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DOS LIVROS. 38

20-03-2015 11:57

De repente tive a ideia de mostrar Natália como uma projecção na alma do filósofo da beleza satânica contudo bem feminina no seu fascínio.

Substituí a apoteose de Natália pela apoteose de Leonardo, unindo-se pelo sacramento do matrimónio e resgatando-se pela sacralização do seu filho, no alto do Marão.

É neste ponto que a minha vida de escritor é de novo assistida pelo sobrenatural.

Era uma segunda-feira. O café onde todas as manhãs costumava ir escrever, ler, pensar fechava neste dia da semana. Dirigi-me por isso para uma esplanada na Mata, que é o nome que em Vila Viçosa dão ao seu belo jardim. Sentei-me e escrevi dum fôlego o novo desenlace da peça, pondo os seus no seu devido lugar.

O extraordinário e ao mesmo tempo encantador foi o que aconteceu quando pus a última linha. Duas felosas verdes vieram pousar à minha direita e à minha esquerda nos espaldares das cadeiras de um e de outro lado da mesa. Entre mim e cada uma das duas avezinhas havia a distância de um braço. Estavam voltadas uma para a outra, mas moviam as cabecinhas fitando-me. Depois desapareceram num voo que foi como um sopro.

A alegria, como nunca a tinha sentido, veio visitar o meu espírito.  

(António Telmo, in Páginas Autobiográficas)

 

António Telmo não disse tudo na “Breve Explicação do que foi escrito atrás” que justapõe aos três actos em que se estrutura a sua peça A Verdade do Amor, editada pela Zéfiro em 2008. Ficamos a sabê-lo pelo excerto sobre Leonardo Coimbra acabado de citar, retirado de Autobiografia e Sobrenatural, uma das muitas novidades que o III Volume das suas Obras Completas, a sair em Junho na Zéfiro, nos vai trazer. O leitor poderá verificar o que lhe dizemos, recordando o final desta peça tão densamente simbólica, em que Álvaro, ali dado pelo mestre como o baluarte da Filosofia Portuguesa, é efectivamente Álvaro Ribeiro. Mesmo que António Telmo não no-lo tivesse revelado, bastaria a nossa atenção para a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro que o dramaturgo não deixou de colocar na sua sala de estudo.

[Lilith, por Dante-Gabriel Rossetti]

 

Final do Terceiro Acto de 

A Verdade do Amor

 

(…)

 

Aparece Natália fazendo grandes gestos de chamamento para Leonardo e para Álvaro.

 

LEONARDO

Não atravesses o caminho! É uma miragem.

 

O CEGO

Volta-se para Natália, tocando e cantando.

Em vinte e cinco de Abril

A princesinha acordou,

Cem anos depois de morta,

Sentou-se toda torta,

Longe do mundo e bem só.

 

Era um esplendor de cravos

Cem anos depois de cega.

A liberdade não chega

Por causa da cegarrega

Que amolece os mais bravos.

 

Disse Camões ao seu povo

Mil anos antes de Abril:

Mas que tristeza tão vil!

A liberdade não chega

Tudo é velho, nada é novo

Continua a cegarrega.

 

Veio o Quim dos Alcatruzes

E ganhou as eleições,

Já se calou o Camões.

Alegram-se as avestruzes

Co’a liberdade que chega

Entre vivas e canções,

Mas não cessa a cegarrega.

 

Em vinte e cinco de Abril

A princesinha acordou

Cem anos depois de morta.

Esperou três anos mais

Sentada e toda torta

Até que por fim ganhou

E nos fez todos iguais;

O deus dos cegos ganhou

Que nos fez todos iguais.

O deus dos cegos ganhou

Que nos fez todos iguais.

 

A voz repetitiva perde-se progressivamente. Fica só o som da guitarra.

 

NATÁLIA

Ó vinte e cinco de Abril,

Venha a orgia, venha a ordália!...

Portugal beija o Brasil,

E Leonardo a Natália.

 

TODOS

Toca um rock! Toca um rock!

Vamos todos a galope!

 

O cego levanta-se e a sua guitarra, agora eléctrica, solta sons frenéticos. Começam todos a dançar. Do meio deles sai uma mulher muito branca, magríssima e só com órbitas. Para e dança como que esperando.

 

ÁLVARO

Mestre, que figura horrorosa é aquela?

 

LEONARDO

Aqui todo o medo deve desaparecer. Mantém-te calmo e distante, mas não percas nada do espectáculo!

 

A MORTE

Sou um caso muito sério

Não é só com preservativos

Que resolveis o mistério.

 

LEONARDO

Tudo isto enoja, mas é só uma miragem.

 

ÁLVARO

É só uma miragem?

 

LEONARDO

Uma miragem que, com a ajuda de Deus, vou fazer desaparecer.

 

Atravessa corajosamente o caminho que os defende daquela gente. E, ao sinal da cruz que traça sobre o peito, segue-se um estrondo que abala toda a cena.

 

Louvado seja Deus!

 

Uma doce paz invade toda a paisagem, ainda envolvido na noite. A manhã começa a clarear, mas do lado do Poente. Daí se vai elevando o Sol. Sob o Sol nascente, forma-se a figura de um Templo.

 

O teatro findou. Álvaro, vou deixar-te só. Arranja companheiros que sigam a nossa estrela. Aquele é o Templo de Salomão, daquele que fez o Cantar dos Cantares. Ali me espera Catarina com o nosso filho. Ele será lavado em águas santas e receberá na língua o sal da terra. Renascerá. Eu e Catarina também, mas pelo supremo sacramento. Sinto que é a partir dali que vou conhecer o mundo misterioso de Deus.

Tu ainda tens de descer, de regressar ao mundo dos homens. Vai e faz o que tens que fazer.

