Etiquetas
Blogue
INÉDITOS. 41
03-02-2015 11:50Quem de vinte cinco tira…*
"Quantos são quem de vinte cinco tira?"
Desde criança que este e outros enigmas, herdados de tradição, encantavam a minha inteligência ainda adormecida, apenas acordada do longo sono que é o esquecimento do que porventura tenhamos sido antes de nascermos.
Primeiro era o espanto perante o absurdo da pergunta feita pelo adulto à criança: “Tira o quê?”
Depois, com a descoberta de que se tiravam cinco a vinte e restavam quinze, descoberta que fora afinal a revelação do adulto, era o encontro da luz que desfazia o absurdo e que punha tudo no lugar.
Hoje, passadas várias décadas, vejo, pensando nisso, que a solução do enigma não é o número quinze. Há quem de vinte tira cinco. O “quantos são” refere-se ao pensador. A resposta é: 1! Não o que pergunta que já sabe a solução e por isso já tirou cinco de vinte. Mas sim o que adivinha, porque esse ao ver a solução é quem tira cinco de vinte.
A resposta deveria ser: sou eu quem faz quinze subtraindo cinco de vinte.
Mas há ainda outro ensino naquela pergunta. Chama a atenção para ser vinte e cinco e não vinte cinco. O enigma e a sua solução só existem por um erro fonético, o de transformar vinticinco em vinte cinco.
António Telmo
* Título da responsabilidade do editor.
«OS MEUS PREFÁCIOS». 09
31-01-2015 10:51PREFÁCIO A O BRASIL MENTAL, DE SAMPAIO BRUNO[1]
O Brasil Mental foi, pela primeira vez, editado em 1898, cinco anos depois das Notas do Exílio e quatro anos antes de A Ideia de Deus. O tempo que decorreu entre o primeiro e o terceiro destes livros formou o período de gestação do pensamento filosófico de Sampaio Bruno, como se não fosse o acaso a marcá-lo com o número nove. Os livros que o antecedem – Análise da Crença Cristã e A Geração Nova – estão ainda presos ao materialismo ateu que, sob a pressão das ideias correntes da época, marcou o rumo da ideação do filósofo até aos trinta e cinco anos, antes de se converter ao evolucionismo espiritualista de inspiração gnóstica e cabalista, cuja formulação mental viria a atingir a perfeição com o livro sublime.
Significa isto que O Brasil Mental, sendo como é a fase de um processo deve ser lido relativamente às Notas do Exílio e à A Ideia de Deus, sem o que a filosofia da história nele exposta corre o risco de ser compreendida como exclusivamente materialista. Com efeito, as doutrinas que ali aparecem a constituir a base dessa filosofia são, predominantemente, o positivismo de Augusto Comte, o evolucionismo de Herbert Spencer e o economismo de Carlos Marx. Sampaio Bruno não refuta o positivismo, corrige a lei dos três estados aceitando a classificação das ciências; não refuta nem aplaude o marxismo, apresenta-o simplesmente, não deixando porém, de o utilizar e de o aplicar no modo, exclusivamente economista, como interpreta a história de Portugal. Tal é o valor que atribui à vária, mas convergente, doutrinação progressista que, reagindo contra Proudhon, escreve: «Que nos quer ele, a nós, que partimos de Diderot e que, por Auguste Comte, o maior colosso mental do século, chegamos à sistematização evolucionista de Spencer, ao socialismo científico de Marx, às intuições sociológicas do americano Giddings!»
A filosofia da história de Sampaio Bruno não é, porém, nem positivista nem marxista. De Comte e de Marx, como de Spencer, o que destaca e retém é a possibilidade de entrar em linha de conta com o tempo, não já servo do espaço, pela estabilidade dos ciclos que voltam sempre ao ponto de partida nesse mesmo espaço, prendendo a humanidade e o mundo à fatalidade do mal. Daí a sua refutação do monismo, pelo qual a mesma substância permanece inalterável na variedade dos modos. Nem monismo nem dualismo. Mas, sem A Ideia de Deus, o evolucionismo pensado por Sampaio Bruno mal se distingue dos outros evolucionismos, tais como vêm expostos n’O Brasil Mental. Por outro lado, A Ideia de Deus sem a experiência do exílio envolver-se-á de irredutível obscuridade.
Foi, pois, de 1893 a 1902 que surgiu e se formou o pensamento filosófico de Sampaio Bruno. O momento decisivo foi o do exílio. Ali deflagrou a chispa de luz. Uma nova, antes inexistente, emoção alterou, transfigurando, o materialismo ateu da Análise da Crença Cristã no materialismo espiritualista de A Ideia de Deus. A «Carta Íntima» é o documento que torna completamente verosímil a tese de Álvaro Ribeiro dando a iniciação ou iluminação de Sampaio Bruno como tendo acontecido em Paris, para onde foi desterrado em consequência da sua participação no movimento revolucionário de 31 de Janeiro de 1891. É a «Carta Íntima», que antecede A Ideia de Deus, um texto autobiográfico. Aqui nos fala Bruno da crise interior que o assaltou longe da Pátria, em analogia com a experiência de Dante:
«Quase sempre, essa crise interior nos assalta a meio da caminhada da existência.» Bruno tinha como Dante trinta e cinco anos quando iniciou a viagem. «Tu recordas o florentino terrível:
Nel mezzo del cammino di nostra vita
Mi ritrovai per una selva oscura,
Chè la diritta via era smarrita.»
