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INÉDITOS. 106

02-05-2023 00:00

O presente escrito corresponde à parte inicial, nunca desenvolvida ou concluída, de um livro que António Telmo tencionaria intitular de O livro das minhas invenções, como o próprio refere no texto. Apesar da sua natureza brevíssima e fragmentária, reveste-se da maior importância para a compreensão da obra de Telmo. Nele, o filósofo da razão poética introduz-nos a noção de invenção, a qual, tomada na pureza etimológica da origem, nos remete para a dimensão criacionista de um pensamento que sempre se propôs pensar o irracional: a razão poética, justamente por o ser, é a razão que cria. Mas o sentido do novo tanto vem da e xperiência que conhece o mistério, e da expressão que, pensando, a re-vela, como da hermenêutica que a re-conhece. Nisto reside a glória da sua invenção.

 

O livro das minhas invenções[1]

 

A palavra invenção, como muitas outras palavras, sofreu um desvio do seu étimo pelo qual deixou de ser compreendida. E foi isto que levou muitos a dizerem, por exemplo, que os portugueses não inventaram o Brasil, mas sim o descobriram.

Invenção é o que vem (de venis) e o que sopra (ventum), é o que nos ocorre subitamente no espírito e nos faz ver o que não víamos e o que os outros não viam. Sublinhamos aquilo que explica o significado corrente da palavra.

Este é o livro das minhas invenções. Refiro-as por ordem fenomenológica:

 

1.º - O Claustro dos Jerónimos e o 4.º grau do Regime Escossez Rectificado.

2.º - A explicação dos fonemas da língua portuguesa pela árvore cabalista das sephiras.

3.º - Camões como discípulo de Zoroastro.

4.º - As dez categorias de Aristóteles explicadas pelas dez emanações divinas, tais como os cabalistas as representam na Árvore das Sephiras.

5.º - A interpretação do episódio do Adamastor a partir da bizarra etimologia do nome do Titan: Adão Astral.

E ainda a demonstração de que nele viu Vasco da Gama espelhada a sua natureza terrível. Um  e o outro são o mesmo: Téthis é-lhes comum.

6.º - O Velho do Restelo como o Velho Testamento em contraposição com os desvendadores do futuro. Uma sabedoria respeitável.

Claro que tudo isto é acompanhado de pequenas descobertas ou, por outras palavras, são uma nova luz que mostra outro Aristóteles, outro Camões, outra Gramática Portuguesa, outro Portugal.

7.º - O Monte abiegno como Teorema de Tales ou a Caverna Platónica.

(8.º - O nome de Aristóteles na raiz do seu pensamento.)

 

Como se vê, há uma constante nas sete bizarras interpretações, o serem todas de desvendamento do que está à vista e que por estar à vista ninguém vê.

Vou considerar cada uma delas pela ordem em que foram apresentadas.  

                                                                                                                              (...)    

 

António Telmo



[1] Nota do editor - O título é da nossa responsabilidade.

 

 

EDITORIAL. 29

02-05-2023 00:00

Tempo de (re)invenção

 

No dia em que se completam 96 anos sobre o nascimento de António Telmo, sai a lume o terceiro título da Colecção Thomé Nathanael – Estudos sobre António Telmo, com a proverbial chancela da editora Zéfiro.

A Glória da Invenção – Uma aproximação ao pensamento iniciático de António Telmo, de Pedro Martins e Risoleta C. Pinto Pedro, põe singularmente em diálogo o ensaio e a poesia como modos de abordagem à obra do filósofo e busca novas e surpreendentes perspectivas para um corpus original, fecundo e sumamente avesso às baias de um qualquer sistema.

Nestes dias em que o anti-semitismo surdamente latente na vida cultural portuguesa teve, felizmente, de arrostar com as palavras de revelação proferidas por Chico Buarque ao receber o Prémio Camões, a via cabalística de Telmo, que o conduz em espiral do marranismo ao maçonismo, revela-se, uma vez mais, medularmente portuguesa, como bem sabe quem não desconhece que o puro-sangue lusitano é somente assunto para certas coudelarias.

Em Junho próximo, António Telmo (ou o seu anagramático alter ego Thomé Nathanael) estará em foco, pela mão de Risoleta C. Pinto Pedro, na Conferência Anual do Selma Stern Centre for Jewish Studies Berlim-Brandenburg da Freie Universität Berlin, este ano dedicada ao tema “Global Jewish Literatures in Portuguese – Transnational Networks, Histoires and Cultures”. Depois da tradução francesa de Filosofia e Kabbalah, o horizonte volta a alargar-se. É-nos grato constar que a reinvenção da filosofia portuguesa vai a par da internacionalização de António Telmo.

CORRESPONDÊNCIA. 61

30-04-2023 17:04

Carta de Max Hölzer para António Telmo, de 6 de Maio de 1977

 

Le 6 Mai 77

 

Mon cher ami António Telmo:

 

En espérant que vous n’êtes pas trop déçu, je dois vous dire que je devrais changer mon plan en ce qui concerne mon entrée au Portugal via Badajoz. Il y avait plusieurs raisons , entre outre « um cansaço » censé par le travail et des « affections locales ».