 

António Telmo

 

(Publicado em A Verdade do Amor, 2008)

DOS LIVROS. 37

19-03-2015 13:03

Coincidências, 1

 

Tenho observado que um certo tipo de intelectual muito comum, antípoda do homem do povo, receia o sobrenatural, até no que ele tem de maravilhoso mas de imprevisível, até quando lhe falam simplesmente de uma das suas indesmentíveis manifestações.

Já lá vão uns vinte ou trinta anos. Depois do jantar, fumava eu o meu cigarro, o meu filho trouxe-me um frasco cheio de água muito bem rolhado, com uma mosca morta lá dentro, dizendo que a tinha ali afogada há longos quatro meses. Eu sabia, até por o ter verificado algumas vezes, que, cobrindo de cinza uma mosca em tais condições, ela começava a andar e, uma vez bem seca, até a voar.

Tomei uns ares de mágico:

- Tira-a daí, sem a magoares. Vou ressuscitá-la.

E assim que ele a colocou sobre a mesa, deitei-lhe sobre o corpo a cinza do cigarro. Passados alguns instantes, emergiu da cinza, esticou as asas e começou a andar.

Contei isto no café, onde fui como de costume. Mudaram imediatamente de conversa. O que se lhes afigurava excepcional enchia-os de medo.

Todavia, só lhes disse metade. O mais importante guardei para mim.

Levo sempre comigo um livro, para onde quer que vá. Neste caso, nessa noite, como nas outras, depois de vinte ou trinta minutos de conversa, retirava-me para uma mesa onde ficava sozinho a ler. Antes de sair de casa e logo a seguir ao acontecimento da mosca, procurei pois na estante um livro. Tirei um do filósofo alemão Leibniz. Abri-o ao acaso e percorri com o olhar umas linhas para ver se, na altura, me agradaria lê-lo. Deparei, espantado, com as seguintes:

 “… não há ninguém que possa marcar o verdadeiro momento da morte, a qual poderá passar muito tempo por uma simples suspensão das acções habituais e, no fundo, não é outra coisa nunca nos simples animais; o melhor testemunho disso é a ressuscitação das moscas afogadas e envolvidas em giz pulverizado.”

Há coincidências inexplicáveis, mais misteriosas do que o voltar à vida dos animais mortos.

 

António Telmo

 

(Publicado em A Terra Prometida, 2014)

EDITORIAL. 03

18-03-2015 14:30

Justa medida

Miguel Bruno Duarte, no seu blogue Liceu Aristotélico, página que, ao invés do que a sua denominação faria supor, se tem brilhantemente distinguido pela difusão, entre nós, das artes marciais (o facto pode parecer insólito, mas, dado o implícito diapasão alvarino, recordamos que já Álvaro Ribeiro, em carta a António Telmo, considerava que à revista Escola Formal melhor caberia a designação de Quartel General), Miguel Bruno Duarte, escrevíamos, publica no seu blogue o artigo “Agostinho da Silva: biografia falhada”, da autoria de António Araújo, crítico de livros, constitucionalista e consultor do Presidente da República, que nesse seu escrito ajuíza sobre o livro O Estranhíssimo Colosso: uma biografia de Agostinho da Silva, da autoria de António Cândido Franco, membro fundador, para nosso júbilo, do Projecto António Telmo. Vida e Obra.

O referido Miguel Bruno Duarte faz, porém, preceder a publicação do escrito de Araújo do seguinte introito:

 

O texto que se segue, da lavra de António Araújo, já é do conhecimento público (ver aqui). Trata-se, no âmbito de uma pseudo-biografia sobre Agostinho da Silva, de uma crítica dirigida a um professor da Universidade de Évora - aliás anarco-comunista e também ele membro fundador do Projecto António Telmo. No mais, a resposta do visado já veio igualmente a público (ver aqui), para assim alegar "que uma biografia não é um género linear, como de resto nenhum género poético o é". Ora, sobre isso, não levantamos nenhuma objecção, sem prejuízo para as eventuais fontes documentais. Mas, no que respeita a Agostinho da Silva, já é caso para perguntar que valor literário ou poético revelam expressões do tipo: "Matava com a mão o apetite do bicho mas o que ele queria mesmo era o corpo meio nu da prima nas mãos"? Enfim, não há dúvida de que estamos perante um sinistro e estranhíssimo biógrafo de um singular quão inestimável missionário do Espírito Santo. 

 

Verifica-se que, num curriculum tão vasto e tão rico como o de António Cândido Franco, somente três qualidades lhe são aqui relevadas: a de professor universitário; a de anarco-comunista; e a de também ele membro fundador do Projecto António Telmo. Vida e Obra.

O também ele, aqui, alude provavelmente a Pedro Martins, dados os antecedentes próximos que os leitores da nossa página possivelmente recordarão.

Registamos, com agrado, a atenção, com seu quê de obsessivo, com que, enquanto projecto de investigação, Miguel Bruno Duarte nos distingue.

Registamos ainda, aqui com subido orgulho, o modo como nos associa a uma polémica em torno de uma obra sobre Agostinho da Silva, um dos mestres do nosso patrono, mas não o nosso patrono. Será, da sua parte, sinal de reconhecimento do trabalho singular e, em certa medida, incomparável no último ano, que o nosso projecto tem desenvolvido em torno do estudo e da divulgação da vida e da obra de Mestre Agostinho, algo que, ainda há semanas, na tertúlia promovida pela Associação Cais de Culturas em que participaram Rui Lopo e Pedro Martins, o escritor Fernando Dacosta sublinhou publicamente? Só Bruno Duarte o poderá esclarecer...

Quanto ao epíteto de “anarco-comunista”, por sinal aquele que, literalmente, Teixeira de Pascoaes para si reservou em A Minha Cartilha (já Sampaio Bruno, fundador da Filosofia Portuguesa, se definira, n'O Brasil Mental, como "socialista-anarquista"), terá de ser António Cândido Franco, se assim o entender, claro está, a pronunciar-se sobre ele, a par de uma ou outra aleivosia pertinaz com que Miguel Bruno Duarte se lhe dirige.