E depois, no seu jeito de trazer para casa o estranho e o distante: «Um português, o Sr. Domingos Enes, traduziu, parafrasticamente:
Em meio do caminho desta vida,
Achei-me, um dia, numa selva escura,
Muito longe da senda, já perdida.»
Como o vate, que desceu ao Inferno, a alma ansiada remonta a rever as estrelas:
«Lo Duca ed io per quel cammino ascoso
Entrammo a ritornar nel chiaro mondo:
E senza cura aver d’alcun riposo.
Salimmo su, el primo ed io secondo,
Tanto ch’io vidi delle cose belle
Che porta il Ciel, per un pertugio tondo:
E quindi uscimmo a riveder le stelle.
Ou seja, na versão do Sr. Domingos Enes :
Pelo árduo trilho, junto ao curso manso,
Nós buscamos depois ter a ventura
De entrar no claro mundo. E, sem descanso,
‘Pós do Mestre subi a senda escura;
Do Céu as maravilhas pude vê-las
Afinal, através de uma abertura.
E, saindo, revimos as estrelas.»
A ideia que, neste ponto, se nos impõe, da perspectiva derivada da leitura de O Brasil Mental, que motiva esta introdução, é que a filosofia da história, tal como a pensou Sampaio Bruno, neste livro e depois n’O Encoberto se faz pelo modelo do seu próprio itinerário espiritual. É verdade que a história de Portugal é nele interpretada de um ponto de vista exclusivamente economista. O quadro que pinta dos sucessivos momentos de uma miséria iludida por uma vida, aparentemente faustosa, sustentando-se de empréstimos, de roubos e de pirataria, tem por fim levar os espíritos à consciência do povo que são, acentuar o sentimento de uma crise interior colectiva donde possa saltar a chispa de luz que nos incendeie para uma nova vida. Mas esse incêndio ou essa iluminação já se deu: sua suprema expressão é a Pátria de Guerra Junqueiro. Dedica-lhe cerca de trinta páginas do primeiro capítulo de O Brasil Mental. Falar da Pátria diz ele que é «revoar para as zonas transcendentes». Para o acordar dos espíritos, só o movimento de 31 de Janeiro de 1891 se lhe compara:
«Todavia, concatenando, sempre conseguiremos explanar, de golpe, o alcance, histórico e social, do poema de Guerra Junqueiro. Ele fica determinado quando se apure, através das paixões do momento, que este livro afirmou (mercê das características intrínsecas, corroboradas pelo efeito exterior, correspondente, do seu êxito de venda) um momento culminante. Este foi o acume do progressivo – ainda que moroso – processo de desagregação da alma colectiva, desprendendo-se dos sentimentos tradicionais e abandonando, enfim, as suas velhas crenças, na troca de outras novas, mais retributivas e salutares.
A acção da obra sobre a consciência pública mostrou-se, assim, das mais vastas e profundas; o seu influxo ético, a sua permanência orientadora distinguir-se-á, a todo o tempo, como um dos fenómenos críticos mais notáveis da nossa cultura hodierna.
Senão, mesmo, o mais notável, pois que, na ordem espiritual, como generalidade e compreensividade de acção, nada existe que lhe seja assemelhável. Com efeito, só no domínio dos factos concretos qualquer coisa se lhe possa aditar, no mesmo sentido de convergência e com análoga flagrância de resultados sucessivos. É o movimento de 31 de Janeiro de 1891.»
Sampaio Bruno e Guerra Junqueiro representam, de facto, o binómio que, por irradiação, virá formar, no século XX, o hexagrama central do pensamento português, no diálogo sucessivamente renovado com a poesia. Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes, José Marinho e Fernando Pessoa, Álvaro Ribeiro e José Régio não teriam podido ser o que foram sem o fulgor nascido do encontro daqueles dois. Os restantes escritores de razão ou de imaginação que, hoje como ontem, têm tido algum valor no domínio do espírito volitam todos à volta daquela estrela que ergueu o pensamento português às zonas transcendentes. É no binómio Sampaio Bruno – Guerra Junqueiro que está a força propulsora, pela fascinação da Ideia, do criacionismo, do saudosismo e do futurismo que marcaram a doutrinação dos que se lhe seguiram, por vários modos trazendo ao domínio do pensamento a religião da Pátria.
O renascimento que se deu na literatura filosófica não foi acompanhado, como o sonharam os dois, pelo renascimento no domínio político. Neste, apesar da República, a desagregação da alma colectiva prosseguiu. Bruno, meses depois da queda da Monarquia, retirou-se da cena política. Tão certo é, como escreveu Hegel, que a ave de Minerva só voa ao anoitecer.
Foi, então, o movimento da Renascença Portuguesa um fogo-fátuo à superfície do corpo político? A noite que vem depois do anoitecer não é o domínio da ave de Minerva? E o que será a antemanhã dessa noite?
Muitas respostas para estas perguntas encontrou, de certo modo, o leitor que leu o Plano de Um Livro a Fazer que Joaquim Domingues superiormente organizou, prefaciou e anotou em recente edição da Imprensa Nacional. Ali se verá, se não se viu, que é durante a noite que floresce a árvore da sabedoria à volta da qual se juntam os Cavaleiros do Amor. Essa árvore tem, porém, um nome: Kabbalah.