J’arriverai donc le jeudi 26, à Lisbonne avec un avion de TAP à 12.20, venant de Madrid. Carlos Silva m’a écrit qu’il veut venir me chercher ; j’écrirai avec le même courrier à Francisco Sottomayor et à Carlos Silva l’heure de mon arrivée. Je vais prier à Francisco Sottomayor de me faire réserver une chambre dans l’Hôtel Americano pour la première nuit. Il serait bon si nous pouvions être ensemble le même soir une première fois. Mais si vous n’êtes pas à Lisbonne, cela sera reparable, parce que je voudrais aller le vendredi à Borba et rester là, ou avoir un temps [?], avec vous ou près de vous pendant le Pentecôte. Cela vous irait-il ?

Ce qui concerne la conférence : peut-être, pour éviter toute limitation politique, dans le « Grémio Literário » ? – Au lieu de conférence, je préférerais « causerie ». – Cela n’exclurait pas qu’on se rencontre dans les autres cercles aussi, [palavra ilegível] après, dans la deuxième semaine après Pentecôte. Parce que la date, je pense qu’il serait mieux de la fixer dans la première semaine après Pentecôte, par ex. le 2 ou 3 juin (mais aussi à tel autre jour, selon es meilleurs conditions, les habitudes etc…). En ce cas, celui ou ceux dont on jugera qu’ils s’intéressent vraiment pour un ? travail personnel, pourrions [sic] participer à nos réunions la deuxième semaine.

Puisque j’estime que vous organise ces choses, je vous prie de les dire à nos deux amis Francisco S. et Carlos S.

Pour le temps où je reste à Lisbonne, je suis invité de demeurer chez Carlos Silva. 

 

Paris et son « air » m’a fait beaucoup de « mal » ces dernières années et surtout cet hiver : je vais donc chercher un endroit alure [?] et plus aéré pour quelques jours, après avoir terminé et tapé mon article sur Pessoa – que j’écrivais quatre fois, et que je pourrai vous montrer. Donc, ne m’écrivez plus à Paris : je téléphonerai un soir à Francisco S. pour savoir comment les choses vont. –

Votre lettre, et ce que vous me dite de Fr. S., m’a beaucoup ému. Mais n’attendez trop, dans ce sens, que le commencement nécessite avant tout, une tâche difficile qui consiste à désapprendre, et on ne peut pas savoir, d’abord, pourquoi au moins pas tout-à-fait. Mais je viens avec tout « ce qui m’est possible » donner. – Je ne sais pas bien interpréter l’acte de Qu. L. [?] – une lettre de lui, autrefois, m’a semblé très intelligente, concise, consciente. Alors ? Il vous l’a dit lui-même ? – Mais j’espère d’être bientôt chez vous. Avec toute mon amitié

Max H.

VOZ PASSIVA. 127

30-04-2023 16:46

O meu encontro com António Telmo

Francisco Soares 

Triplo lançamento dos livros O Bateleur, de António Telmo, Estruturas Simbólicas do Imaginário na Literatura Portuguesa, de António Quadros, e  Eleonor na Serra de Pascoaes, de António Cândido Franco, na Galeria Nasoni, em Lisboa, no dia 10 de Dezembro de 1992, com a chancela da editora Átrio, de José Manuel Capêlo. Da esquerda para a direita da foto, estão António Cândido Franco, Afonso Botelho (que apresentou O Bateleur), António Telmo, Artur Anselmo (que apresentou Estruturas Simbólicas do Imaginário na Literatura Portuguesa), Francisco Soares (que apresentou Eleonor na Serra de Pascoaes) e o editor José Manuel Capêlo.

 

 

O meu encontro com António Telmo,

começou por uma indicação de um amigo, o Pedro Isidoro, relativa aos Teoremas de teatro. O livro, como se diz no Brasil, impactou-me! Até hoje. Como os bois e algum Nietzche, fiquei a ruminar: em silêncio. Mas não olhava para um palácio, olhava para um templo relativamente pequeno, entre a penumbra a proteger do excesso de luz, talvez um pequeno templo rural.

Depois li a História secreta de Portugal, livro com o qual mais me debati, encontrando clareiras, divergências, a par de afinidades até de pesquisa. E ficou tudo no ar, ainda hoje, falta-me tempo para respirar, o livro está ao lado do António Quadros e vocês calculam de qual título, sobretudo o primeiro volume.

Sigamos. Tendo a fugir de pessoas conhecidas e fiz o mesmo com António Telmo. Aliás, fugir não é o termo, nem ele nunca me procurou nem me pôs em situação de ter de fugir. Isso vocês conhecem, sabem que não era possível nem faria sentido. Evito, evito por mim, por timidez, para dialogar apenas com as obras, porque as pessoas, ah as pessoas cada uma são vários mundos e eu nunca sei muito bem qual, dos meus, há de encontrá-las e temo chocar-me, não ter as atitudes e falas adequadas. Além disso, a minha sensibilidade me torna muito frágil e turva-me, por vezes. A menos que esteja disposto a lutar, outra forma de amor que, no entanto, mal envolvida e sem se perceber, gera mortes. Aproveitando que falamos de um português e deste português concreto, ocorreu- me até pensar que D. Afonso Henriques amou a mãe e, se a prendeu, foi porque momentaneamente confundiu amor e posse.