Com efeito, António Cândido Franco irá responder-lhe, nesta página, na próxima semana. Será aliás, da sua parte, o ponto final nesta polémica que ganha novos contornos.

A Miguel Bruno Duarte, e aos leitores em geral, recordamos que o Projecto António Telmo. Vida e Obra é antes de mais um grupo de amigos, onde coexistem e convivem pessoas das mais variadas orientações políticas e religiosas: monárquicos e republicanos, católicos e maçons, cristãos e filo-judaicos, anarquistas, comunistas, socialistas, crentes, ateus, etc. O que, possivelmente, explicará, em parte, a obsessão com que Bruno Duarte nos distingue. E que, como o mesmo imaginará, nos deixa muito satisfeitos. Tão satisfeitos, aliás, que não perderemos mais tempo a responder às suas provocações. Nisto, na senda de António Telmo, somos aristotélicos, atentos, pois, à justa medida.

INÉDITOS. 48

17-03-2015 23:05

Palavras que fazem ver[1]

 

Imagine-se um cego de nascença que, por milagre ou cirurgia, isto é, por imposição das mãos, fica a conhecer de repente pelos olhos a maravilha visível do nosso mundo, de nós conhecida pelos olhos desde que a inteligência pousou na sensação da criança. O cego dará melhor do que nós a outros cegos que não beneficiaram do milagre a ideia do que é o novo mundo, pois sabe por experiência as suas dificuldades. Um cego não pode conduzir outros cegos, mas quem vê, se não foi antes cego, conduzi-los-á pelos seus próprios caminhos e não pelos caminhos próprios dos cegos. Aquele que para ver beneficiou do milagre sabe que só os próprios caminhos dos outros cegos podem conduzir ao milagre. Assim, a ressurreição ilumina porque é ressurreição da morte.

É compreensível que os cegos esperem um dia poder vir a ver. Mas não poderão, pensando, ter acesso a um mundo superior ao visível? Pensando o que ouvem e o que não ouvem: o som, a palavra e o silêncio. O erro deles, julgo eu, é o de, pensando, tentarem adivinhar pelos sons o que se passa lá fora. Se ouvissem olhando para dentro do que ouvem o que é que se lhes depararia? O Inferno, sem dúvida. A ressurreição não se dá três dias depois de estadia no Inferno?

Em tudo isto nos confundimos e perdemos como num labirinto. Por isso prefiro pensar que a redenção não é individual, mas consistirá na universal comunicação dos espíritos entre si, comunicação que se inaugura pela relação conseguida do homem com a mulher jogando simultaneamente com a dos iniciados entre si no ágape. O horror é que nestas duas espécies de relação é onde a solidão nos convoca para o apelo interior que protesta perante a estupidez dos outros. Se bem observarmos, porém, vemos que toda a deficiência é de palavras, está na palavra actual. Pelo sémen um corpo fecunda outro corpo. O prazer divino da alma é o das palavras que fazem ver.


António Telmo



[1] Título da responsabilidade do editor.

 

DOCUMENTA. 04

16-03-2015 17:29

Depois de ter sido alistado em 22 de Setembro de 1947 como «recrutado», de ter sido incorporado em 8 de Agosto de 1951, e feita a recruta em Mafra, na Escola Prática de Infantaria, em Maio de 1952 António Telmo está a cumprir o serviço militar em Évora, no Regimento de Infantaria 16. Não por acaso terá sido escolhido para proferir um discurso aos novos soldados, em data assinalada. O jornal local A Defesa publica o escrito da alocução do «Sr. Aspirante Vitorino», fazendo-o preceder da seguinte notícia:

 

«Os oficiais e soldados do Quartel de Infantaria 16 comemoraram, no domingo, o 143.º aniversário do combate de Grijó contra os franceses, em que os portugueses se cobriram e glória.

Na parada, o sr. coronel Plácido Bravo da Costa, comandante do regimento, passou revista aos soldados e recrutas formados sob o comando do sr. major Orlando Luís de Oliveira. O aspirante sr. António Telmo Carvalho Vitorino leu aos soldados a breve e patriótica alocução que a seguir publicamos e que foi ouvida com prazer por todos os assistentes.

A seguir foi prestada continência à bandeira e realizou-se, no antigo picadeiro, um alegre festival dedicado aos recrutas, com vários números de cântico e orquestra, que revelaram, entre os soldados, autênticas vocações artísticas. O orfeão actuou sob a direcção do sr. tenente Manuel João Alves.

Assistiram muitos convidados.»

 

____________

 

Alocução do Sr. Aspirante Vitorino

 

Hoje, dia do nosso Regimento, estamos aqui reunidos, uns com a consciência plena do significado da comemoração, outros, os soldados recrutas, a quem esta festa é dedicada, no seu maior número não sabendo o que aqui os trouxe. É, pois, a vós, soldados, que a minha palavra sobretudo se dedica.

Disseram-vos com certeza que este é o dia do nosso Regimento, o dia escolhido? Ides sabê-lo: nesta data se comemora a vitória do combate de Grijó, para a qual mais do que ninguém contribuiu o 1.º Batalhão do Regimento de Infantaria 16. Foi em Maio de 1809, há mais de um século. Os franceses, enviados por Napoleão, general sedento de domínio, tinham penetrado em Portugal. A nossa querida terra gemia ao peso do inimigo. Eram nossos aliados os ingleses. Combatíamos lado a lado. Em 11 de Maio de 1809, 4.000 franceses ocupavam uma óptima posição entre Souto Redondo e Grijó, protegidos pelo mato e pelo arvoredo. Foi mandado ao 1.º Batalhão do Regimento de Infantaria 16 atacar pela direita. E tão heroica foi a sua acção, tão impetuoso e irresistível o ataque, que em breve o inimigo cedeu. O combate estava ganho.

