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VOZ PASSIVA. 43

27-02-2015 18:00


Sobre António Telmo e Teixeira de Pascoaes, a propósito de uma afirmação de Miguel Bruno Duarte

Pedro Martins

 

A propósito de António Telmo e Teixeira de Pascoaes, Miguel Bruno Duarte identifica-me num texto que publicou em 20 de Maio de 2013 na sua página na Internet, Liceu Aristotélico. Passo a transcrever:

 

«... Os valiosos estudos da obra de Pascoaes que até agora têm vindo a ser feitos por pensadores da tradição portuguesa, os estudos de um Afonso Botelho, de um António Cândido Franco, de um Manuel Patrício, de um Paulo Borges ou de um Pedro Sinde, se obedeceram à preocupação de situar essa obra no quadro da nossa filosofia, nem sempre o fizeram de acordo com o conceito de filosofia portuguesa, e de tudo o que nela se implica, tal como foi formulado por Álvaro Ribeiro, o mestre entre nós dos que sabem...» [Curiosamente, o kabbalista de Estremoz esquecera-se de mencionar, entre aqueles autores, o caso do socialista maçon Pedro Martins].  

António Telmo (Prefácio ao volume 21 das Obras de Teixeira de Pascoaes - Assírio & Alvim, 2002).

 

Curiosamente, atribuindo-me os epítetos de socialista e de maçon – quanto ao primeiro, num determinado sentido, e ao lado de um Sampaio Bruno, de um Teixeira de Pascoaes ou de um Agostinho da Silva, não o enjeito; quanto ao segundo, não o confirmo nem o desminto, mas desde já, ao lado de um António Telmo, protesto a minha adesão ao ideário da Arte Real -, Miguel Bruno Duarte opera, como o leitor pôde constatar, ligação para um artigo que dei à estampa em Agosto de 2014, no jornal de inspiração católica Raio de Luz, republicado depois nesta página.

Sendo o artigo de Miguel Bruno Duarte de Maio de 2013, poderíamos estranhar esta ligação serôdia com que o dito Duarte tão atenciosamente me distingue, e que lhe agradeço.

Poderíamos, mas não estranhamos. Miguel Bruno Duarte, decididamente, revela dificuldades em situar-se no tempo. Diz que António Telmo se esqueceu de me mencionar, a propósito de Pascoaes, no prefácio de 2002. Não se esqueceu – porque não se poderia ter lembrado. Pela razão singela, que porventura não se cruzou com a inteligência ou, vá lá, com a memória do dito Duarte, de em 2002 não ter eu ainda escrito uma única linha sequer, quanto mais um estudo, sobre Pascoaes. António Telmo era um homem de dons, mas neste caso não atingiu a prognose da vidência.

Escreveu, porém, em 2007 (permita-me Miguel Bruno Duarte mais um daqueles saltos cronológicos em que tanto parece comprazer-se), na carta com que prefaciou o meu livro de estreia O Anjo e a Sombra – Teixeira de Pascoaes e a Filosofia Portuguesa, estas entre outras palavras, das quais sublinho algumas:

 

Devo confessar-lhe que, não obstante os laços de amizade que nos puseram a mim e a si colaborantes em vários momentos de expressão cultural e até cultual, não esperava que, de repente, efeito talvez de um fiat lux, emergisse da Sombra da sua alma o Anjo do seu intelecto a dizer-nos as palavras que faziam falta e que ainda não tinham sido ditas sobre Teixeira de Pascoaes e a filosofia portuguesa, a filosofia portuguesa e a redenção de Portugal.

 

Poderia ainda transcrever o que António Telmo escreveu em seguida naquele prefácio, nomeadamente o modo como liga Pascoaes a Álvaro Ribeiro. Impede-me porém que o faça certa modéstia que gosto de cultivar e sobretudo o sentimento cristão da caridade, a que até perante Miguel Bruno Duarte me sinto obrigado.

VOZ PASSIVA. 42

25-02-2015 12:29

De O Estranhíssimo Colosso - Uma Biografia de Agostinho da Silva, de António Cândido Franco, membro fundador do Projecto António Telmo. Vida e Obra, publicamos hoje um breve excerto relativo ao período brasiliense de Agostinho, com particular importância para a biografia de António Telmo. Nele, o autor transcreve aliás um inédito télmico que nos dá conta das tensões vividas durante a crise académica provocada pela Ditadura Militar a que o Brasil estava então sujeito, e que acabaria por determinar os regressos a Portugal de Telmo (em 1968) e de Agostinho (em 1969). João Ferreira, membro do nosso projecto, é outro dos grandes protagonistas das linhas que se seguem. À sua coragem, generosa e inesquecível, ficaram então António Telmo e Maria Antónia devendo a alimentação para a sua filhinha Anahi...

Brasília, 1968[1]

António Cândido Franco

 

No momento em que Agostinho se apresentou diante da Comissão Parlamentar de Inquérito, a 23 de Maio de 1968, já não alimenta ilusões sobre o destino da escola em que está. Toma-a por uma universidade serôdia, sem vigor nem ousadia. Não admira pois que Agostinho tenha duvidado do seu futuro na escola de Brasília. Cheirou-lhe que o tempo dele por ali não havia de durar muito. Aquela paralisia formal em que a escola caíra não era para um Silva que dormia num barracão do cerrado e tinha por lá à sua conta uma dúzia de estudantes. Quando recebe Conceição e Silva em 1967 já ele está a preparar a terra para meter sucessor. É o arranque da reitoria de Caio Benjamim Dias. Ele ainda não sabe o que lá vem mas percebe que a atmosfera em formação, as negras nuvens que se acumulam, e que tão bem retrata no que diz à Comissão Parlamentar de Inquérito, não bate certo com a liberdade do seu modo de vida nem com o seu projecto de escola como comuna geradora de vida fraterna. Do período relativo ao primeiro semestre de 1968, sei que a UnB viveu um duro cerco militar e que a asa norte da cidade esteve durante vários dias sem contacto com a asa sul. Foi a terceira invasão militar da UnB e a mais dura das três. António Telmo, então ao serviço do Instituto de Letras, deixou um escrito sobre o momento que precedeu a invasão e que aqui transcrevo por gentileza da sua esposa, Maria António, visto que nunca foi dado em letra redonda. É uma fotografia daquilo que então aconteceu na Universidade de Brasília e que Agostinho também viveu. Diz assim: «Duas semanas depois de começarem as aulas e quando tudo parecia seguir um curso normal, sem greves e sem motins, a rádio trouxe a notícia de que, no Rio de Janeiro, a polícia tinha matado a tiro um estudante. A notícia chegou pela noite; no dia seguinte de manhã, quando chegámos à universidade, as paredes, os muros, os vidros, a entrada estavam cheios de legendas contra a Ditadura de Costa e Silva. Que chegara ao ponto de ter de derramar sangue inocente para se manter de pé. Havia uma muito brasileira: era o retrato amarelecido reitor que tinha escrito por baixo “Procura-se um Assassino”. A polícia militar cercou a universidade. Passámos o dia passeando pelo campus. Ninguém tinha nada que fazer, mas isso não constituía problema. Os estudantes espalhavam-se em grupos, falando em surdina e combinando modos de irritar a polícia. Os leaders, entretanto, estavam reunidos no directório académico. Soava, por todo o recinto, a voz de Nara Leão cantando canções de protesto.»