Retornemos. O António Telmo um dia apareceu na livraria Universo, num dos eventos promovidos pelo João Carlos Raposo Nunes e aos quais acorria sempre com boas expetativas, nunca saindo fraudado. Pareceu-me ter um corpo estreito, magro mesmo, não muito alto e estar em torno dele aquele pequeno templo em que a penumbra não só protege como esclarece o excesso de luz. Eu vou também falar-vos, porém, de outro Telmo. Não sei se nesse evento, creio que em um posterior, ele disse-me que gostava de me ver, achava-se um bom português, dos antigos – e eu não percebia qual o ponto irónico onde ele queria que eu chegasse. Com aquele sorriso típico, de jogador de bilhar e de sábio discreto, onde a ironia era um dos rostos da bondade, ele me ajudou: “sempre que o vejo vem com uma nova mulher. E bonita!”. Rimo-nos os dois. Eu não me ri do elogio ao macho, ri- me da agilidade percetiva e do recado que vinha nas palavras e da amizade da achega. “E bonita” ele disse para ser também simpático à mulher que no momento me acompanhava. Mais tarde falou-me, em Estremoz, do José Manuel Capelo e percebi as virtudes que nele apreciava para além dos defeitos, apesar dos defeitos, que todos temos mas em pessoas como o Capelo são sempre mais visíveis, mais evidentes.

Outro dia, em Setúbal também e por ocasião de outro evento na Universo, fez-me umas breves perguntas sobre a Fábula da captação do elemento desvairado, uma pagela que o mesmo Capelo me publicou e talvez seja o único livro interessante que dei a ver, até pelo seu barroco, pela rudeza com que lá pus o começo e o fim das reflexões. Aquilo era para mim uma teoria do conhecimento e a parceira teoria política, pois o conhecimento e a política, tanto quanto o rito e a lei, não vivem separados. Um conhecimento etimologicamente etimológico.

O António Telmo, começando por muito me elogiar, perguntou-me do que resultara o livro. Eu fui-lhe respondendo, com metafísicas palavras pelo meio, o que tornava a resposta nublada em excesso. Ele sorria com aquele sorriso irónico e benévolo de parceiro mais velho. Logo em seguida, precisava a interrogação: mas eu perguntava-lhe era mesmo como foi que o escreveu, em que momento, estava sentado, em pé?, o que tinha feito nesse dia ou nesses dias, quando é que lhe ocorreram as primeiras linhas? E deu-me duas possibilidades. A segunda – os críticos literários dirão que era a da inspiração – ele a narrou com pormenores muito concretos: era a exata narração do que sucedera. Surpreendi-me. Como é que ele podia saber disso tão bem? Conseguindo repor-me e voltar ao diálogo, contei-lhe o que a memória guardou desse breve processo, com os pormenores que me pareceram momentaneamente pertinentes (lembro-me de que isso incluía a lua, a noite, essa noite específica e física, ou ambiental). Ele recolheu o rosto, sério, e murmurou: pois, era o que eu imaginava. Era mesmo. Depois ainda me perguntou: e o Francisco não pensa mexer nesse livro? Disse-lhe que não, que por insegurança quanto aos resultados, era melhor não mexer. O que ficou no ar, ou no silêncio e no olhar dele, acho que foi um percurso que eu me recusei, sem bem saber, a palmilhar. Um dia, um discípulo do António Telmo, que vi ocasionalmente em Vila Viçosa, disse-me, amigável, a mão sobre o ombro sem que isso me parecesse paternal (pelo contrário): “o Francisco também já é nosso”. Por um dos contextos da conversa, pensei que ele falasse dos alentejanos. Ele acrescentou: “não é propriamente nosso irmão, mas um parente muito próximo, digamos, um primo chegado.” Depois cada um seguiu o seu rumo.

Não vos venho, portanto, falar do sábio, não tenho competência para tanto. Comecei, confesso, a interessar-me pela pessoa. A pessoa dele era, para mim, simultaneamente, um mais velho e um lutador com sentido do jogo que é a luta. Vocês lembram-se da Natália Correia? O José Manuel Capelo falou-me da relação dele com ela por termos de domínio: cada um tentaria dominar o outro, ser preponderante sobre o outro e essa luta é que lhes dava gozo. Não se passava propriamente isso entre mim e o Telmo, passava-se quase o oposto: eu fugia (não é o termo certo, mas ainda não achei o trunfo), se eu fugisse ele acariciava, elogiava, chamava, dizia coisas interessantes, eu percebia o ardil do jogador e atirava-lhe perguntas que me inquietavam, ele percebia o ardil do tímido e respondia que essas perguntas requeriam (digo nos meus termos) uma aprendizagem e um convívio diferentes. E silenciávamos. Ele encontrou um ponto de contacto entre nós, a partir da geografia. Eu tinha ido morar muito próximo de Evoramonte e, a propósito disso e do facto de ter eu também ascendentes judaicos, ou hebreus, ou semitas, falou-me brevemente da origem possível daquela pequena vila, talvez um núcleo de marranos. Falou-me do ferreiro, que por acaso conheci e com quem conversei um pouco mais depois desta conversa. Homem de suas sombras e discrições, falando pouco e deixando no silêncio os recados. Mas a conversa vinha dar a um padeiro e, por ele, à arte de fazer o pão. Disse-me que me queria apresentar o sr. Inácio Ballesteros (acho que era Inácio). Pessoa doutrinada, cortês, discreta, com o sentido espiritual do pão. Conheci-o e gostei muito de o conhecer, embora tivesse convivido pouco, falado pouquíssimas vezes com ele. Curiosamente, as poucas vezes em que nos vimos cumprimentávamo-nos primeiro com os olhos, por um olhar quase cúmplice, familiar também. Depois o resto eram palavras breves.