Todo o sistema filosófico de Sampaio Bruno, se sistema devamos dizer, provém desta zona misteriosa. Na conjectura de Álvaro Ribeiro, derivada daquela citação de Dante de «Lo Duca ed io», terá sido de Joséphin Péladan que Bruno recebeu o ensino que o transformou num iluminado. Todavia, pelas Notas do Exílio, é-nos dado ver que foi na Holanda e não em França que tudo teve início. É de presumir, sem receio de engano, que o filósofo terá visitado a Biblioteca dos judeus portugueses de Amesterdão, cujo nome de Árvore da Vida (Etz Haiim) é já de si uma alusão ao pensamento cabalista de Isaac Lúria. Este pensamento ter-lhe-á aberto o espírito para o supremo sentido da sua experiência do exílio.
Com efeito, uma boa hermenêutica d’Ideia de Deus e, à luz desta ideia, da filosofia da história de O Brasil Mental, revela tão impressionantes coincidências entre o pensamento filosófico de Sampaio Bruno e o pensamento cabalista de Isaac Lúria que só o respeito pelo génio original do nosso filósofo, pelo génio que o inspira, nos pode fazer duvidar de que ele tivesse lido os escolastas de Safed. A ideia basilar é a de Deus em exílio de si próprio na sua mesma substância procurando reintegrar-se pela recuperação das «parcelas de luz», por cuja queda na matéria, mais precisamente por cuja queda que faz a matéria se encontra actualmente «diminuído». Os agentes da recuperação são os Anjos, emanações de luz em migração que comunicam com o homem, trazendo-o a participar no fim comum de redimir a natureza. A oração é eficaz porque chama o espírito puro ao espírito alterado. O Universo é movimento porquanto todos os seres, logo após a inexplicável queda em Deus, buscam regressar ao homogéneo inicial e, por isso, a ideia de Deus é a do Espírito interessado, pessoal, próximo, mas invisível, que acompanha o homem, principal centro dos seres naturais, e o seu povo Portugal-Israel ou Portugal-Humanidade, durante o grande exílio universal, drama imenso cujo desenlace se dará com a vinda do Messias, Paracleto ou Novo Cristo.
Repare-se que não há um só ponto desta doutrina que não possa ser referido à ideia de exílio. É o que lhe dá o tom próprio e vivencial. Ora tal característica encontramo-la predominantemente na filosofia de Isaac Lúria. Seguimos, ao evocar os principais aspectos desta filosofia, a lição de G. G. Scholem em Correntes da Mística Judaica.
Em primeiro lugar, a doutrina do Tsimtsum (concentração, contracção), segundo a qual Deus se teria retirado de si próprio para a realidade insondável da sua solidão imensa, deixando assim lugar para a criação do mundo. «Tentou-se interpretar esta retracção em termos de exílio, como se Deus se houvesse expulsado do seu todo numa profunda reclusão. Encarada assim, a ideia do Tsimtsum é o símbolo mais profundo do exílio, mais profundo até do que a Quebra dos Vasos. Na Quebra dos Vasos, qualquer coisa do ser divino é exilado fora d’Ele, mas o Tsimtsum pode ser interpretado como um exílio de Deus em Deus.»
Em que consiste a Quebra dos Vasos? «Primeiramente, as luzes estavam reunidas num todo (homogéneo inicial de Bruno), sem nenhuma diferenciação entre as Sephiras: neste estado, não precisavam de taças, copas ou vasos que as contivessem.»
«Os vasos correspondentes às três sephiras supremas abrigaram a luz emanada do Ain Soph, mas, ao ser recebida pelas seis sephiras seguintes, essa luz irrompeu de um jacto e a pancada foi tão grande que os vasos se quebraram e se fizeram em pedaços. O mesmo se deu, embora em menor medida, com o vaso da última sephira.»
Lúria explica como os gnósticos a queda dos átomos de luz divina até às profundidades mais baixas.
«Os mundos inferiores e infernais do mal, cujo poder se sente em todos os estágios do processo cosmológico, nasceram dos pedaços que retinham ainda alguns raios da Santa Luz. Deste modo, os bons elementos das esferas divinas misturaram-se com os elementos tenebrosos. Reciprocamente, a restauração da ordem ideal, que forma o objectivo original da criação, é também o fim secreto da existência. A redenção significa, pois, a restituição, a reintegração, o restabelecimento do todo original.»
A filosofia de Sampaio Bruno deve ser referida mais à Quebra dos Vasos do que ao Tsimtsum, apesar da ideia basilar do exílio de Deus em Deus. A ideia da Quebra dos Vasos, conquanto não explicitamente mencionada, está presente ali onde Bruno fala da alteração do Espírito Puro e das «parcelas luminosas espalhadas pelo mundo tenebroso». Os átomos que resistem, correspondem aos pedaços, aos fragmentos dos vasos.