A invasão acabou com quinhentos estudantes presos e um gravemente ferido a tiro. A família Vitorino viu-se metida em assados, pois tinha uma menina de meses e precisava de recursos que faltavam na parte norte. Foi João Ferreira, chegado em princípios de Janeiro de 1968, que furou as linhas militares e salvou a situação. Maria Antónia nunca esqueceu este corajoso gesto, que lhe pode ter salvado a vida da filha. Eu, que sei João Ferreira activo nos mastodontes de Brasília aos 90 anos, atribuo o facto ao hábito com que este transmontano viveu desde novo situações de aperto, entre elas as da guerra civil de Espanha e as dos tempos da Guiné-Bissau, que não hão de ter sido doces. Daqui o saúdo com uma vénia de preito e um sinal de admiração pela coragem que sempre mostrou em afirmar as suas convicções e em ajudar o parceiro. Despiu a batina e tirou fora o colarinho de goma de padre mas nunca deixou de ser um seguidor de Francisco de Assis.

 


[1] Título da responsabilidade do editor.

 

 

DOS LIVROS. 35

24-02-2015 09:12

Marranos


                                                        17 – 9 – 07

 

Em conversa telefónica, ontem, com o Pedro Sinde.

Disse-me que “marrano” corresponde a uma palavra hebreia que significa “aquele que se converte a outra religião”. Mas essa palavra em hebreu não tem dois rs mas um só, pelo que Teixeira de Pascoaes soube o que fazia quando pôs ao seu poema o nome de Marános.

O duplo r permitiu que de marrano se passasse a marrão, aquele que marra, pousando a cabeça sobre os livros e que, simultaneamente, se confundisse porco com marrão.

Tudo isto me foi dito com melhores palavras pelo Pedro Sinde.

A utilização da língua para fazer o mal, pecando por palavras, é aqui obra de católicos ateus e digo ateus porque não poderá crer em Deus e no Senhor Jesus Cristo quem aplaude as atrocidades da Inquisição.

Tenho reflectido muito, depois da leitura de O Judeu de Camilo Castelo Branco, nas repercussões que esse horror que foi a Inquisição poderá ter tido no mundo actual português. Todos somos filhos da Inquisição. Os nossos antepassados transmitiram-nos pelo sangue o medo e, mais do que o medo, a censura automática a tudo quanto seja menos certinho, a qualquer desvio da norma geral, em suma, à afirmação de uma personalidade original. Na aliança do medo e da autocensura emerge a inveja, essa hiena da alma.

 

António Telmo

 

(Publicado em A Terra Prometida, 2014)

EDITORIAL. 02

23-02-2015 11:56

Uma comoção juvenil profundamente conturbada

Há coisas do Diabo! Os anúncios, quase simultâneos, nesta página, no final do ano passado, da participação de António Carlos Carvalho no Congresso Internacional sobre Judeus e Cristãos-Novos no Mundo Lusófono, a ter lugar em Dezembro próximo, com a comunicação «Um filósofo em busca das raízes: António Telmo, marrano», e da edição do livro Um António Telmo: Marranismo, Kabbalah e Maçonaria, de Pedro Martins, parecem ter provocado, nalguns meandros prostrados em perpétuo suspiro pela efígie do Professor António de Oliveira Salazar, uma comoção juvenil profundamente conturbada, que se diria incrédula.

Sobre o marranismo de António Telmo, remetemos piedosamente as almas ora desvairadas para escritos seus tão vários, no tempo e na motivação, como sejam as suas páginas autobiográficas sobre Arruda (de presumível factura nos anos 70), o ensaio “As Tradições Heterodoxas da Filosofia Portuguesa”, de 1987, o artigo “Sampaio Bruno, o «Encoberto», de 1989, ou a carta prefacial ao livro Barros Basto – A Miragem Marrana, de Alexandre Teixeira Mendes, escrito em 2007, três anos antes do filósofo partir.

Piedosamente ainda, lembramos a estas almas penadas pelo desvario antissemita tudo quanto Sampaio Bruno escreveu n’O Encoberto a propósito do judaísmo e deixamos-lhes também, já de seguida, a transcrição de dois parágrafos de A Literatura de José Régio, de Álvaro Ribeiro, mestre dos mestres de António Telmo pouco ou nada afeito às «barbaridades cartaginesas da Santa Inquisição» que, em carta para o mesmo Telmo, escrita ainda em vida de José Marinho, reputava o discípulo como o seu «melhor amigo»:

 

A nossa tese, recebida da filosofia da história que entre nós foi escrita por Sampaio Bruno, é a de que a principal causa da decadência dos povos peninsulares está maravilhosamente descrita no livro O Encoberto (1904). É portanto uma interpretação religiosa, referida ao primeiro sistema de filosofia da história, seja o providencialismo messiânico da Bíblia. A Península Ibérica decaiu por consequência da expulsão dos Judeus.

A influência cultural deste povo de monoteísmo transcendente, que não reconhece representação nem representante de Deus na Terra, povo de doutores fiéis a uma Doutrina que não impõem por métodos de proselitismo, mas, que defendem pelo sacrifício da própria vida, povo para o qual são pecados mortais só o homicídio, o adultério e a idolatria, povo que considera a aliança como padrão da vida religiosa, que antecede de um ritual belo, sério e santo o próprio acto conjugal, que santifica o sábado como dia de festa da família, que pratica a oração com simplicidade, modéstia e alegria, que espera pela era messiânica de redenção da humanidade, a influência de tal povo, repetimos, ainda não foi assaz reconhecida por etnógrafos e historiadores. Este povo que vive, respeita e pratica um admirável preceito, segundo o qual «o pai que não manda ensinar um ofício ao seu filho faz dele um pedinte ou um ladrão», trabalhando destituído de instituições políticas e fixado na vida civil ou privada, foi o educador filosófico e religioso de outros povos migrantes, exerceu uma influência civilizadora que permaneceu latente e oculta depois de ser expulso da Península Ibérica. Este factor é muito mais importante do que aquele que aparece sublinhado pelo materialismo histórico, ou seja, a falta de tais homens no comércio, na indústria e na agricultura, ocupações que poderiam ser igualmente distribuídas pelas várias camadas da população católica.