As minhas conversas com o António Telmo andavam também por aí: pessoas concretas, comentários – nunca maldosos, mas por vezes maliciosos e sempre deixando reticências que me levavam a pensar, não nos enredos e nas intrigas, mas nas pessoas e na simbologia possível dos acontecimentos em que se manifestavam. Isso, porém, eu já pensava sozinho, quero dizer em silêncio, mas parecia-me que ele se apercebia e que me deixava ficar assim. Raramente esperto (quero dizer: esperto como raros o são), perspicaz, aquele filósofo-jogador – amigo da sabedoria, conhecedor do desconhecimento, ou do acaso caso prefiram. Talvez eu lhe tenha pedido para me falar mais dele como jogador. Eu sempre apreciei pessoas para quem a sabedoria nunca está separada da vivência. É como a hipótese e a experiência na metodologia científica de Popper: anda-se entre as duas constantemente aprendendo. Se quisermos aprofundar, é como o sujeito e o objeto do conhecimento na filosofia de Leonardo Coimbra: interpenetram-se, influenciam-se e conhecem-se melhor por isso mesmo. Disse-lhe que apreciava nele a ligação do sábio e da vida, a vivência do sábio nas atividades comezinhas, aparentemente insignificantes, ou nas distrações para, aparentemente, matar o tempo. Nem nos apercebemos da importância desta frase que agora me veio aos lábios e aos dedos: matar o tempo.

Bom contador, como demonstrou no Bateleur publicado pelo Capelo, sempre falando com pausa e sublinhando com o tal sorriso irónico mas amável, em tom baixo ou moderado me contava curtos episódios locais, com traços mínimos retratando personagens. Como quando lançava chistes, eram contações que deixavam no ar qualquer coisa. Mesmo a simples nuvem que passa deixa – quantas vezes? Inumeráveis (e não pela quantidade) – sim, deixa no ar qualquer coisa. É como o Espírito. Será que ele me falou disso também? Toca e só depois de nos tocar e ter ido nos apercebemos (bruscamente?) de que passou por nós algo não definível.

Nos curtíssimos contos, alertava-me para a perspicácia, o bom jogador, o bom caçador, não têm só pontaria no gesto, mas, antes e durante, pontaria na perceção do ‘inimigo’, do ‘rival’, do ‘outro’, da ‘caça’ ou do ‘parceiro’, da ‘manha’ (falou- me da etimologia de ‘manha’ e de ‘mania’), da simulação. Será que isso acontece nas touradas? Por acaso foi comentando as touradas que me falaram pela primeira vez no António Telmo. E depois ouvi-o falar nas touradas, ao vivo recolhi essa tradição de que elas ocorrem somente em países onde há tremores de terra. Não quer dizer que há sempre touradas em países onde a terra treme, mas que sempre treme a terra nos países onde se fazem, por tradição, touradas. Como é meu hábito, joguei-lhe alguns exemplos opostos. Ele explicou-me pacientemente que eram episódicos e impostas as touradas lá politicamente, a partir de fora. Eram, de facto, eu só lhe joguei uma simulação escorregadia como todo o jogador costuma fazer para testar o adversário. Não foi nunca falta de respeito, mas sentido de que a aprendizagem é também desafio, incluindo o desafio do aprendiz ao mestre. Porém, não me considerava um aprendiz, apenas um companheiro muito novo, um miúdo, perante um mais velho bastante sábio, que eu nunca venceria fosse qual fosse o jogo – o que mais ainda me estimulava.

Fomos jogando assim na vida, esporadicamente pois era raro nos vermos. Essa brincadeira de simulações e de avanços e de recuos (esses os meus) era a nossa brincadeira. Entretanto, ele desapareceu. Alguns tempos antes, eu dizia-lhe que o sentia (depois de uma crise que teve) como se renovado, o olhar mais vivo, mais brilhante, sentia-se uma energia rejuvenescida, falei-lhe nisso acompanhando o seu passo já pouco ágil e menos vigoroso do que o do caçador. Caminhávamos naquele extenso parque de automóveis naquela tarde sem carros, em frente à Câmara de Estremoz. Havia aquela bela Igreja do lado oposto à Câmara, com a porta grande voltada para Évora-Monte (mantenham a maiúscula do meio e o hífen, por favor), e dois cafés-restaurantes onde habitualmente nos encontrávamos, à direita do parque quem viesse da Igreja e de Évora, à esquerda quem viesse de Espanha e da Câmara Municipal. Mas isto não seria simbólico para mim. Sentia só, fisicamente, um excesso de luz e pensei que fosse de estar o parque deserto e brilhar um sol esplendoroso num céu limpo.

Sabem o que ele me respondeu? Fecho com isso o meu reles depoimento, aliás de jogador eterno aprendiz porque nunca cheguei ao fim de nenhum jogo. Ele disse: “sabe, Francisco, o corpo vai decaindo, conforme a alma se torna mais ágil.” E partiu. No sentido estrito em que nunca mais o vi. Para um bom jogador, o corpo é inseparável da alma, pelo que deduzo que ela o transporta consigo e não há razão para entulharmos os ossos num cemitério.

UNIVERSO TÉLMICO. 77

16-04-2023 12:15

Da flórida flama: o figadal, a feeria, a construção do templo

Paulo Jorge Brito e Abreu

 

 

«O homem é um actor de Deus no palco do Universo.»