Uma imensa, profunda religiosidade impedia Bruno de formular uma explicação que desse a razão da Queda em Deus, mas tinha de admitir tal queda para compreender a existência simultânea de Deus e do mal no mundo. Não chegou pois, a dizer como Isaac Lúria que todo o processo cosmológico se deve explicar como o processo que Deus desencadeou para se libertar do mal. Posto isto, compreende-se que: «O processo pelo qual Deus se concebe, se engendra e se desenvolve não depende completamente de Deus. Determinado papel, no processo de reintegração, é atribuído ao homem. As luzes, em cativeiro na matéria resistente e obscura, não se libertam pelo seu próprio esforço. É o homem que põe o ponto final na impossibilidade divina. É o homem que completa a entronização de Deus, – Rei e Criador de todas as coisas – no seu Reino dos Céus, é o homem que completa o Fabricador de tudo! Em certas esferas do Ser, entrecruzam-se o humano e o divino. O processo intrínseco extraterreno do Tikkun (reintegração) é descrito simbolicamente como o nascimento da personalidade de Deus e corresponde ao processo da história terrestre.»
Ouça-se, em ressonância, Sampaio Bruno: «O fim do homem é ajudar a evolução da natureza.»
«A partir da diferenciação inicial do espírito homogéneo e puro, consecutivamente, decaída, a parte diversificada buscou regressar à origem. Eis porque seja que o movimento resulte o facto irredutível, característico do mundo. O movimento é o início e o fundamento de tudo, porque seja o avance na série de formas evolutivas, com o fito final do regresso ao espírito homogéneo.»
«Se um triste ateísmo a não adoecesse, seria por este fundamento recôndito que Clémence Royer poderia justificar a sua ideia de que cada átomo sente e quer, segundo motivos percebidos, como excitações motoras reflexas, que determinam os seus movimentos.»
Não está mal que neste momento, transcrevendo mais um texto de G. G. Scholem, joguemos um jogo, talvez pouco recomendável mas perfeitamente esclarecedor, que é o de nesse texto substituirmos o nome de Isaac Lúria pelo de Sampaio Bruno, alterando em consequência certas referências, como seja, por exemplo, a dos Judeus:
«Em suma, podemos considerar a Kabbalah de Sampaio Bruno uma interpretação mística do exílio e da redenção ou até um grande mito do exílio. A substância dessa Kabbalah reflecte os sentimentos dos portugueses desterrados na sua própria Pátria. Para eles, o exílio e a redenção são, do modo mais exacto, grandes símbolos místicos. Esta nova doutrina de Deus e do Universo corresponde à nova ideia moral da humanidade que propagou nos seus livros: o ideal do filósofo, cujo fim é a reforma messiânica, a transcensão do mal do mundo, a reintegração de todos os seres em Deus. Assim, o homem de acção espiritual, graças ao movimento que recebe dos Anjos, pode quebrar o exílio, o exílio histórico de Portugal, o da humanidade, e este exílio interior no qual gemem todas as criaturas.»
Regressando a O Brasil Mental, estamos agora em condições, julgamos nós, de entender o interesse que Sampaio Bruno pôs naquelas doutrinas contemporâneas caracteristicamente evolucionistas. E com elas o papel da Ciência, por cujo desenvolvimento se define a idade positiva de Augusto Comte. Não há n’O Brasil Mental uma refutação repudiando o positivismo. Há uma correcção que o admite com a reserva de se pensar que a Ciência positiva é também essencialmente ciência de Deus e, portanto, teologia. Para que assim seja, também, ela, a Ciência precisa de ser corrigida, banindo a noção de inércia e o cálculo das probabilidades que a reduzem a um monismo mecanicista.
No termo deste prefácio, relembrando, reparamos enfim que nada dissemos sobre o Brasil, como se o título do livro nada tivesse que ver com as «mentações» nele apresentadas e discutidas. O Brasil Mental porquê? Álvaro Ribeiro deixou-nos uma explicação n’Os Positivistas. No período em que escreveu esta obra (1951) pensava ainda ser Sampaio Bruno um adversário, sem mercê, do positivismo, opinião que viria a abandonar mais tarde, por influência, que declarou, de Amorim de Carvalho. Havendo observado que não há, nos livros de Bruno, uma única palavra de desprimor sobre Teófilo Braga e muitas de sincera admiração, foi levado a conjecturar que a amizade pessoal e a confraternidade republicana tinham impedido o nosso filósofo de visar o positivismo enquanto coisa portuguesa, salvaguardando-as àquelas, destacando-o como coisa brasileira. De facto, a forma como Sampaio Bruno trata os intelectuais brasileiros chega a ser rude e violenta, roçando, por vezes, o sarcasmo.
Acusa os brasileiros de não gostarem dos portugueses, de chegarem ao ponto de atribuírem origens diferentes ou disparatadas à língua falada no Brasil e à língua falada em Portugal. A diferença que, por desventura, exista entre as duas explica-as ele pelos barbarismos africanos que terão contaminado e deformado a fonética, a morfologia e a sintaxe da língua original. Demora-se a mostrar e a demonstrar esta tese. Mas surpreendemos nas palavras que ferem um toque, mal escondido, de tristeza. Tristeza essa que também nos invade quando supomos latente uma unidade interior, profunda e transcendente na imanência da língua comum, entre os dois povos, contudo deles ignorada, sem que as conexões superficiais bastem para suster o progressivo afastamento. Não terá sido, pois, para recuperar essa unidade interior e a consciência dela, à semelhança do que fez Agostinho da Silva, em múltiplos escritos, que foi pensado e executado O Brasil Mental?