 

Como não é de supor que estas linhas de Álvaro Ribeiro tenham sido escritas por Jorge de Sena, esperamos, com sincera boa vontade, que os dislates aleivosos fiquem por aqui. Foi por estas e por outras que o Projecto António Telmo. Vida e Obra foi criado…   

INÉDITOS. 44

20-02-2015 11:56

Uma esplêndida figura[1]

Henrique Barrilaro Ruas, na sua monumental edição d’Os Lusíadas, achou por bem não incluir na bibliografia as minhas “invenções”. Como sabe quem as conhece, pus o poeta a dialogar com esoteristas e sábios persas e terei por isso de reconhecer que o desnacionalizei e descatolizei, criando uma esplêndida figura, mas antipática para aqueles que no dia 10 de Junho a põem a significar Nação e Igreja de mãos dadas com a Democracia.

 

António Telmo 

 


[1] Título da responsabilidade do editor.

 

DOS LIVROS. 34

18-02-2015 11:33

Luís de Camões é verdadeiramente o Gama

A identificação de Luís de Camões com Vasco da Gama necessita de ser fundada. Não é, porém, difícil ver que Os Lusíadas, não deixando de ser os Lusitanos, descendentes de Luso, como Fiéis de Amor, têm em si o Luís, porquanto o poema é o cantar épico do Luís (de Camões), da sua navegação material e imaterial. Luís como Luso são duas formas da palavra luz.

Por outro lado, n’Os Lusíadas, se declara que o homem Vasco da Gama, se o compararmos a César e a Alexandre, a Marco António e a Augusto tendo, como herói, a mesma bravura, era nulo no domínio do Espírito. Não tinha «na mão uma espada e na outra o livro», como de si diz Camões. Era rude, áspero e minguado de engenho.

Explicitamente, na estrofe 99 do Canto V, afirma ser ele, o Gama, pouco amado das musas que inspiram Os Lusíadas, das Tágides e de Calíope. Daí podermos afirmar que o Vasco da Gama do Poema não é, senão por empréstimo, o homem Vasco da Gama.

Luís de Camões também fez materialmente a mesma viagem e, como o outro, sofreu as inclemências do mar. Como é possível, e mais do que possível, ver no «herói» um Cavaleiro do Amor, um Adepto, somos forçados a pensar que o nauta e a sua navegação, no que significa de iniciático, são a expressão da própria vivência do Poeta naquele domínio da alma em que a contemplação e a acção se reflectem uma na outra. 

Posto isto, o caminho fica aberto para identificar Luís de Camões com também o Adamastor, como propusemos já. Luís de Camões é o Gama e é, no seu aspecto terrível, o Adamastor. Não se deve passar por alto aquilo que dele pensavam os seus contemporâneos, que era possuidor de uma natureza extraordinária, que tinham por terrível. 

 

António Telmo

 

(Publicado em Luís de Camões, 2010)

INÉDITOS. 43

15-02-2015 20:32

Carta a um mestre maçon sobre o mundo subtil[1]

Como pode ver pelas primeiras linhas desta carta, retomo hoje o que comecei há uns quinze dias.

Claro que não andamos à procura de fenómenos extraordinários como os espiritistas, por exemplo. Todavia, quando eles se dão, não os recebemos como se nada fossem, como se nada acrescentassem.

Calcule que, uma ou duas semanas depois do que lhe contei, eu, e mais dois, estávamos à espera no Café Alentejano do Pedro Martins que vinha de Sesimbra para estar comigo e se encontrar ali pelas cinco e meia da tarde. Eram sete e ainda não tinha chegado. De repente entrou no café um homem estranhamente parecido com ele, assim uma espécie de grande ave caminhando de asas abertas, o mesmo nariz, o mesmo ar inteligente, etc., etc. Os três coincidimos, quando chamei para isso a atenção, em achá-lo em tudo semelhante ao Pedro Martins. Eu disse: Ele está a chegar, não tarda dois ou três minutos. Não esperámos tanto. Tudo se seguiu como se nada tivesse acontecido. Ficaram indiferentes.    

O que é enigmático é que, passados alguns dias sobre acontecimentos do tipo dos dois que venho de contar, eu também é como se eles não se tivessem dado e cheguei até a duvidar, tão pálida se tornou a sua imagem, se os vivemos de facto.

São fenómenos do mundo subtil. Nós vivemos no mundo grosseiro. Passamos daquele para este, onde eles nos aparecem revestidos da mesma banalidade dos fenómenos físicos. Será isto?

Eu vejo, por exemplo, no relato que escrevi na página anterior a mesma banalidade dos acontecimentos habituais. Uma explosão interior! Interior, mas uma explosão, banal como todas as explosões. Não, não foi e foi isso. É indescritível. Rezar, já no outro mundo e com a certeza de estar lá. Mas foi ao juntar as mãos em oração que acordei. Eu rezo sempre quando estou no outro lado de mim. Que sensação deverá corresponder no mundo subtil à nossa situação de mortos no ritual da elevação? Haverá alguma conexão íntima entre aquilo a que assisti na véspera e o que vivi enquanto dormia a sesta?

Meu caro Irmão, ajude-me a compreender tudo isto. Dê-me também notícias suas. Um grande abraço do

 

António Telmo



[1] Título da responsabilidade do editor.

 

VOZ PASSIVA. 41

13-02-2015 09:32

AGOSTINHO DA SILVA, 109 ANOS DEPOIS! 

No dia em que o calendário nos recorda o nascimento de Agostinho da Silva, temos o privilégio de publicar um escrito seu sobre um livro perdido de António Telmo, recentemente dado a lume, pela primeira vez, na revista de cultura libertária A IDEIA. A este privilégio, junta-se um outro: o de podermos hoje contar com o autorizado comentário do Professor João Ferreira, membro do Projecto António Telmo. Vida e Obra, amigo e colega de Agostinho e de Telmo na Universidade de Brasília, de que é professor aposentado, na década de sessenta. O escrito agostiniano e o comentário de João Ferreira irão aliás integrar a marginália do III Volume das Obras Completas de António Telmo, Luís de Camões seguido de Páginas Autobiográficas, a sair em 10 de Junho, na Zéfiro.  