Convém, aqui, recordar a acção do seu chefe, do comandante do 1.º batalhão, o coronel Machado Mendonça. Ele era um herói. Um homem cuja presença desafia o tempo.

Eis o que diz antes do combate: «Soldados, chegada é a ocasião de mostrardes vosso valor e patriotismo. Melhor é morrer no combate que deixar-se vencer pelo inimigo. Eu vou para a frente. Segui-me todos! Se virem que tenho medo do fogo do inimigo, matem-me!»

Povo que nenhum iguala, o povo português destes chefes necessita e destes chefes sempre tem tido. Por isso, vós, soldados recrutas, em breve sentireis honra e orgulho em pertencerdes ao Regimento de Infantaria 16.

Os ingleses não pouparam elogiosos comentários, impregnados de sincera admiração, ao bravo comportamento do Batalhão comandado pelo coronel Machado Mendonça. Como Montgomery, o marechal inglês, deixaram inscrita, em palavras duradoiras, a funda impressão que lhes causou o soldado português. O tempo é como um círculo: repete-se. Gira à roda das horas e no curso histórico dos povos situações idênticas surgem. Então, o sonho napoleónico de império não venceu a resistência, para cá dos Pireneus. Hoje ambição idêntica que surja ou que já tenha surgido não surtirá também, pois os soldados estão sendo adestrados e os chefes estão alerta.

11 de Maio de 1809 foi realmente o grande dia, o dia de oiro do nosso Regimento. Mas não julgueis que a sua acção foi só esta. Albergaria, Malijoso, Bussaco, Almeida tiveram ocasião de assistir à sua bravura. E tantas terras mais! Por toda a parte e em todo o tempo da sua existência a conduta foi só uma: «brava e em tudo distinta.»

Esta é a nossa divisa! Da boca de um marechal inglês a tomamos, mas antes a inscrevemos a sangue no campo de batalha. Está gravada nos nossos corações. Batam sempre serenos e fortes, nunca se apagará. Ontem, hoje e sempre ela incarna a mais íntima essência do nosso sentido.

Sabemos agora todos porque é hoje o dia da nossa Festa. Ela serve para reavivar a memória de um passado glorioso, para manter sólidos os laços da tradição, para fazer um só indivíduo dos múltiplos indivíduos que compõem o nosso Regimento. Por ela nos sentiremos verdadeiramente juntos, oficiais, sargentos, cabos e soldados.

 

~

 

Vai-vos agora ser mostrada a nossa bandeira. Ela, em Grijó, tremulou azul e branca na fúria do combate. O nosso sistema de governo era então a Monarquia. Com a República as cores foram mudadas para verde e vermelho. A bandeira é, contudo, a mesma, porque o espírito é o mesmo. Aquilo que o coronel Machado Mendonça fez pela outra, faria também por esta. E nós, o que fazemos por esta, faríamos também pela outra. Através das vicissitudes da política, o povo permanece o mesmo. Mudam as cores da natureza, o Inverno substitui a Primavera, a Primavera o Inverno, mas subsiste a natureza. Mudam as cores da bandeira, o espírito que incarna é sempre o mesmo, idêntico e imperecível. Ela é um sinal, uma representação, um símbolo. Ides vê-la!

VOZ PASSIVA. 44

10-03-2015 17:13

Na edição n.º 458 do jornal Raio de Luz, mensário de opinião e informação do concelho de Sesimbra, que saiu no passado mês de Fevereiro, Pedro Martins, na sua habitual coluna, deixa o convite para as Tardes Télmicas 2015...

Convite

Pedro Martins

 

Seríamos meia-dúzia à porta da Biblioteca Municipal de Sesimbra, ao cimo da breve escadaria. Foi no último sábado de Outubro. A Biblioteca tinha acabado de encerrar e nós saíamos de mais uma Tarde Télmica, sessão onde António Telmo, Agostinho da Silva e Rafael Monteiro haviam sido exaltados. Formávamos uma pequena multidão. Pelo menos, deve ter sido assim que para nós olhou a rapariga que, naquele momento, se acercou do grupo. Forasteira, teria cerca de 20 anos e vinha ao fresco, vaporosa, balnear, esperançada na réstia de um Verão a destempo face à iminência da hora em mudança.

Quis saber o que ali se iria passar. Dissemos-lhe que já se tinha passado. Alguém lhe terá então falado da homenagem prestada a Agostinho, do lançamento do livro com as suas cartas para António Telmo. E a palavra filosofia, naturalmente, veio à baila. A jovem não escondeu o seu desapontamento perante o quadro: – Filosofia??!! – quase protestou, envolvendo o desdém da pergunta num esgar de desconsolo. Esperaria talvez poder assistir à projecção de um filme, suplemento prazenteiro à inopinada vilegiatura, e deparara-se afinal com um bando plúmbeo de monos dissecadores de alfarrábios. Em suma: uma seca!

Não obstante, reteve o nome de Agostinho: – Agostinho da Silva? Mas ele ainda é vivo? – indagou. Paciente, proficientemente, esclarecemo-la, explicando-lhe que a apresentação das Cartas de Agostinho da Silva para António Telmo constituíra, justamente, uma comemoração, entre outras, em que Sesimbra foi aliás pródiga no ano passado, dos vinte anos da sua partida. Para o nosso desespero ser completo, veio ainda uma terceira questão: – E a filosofia dele era estilo quê? Tipo Platão?