O positivismo adquiriu no Brasil a forma de um catolicismo sem Deus, com o seu ritual em volta da deusa Razão. Entretanto, em Portugal, dealbava ao longe, mas suficientemente próxima, a República positivista. Sampaio Bruno via em ambas abjecções que vinham paralisar o movimento evolucionista no momento preciso em que, pela Pátria de Guerra Junqueiro, a lusitanidade tomava consciência de si e acordava para o sentimento do exílio, promissor da liberdade vindoura. Igual tomada de consciência se esperaria nos brasileiros. Em vez disso, surgem no Brasil, como mais tarde vão surgir em Portugal, na roda de António Sérgio, sucessivos ataques ao poeta e ao seu livro.
Sampaio Bruno responde à letra e fala ao espírito. É desta reacção libertadora que emerge todo O Brasil Mental.
DOS LIVROS. 33
29-01-2015 15:20O gato e o Corão
Recebi do Mário Rui, o islamita, uma preciosa oferta, o Corão em Árabe, com dourados, um livro muito belo que, infelizmente não posso ler.
Em casa, estive a folheá-lo com a minha mulher e pu-lo por fim sobre o tampo da camilha, à volta da qual estávamos sentados. O nosso gato saltou para cima da camilha, subiu para cima do livro, com as quatro patas nos seus quatro ângulos e estendeu-se deixando levantada a parte de trás como quem se espreguiça, desenhando exactamente a figura da prosternação, que é nos muçulmanos o terceiro momento da prece. E coisa ainda mais espantosa e assombro dos assombros, ficou nessa postura imóvel durante quinze minutos. Estava voltado para Meca.
Contei ao Mário Rui, mas, sem dizer uma palavra, despediu-se de mim com um aceno de cabeça. O que ficou pensando?
António Telmo
(publicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006-2009)
INÉDITOS. 40
27-01-2015 09:39[António Telmo, aos seis anos, em Moçâmedes, Angola, entre os irmãos, Orlando, à esquerda do leitor, e Rui, à direita]
Primeiras memórias*
África, Moçâmedes:
4 anos. Roubei um leãozinho a uma senhora que o tinha estado a mostrar aos meus pais dentro de uma arca.
Corri com ele ao colo por uma rua movimentada, pela qual atingiria a minha casa. A dona do leão corria atrás de mim, gritando: “Menino, menino, dê cá o leão!” As pessoas tinham parado a ver o espectáculo. Sorriam. Esse sorriso ainda me acompanha hoje, a acompanhar-me divertido e amigo quando me vejo em situações análogas à do roubo do leão à senhora pela criança[1], seu verdadeiro dono por direito divino.
Almeida
Regressáramos de África. Vi passar o cadáver do meu avô, lembro-me do meu olhar: ver sem ver.
Outra lembrança:
Com outras crianças brincando nas muralhas. Estávamos juntos a olhar não sei o quê. De repente, um dos rapazinhos grita: “Vem ali a Senhora da Manta”. Fugimos apavorados. Eu de uma imagem informe e sombria, que, depois, toda a vida me tem perseguido e que eu tenho tentado dissolver atirando-lhe luz para cima.
António Telmo
____________
* Título da responsabilidade do editor.
DOS LIVROS. 32
25-01-2015 17:51O pêndulo
Houve uma época, não há muitos anos, em que frequentei, com alguma assiduidade e algum interesse, uma associação de neopitagóricos e foi aí que conheci, felizmente por um só dia, um desses curandeiros ocultistas com consultório a imitar os da medicina oficial. Digo felizmente por um só dia pois bastou uma breve conversa com ele para que me lançasse num abismo de preocupações. Foi o caso que logo descobriu no lóbulo da minha orelha um risco que lhe dizia, sem qualquer dúvida, que eu estava a ser minado por uma angina de peito e que devia tomar consciência disso e ver o que se podia ainda fazer.
Por uma daquelas coincidências tão frequentes que já ninguém se espanta com elas, o meu médico de família, achando-me uma tensão arterial demasiado elevada, levara-me a consultar um cardiologista e a obter o inevitável electrocardiograma, coisa que se realizaria três dias depois da conversa com o neopitagórico. As duas coisas juntas puseram-me a alma em pânico. Regressei de Lisboa a Estremoz tão preocupado com a ameaça da angina pectoris que não disse palavra durante toda a viagem e nem sequer ouvi o que diziam os meus dois companheiros.
No dia seguinte, dirigia-me eu, como de costume, logo pela manhã para o Café onde tenho escrito todos os meus livros, quando aconteceu o inexplicável.
Num dos bancos do jardim que por ali há no Rossio, na grande praça de Estremoz, estava sentado um desses alentejanos como se vêem tantos, com o seu típico boné.
– Chegue aqui, senhor professor.
O homem conhecia-me. Tinha um rosto simpático. Aproximei-me.
– Sabe o que é isto?
– Sei. É um pêndulo.
– Sabe para que serve?
– Diga-me o senhor.
– Para ver se uma pessoa está doente ou goza de saúde.
– E como se vê?
– Se o pêndulo se deslocar a direito (fez o gesto com a mão) é porque a pessoa está mal. Se começar a girar em círculos é sinal que a pessoa está bem. Quer saber o que se passa consigo?