Sobre um livro de António Telmo[1]

Agostinho da Silva

 

É bom reconhecerem os intuitivos ou poéticos uma vez por todas, mesmo quando tenham a habilidade de pensar e o talento de escrever como António Telmo os tem, que nada há no mundo de verdadeiramente compreendido, isto é, aprisionado numa cadeia de coerências, o que ainda é, apesar de tudo, um critério de verdade, que não indique no início ou no desenvolvimento um trabalho dos científicos, bastante maltratados neste livro, e se não deva à paciência, à erudição, à humildade, à modéstia crítica, à resignação do recomeçar que são qualidades do verdadeiro homem de ciência qualquer que seja o campo em que as exerça.

Parece, por outro lado, que se não aceita suficientemente que a parte mais importante da construção científica não é o colectar de dados e que ciência resulta fundamentalmente de uma invenção, de uma ideia criadora, de uma adivinhação, se assim se prefere, que depois é testada uma e outra vez pelo critério do fenómeno e posta implacavelmente de lado se um só facto parece opor-se ao que de início se apresentara como plausível. O científico é um criador, como o poeta, o músico ou o pintor e é ainda um de nossos primitivismos o de supor que cultura e ciência são dois domínios diferentes e que é mais culto o literato de esquina de livraria, que nunca raciocina em termos gerais e se encontra todo envolvido nas pequenas intrigas de suas medíocres prostituições, do que o químico ou o físico que buscam através de tudo leis universais e sistemas de comportamento válidos para qualquer lugar e para qualquer tempo, o que é, provavelmente, uma definição de cultura bastante válida.  

É evidente que não são esses os que António Telmo quer atingir, como não devem ser também, dentro do domínio filológico – e era bom que, no campo da língua portuguesa, se deixasse definitivamente de dizer literário ou de letras – um Menéndez Pidal ou um Adolfo Coelho ou um Américo Castro ou um Lindley Cintra; o que tem em vista é assestar um bom golpe, golpe nada misericordioso do teólogo e do homem de acção que ainda estão sem emprego dentro do escritor, ou nos que se desviaram por força de seus temperamentos e convicções, poremos por exemplo um Menéndez Pelayo e um Teófilo Braga, ou nos que, por literatura falhada, recorrem à crítica e à história, e aqui não poremos exemplo, mas faremos um monte, futuramente incendiável, de todos os chamados suplementos culturais.

Combinaremos, pois, salvar um grande número dos que estavam já condenados ao inferno e, sobre essa concessão, faremos outra, a de que é extremamente útil haver por estes prados de caça o que poderíamos chamar de perdigueiros culturais, os quais são os que, embora ensinados, e com mão de ferro, pelos tais científicos – e o próprio António Telmo os vai com inteligência e saber disciplinando nas suas funções de professor de cultura latina na Universidade de Brasília – repousam, no entanto, muito mais nas suas qualidades de faro. Taxinomia e caça são, efectivamente, duas qualidades distintas e é bom que tenha sido o mundo provido das duas raças de trabalhadores; pena que tão frequentemente rosnem uns contra os outros, sem se reconhecerem companheiros e sem quererem confessar, posto que muitas vezes o aceitem, que uns aos outros se ajudam, por aquilo a que na história dos organismos se vai chamando de retroacção positiva.

O que António Telmo nos vai levantando neste seu livro ou colecção de ensaios e depois de, apesar de tudo, ainda dar um ar de sua graça académica no primeiro capítulo, é extremamente importante para o entendimento do que somos no mundo, nós galegos, ou nós brasileiros, ou nós portugueses. Bom seria que os científicos pusessem de lado a irritação que talvez o escrito lhes cause e averiguassem tudo o que por ali se diz a respeito de maniqueísmo na mentalidade de cultura lusíada, de priscilianismo ainda tão mal averiguado, de culto do Espírito Santo de que tão imperfeitamente se conhecem as ligações aragonesas e catalãs ou os caminhos sicilianos, de conceitos de paraísos futuros, que conviria talvez ir ligar com a história da Comuna de Münster e as ideias de Jan de Leide quanto a uma Quinta Monarquia e a uma segunda vinda de Cristo.

O mal dos nossos científicos não está propriamente em serem científicos, o que é excelente; está em se fazerem de científicos, como se bastasse para isso passarem seus concursozinhos de cátedra e ficarem depois remoendo, plácidos, a ração da alcofa oficial; e está muito em se educarem em escolas de Europa, aplicando depois ao que não é Europa, e espero nunca o seja, critérios europeus, casos de história cultural europeia, perspectivas europeias. O resultado é que nunca ninguém se debruçou sobre o complexo galaico-português, que vem desde Paio Soares e D. Sancho a José Régio e Castelao, quaisquer que tenham sido as aventuras da História, e daí, atravessando os mares, se enriqueceu produzindo o Brasil, futuro senhor cultural do mundo, com olhos verdadeiramente portugueses, porque só se encontra no exterior o que se é por dentro. O heterodoxo de pensamento e de vida que é António Telmo logo deu pela nítida linha heterodoxa que atravessa a cultura portuguesa, não como um fenómeno de menor importância mas como a espinha dorsal do que somos; o inquieto ou dividido que talvez seja logo tocou o maniqueísmo com um dos nervos-chave, e apenas um deles, que vai a medula fundamental por outros caminhos, como ele próprio o apontou quando viu como os maiores não foram maniqueístas e passaram, não com implicações de Nietzsche mas com algum colorido de Lao-tse e Zen, para além da linha do bem e do mal, do Céu e do Inferno, cujas bodas, mais que Blake, celebrou durante setecentos anos o melhor da literatura portuguesa.

Só os portugueses menores, e é óptimo que haja portugueses menores chamados Sá-Carneiro ou Régio, foram monovalentes; os grandes são plurivalentes, o que se liga ao mesmo tempo com valentia e valência; Camões, soldado, Bocage, marinheiro de navio e taberna, Antero, conspirador, todos eles tiveram a coragem de assinar com um nome só a sua obra; Fernando Pessoa, tímido desempregado de escritório, fez como o caramujo da Inês Pereira; não saiu senão à porta e foi lançando seus pedúnculos oculares, ou seus variáveis pseudópodos de ameba para aquela exploração do mundo do sol e da verdade a que não ousava ir, bravo inteiro guerreiro; tudo isto viu muito bem António Telmo.