 

Jacob Levy Moreno

 

( dedico o meu labor à Cultura Duriense Transmontana do século XXI )

 

Qual «Homo Viator», enceto, agora, uma viagem. Tenho, na minha banca de trabalho, o «Sonho causado pelo voo de uma abelha ao redor de uma romã um segundo antes de acordar», por um homem que assina como Ferrer. E dele nós trataremos em crítica acribia. Que é dado a lume, o livrinho, por a Carava Ibérica. E em primo, primo lugar, dous pontos, agora, a salientar: o título do opúsculo é o título de um trabalho do Salvador Dalí ( Figueres, Catalunha, 11/ 05/ 1904 – Figueres, 23/ 01/ 1989 ), «no qual quadro surge uma atmosfera de fertilidade e sensualidade». Salvador Dalí, o Génio absoluto, um dos nomes mais altos da cultura espanhola. E foco sagrado e ponto segundo: é que abre, o livrinho, com um poema dedicado a Voltaire ( Paris, 21/ 11/ 1694 – Paris, 30/ 05/ 1778 ), a Voltaire, jucundamente, o «gigante de Ferney». A quem trata, Ferrer, por «mon cher frère». Me seja lícita, aqui, uma nótula, ou nota, autobiográfica: foi, Voltaire, o primeiro Filósofo que eu ledamente li. O iluminista está, para o século XVIII, como o está, Victor Hugo ( Besançon, 26/ 02/ 1802 – Paris, 22/ 05/ 1885 ), para o século XIX. Estrénua figura de Escritor profissional, Voltaire acamaradava com gigantes como Catarina a Grande ( Stettin, Prússia, 02/ 05/ 1729 – São Petersburgo, 17/ 11/ 1796 ) e Frederico II, da Prússia ( Berlim, 24/ 01/ 1712 – Potsdam, 17/ 08/ 1786 ). Escreveu, o que é obra, mais de 20. 000 cartas, escreveu, deveras, 2. 000 livros e panfletos. Utilizando, na verve, utilizando a palavra como o projéctil. E eis aqui o escopo dos livres-pensadores: eles «trabalham para dissipar as trevas / extinguir a superstição e o obscurantismo / combater os inimigos da Humanidade.» Aqui eis, na nossa opinião, a santa cruzada da Luz contra as trevas; pois Ferrer, o alumbrado e alteado, ele chicoteia a escuridão com golpes de Luz sacra. Como o fizeram, deveras, José Manuel Anes ( 21/ 06/ 1944 ), Mário Máximo ( 19/ 09/ 1956 ) e António de Macedo ( Lisboa, 05/ 07/ 1931 – Lisboa, 05/ 10/ 2017 ). Como o sentiram, também, o grado António Telmo ( Almeida, 02/ 05/ 1927 – Évora, 21/ 08/ 2010 ), o Professor Egas Moniz ( Avanca, 29/ 11/ 1874 – Lisboa, 13/ 12/ 1955 ) e António Arnaut ( Penela, Cumeeira, 28/ 01/ 1936 – Santo António dos Olivais, 21/ 05/ 2018 ). Que historicamente, o Doutor Egas Moniz foi matriciado, iniciado, na Loja Simpatia e União, em 15 de Dezembro de 1910. Se António Telmo escreveu, selecto, a «Gramática Secreta da Língua Portuguesa», António Arnaut, Poeta-Mor, é o criador, em parabém, do Serviço Nacional de Saúde. Sendo ele feitor e Autor, outrossim, de uma bela «Introdução à Maçonaria». Quanto a António de Macedo, cineasta e artista multifacetado, ele é Autor, entre outros livros, de um Ensaio Alquimístico – e falamos, e alçamos, o «Laboratório Mágico». Esta cópia de Escritores na Maçonaria, ela tem que se lhe diga: é que a linguagem dos pedreiros são as imagens e símbolos, são as metáforas e Mitos. E mencionemos, outrossim, um pensador da estirpe de Pierre-Joseph Proudhon ( Besançon, 15/ 01/ 1809 – Paris, 19/ 01/ 1865 ); foi este o primeiro Filósofo a aplicar, a si mesmo, o adjectivo de «anarquista». E eis os factos e os feitos: a 8 de Janeiro de 1847, em Besançon, é iniciado, o pensador, na Loja «Sincérité, Parfaite Union et Constante Amitié», do Grande Oriente da França. E quanto ao floreal, Ferrer não teme nanja, ele não titubeia: ele transforma o tetramorfo tabernáculo em círculo e para este círculo transfere o triângulo. O tetramorfo são as estações, são os quatro elementos, e são, ademais, os quatro querubins de Ezequiel. Como são, na cruz, os quatro pontos cardeais. Consubstanciados, todos eles, no «Tetragrammaton», ou melhor, nas quatro letrinhas, numa hebraica linguagem, do nome «Jeová». E ei-las, alfim: Yod, He, Vau, He. Sendo pois, os quatro naipes, na «Rota» do Tarot, os Paus, as Copas, as Espadas e os Ouros, sendo, das cartas, as figuras, o Rei, a Rainha, o Cavaleiro e o Valete. Averbemos, ainda, além dos quatro Evangelhos, os quatro temperamentos de Hipócrates ( c. 460 – c. 370 a. C. ): o sanguíneo, o colérico, o melancólico e o fleumático. Sendo, para os Pitagóricos, a «Santa Tetraktys», o resultado e a soma da Mónada, ou 1, com o Triângulo ou o trívio, que é o 3, e sendo 1 + 2 + 3 + 4 = 10, que é número sagrado, que é retorno à Unidade, que é a Roda da Fortuna no feérico Tarot. Já para Carl Gustav Jung ( Kesswil, 26/ 07/ 1875 – Kusnacht, 06/ 06/ 1961 ), em «Tipos