– Então não hei-de querer?
Eu estava espantado. Tudo aquilo vinha de encontro à terrível preocupação que me criara o neopitagórico.
O pêndulo, suspenso de um fio entre o indicador e o polegar, começou a mover-se em círculos harmoniosos. O rosto do homem iluminou-se:
– Oh! Como tem saúde!
Balbuciei, como que atordoado, algumas palavras de agradecimento e fiz o gesto de prosseguir o meu caminho.
– Olhe! Disse-me ele, não sou eu que movo o pêndulo. São os anjos.
O cardiologista, que consultei dois dias depois, nada encontrou de inquietante. Eu contei-lhe da angina pectoris. Com minha surpresa, não negou que houvesse a tal relação com o risco na orelha, mas explicou que isso nem sempre batia certo.
António Telmo
(publicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006-2009)
VERDES ANOS. 10
24-01-2015 16:39Problemas do estilo em Sampaio Bruno[1]
Na literatura portuguesa não há mais problemático estilo que o do «portuense ilustre» que escreveu com o pseudónimo de Bruno. É um obscuro, raro e estranho estilo, sobretudo para quem faz da prosa portuguesa uma imagem mais ou menos cingida ao modelo da prosa francesa. Não surpreende, por isso, que tenha sido mal apreciado pela generalidade dos nossos escritores, a ponto de ser frequente dizer-se que Sampaio Bruno é ilegível. De estranhar é que tal opinião seja um pretexto, isto é, sirva para não ler e assim ignorar o pensamento do fundador da filosofia portuguesa. Todavia, dizer-se de um escritor que é ilegível, quando o pensador constitui uma tão poderosa influência, dá lugar a um problema que merece ser meditado demoradamente.
Sobre o estilo de Sampaio Bruno pronunciaram-se também alguns dos discípulos de Leonardo Coimbra. Como o pensamento do autor do Criacionismo de certo modo se funda no pensamento do autor de Análise da Crença Cristã, convém ouvir aquelas opiniões, na esperança de que surja um ponto de vista donde, a luz diferente, seja visto e compreendido o enigmático estilo.
Num aforismo do seu Pensamento Invertebrado, livro publicado em 1934, Sant’Anna Dionísio não exprime opinião diversa da citada opinião geral. Depois disso, até hoje, nada publicou sobre Sampaio Bruno este estudioso de Raul Proença e Antero de Quental, Teixeira de Pascoais, Leonardo Coimbra e Raul Brandão, do qual o lirismo faz recordar certas páginas da «Carta Íntima» que prefacia a Ideia de Deus. Somos, por isso, constrangidos a tomar aquela opinião por sua, enquanto Sant’Anna Dionísio não nos esclarecer, por escrito, quanto ao que actualmente pensa. Os seus estudos acerca de Pascoais e Leonardo Coimbra, guiados por uma penetrante e admirativa inteligência, se o conduziram até aos fundamentos do movimento renascentista português, levaram-no com certeza a considerar, com melhor sentido horoscopal, os génios e as acções de Guerra Junqueiro e de Sampaio Bruno.
José Marinho foi o segundo a dizer-nos alguma coisa sobre o estilo do autor da Geração Nova. Fê-lo no seu livro O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra, editado em 1945: «Leonardo revela sempre maravilhosa espontaneidade. Bruno pertence, pelo contrário, ao grupo de pensadores que vivem na constante exigência, mais ou menos dolorosa, de exprimir uma ideia remota e obscura, sempre fugitiva.»[2] Num estudo que publicou depois na Perspectiva da Literatura Portuguesa do Século XX, apenas teoreticamente se ocupa do pensamento de Bruno. Estilisticamente, na brevidade do parágrafo citado, de certo modo nos elucida. Vemos assim que José Marinho não acompanha a opinião da generalidade. A problemática obscuridade do estilo de Bruno, ele a considera do ponto de vista muito mais fecundo da filosofia pensada pelo filósofo, no grau atingido da inspiração. É, por um lado, a dificuldade de exprimir um pensamento que, por outro lado, profundamente visionário e real na visão, não é apreensível pela razão iluminista e surge em unitiva e secreta obscuridade que vela e revela as verdades invisíveis. Tememos, contudo, não interpretar bem o difícil pensamento de José Marinho.
O que diz o terceiro dos discípulos de Leonardo Coimbra interessa mais ao assunto deste ensaio – ou tentativa –, porque na Arte de Filosofar, agora editada, Álvaro Ribeiro inclui um estudo estilístico, extenso e aprofundado, do autor do Encoberto. Citaremos e resumiremos, incorrendo no ridículo de citar e na deslealdade de resumir, o que nos diz o teorizador da filosofia portuguesa. A páginas 161 do seu livro, escreve: «…se para muitos pensadores é certo que na obra escrita não exprimem algo do muito que queriam dizer, para Sampaio Bruno o aparentemente descosido da sua exposição significava, pelo contrário, a perseguição oculta das suas intuições essenciais.»