Mas são só plurais os Portugueses? Talvez não. O maior no mundo não é ser isto ou aquilo, e já bastante se citou Pascal a este respeito. O que há de maior num Fernão Lopes ou num Vieira é terem sido tudo isto e aquilo; terem reunido numa gema única todas as livres rutilações da vida e terem, apaixonados, desapaixonadamente contemplado o verdadeiro além do bem e do mal que não vem de se ser do Tao, como ficou acima, mas de ser dele e de Confúcio, numa perfeita reunião dos contrários. Como o consegue o português? Sabendo que a noção de contrário não está no mundo mas no nosso espírito, pondo o universo como inteiramente objectivo e natural em si próprio e reservando para si toda a imensa e dolorosa carga de paixão e juízo, com o desejo de que ele próprio se torne, morto ou vivo, um ser natural na naturalidade dos seres; o ideal português é ser coisa entre coisas, o que é talvez apenas outra forma de se ser deus entre deuses. Talvez, por isso tudo se tenha um dia de considerar como o maior dos nossos poetas, como o mais representativo dos portugueses, não um Camões, ou um Vieira, ou um Pessoa, mas um quasi obscuro homem, que viveu desconhecido numa aldeia e desconhecido morreu: Alberto Caeiro, tuberculoso e loiro.

 

Belém de Cachoeira, 7.3.68

 



[1] Nota do Editor – o título é da nossa responsabilidade. Agostinho da Silva refere-se, neste seu escrito, a um livro de António Telmo, autor que, à data, havia apenas publicado Arte Poética (1963), presumivelmente oferecido a Agostinho, no Brasil. Todavia, quer pelo tom prefacial do escrito agostiniano, quer pelas sucessivas referências que ele encerra, seja à estrutura formal da obra de Telmo (uma “colecção de ensaios”), seja ao seu teor (maniqueísmo, priscilianismo, culto do Espírito Santo), é evidente tratar-se de outro volume que não aquele seu livro de estreia. Na transcrição do escrito, procedeu-se à actualização da ortografia e à correcção de um ou outro lapso manifesto. 

 

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Comentário

Uma lição magistral de Agostinho

João Ferreira

Escrito em Belém da Cachoeira, no Recôncavo Baiano do Brasil, em 7 de março de 1968, dia de S. Tomás de Aquino, doutor da Igreja, símbolo da busca de conciliação entre Teologia e Filosofia, ou entre fé e razão, este texto  de Agostinho da Silva é, de certa maneira, um texto que, em seus detalhes, representa não apenas um comentário a um livro de António Telmo mas também um glossário de teses agostinianas e uma súmula de princípios com largos índices de uma linha de típica filosofia portuguesa moderna.

Entre as abordagens possíveis que poderíamos fazer deste texto, achamos interessante começar por valorizá-lo pelo profundo alcance didático que Agostinho lhe imprime: o Mestre ensina primeiro, como ouvir e conviver, como prestigiar a palavra, a inteligência e o saber; depois, também, como aproveitar a convivência a fim de melhorar a busca de caminhos.  O texto é, portanto, um fragmento que além de proporcionar uma leitura alargada de muitos outros textos e contextos na busca de sentidos, toca o fundo de várias temáticas, reconstruindo um sentido maior que elas contêm. Ligando-o a uma visão clássica onde as coisas têm uma ordem, uma medida, e uma proporção (ordo, mensura et proportio), Agostinho tem a habilidade de recolocar na mesa destacados temas visados pelo amigo Telmo. Fá-lo prestigiando a  consciência de si e a identidade pessoal do autor do livro que comenta. Elogiando, de passagem, "a habilidade de pensar e o talento de escrever" de António Telmo, não se esquece, estrategicamente, na qualidade de Mestre, de prevenir contra a tentação de qualquer arrogância  em relação aos adversários. Nesse sentido deixa um recado claro para os intuitivos ou poéticos, grupo a que Telmo pertence, dizendo que "nada há no mundo de verdadeiramente compreendido[...] que não indique, no início ou no desenvolvimento, um trabalho dos científicos, bastante maltratados neste livro[...]. O recado vale também para os "perdigueiros culturais" ensinados com mão de ferro pelos científicos, mostrando-lhes que seu poder não é absoluto. A esses, diz Agostinho, "o próprio Telmo os vai, com inteligência e saber, disciplinando". Colocando-se como árbitro da querela entre poéticos e científicos o Mestre ensina que não são pertinentes nem a arrogância nem a irritação de nenhum dos lados. O que vale mesmo é o talento e a criatividade: nuns e noutros, em intuitivos e científicos. Não há espaço para palavras vazias. Há sim necessidade de descobrir que poéticos e científicos "são duas raças de trabalhadores". Distintas, mas complementares.  Não importa que "rosnem uns contra os outros".Na realidade o que importa é que são dois grupos companheiros na busca da verdade das coisas. A advertência e o ensinamento de Agostinho tornam-se  estratégicos porque visam semear a racionalidade no debate da questão entre intuitivos e científicos. António Telmo é, nesse ano de 1968, um jovem intelectual de 40 anos, professor universitário em Brasília, e autor de um livro publicado havia cinco anos, em 1963. Um livro,  de nome Arte Poética,  que mostra a profunda ligação do jovem António Telmo com o intuicionismo e a galáxia gnoseológica  de Henri Bergson. Coincidentemente, no preâmbulo desse livro, intitulado "Propósito" (págs. 31-33, na edição Zéfiro, de 2014), Telmo já registra esta guerra entre intuitivos e científicos.

Torna-se por isso interessante notar que seja a intuição, exatamente, um dos temas centrais do debate neste texto de Agostinho.  O discurso de Agostinho explica que nem a intuição de  "poéticos, intuitivos e imaginativos" nem a simples coleta de dados de "científicos" chega a ser importante. As coisas, segundo Agostinho, só começam a ser importantes quando têm dentro uma "ideia criadora", ou representam uma "invenção" ou uma "adivinhação". Ora esta ideia criadora ou inventiva pode existir tanto entre intuitivos quanto entre científicos. Segundo Agostinho, há, por isso, que deixar de lado o primitivismo de supor que "cultura  e ciência são dois domínios diferentes e que é mais culto o literato de esquina de livraria" do que o químico ou o físico, por exemplo.

 

2. Feed back deste debate

Esta guerra entre intuitivos e científicos já está presente no "Propósito" de Arte Poética. O alvo de António Telmo, segundo Agostinho, são "aqueles que se desviaram por temperamento ou convicção e os falhados que têm como refúgio de salvação a "crítica e a história".