Psicológicos», ele anuncia, ou enuncia, as quatro funções humanas, como sejam o pensamento, emoção, sensação e intuição. E uma vez que a Matemática é sagrada e martinista, abordaremos, aqui, os conceitos ou informes da Numerologia. Que a Matemática é a Mãe, a Matemática é sagrada, é que «Deus geometriza» segundo Platão ( Atenas, c. 428 a. C. – Atenas, c. 348 a. C. ). Seguindo e segundo o grande, grande Pitágoras ( Samos, c. 570 a. C. – Metaponto, c. 496 a. C. ), ou o áugure pítico, «a Matemática é o alfabeto com o qual Deus escreveu o Universo». Em bíblica «lectio», dirigindo-se, deveras, à Santa Sophia, nós lemos no Livro da Sabedoria: «Tu, porém, regulaste tudo com medida, número e peso.» ( Sb. 11: 20 ). É que os números, como sempre, são os Numes. Pra Pitágoras, «tudo é número.» E no pórtico da Academia platónica, podia-se ler a seguinte inscrição: «Não entra aqui quem não souber geometria.» Se o «Arquitecto», etimologicamente, é o «chefe dos operários», clama, o didacta, por a Rosa maviosa, no centro da Cruz. O Pentecostes, a Quinta-Essência, e o preste Quinto Império. Ou o Éter, deveras, para o solerte Estagirita ( Estagira, 384 a. C. – Atenas, 322 a. C. ). Ou nas palavras, aqui, do nosso Poeta: «Mas a Romã e a Rosa testemunhas são / que comigo vos não importais de partilhar o Sol». Que em numérica cifra, o 3 é sideral, e portanto universal: ele é, no Cristianismo, o Padre, o Filho e o Espírito Santo; ele é, no comento hegeliano, a tese, a antítese e a síntese; são, no razoar de Augusto Comte, os estados teológico, metafísico e depós o positivo; o 3 é, para os Hindus,  Brahma, Vishnu e Shiva; para os Alquimistas ele é o enxofre, o mercúrio e o sal, e são, na linha do tempo, o passado, o presente e o futuro. Sendo, para Sigmund Freud, o aparelho psíquico forjado, ou formado, por o Id, o Ego e o Super-Ego. Que o ternário está visível nas várias trilogias da Maçonaria: Liberdade, Igualdade e Fraternidade; Sabedoria, Força e Beleza; Tolerância, Solidariedade e Progresso. Tudo isso através das três virtudes: Fé, Esperança e Caridade. Liberdade, Igualdade e Fraternidade: o criador deste lema foi Étienne de La Boétie ( Sarlat-la-Canéda, 01/ 11/ 1530 – Germignan, 18/ 08/ 1563 ), amigo de Montaigne ( Castelo de Montaigne, 28/ 02/ 1533 – Castelo de Montaigne, 13/ 09/ 1592 ) e colaborador, beletrista, de Michel de l’Hôpital ( Aigueperse, 1506 – Boutigny-sur-Essonne, 13/ 03/ 1573 ). E não esqueçamos, ademais, o egípcio, que é o «gipsy»: Osíris, Ísis e Hórus eles são, na alegoria, uma Alquimia do Verbo. Quero eu aqui dizer: o Pai, que é o 1, se une à Mãe, que é o 2, e o 3 é logo o filho, a criança, a soma, criacionista, do 1 com o 2. Em Numerologia, o 3 é a cifra da criatividade, o 3 é o símbolo da comunicação. O 3 é, como muito bem aduz o feérico Ferrer, o degrau, pitagórico, da celeste perfeição. Correspondendo, o 33, a uma grande, grande Luz, ao grau máximo, dessarte, na Maçonaria, que é ocupado, deveras, por o Soberano Grande Inspector-Geral. Em pitagorismo, o 33 simboliza o alumbramento espiritual, o grande criacionismo e a busca da perfeição. Se caracteriza, no cor, o 33, por a harmonia, o Amor, a feraz fecundidade. O 33, regra geral, é artista em hombridade, ele vive, e labora, para o bem da Humanidade. «Verbi gratia», aqui, deveras e na verve: Maria Azenha, Poetisa Portuguesa e mística, de facto, foi nada em Coimbra, cidade doutora, a 29 de Dezembro de 1945. E somando, então, os dígitos, nós temos, dessarte: 2 + 9 + 1 + 2 + 1 + 9 +4 +5 = 14 + 19 = 33. Ou seja: o 33 é o número kármico da nossa Poetisa. E todos os múltiplos de 3, no Pitagorismo, são concernentes, e atinentes, às Belas-Artes e Belas-Letras. A talho de foice, nasceu em 24 de Janeiro de 1923, em Viana do Castelo, o encenador e o Poeta António Manuel Couto Viana; foi nado, a 18 de Abril de 1842, o Poeta e Filósofo Antero de Quental; nasceu para o Verbo, em 12 de Setembro de 1937, Maria Teresa Rita Lopes, a augusta Pessoana; veio ao mundo, Voltaire, a 21 de Novembro de 1694; e foi nado, para o Espírito, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, a 27 de Agosto de 1770. A 6 de Janeiro de 1949, é nado, no Porto, José Pacheco Pereira; e vê a luz do dia, Pierre Janet, a 30 de Maio de 1859. E 6 + 9 = 15: nasce em 15 de Setembro de 1765 o beletrista, o bargante, o Poeta Bocage; a 15 de Setembro de 1961, é nado, nitente, para uma grande, grande Luz, o Historiador, o Poeta Carlos d’Abreu. Nascendo, em 15 de Setembro de 1850, em Freixo de Espada à Cinta, Abílio Manuel Guerra Junqueiro, o