Cremos que, no fito de descobrir as normas secretas do estilo de Sampaio Bruno, procura ver, em seguida, quais os processos estilísticos que ele valorizara nos outros escritores. No Porto Culto, seu autor parece dizer-nos que a metáfora é o mais fecundo dos tropos, o que, com efeito e com causa, intimamente se harmoniza com o seu pensamento atlântico, que aventurosamente progride de plano para plano de conhecimento. Álvaro Ribeiro conclui: «A relacionação metafórica de imagens, perfeitamente admissível num pensador que atribuiu à revelação o processo único de aproximação da verdade, mas de difícil seguimento para os pensadores que desejam que o estilo filosófico represente literariamente os processos lógicos da indução e da dedução, igualmente prosaicos, dá causa a que se diga ser a obra de Sampaio Bruno quase completamente ilegível.»[3] Estamos aqui já muito além da opinião geral. Podemos agora atribuir uma significação à obscuridade do estilo de Sampaio Bruno. Muito longe de representar deficiência de expressão, exprime um processo metafórico de transcensão para o ignoto.
Assim se desenham atitudes e se apresentam soluções perante o maior problema estilístico da nossa literatura.
É bastante significativo que o estilo de Guerra Junqueiro tenha sido também combatido pela mesma corrente que se opõe ao estilo de Sampaio Bruno, e é significativo porque são dois estilos, não diremos diversos, mas distintos. Todavia, poeta e filósofo são ambos os fundadores da Renascença Portuguesa. Num país dominado pelo espírito de negação das línguas, nas suas várias formas, mas principalmente na positivista, difícil seria o progresso do novo e original verbo. Na profunda altissonância da voz junqueiriana e na pletórica obscuridade da palavra brunica viu a crítica dos estrangeirados o sinal negativo, como não podia deixar de ser. Se a opinião da maioria é a opinião feita – e a que faz quem não pensa –, o diálogo da Poesia e da Filosofia continuará a seduzir e a mover os melhores espíritos.
O estilo de Sampaio Bruno nunca podia ser bem acolhido pela mentalidade que domina a nossa cultura, porque não é um estilo de tradição helénica. Não o move a preocupação, que os europeus herdaram dos gregos, de fazer literatura. Na tradição portuguesa, que é atlântica, a língua assume uma significação diversa e superior. É muito menos expressão, é muito mais comunicação. Assim, Sampaio Bruno não utiliza as palavras para fazer uma obra literária, não o atrai a exterioridade linear e geométrica das construções literárias que têm por paradigma o edifício de pedra em vez da coluna de fogo. Escreve invocando, confia e espera das palavras a revelação de segredos, mas, para isso, emprega certos conhecimentos estilísticos que aprendeu na tradição que segue. Havendo estudado a prosa portuguesa, soube que há um processo português de filosofar, diferente dos processos utilizados pelos outros povos. Assim parece ter de interpretar-se o que diz do seu próprio estilo no Porto Culto, quando nos informa de que a obscuridade dele é propositada.
Bem se compreende, pois, que, olhado do estrangeiro, tal estilo chocasse os espíritos. Mas, se bem atentarmos, veremos, nos bons escritores portugueses, certas maneiras de dizer pouco claras, mas nem por isso menos dignas de serem consideradas. Para nós, dos exemplos mais altos da língua portuguesa são, na poesia, a Pátria e, na prosa, o Encoberto. Quem, evitando seguir a opinião feita, souber relacionar uma com o outro não mais se enganará quanto à língua em que escrevemos, falamos e pensamos; muita luz fará sobre uma e outra obra dos dois pensadores, e também sobre a real existência da nossa filosofia.
Insistimos em que a animadversidade para com os estilos em que foram escritos estes dois livros não deixou ainda perfeitamente compreender a originalidade e a finalidade da Renascença Portuguesa. Se se considerasse o estilo de Sampaio Bruno de modo a apreender a acção peculiar da sua personalidade ver-se-ia como, afinal, a verificada influência do pensador não contradiz o modo de existir do escritor. Se, ao contrário de Junqueiro, cujo estilo foi imitado por Pascoais e Leonardo Coimbra, Sampaio Bruno não exerceu literária influência estilística, isso não significa que a Renascença Portuguesa se possa considerar um movimento infundado no autor do Porto Culto. As características do seu estilo, as características do estilo brunico, sinalam uma influência tanto mais poderosa e efectiva quanto menos aparente no domínio da ficção literária. Do ilustre portuense, do portuense ilustre pode assim dizer-se o que de outro ele mesmo escreveu: «a sua acção não se exerceu sobre o instável campo dos factos, mas sobre a zona do espírito eterno, a que os factos, tarde ou cedo, hajam, irremissivelmente, de subordinar-se.»[4]
António Telmo
[1] Diário de Notícias (suplemento Artes e Letras), ano 91, n.º 32136, Lisboa, 11 de Agosto de 1955, pp. 7 e 8.
[2] José Marinho – O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra, Porto, 1945, p. 65.
[3] Álvaro Ribeiro – A Arte de Filosofar, Lisboa, 1955, p. 167.
[4] Sampaio Bruno – O Porto Culto, Porto, 1912, pág. 230.