Apesar do jeito platónico com que Agostinho sacraliza a criança entrevista no Menino Imperador do culto açoriano do Espírito Santo, não lhe quis dar o prazer de julgar que, por uma vez, tinha posto a cruz certeira nos quadradinhos do teste americano. Até porque o filósofo, verdadeiramente, desejou sempre congraçar Platão e Aristóteles, ou o Céu e a Terra. Disse-lhe apenas que a filosofia de Agostinho era tipo ele mesmo, num homem que tinha criado o seu próprio estilo, decerto por entender que o principal dever de cada um para consigo consiste em se ser aquilo que se é.

Mais disse a suave rapariga outonal ser aluna do IADE, em Lisboa. Muito gostaria de lhe ter feito a pergunta que então me não ocorreu: se acaso sabia quem tinha fundado a escola que frequentava? Imagine o leitor que se trata de um filósofo, para mais um filósofo português, de seu nome António Quadros. Este amigo de António Telmo e Agostinho da Silva, regressado à pátria após uma estada no Brasil, onde fora realizar conferências, foi o núncio do convite que o segundo, com Eudoro de Sousa, dirigira ao primeiro para se lhes juntar, em Brasília, como professor da Universidade onde os dois então pontificavam. Corria pelo meado a década de sessenta. E o resto é sabido. Telmo aceitou o repto e quando, dois anos e meio depois, se assomou entre nós de torna-viagem, não tardou muito que Agostinho o reencontrasse em Sesimbra, vila onde este último, por via de regra, passou a assentar praça sempre que o apelo sortílego de andarilhas peregrinações o não reclamasse à morada principal de Lisboa.

Felizmente, naquele fim de tarde, nenhum de nós participou à graciosa banhista serôdia que Agostinho da Silva, tantas e tantas vezes suspenso da contemplação do mar de Sesimbra na sua varanda de Argéis, preferia contudo o Castelo à praia, como aliás fez saber na conversa com que, no final do Verão de 1993, por obra e graça do destino, viria a consumar, neste mesmo jornal, o histórico rol de entrevistas de imprensa com que deu coerente testemunho do seu ideal de vida conversável. Segundo então afirmou, não gostava muito de praia, pois que esta só servisse para as pessoas irem lá bronzear-se ou nadar. «A vida tem sido muito estragada por gente que nada. E talvez muita gente devesse aprender a flutuar. A deixar que a vida o vá conduzindo a isto ou aquilo…» – acrescentou o filósofo à comitiva do agora quarentão Raio de Luz,… 

Por muito que custe à excelente moça balnear, parece haver sempre uma opção filosófica depositada nos gestos, mesmo os mais pequenos, só na aparência insignificantes, com que urdimos as teias das nossas vidas. Quando Agostinho da Silva virava costas ao mergulho nas ondas do mar a seus pés, e com estes de abalada se afoitava a calcorrear os morros que circundam a cova funda, para visitar o amigo Rafael Monteiro na sua casa castelã, estava por certo a fazer uma escolha, tão escorada no sentimento como no pensamento. E quando António Quadros congeminou o desígnio, entre nós pioneiro, de criar uma escola de arte e decoração que viria a concretizar em 1969, facultando aos estudantes portugueses um curso de Design de Interiores e Equipamento Geral concebido sob padrões internacionais de vanguarda, bem sabia que as imagens não raro decidem das ideias por que guiamos os nossos passos.

É ainda em 1969 que, Verão adentro, Agostinho regressa ao torrão nativo, após o quartel assombroso em que, no Brasil, reinventa Portugal. Cinco lustros de um exílio com pouco de voluntário perante o aguilhão político com que o regime de Salazar o perseguira serão o bastante para atrás de si sulcar um profundo, fecundo rasto de aventura e criação, fundando escolas, fazendo escola, escrevendo livros e artigos onde fulgura um pensamento tanto mais controverso quanto mais original ele se mostra.  

Não tardou muito que, nesse mesmo ano, pela dobra da década, António Telmo, da Piscosa, onde dirigia a novel Biblioteca Municipal, lhe lançasse a escada, impetrando-o a falar, de improviso e sem parança, durante uma hora e meia, na antiga Capela do Espírito Santo. António Quadros viera semanas antes, inaugurando a série de palestras com uma conferência sobre “O Homem Português e o Barroco”. O arrojo foi um sucesso, todas as sessões registando, invariavelmente, uma assistência copiosa e interessada.    

A Biblioteca, entretanto, desceu a calçada, passando à porta juvenil do Rafael; teve casa posta na velha escola do ciclo; e ainda um breve poiso temporário, intercalar, nessa outra, bem mais antiga, devida à bondade do Conde de Ferreira. Hoje, de novo entre escolas, sob a direcção competentíssima da Dr.ª Maria José Albuquerque, abre as suas portas ao público no moderno edifício modelar da Avenida da Liberdade, à ilharga do jardim-de-infância de Santa Joana e da escola básica a que, com vossa licença, continuarei a chamar primária, por primeira.

A meio da década passada, ainda sob a égide de António Telmo, ali celebrámos o centenário de Agostinho da Silva, com um colóquio realizado a 30 de Setembro, no exacto transcurso de treze anos sobre a data em que a derradeira entrevista do autor de Um Fernando Pessoa assinalara as páginas do Raio de Luz. Naqueles que se seguiram, antes e depois da partida de Telmo, a prática manteve-se, quase sem hiatos, a ponto de se tornar um hábito para certos monges devotos da palavra.