bastião, abençoado, do livre-pensamento. E pra findar com chave de ouro: se nasceu, a 30 de Março de 1844, o Poeta Verlaine, veio ao mundo, o Van Gogh, a 30 de Março de 1853, Artur Cruzeiro Seixas foi nado, para a Luz, a 3 de Dezembro de 1920, e eis a messe, e a missão, de nossos progredimentos. E agora, levemente, «last but not least»: o Padre Manuel Antunes, um dos espíritos mais cultos do século XX português, foi nado, de boamente, na Sertã, a 3 de Novembro de 1918. Dêmos agora, ao Poeta, a voz e a vez: «E o número 3 caracteriza o grau de Aprendiz ( idade de 3 anos; 3 degraus que sobe em direcção ao Oriente; 3 viagens à volta do templo; 3 pontos pelos quais se fazem reconhecer os obreiros; 3 toques; tríplice abraço… ), logo, se no 3 estão contidos todos os números, no grau de Aprendiz estarão contidos os outros graus.» Começando no ministério e acabando no magistério, os graus e os degraus eles são, de feito, 3: o Aprendiz, o Companheiro e o Mestre sagrado. Sendo, esse Magíster, o magnânimo, o Mago e o magnificente. Sendo, essa Magia, a Agricultura Celeste e a Gaia Ciência. Temos visto e hemos de ver: ao contrário do que se crê, os «maçons» não são ateus, nem assassinos, tampouco: eles são, no caroal, os construtores das catedrais. Eles são, deveras, descendentes de Hiram, o construtor, e Arquitecto, do templo salomónico. E se o foro do Vaticano é uma Arte Sacerdotal, apanágio da Maçonaria é portanto uma Arte Magna, ou, melhor dizendo, uma Arte Real. Averbemos, aqui, uma «Arte Régia», de 1987; António Cândido Franco seu feitor, fautor e Autor. E curiosamente, nos «Vasos Comunicantes», Mário Máximo deu a lume, em 1998, a «Arte Real». Nos séculos XX e XXI, António Cândido Franco, Mário Máximo e Carlos d’Abreu – e aqui eis a trindade, eis o trívio sagrado da Poesia Portuguesa. Em lhaneza, agora, de chão plano: meditando, ou matutando, sobre o «Solstício de Inverno», profere, e professa, o fantástico Ferrer: «ou a passagem do passado ao futuro que é um / instante imaginado / era jano celebrado / e solenizado nos dias solsticiais / pelos do grémio construtores / costume e rituais estes herdados / pelos seus pares medievais». E «Jano» está ligado, etimologicamente, ao «mensis Ianuarius», pois sendo o deus dos começos, assinala a passagem de um ano para outro, «e não há luar como o de Janeiro / nem amor como o primeiro». De sublinhar e alçar: no calendário maçónico, ele há, deveras, duas datas festivas: a de São João Baptista, memorada a 24 de Junho, e a de São João Evangelista, assinalada, selectamente, a 27 de Dezembro – e elas correspondem, simbolicamente, ao Solstício de Verão e ao Solstício de Inverno. Prosseguindo, aqui, na feérica faina: o Pentáculo Flamejante é marcado, no centro, por a letra «G». E em maçónica, ou tónica, simbologia, o «G» tem vários significados: «God», «Gnose», «Génio», «Geometria», «Geração», e eis aqui a «Geia», a «Geórgica», a «Gaia Ciência». Voltando, qual Voltaire, à carga: é o Grande Arquitecto do nosso Universo, ele é, no Arcano, o Grande Oriente Lusitano. Que a acácia é a signa, o nome é o símbolo, o número é a senha: nas mãos do «maçon», a pedra peca, tosca e bruta deverá ser tornada na cúbica pedra. E, pra melhor compreendermos a Arte Magna, leiamos, no Antigo Testamento, em I Reis, 7: 21: «Depois, levantou as colunas no pórtico do templo; e, levantando a coluna direita, chamou o seu nome Jaquin; e, levantando a coluna esquerda, chamou o seu nome Boaz.» Se a letra «J», à direita, é a inicial de «João», é, a letra «B», à esquerda, o início de «Baptista». Ou melhor: se a palavra «Jerusalém» começa por um «J», começa, «Belém», por o «Beth» ou o «B». Sendo, o mesmo «B», a inicial, iniciática, de «Bereshit», que significa, em hebraico, «No princípio». É com esta palavra que começa, quer o «Génesis», quer, outrossim, o «Evangelho de São João». O simbolismo de São João é pois o seguinte: com Jesus se dá uma nova Criação, que nos faz nascer, deveras, como filhos de Deus. E «Beth» é, outrossim, a letra primeira da palavra «Baruch», que significa, no hebraico, «abençoado». Sendo «Belém», etimologicamente, no hebraico «Bethlehem», a «Casa do Pão». E quem dá o Pão, dá, deveras, a edule educação. Uma nótula, aqui, de natura enciclopédica: Erasmo substitui «In principio erat Verbum» por «In principio erat sermo». Me seja permitido o à parte seguinte: eu escrevo em Portugal, que é o Porto do Graal, e a Lusitânia, por isso, é uma citânia de Luz. E três Presidentes da Primeira República, como sejam Bernardino Machado ( Rio de Janeiro, 28/ 