúvida, um dos mais lúcidos intérpretes do génio português.
Voltemos a Sampaio Bruno. A sua filosofia é fortemente marcada por outra característica, comum, aliás, à gnose persa. Como hei-de dizê-la?
Certo dia, estando eu de conversa com um camponês alentejano, ele disse-me a certa altura que não acreditava em Deus. Perguntei-lhe se sabia porquê. Respondeu-me que, se houvesse Deus (referia-se, sem dúvida, ao Deus omnipotente e criador da teologia corrente) se houvesse Deus, o mal não podia existir no mundo. “Ora essa!, repliquei, então o senhor não vê que, se há tanta dor, tanto sofrimento, tanto mal na terra, também há uma dádiva ininterrupta da vida ?”. E, para o impressionar, acrescentei o seguinte : “ O senhor fecha os olhos e só vê trevas ou, quando muito, uma luz difusa uma luz difusa, mas se os abre tem diante de si este esplendor que inunda e levanta as montanhas aqui diante de nós.” A conversa passava-se na Serra d’Ossa. “Pois é, disse ele, lá que existe qualquer coisa, existe, mas não é de certeza como a pintam”.
Nesta conversa, está todo o problema de onde se ergue a filosofia de Sampaio Bruno. Para a Cabala, como para ele, o mal tem existência real, é por tal modo evidente, intrínseco à vida que não é com dois ou três sofismas que se ilude o problema posto pelo camponês. Não vou, naturalmente, expor aqui toda a argumentação gizada por Sampaio Bruno contra as doutrinas que, desde Aristóteles a Leibnitz, na escolástica catolicizante antiga e moderna, têm explicado o mal como uma privação do bem, por tal modo que este é que seja só real e o outro, o mal, uma sombra passageira, como que um não-ser e um precipitado da contínua actividade do ser, sem peso na organização dos mundos. A Ideia de Deus, como vos disse, o principal livro de Bruno, é em grande parte tecido com sucessivos argumentos para os sucessivos aspectos da questão, mas conclui pela ideia de que o mal tem raiz em Deus, sendo a evolução humana, de companhia com a evolução angélica, o processo pelo qual os átomos de luz dispersos que formam a matéria se reintegrarão nos seus princípios primitivos na harmonia de um universo inteiramente redimido.
Deus exilado de si próprio no homem e, segundo a palavra de S. Paulo que cita, “em todas as criaturas que gemem” é o conceito basilar da sua filosofia. É também o conceito basilar de Isaac Luria e da escola de Safed por Isaac Luria fundada após a expulsão de Espanha e de Portugal dos judeus perseguidos pela Inquisição, cujos horrores Sampaio Bruno denuncia ao longo dos seus livros, como uma das manifestações mais evidentes do mal e do sofrimento que produz.
Não é possível saber se o filósofo português conheceu o ensino da escola de Safed, mas pensou decerto o seu exílio em França à luz da mesma visão do filósofo cabalista hebreu. Desterrado em Paris, Portugal aparecia-lhe como um símbolo daquela “distância subitamente impossível de percorrer”, na saudade e na angústia, só vencível no tempo, se as emanações divinas vindas em socorro da natureza decaída receberem dos homens a resposta eficaz que as transforme em trabalho libertador do trabalho. É então que escreve as Notas do Exílio e até à hora do último regresso, não mais parou de escrever, simultaneamente escondendo e revelando o segredo que lhe foi dado ouvir. Ele sabe que os seus livros, “propositadamente obscuros” como os diz, são difíceis, mas sabe também que o movimento pelo qual nos erguemos, em esforço, para a luz é que é, afinal, a própria luz, pelo que mostrar abertamente o maravilhoso segredo é deixá-lo de novo perder-se no mar da nossa banalidade, neste misto ou mistura que Camões definiu como “o confuso mundo”.
Chegado ao termo do que queria dizer-vos, temo ter criado em vós a ideia de que penso serem os judeus o único povo na origem da nossa sabedoria. De facto, mal cheguei a falar no pensamento cristão. Mas o tema que me foi proposto para esta conferência foi o da influência da Cabala na cultura portuguesa. Essa é, de facto, só um aspecto de um conjunto mais vasto. Na verdade, Portugal, como o Homem, é estruturalmente tríplice. É, pelo consciente, cristão, pelo seu subconsciente hebreu e, mais longinquamente, pelo seu supraconsciente, é persa ou ariano. Mas isso é assunto para uma outra tarde.
António Telmo
* Conferência na Faculdade de Psicologia em Lisboa, 1996.
(Publicado em Viagem a Granada, 2005)