Contra a fúria dos ventos, o contínuo costumeiro persiste agora sob a fórmula das Tardes Télmicas, que este ano conhecem segunda edição, parceria confiada e proveitosa do Projecto António Telmo. Vida e Obra com a Câmara Municipal. O começo recai em Maio, mês de Telmo, no dia 9, com a apresentação de O Estranhíssimo Colosso, monumental biografia que António Cândido Franco, numa porfia de décadas de estudo e investigação, dedicou ao insigne sesimbrense por eleição que foi Agostinho da Silva, e onde António Telmo, Rafael Monteiro e António Reis Marques são presenças das mais marcantes. Mas haverá mais, muito mais, neste renovo do encontro: um certo livro sobre António Telmo e dois novos volumes das suas Obras Completas, empresa que o Projecto vem conduzindo com a chancela da editora Zéfiro; o lançamento da reedição dos míticos Noventa e Tal Contos, de António Cagica Rapaz – “Boa noite, ó mestre!” –, livro onde Telmo, com proverbial mestria, joga o bilhar; uma tertúlia e uma exposição sobre Rafael Monteiro; várias conferências ao redor do nosso patrono e do universo infindo em que se inscreve; e, ainda segundo este propósito dialogal, colóquios sobre Sampaio Bruno (nos cem anos da sua morte), Teixeira de Pascoaes (no centenário da Arte de Ser Português) e Fernando Pessoa (na primeira centúria da revista Orpheu). São mais de vinte oradores, vindos de várias partes de Portugal, do Porto ao Alentejo!...

As Tardes Télmicas continuam, sempre aos sábados, porque as primeiras foram um êxito e porque sim. Porque a tradição da herança impõe responsabilidade. E porque a memória é um caso sério, sobretudo quando começa a falhar. São para todos estas Tardes. Até para as suaves raparigas outonais. Sobretudo para estas. Porque a filosofia, longe do enfado com que a querem pintar, por cá é apenas o nome para dizer a nossa história e o exemplo sublime dos maiores, a literatura e a poesia que nela há, o sagrado e a arte que o revela, tudo aquilo que vem no sopro de que se alenta a vida e nenhuma senhora Merkel poderá jamais resgatar.  

Dizem que Sesimbra é peixe e este mês, depois de faltar ao aviso para Janeiro, aqui estou eu, de balde cheio, a vender o meu…

INÉDITOS. 47

09-03-2015 12:05

Na Escola Nacional de Lisboa[1]

            (…)

 

Ainda bem que me fala, na sua segunda carta, do General Vicente de Freitas. Ele era o gestor ou coisa que o valha da Escola Académica, no Largo da Anunciada, onde conheci o Álvaro Ribeiro, isto é, em que o vi pela primeira vez falar, de que lhe ouvi, pela primeira vez, a voz. Nessa Escola estive eu interno como aluno, no ano seguinte a ter ali estado o meu irmão Rui, que Deus haja. O General dava-nos aulas de moral. Era um velho resmungão que nós gostávamos de ridicularizar para nos vingarmos da moral que nos era impingida e que todas as crianças odeiam, porque estão antes do pecado original. O aluno que estava sentado na cadeira ao pé da porta da sala, batia nela várias vezes com os nós dos dedos. O General dizia-lhe para ver quem batia à porta e naturalmente não estava lá ninguém. Ficava furioso, mas, como ignorava quem tivesse batido, reprimia-se. A brincadeira repetia-se em cada aula. Um dia, porém, quando se abriu a porta, vinha por acaso um aluno a entrar. Levou uma sova de bofetadas e estava verdadeiramente espantado, porque não via porque era assim castigado, sem se atribuir qualquer culpa.

            (…)

 

António Telmo



[1] Nota do editor – O título é da nossa responsabilidade. Publica-se um excerto de uma carta escrita por António Telmo, que nela visivelmente se engana no nome da escola que menciona. Trata-se, com efeito, da Escola Nacional de Lisboa, que Telmo frequentou, como aluno interno, no ano lectivo de 1943-44. Sobre o General Vicente de Freitas, que foi docente e comproprietário da referida escola, fundada, com outra localização, no ano de 1869, remetemos o leitor para o livro de Francisco Fernandes, General José Vicente de Freitas – A Liberdade de Pensar, Lisboa, Colibri, 2010. 

 

DOS LIVROS. 36

06-03-2015 12:01

Martinismo e filosofia portuguesa[1]

 

Não será, talvez, mau, para abrir estas páginas, ver o que portugueses pensaram sobre Pascoal Martins ou sobre o martinismo. Escolhemos três nomes bem representativos do génio nacional, que são Fernando Pessoa, Álvaro Ribeiro e Sampaio Bruno. Passamos a citar:

“O ternário sagrado! Saint-Martin, seu inventor e promotor! Mas, sem embargo de sua peculiar originalidade, cumpre não esquecer que Saint-Martin começara por ser discípulo de outrem, de um desses homens extraordinários que gravam sua personalidade na sua época; e esse homem era português, “misterioso português”, consoante (realista, romanescamente) se compraz em lhe chamar o biógrafo crítico do “philosophe inconnu”, o sr. Matter. Português-judeu, cristão-novo, “de raça oriental e de origem insólita, mas tornado cristão à laia como assim se tornavam os gnósticos dos primeiros séculos.” Quem?

“Quanto mais se estuda Saint-Martin, com o tratado do seu mestre, Da Reintegração, à vista, tanto mais se sente, em toda a sua profundidade, a influência do teurgista de Portugal sobre o mais célebre dos seus discípulos de Bordéus.”

O autor do tratado Da Reintegração, manuscrito com que, na data, teve a felicidade de deparar o sr. Matter, designa-o este por teor equívoco para ouvidos lusitanos, apesar, todavia, de seus propósitos correctivos. “Toda a vida de Martinez de Pascualis está envolta em mistérios. Chega a uma cidade não se sabe de onde nem para quê. Deixa-a não se sabe quando nem como. Sabemos que dom Martinez findou seus dias em 1779 em São-Domingos, em Port-au-Prince, o que por muitas vezes fez com que o dessem por espanhol.”