Sabemos que a briga entre "poéticos e científicos" é uma reedição de um repetido embate histórico já registrado entre os gregos, que se dividiam entre defensores da epistéme (ciência) e defensores da doxa (opinião), embate que os franceses reeditaram na Querela entre Antigos e Modernos, no período que vai de 1650 a 1715.

 

3. Crítica livre e crítica acadêmica

Em nosso mundo moderno e contemporâneo o debate continua. A crítica mantém-se dividida entre um modo informal e um modo formal ou rigoroso de debater os problemas. No modo informal cabem todas as atitudes. No modo formal cabem as conclusões rigorosas da ciência que tem seus métodos e suas formas metodológicas e rígidas de olhar a realidade. O debate é atual em nossas sociedades onde ainda se distingue entre crítica livre e crítica acadêmica. A crítica livre não tem uma metodologia de rigor. Sente-se à vontade para praticar o simples impressionismo, o achismo, e um ponto de vista inteiramente pessoal, mesmo quando este é ideológico e passional. A crítica acadêmica tem seu código de rigor. A esse rigor, a Academia chama objetividade. Na crítica acadêmica vale o peso dos argumentos e a lógica da argumentação baseada em dados científicos. Agostinho traz esta questão para dentro do texto que comentamos. Como moderador que tenta apaziguar, mostra os dois lados da questão, a uns e a outros. Aos "científicos" lembra que não há mal em haver científicos quando o forem  de verdade. O ruim está em alguém "querer parecer" científico. Na observação há uma carga clara em cima dos burocratas, universitários ou não, que se contentam em passar em seus concursozinhos, ficando depois, o tempo todo, remoendo "a ração da alcofa oficial".

 

4. A terceira via

Ao tentar mostrar o caminho da tolerância e da conciliação, Agostinho, ensina a possibilidade da terceira via. É um dado admitido  que na teoria do conhecimento há várias vias e que no debate entre poéticos e científicos se interpõe a via do diálogo. A variação e a legitimação da variedade de critérios de análise e interpretação do mundo fica portanto como um dado claro e necessário para a convivência social e acadêmica.

 

5. Distorção maniqueísta

Na prática nem todos aceitam o diálogo entre contrários. Telmo e Agostinho denunciam a existência de um certo maniqueísmo na mentalidade dos que tratam da cultura lusíada, e também de um certo priscilianismo em relação a teses que encontram todo o respaldo em dados e tradições portuguesas como o culto do Espírito Santo, "de que tão imperfeitamente, diz Agostinho, se conhecem as ligações aragonesas e catalãs ou os caminhos sicilianos, de conceitos de paraísos futuros, que conviria talvez ir ligar com a história da comuna de Münster e as ideias de Jan de Leide quanto a uma Quinta Monarquia e a uma segunda vinda de Cristo". No detalhe da citação de Agostinho estão dois nomes potencialmente ligados à ideia da Quinta Monarquia ou Quinto Império. O primeiro é  o reformador alemão contemporâneo de Lutero, Thomas Münster(1489-1525), para quem só haverá verdadeira medida num Humanismo social quando houver ordem e proporção entre as coisas (vera mensura humanismi socialis est ordo et proportio rerum). Thomas era um pregador apocalíptico, fundamentalista, que participou de uma revolta falhada de camponeses na Turíngia. Modernamente tornou-se um símbolo para os marxistas na  luta de classes, em virtude de sua insurreição contra o feudalismo. Agostinho cita também Jan Leiden(1509-1536), líder de massas, que tentou formar uma comunidade teocrática anabaptista e proclamar-se rei de Münster em 1534. Em 1536 a cidade foi tomada por tropas católicas e Jan foi preso, torturado e executado, segundo as crônicas.

 

6. A linha heterodoxa da cultura portuguesa

Além da quesília entre intuitivos, imaginativos e científicos, Agostinho centra-se sobre vários temas fulcrais que escolhe a dedo sacados do livro que comenta. Entre eles, faz ressaltar a linha heterodoxa de António Telmo: "O heterodoxo de pensamento e de vida que é António Telmo logo deu pela nítida linha heterodoxa que atravessa a cultura portuguesa, não como um fenómeno de menor importância, mas como a espinha dorsal do que somos."

 

7. O Complexo galaico-português

A par da linha heterodoxa, Agostinho coloca ainda um ponto essencial que valoriza na sequência da análise do livro de Telmo. Esse ponto é aquilo que Agostinho chama de "complexo galaico-português que vem desde Paio Soares e D. Sancho a José Régio e Castelao, quaisquer que tenham sido as aventuras da História, e daí, atravessando os mares, se enriqueceu produzindo o Brasil, futuro senhor cultural do mundo, com olhos verdadeiramente portugueses porque só se encontra no exterior o que se é por dentro."

Este fragmento tem a profundidade e a história que vai desde a fundação do reino de Portugal em 1138 até ao presente. Paio Soares de Taveirós foi um  trovador galego da primeira metade do século XIII, contemporâneo de D.Sancho I e seria o autor da famosa canção "No mundo nom me sei parelha", também conhecida pelo nome de canção da guarvaia que já chegou a ser considerado o primeiro documento literário em língua portuguesa. Ao destacar o "complexo galaico-português" no comentário ao livro de Telmo, Agostinho intenta celebrar as raízes da língua e da cultura do nascente reino de Portugal de D. Afonso Henriques que nasce geminado culturalmente com a Galiza. Ao lembrar Castelao,  Agostinho presta homenagem justa a uma das figuras cimeiras do renascimento galego do século XIX, ao lado de Rosalia de Castro (1837-1885) e de Curros Henriques. Toda esta linha de cultura do noroeste da Península Ibérica aportou efetivamente ao Brasil  no tempo das caravelas e depois. A profecia e o apodo apaixonado que Agostinho dá ao Brasil como  "futuro senhor cultural do mundo, com olhos verdadeiramente portugueses" fica arquivado como um extraordinário ato de amor e de carinho. Como uma fé.  Considerando, porém, a realidade antropológica e cultural do Brasil moderno ainda em evolução, parece que apesar das raízes lusas expressas em alguns costumes étnico-culturais e da comunhão profunda de um idioma materno impregnado de matizes portuguesas, o Brasil real de hoje, por ser uma convergência de muitas outras etnias e culturas vai ganhando um caráter e uma personalidade que vão além dos "olhos verdadeiramente portugueses".

 

8. O segredo português

Dentro daquilo que sempre foi o centro da conversação e da vivência cultural de Agostinho, uma parte importante do texto refere-se ao segredo português, que consiste na perfeita reunião dos contrários. Agostinho interpreta a capacidade portuguesa de lutar contra as adversidades no atravessamento vivencial da história, construindo uma personalidade própria e um ser natural na naturalidade das coisas. "O ideal português – diz – é ser coisa entre coisas".