INÉDITOS. 39
20-01-2015 19:34Cadáveres adiados que procriam[1]
É interessante e até divertido observar que aquilo pelo qual nós julgamos ser diferentes dos outros, quando pronunciamos a palavra eu, afirmando com ela a nossa singularidade, é precisamente aquilo pelo qual lhes somos iguais. Há um fundo comum a todos nós, formado de vaidade e outras misérias, transmitido de pais para filhos, no qual se incorporou, ao nascer, a nossa verdadeira individualidade, «essa parcela da mente divina», para falar como o poeta iniciado mantuano que guiou Dante pelos Infernos. É esse fundo comum que nós afirmamos sempre que dizemos eu para nos distinguirmos dos outros.
É ao que alguns esoteristas chamam a falsa personalidade. Fabricámo-la ao longo da vida sobre os elementos herdados, reagindo à circunstância por sucessivas adaptações, com o fim de nos protegermos contra a hostilidade ambiente.
O verdadeiro indivíduo fica oculto, mas o que é perturbante é que fica também oculto de nós mesmos, chegando até, no pior dos casos, a deixar de ser. A esses, em que o verdadeiro indivíduo morreu, chamou Fernando Pessoa «cadáveres adiados que procriam». No rosto de cada um deles pode ver-se a decomposição da alma que precede a do corpo, deixando de si o suficiente para simular o espírito que já não têm. Com alguma atenção podemos ver que já estão mortos. Eu nunca vi um camponês sem feição, isto é, de rosto incaracterístico, mas o mundo humano que passa pela televisão aparece-me muitas vezes.
INÉDITOS. 38
18-01-2015 18:33Da Ciência[1]
O homem medíocre caracteriza-se pelo medo constante do imprevisível e daí, no ilustrado analfabeto que é o burguês civilizado, a inabalável confiança na Ciência, que admira e à qual está intimamente agradecido porque lhe permite ter automóvel, televisão e frigorífico, mas sobretudo porque funciona para ele como a grande redutora do mistério que o perturba e inquieta. Nada há, para ele, que a Ciência não possa e saiba explicar. Deus será uma vaga ideia remota de que falam livros que nos vêm da época da ignorância humana e as religiões, tão antigas como a treva em que vivemos, como as lendas e a crendice popular. Pelo sim pelo não, alguns vão à missa, porque na Igreja está um Deus socializado, em relação ao qual a religião estabeleceu formas inócuas de convivência, que porventura lhes garantam a comodidade e o bem-estar na outra vida, se for caso dessa vida existir.
A Ciência é assim com inicial maiúscula o órgão de conhecimento da burguesia. Mas, se Deus puder vir a ser contado, pesado e medido, só então se torna indubitável para ela a sua existência. De vez em quando, porém, nasce um extravagante genial, que traz a inquietação que se julgara ter expurgado de uma vez para sempre, e que de novo acorda os outros homens para o sentido do mistério. Um Fernando Pessoa ou um Álvaro Ribeiro não se podem ignorar como ninguém pode ignorar Shakespeare, porque souberam escrever as palavras que fazem ver. Como neutralizá-los? Há dois processos: um é o de lhes calar o nome, como se eles não tivessem existido, mas como, mais tarde ou mais cedo, isso se torna impossível de manter, recorrem ao outro processo que é o de tomá-los como objectos da Ciência, estudando-os como se de plantas ou de animais se tratassem ou, quando muito, de fenómenos psicológicos ou parapsicológicos.
POEMAS. 08
15-01-2015 16:12Leibnitz
Se olho o mundo, segundo a regra e o rito
E me lembro de mim vendo-me a olhá-lo
E no eu olhá-lo ele subsisto inscrito,
…………………………………………..
Negarei que sou cristão perante o galo
Que anuncia o renascer do meu corpo aflito?
Tu e o teu Templo hás-de levantá-lo
Sobre o instante roubado ao Infinito.
“A pedra é um espírito instantâneo”
Em que o acto interno com o externo é simultâneo.
Nela pousei a cabeça estonteada.
Aqui é a terrível casa de Deus.
Mas entre a terra e os infinitos céus
Descem e sobem anjos uma escada.
António Telmo
DOS LIVROS. 31
13-01-2015 20:49De um caderno de apontamentos. 09
Thomé Nathanael é o nome daquele antiquário de Estremoz que alguns dos leitores dos meus livros chegaram a pensar que existia realmente com loja posta numa das ruas daquela cidade. Existe, mas não desse modo. Se não existisse, como seria possível falar dele?
Eu tirei-o das letras do meu nome e pu-lo a ser como se fosse a essência da minha alma, o amigo um dia anunciado da minha essência. Thomé Nathanael é, com efeito, anagrama de António Telmo, mas possui virtudes que em mim são imperfeitas, como se patenteia pelos dois agás que o constituem, dois sopros ou modos de vida espiritual unificados pelo divino El da última sílaba do nome.
Os diálogos que fizestes o favor de ouvir, páginas atrás, resultam da confrontação daqueles dois espíritos no espelho da alma do sábio em coisas antigas. Thomé é o cristão gnóstico à semelhança do Apóstolo, tal como a sua imagem interior se compõe a nossos olhos através da leitura do Evangelho segundo São Thomé e sobretudo de O Canto da Pérola. Nathan é o judeu cabalista. Ambos olham a mesma estrela. São distintos, mas harmoniosos entre si pela comum origem persa das suas doutrinas. Daqui, como portugueses, participarem do mesmo entusiasmo perante Luís de Camões, cuja lira e os seus sete sons essenciais vibram no divino El.
António Telmo
(Publicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006/2009)