Vê-se, por estas linhas de Sampaio Bruno (O Encoberto, pgs. 331-332), a preocupação em acentuar a nacionalidade portuguesa de Pascoal Martins. Não certamente por patrioteirismo, assim como a massa imbecil se orgulha de que o Figo ou o Eusébio ou o Saramago sejam portugueses. Mas sim, como se vê depois, lendo todo o capítulo, para mostrar que martinismo e filosofia portuguesa são a mesma verdade, pela origem e pelo desenvolvimento. 

É o que vem afirmado na segunda citação:

“A tradição portuguesa, a esperança de que o Cristianismo reintegrará o Homem e a Natureza no Reino de Deus, durante o século XVIII passa a exprimir-se em termos diferentes dos que ficaram estabelecidos na nomenclatura da teologia católica e da filosofia aristotélica. A obra de Pascoal Martins, vertida maravilhosamente na cultura da Europa Central, dá-nos uma síntese, ainda hoje admirável, das tradições peninsulares.” (Álvaro Ribeiro, A Arte de Filosofar, pg. 142).

Com efeito, a pureza do ensino da Kabbala, doutrina que se forma pelo cruzamento do esoterismo judaico com o esoterismo cristão, teve a Península Ibérica como principal foco de irradiação, do século XII em diante.

O martinismo foi-nos devolvido mais tarde, predominantemente no início do século XX, pelos franceses, mas a forma degenerada de que se revestiu até então aparece denunciada na terceira citação, que é de Fernando Pessoa, nos seus textos sobre a Maçonaria, falando dos conhecimentos superiores que porventura desçam ou tenham descido até ela:

“Melhor será se estes conhecimentos especiais estiverem apoiados em, ou fundamentalmente derivem de, uma iniciação de tipo supermaçónico. Há, porém que notar que há iniciações extramaçónicas que não habilitam em nada à compreensão da Maçonaria; outras ainda, que são postiças; mais conduzem ao desentendimento que ao entendimento dela. Está no primeiro caso a iniciação em certa Ordem, de tipo rosacruciano, que tem sede em Londres; está no segundo caso o pseudomartinismo fundado por Gérard Encausse (Papus).” (Obras de Fernando Pessoa, Lello & Irmão, pg. 436 do Vol. III)

Mas de França, felizmente, no que a martinismo diz respeito, não recebemos só o pseudomartinismo de Papus. Um dos discípulos de Pascoal Martins, que dele recebeu directamente o ensino, estabeleceu a partir da Ordem Templária da Estricta Observância o Regime Escocês Rectificado, combinando uma tradição que, segundo Jean Tourniac, tem raízes na Ordem Militar de Avis, com a que, através do seu mestre, prolonga, na Europa Central, a Kabbala peninsular. Esse discípulo foi, como se sabe, Willermoz. De Claude Saint-Martin que com ele colaborou na formação do referido Regime maçónico não há qualquer prova segura de uma transmissão iniciática em que se funde esta ou aquela organização, não obstante a profunda e vastíssima influência que exerceu através dos livros.

O que é que se conclui daquelas três citações e da existência entre nós do Regime Escocês Rectificado?

Por mim concluo que dispomos de um caminho simbólico de tudo quanto o martinismo ensina e que, mais uma vez se verifica, não precisamos de sair de Portugal na aventura do conhecimento. N’A Ideia de Deus de Sampaio Bruno temos a mais admirável reformulação filosófica do Tratado de Reintegração dos Seres nos seus Princípios Primitivos. De Sampaio Bruno “partem todos os caminhos”. Claro que não podemos reduzir o pensamento de Álvaro Ribeiro, de Leonardo Coimbra, de José Marinho ou de Agostinho da Silva à Ideia de Deus, tal como a concebeu o filósofo obscuro, porque onde o Espírito sopra não há repetição. Por isso mesmo, não podemos cair no erro de pensar que Pascoaes, Pessoa e Régio dizem coisas diferentes. Estão juntos no essencial, naquele essencial mais directamente apreensível no primeiro, dado que a teoria da saudade para o Regresso ao Paraíso é, logo à partida, o movimento da Reintegração dos Seres nos seus Princípios Primitivos.  

 

António Telmo

 

(Publicado em A Terra Prometida, 2014)



[1] Título da responsabilidade do editor.

 

INÉDITOS. 46

03-03-2015 09:36

O estudo do espólio de António Telmo permitiu já identificar o propósito do filósofo de, na segunda metade da década de 90, escrever um novo estudo sobre Camões, face ao silêncio -- ao sacer esto -- que, com a excepção honrosíssima de Agostinho da Silva, se havia abatido sobre o Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões. Dessa tentativa chegaram até nós algumas páginas que vão integrar Luís de Camões seguido de Páginas Autobiográficas, III Volume das Obras Completas de António Telmo, a sair a lume em Junho próximo, com a chancela da Zéfiro. É uma dessas páginas que agora antecipamos aos nossos leitores. O diálogo admirativo que o filósofo então mantém com a obra, ao tempo acabada de sair, de Moisés Espírito Santo, Os Mouros Fatimidas e as Aparições de Fátima, não tem apenas o mérito de nos permitir situar cronologicamente estes textos camoninos e todos os mais que integram o respectivo caderno manuscrito. Mostram também um livre-pensador religioso aberto ao diálogo com tendências de pensamento que não são exactamente as suas, e que por certo escapam àquele cânone pretensamente ortodoxo que certas correntes reaccionárias, abusivamente propensas à associação com o movimento da Escola Portuense, pretendem impor. A este propósito, verificamos com satisfação que a publicação da obra, incluindo a inédita, de António Telmo vem causando notório e perplexo incómodo a algumas pessoas, que julgavam poder transportar o seu pensamento a um qualquer redil doméstico. Estamos em crer que isto é saudável, porque nos mostra uma obra viva e vivaz, merecendo por isso a maior atenção. Fora das nossas preocupações ficará apenas a grosseria epigonal do insulto que se surpreende num ou noutro daqueles que não querem ver.   