 

9. Os portugueses maiores não foram maniqueístas

Apontando o "maniqueísmo como um dos nervos-chave da cultura portuguesa no terceiro quartel do século XX, Agostinho diz que "Os portugueses maiores não foram maniqueístas". Os grandes portugueses sempre foram plurivalentes, desdobrando-se na vida e na ação. E  mostra isso, falando de Camões como soldado, além de poeta. De Bocage como marinheiro de navio e taberna, além de poeta. De Antero, conspirador, além de poeta. Todos eles – diz – tiveram coragem de assinar com um nome só sua obra. Fernando Pessoa o mais plural de todos, "lançando seus pedúnculos oculares para a exploração do mundo do sol e da verdade". –"Tudo isto viu muito bem António Telmo", conclui Agostinho. Os portugueses menores foram monovalentes. Os maiores foram plurais.

 

10. Ser maior no mundo não é ser isto ou aquilo

"O que há de maior num Fernão Lopes ou num Vieira é terem sido "tudo isto" e "aquilo": terem reunido numa gema única todas as livres rutilações da vida. Terem uma alma grande com capacidade plural.

 

11. Caeiro, o maior dos poetas

Depois de falar do complexo galaico-português, do Brasil, de Camões, de Vieira e Pessoa, e de outros grandes portugueses, Agostinho se embrenha no segredo português e se pergunta como é que o português consegue a perfeita reunião dos contrários,  reservando em sua análise um cantinho especial para seu ídolo Caeiro.  "Sabendo – diz ele – que a noção de contrário não está no mundo mas no nosso espírito, pondo o universo inteiramente objetivo e natural em si próprio  e reservando para si toda a carga de paixão e juízo, com desejo de que ele próprio se torne, morto ou vivo, um ser natural na naturalidade dos seres, o ideal português é ser coisa entre coisas, o que é talvez outra forma de se ser deus entre deuses. Talvez por isso tudo se tenha um dia de considerar como o maior dos nossos poetas, como o mais representativo dos portugueses, não um Camões ou um Vieira ou um Pessoa, mas um quase obscuro homem que viveu desconhecido numa aldeia e desconhecido morreu: Alberto Caeiro, tuberculoso e loiro."[o sublinhado é nosso].

 

12. Telmo teólogo e homem de ação ainda sem emprego

Agostinho que define Telmo como  "um heterodoxo de pensamento e de vida", ao elogiar a combatividade do amigo realça que o que Telmo tem em vista ao criticar certos filólogos "é assestar um bom golpe, golpe nada misericordioso do teólogo e do homem de ação que ainda estão sem emprego dentro do escritor". Esta expressão de "teólogo e homem de ação que ainda estão sem emprego dentro do escritor" parece ser uma chamada em relação a qualidades específicas que admirava no pupilo mas que ainda estavam ociosas, por assim dizer, no autor de Arte Poética. Analisando o texto em sua globalidade, é nítido e claro que Telmo sai do comentário de Agostinho inteiramente prestigiado não só pelo elogio direto de ser um homem "hábil no pensar e talentoso no escrever" mas também pela sua combatividade crítica que sabe "disciplinar com inteligência e saber".

 

Brasília, 12 de fevereiro de 2015

João Ferreira

 

INÉDITOS. 42

10-02-2015 16:32

Com o Max Hölzer:

O endereço

 

Não me interessou aprender com este homem notável que o José Marinho me apresentou como um esoterista de alta qualidade. Era de facto um esoterista de alta qualidade, mas a sua íntima ligação à escola de Gurdjieff não me agradava.

Enviou-me de Paris dois volumes com a Gramática do Hebreu Restabelecido de Fabre d’Olivet[1], que me esqueci de agradecer.

Passaram-se meses desde que ele regressou a Paris. Além da oferta daquele livro tinha-me enviado postais.

Pelo Natal sentia-me incomodado por ter procedido tão grosseiramente. Agora já tinham passado bastantes dias sobre o envio do livro de Fabre d’Olivet e pareceu-me um despropósito agradecer-lhe tão depois.

De súbito, ocorreu-me que poderia remediar tudo, mandando-lhe um cartão de boas festas, com os votos de um feliz Natal. Estava em Sesimbra a passar férias em casa da minha mãe. Não tinha o endereço de Max Hölzer, que estaria em Borba, no Alentejo, no papel que envolvia a encomenda com o Fabre d’Olivet. Lembro-me da impossibilidade de lhe escrever, sem possuir o endereço.

Estava no Castelo com o Rafael Monteiro quando me lembrei que não o tinha. Saí logo para propor à minha mulher irmos a Borba buscá-lo, se ela soubesse onde estava o invólucro da encomenda, se não tivesse seguido com o lixo.

Deu-se então o espantoso. No assento do carro estava ali esse[2] invólucro, com o endereço bem visível do Max Hölzer. Não podia lá estar quando me meti no meu automóvel quando vim para o Castelo: ter-me-ia sentado em cima daquele grosso papel amarelado que envolvia dois grossos volumes.

Escrevi ao Max Hölzer dizendo-me disposto a seguir o seu ensino. Juntava também os votos de feliz Natal.

 

António Telmo


[1] N. do O. - O título desta obra, no original francês, é La Langue Hébraïque Restituée.

[2] N. do O. – Palavra de muito difícil leitura no manuscrito. Admitimos igualmente a hipótese de António Telmo haver escrito “um”.

 

VOZ PASSIVA. 40

05-02-2015 16:49

Da Gramática Secreta ao três, passando pelo mundo sensível

Risoleta Pinto Pedro

 

Para demonstrar que “não há progressão sem movimento triádico”, acrescentando que “O paradigma da progressão é o andar do homem que se faz a três tempos e não a dois, porque o esquerdo e o direito estão misteriosamente ligados a um centro de energia no baixo-ventre”, António Telmo, ainda na Gramática Secreta da Língua Portuguesa, sobre a qual escrevi na minha primeira participação neste projecto, vai escolher, como exemplo, o sol, da seguinte maneira:

“Seja qualquer ser sensível, o sol, por exemplo.”

E isto encanta-me. Porque me transporta para o mundo das coisas maravilhosas e verdadeiras onde o sol e outros seres que uma humanidade embrutecida por um racionalismo radical embruteceu, aqui é reabilitado para o mundo dos seres sensíveis.