Sobre o Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões[1]

 

Eu compreendo o silêncio que se fez à volta do meu livro Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões. É certo que houve uma excepção, a do homem mais inteligente do Portugal de então, o celebrado e célebre e inspirado Agostinho da Silva num breve escrito publicado logo após a saída do livro num jornal da tarde e mais tarde recolhido em Considerações e em Obras Completas simultaneamente. Como poderia dar na cabeça de alguém a ideia de fazer do catolicíssimo Camões um persa da linhagem espiritual de Zaratustra e de Mani?

Todavia, assim é, sem prejuízo da tese de Fiama Hasse Pais Brandão que faz dele um cabalista ou da tese de Sampaio Bruno que o associa a Dante como um “Fiel de Amor”. É que, como já ensinava o filósofo do Encoberto, da Pérsia descem as três correntes da gnose hebraica, da gnose cristã e da gnose shiita (que não devem confundir-se com os três fanatismos que são o talmudismo, o catolicismo e o islamismo), correntes essas vindas das altas montanhas e que confluem em Portugal formando um lago onde, como na Ilha do Amor, vogam os cisnes de Vénus. Um livro recente, Fátima e os Fatimidas[2] de Moisés Espírito Santo mostra como em Portugal, com as chamadas invasões árabes, se instalou a gnose shiita no seu aspecto popular. Os sefarditas portugueses [foram] uma implantação que ficou guardada pelos Templários acusados de cumplicidade com a mesma gnose por influência dos ismaelitas do velho da montanha. A gnose cristã dominou desde o século IV por meio de Prisciliano. Há ainda no Algarve Ibn Ramana [a] que[m] Asín Palacios assinala a afinidade com Prisciliano.

 

António Telmo



[1] Título da responsabilidade do editor.

[2] Rigorosamente, o título do livro de Moisés Espírito Santo a que António Telmo se refere é Os Mouros Fatimidas e as Aparições de Fátima. A primeira edição, com a chancela do Instituto de Sociologia e Etnologia das Religiões da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, data de 1995. A referência a este livro permite situar cronologicamente os diversos escritos do caderno de onde o presente texto provém. 

 

INÉDITOS. 45

01-03-2015 19:11

No dia em que se completam 110 anos sobre o nascimento de Álvaro Ribeiro, mestre dos mestres de António Telmo, lembramos o filósofo da razão animada a partir de um inédito do discípulo que ilustra a sua relação com o mestre e ilumina um aspecto fundamental do pensamento alvarino, também na estreita ligação que o relaciona com Sampaio Bruno. Trata-se de escrito que irá figurar nas Páginas Autobiográficas de António Telmo, a segunda parte do III Volume das suas Obras Completas, cuja fixação de texto o Projecto António Telmo. Vida e Obra está a ultimar.

Os guizos[1]

 

O som de guizos dá uma nota de beleza ao que não pode entender-se senão como a manifestação de uma força do género daquelas que, no domínio das ciências ocultas, se designam por subtis. Os guizos põem-se suspensos do pescoço dos gatos para avisar da sua presença e mais facilmente os encontrarmos se tiverem desaparecido. Há instrumentos musicais, como a pandeireta por exemplo, que funcionam com guizos que não são mais, afinal, do que pequenos sinos de forma ligeiramente diferente. O som do sino limpava a atmosfera da aldeia de Fernando Pessoa e torna as almas claras, mas o gemido de uma sirene gera angústia e pavor.

O mundo subtil tem os seus aspectos macabros que os filmes de terror exploram, fazendo acompanhar de um som contínuo, cavo e opressivo a aparição, por exemplo, do fantasma do pai de Hamlet. Os fantasmas são pálidos como que formados de uma matéria gelatinosa. Imaginamos assim o reino dos mortos e damos graças a Deus de vivermos no esplendoroso mundo sensível, onde brilham o Sol e as estrelas. Só as almas doentes podem comprazer-se com as sessões de espiritismo.

Falei ao Álvaro Ribeiro o que me aconteceu na casa do alfaiate.

– Foi qualquer coisa que estava a mais e que deitou fora – disse-me ele e pôs-se a falar noutro assunto.

O filósofo de A Razão Animada só atribuía valor e realidade às expressões do sobrenatural pela literatura. A fenomenologia do mundo subtil que não passasse pela palavra mental, oral e escrita, isto é, pelo pensamento, tinha uma garantia até menor do que a fenomenologia do mundo sensível que ele tinha por irreal. Neste ponto, como noutros que com ele se associam, e por ele se coordenam, a coincidência com Sampaio Bruno é flagrante.

O autor de A Ideia de Deus só atribui insofismável realidade às comunicações angélicas formadas por palavras. Desdenha das sensações visuais cuja transcendentalidade é, segundo ele, manifestamente ilusória.

No entanto, as palavras iluminam porque fazem ver naquele domínio invisível que é o do pensamento. “Ver ou não ver, eis a questão.” O essencial é sempre a luz. A visão de Ezequiel é um esplendor. O som que se constitui como letra é uma modalidade da luz.

«O olho, ensinou Jesus, é a lâmpada do corpo. Se o olho é mau todo o corpo é treva, se é bom todo o corpo é luz.»

O cinzento é o que resulta, como as cinzas de um incêndio, da combustão das cores. Os fantasmas são as formas cinzentas do informe.

Ver é tudo. Mas este maravilhoso mundo coroado de azul é apenas uma imagem?

Não há imagem que não o seja de alguma coisa, isto é, que não imite. Ou imita outra imagem ou o que não é imagem e este é o caso das imagens cosmológicas e da natureza que se devem conceber numa árvore cujas raízes estão para além da imagem.

 

António Telmo    

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[1] Título da responsabilidade do editor. O episódio a que António Telmo alude vem narrado aqui.

 

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