Não é pela argumentação que se segue que aqui trago o exemplo, mas por dois aspectos aqui aflorados: que o três é o motor da progressão e que o sol é um ser sensível. E talvez estas duas afirmações não estejam assim tão distantes ou separadas.

Do sol como ser sensível falarei em breve. Ocupar-me-ei por agora, do três, inspirada pelo brilho do pensamento de António Telmo.

Recordo que publiquei, há tempos, sobre o três, o seguinte texto, que intitulei de 

 

“Matemática, nascimento, renascimento, recuo e progresso”:

 

“… Ou a diferença entre o 1 e o 3 a partir do 2.

Ouvia no outro dia, Nuno Michaels falar sobre um tema que nos é muito caro aos Renascedores: a passagem do dois para o três ou o recuo para o um? É uma questão fulcral.

Quando o bebé está no útero, e mesmo admitindo que nem sempre a vida intrauterina é a bem aventurança que costumamos atribuir a esta fase da vida, apesar de tudo, o ser vive, quando dentro do corpo da mãe, por muito difícil, repito, que seja essa fase para ambos, um sentimento de união, o bebé ainda não sabe o que é a separação,  está em íntima comunhão com o ser da mãe, de onde lhe vem o alimento e a vida, o “seu Deus”. Ele e a mãe são um. Não há oscilações de temperatura, não há ruídos excessivos, não há, em princípio, dor física. Embora possa sentir a dor psicológica da mãe, quando a houver. O seu Deus é um Deus que sofre. Mas é um Deus que o contém. Melhor, que ele É.

De qualquer modo, este é um estado de beatitude, se compararmos com o que encontramos ao sair: calor ou frio, ou ambos, ruídos agudos, manipulação sentida como violência, afastamento da mãe, que é sempre vivido pelo bebé como algo ameaçador, risco de vida, perigo de não sobreviver.

São já alguns os estudos sobre a psicologia do bebé no útero, e sabe-se que o bebé não é aquele livro branco e neutro que durante muito tempo se acreditou ser.

Então, a vida depois do nascer é, essencialmente, e mesmo nos casos em que se considera que “correu bem”, uma experiência de separação (passa a haver um eu e um tu), e o  mundo um desafiador local de experiências, a maioria das vezes, interpretado pelo ego, que apenas quer proteger, defender e ajudar, como um campo de batalha: tu de um lado da linha, eu do outro. Tu gritas, eu morro. Tu ameaças, eu fujo. Tu agrides, eu congelo. Tu atiras, eu destruo-te. Podemos assistir a isto nas famílias, nos casamentos, nas escolas, nas instituições em geral, nas ruas. É a experiência do 2. Surge, então, a nostalgia do um, o mito da bem-aventurança, da experiência de eu e Deus Mãe juntos e sem guerra.

Isto explica o impulso, quer consciente, quer inconsciente, para a autodestruição, que é, no fundo, um impulso de regresso ao amor; à suprema felicidade, fim dos problemas. E acontecem os suicídios, os “acidentes”, as doenças mortais: estratégias do ego para o recuo, escapismo, impulso para a felicidade, em última análise. O mítico e impossível recuo para o um. O problema é que não está garantido que tal aconteça, o caminho faz-se para a frente, não para trás e o grande desafio e a grande ferramenta são os relacionamentos. Os relacionamentos românticos, ou amorosos, como lhes queiramos chamar, embora não se trate da mesma coisa, são os mais difíceis e necessários, o trunfo de Deus, o Ás que atira  para cima da mesa quando se cansa dos truques que tiramos da manga. São os relacionamentos de casal os mais desafiantes e também os que mais (tantas vezes dolorosamente) nos libertam, porque nos fazem enfrentar o dilacerador sentimento de separação. Por isso tanto procuramos (no fundo, sabemos do que precisamos) um relacionamento amoroso.

Quando, após passarmos por todas as ilusões românticas e destrutivas, auto e “heterofágicas” compreendemos que somos um eu e um tu, não um eu contra um tu, mas ambos para o mundo, quando cada um já não se sente miseravelmente partido ao meio, mas um ser inteiro, e o outro igualmente assim se sente, e ambos aceitam, como cereja sobre o bolo, caminhar lado a lado numa relação livre, esses seres estão disponíveis para o terceiro elemento, o mundo. Só assim podem fazer a diferença para melhor: de cada um deles, da relação e do mundo. É a alteração da matemática, que se torna progressiva e não regressiva (ou agressiva): a passagem do 2 ao 3. Tudo o que não seja assim é ainda uma condenação à dilacerante experiência do 2 num impossível e suicidário um. Mas, enquanto assim tiver de ser, também isso está certo, porque faz parte da experiência e da aprendizagem.”

 

In: Diz-mecomo nasceste.blogspot

 

Este, o meu pequeno contributo para o mapa do caminho do um ao três.

 

Mas regressemos a A. Telmo. No seguimento do seu raciocínio, associa a dicotomia, como por exemplo sol lua, a um deslize das “almas poéticas e preguiçosas”, dado que “cada ser sensível”, como exemplificou com o sol, “é curvo num aspecto, rectilíneo noutro, luminoso ou ímpar ou masculino e os seus contrários se o aspecto muda…”.

Nada mais certo.  

Também em certas organizações de carácter secreto ou discreto, verificamos, e a informação está amplamente disponível na Internet, que o primeiro grau começa no três e o passo do neófito depois de iniciado tem um ritmo ternário:

 

 “A marcha do aprendiz é composta de três passos iguais e retilíneos, ... ou seja, a dualidade da manifestação, e o número três, ou seja, o ternário da perfeição”

In: Portal Pedreiros Livres

 

E recordo o início deste texto, citando Telmo: “não há progressão sem movimento triádico.”

 Este compasso ternário é aquele com que dançamos o tango.

Como na gravura de Jacob e o Anjo em que os passos, paradoxalmente miméticos de uma luta ou uma dança, ensaiam, afinal, a valsa do amor.

https://moradasdedeus.blogspot.pt/2011/04/jacob-e-o-anjo-em-imagens.html

Sobre este caminho do um ao três, recordo ainda a voz de Jesus, quando diz:

“onde dois ou mais se reunirem em Meu nome Eu estou no meio deles”

Isto é: no mundo d’Ele, o dois não existe. Em Seu nome, não é possível que dois estejam sozinhos. Ele, o Espírito, estará sempre lá como um terceiro ou “re-união”, reconciliação. É uma promessa. Ou lei. O dois pertence ao mundo da ilusão.

Quanto ao mundo sensível de Telmo, fica para outra ocasião.

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