03/ 1851 – Porto, 29/ 04/ 1944 ), Sidónio Pais ( Matriz, Caminha, 01/ 05/ 1872 – Lisboa, 14/ 12/ 1918 ) e António José de Almeida ( Vale da Vinha, 27/ 07/ 1866 – Lisboa, 31/ 10/ 1929 ), pertenciam, adrede, à Ordem Maçónica. Sidónio Pais foi barbaramente assassinado, na Estação do Rossio, por José Júlio da Costa. Indo, no tempo, mais atrás, a Revolução Liberal de 1820, ou seja, o Vintismo, tem o seu «fons et origo» na Loja Sinédrio, fundada no Porto, em 22 de Fevereiro de 1818. E graças, no lance, ao Liberalismo, foi só a 31 de Março de 1821 que as Cortes Constituintes decretaram a extinção da Inquisição, quero eu dizer, do Tribunal do Santo Ofício. E mais, ainda mais: a 7 de Setembro de 1822, deve o Brasil, sua independência, a D. Pedro IV, o Mestre Maçon ( Palácio de Queluz, 12/ 10/ 1798 – Palácio de Queluz, 24/ 09/ 1834 ). Cognominado, na História, «o Rei Soldado» ou «o Libertador». Sendo obra, outrossim, dos Mestres Pedreiros, a liberação, lilial, da escravatura. Nesse dia 7 de Setembro, D. Pedro, junto ao riacho do Ipiranga, ao saber que a Corte Portuguesa programara uma acção militar contra o Brasil, profere, ferino, o seu grito: «Independência ou morte!» E daí a expressão, que se tornou proverbial, «dar o grito de Ipiranga». Politicamente, e historicamente: com o nome de Guatimozin, último Imperador Asteca morto em 1522, a 2 de Agosto de 1822 é iniciado, na Loja Comércio e Artes, o Príncipe Regente; 3 dias depós, a 5 de Agosto, é aprovada a sua elevação ao Grau de Mestre Maçon, o que possibilitou, a 4 de Outubro de 1822, ele ser eleito e empossado no múnus de Grão-Mestre do Grande Oriente do Brasil, na qualidade de substituto de José Bonifácio; esta a hombridade, e a histórica verdade. Em parentético escólio, D. Pedro IV é associado, selectamente, ao simbolismo do 3: é que ele foi nado, no Palácio de Queluz, a 12 de Outubro de 1798, e 3 x 4 = 12. Manifestação, liberal, do Espírito Absoluto, é, em 4 de Julho de 1776, a independência, a aurora, o arrebol, dos Estados Unidos da América. Sendo aqui, irmãos pedreiros, Thomas Jefferson ( Shadwell, Virginia, 13/ 04/ 1743 – Charlottesville, Virginia, 04/ 07/ 1826 ), George Washington (Popes Creek, 22/ 02/ 1732 – Mount Vernon, 14/ 12/ 1799 ),  e, de facto, o Benjamin Franklin ( Boston, 17/ 01/ 1706 – Filadélfia, 17/ 04/ 1790 )… Este último experto na polimatia, este último um espírito veramente enciclopédico. Ingressando no Templo apoiado no braço de Benjamin Franklin ( ele era, na altura, embaixador em França dos Estados Unidos ), iniciado foi Voltaire, a 7 de Abril de 1778, na Loja, parisina, «Les Neuf Soeurs». Na hora, figadal, do seu desencarne, aos 30 de Maio de 1778, recebe, o filósofo, a visita de Franklin, que trazia, consigo, o neto, pela mão. Pedindo a Voltaire que abençoasse a criança, assevera o patriarca, pousando então a mão sobre a sua cabeça: «Deus e Liberdade». E coligimos, no «quid», e trazemos, aqui, à colação: o Grande Selo dos Estados Unidos da América, impresso e expresso nas notas de 1 dólar, contém, deveras, vários símbolos maçónicos, tais como o desenho da pirâmide oculta da Maçonaria e cujo vértice é o olho da Providência, o olho que tudo vê. E prosseguindo, no feito e na freima, quando falamos da Maçonaria, não mencionamos uma «doxa», mas antes, e sobretudo, uma «práxis». Se a «doxa», então, são os juízos e as ideias aceites e acatados por uma maioria, a «práxis» é a acção, é a acção ordenada para um fito e um fim. A «práxis» é, na Obra marxiana, o conjunto de práticas que permitem ao homem o transformar o mundo. «Verbi gratia», em «Teses Sobre Feuerbach», mais particularmente na Tese XI, não basta, ao filósofo, interpretar o mundo, é preciso, doravante, transformá-lo. «Mudar a vida», de Rimbaud ( Charleville, 20/ 10/ 1854 – Marselha, 10/ 11/ 1891 ), e o «transmudar o mundo»: para o feérico Ferrer, estas duas palavras de ordem são apenas uma só. E por isso ele é flamante, ele é prolixo, dessarte, até à pletora. E é aqui que se adunam, os livres-pensadores, com os anarco-comunistas, e eis aqui Voltaire e a vasta Enciclopédia. Se os livros, deveras, são os livres, falaremos, então, de uma «ortopráxis maçónica»: eis a «prática correcta», a escorreita, no feito, e a recta rectidão. O ver, em cada mação, o livre-pensador e o Filho da Viúva. Sempre em busca, o companheiro, da Palavra Perdida. Do Reino de Deus afiliado na Terra. E se a alegoria é prática outra, e se o inconsciente ele é, na verve, o discurso do Outro, nós visamos a acracia, divisamos, em Ferrer, uma heterodoxia. Porquanto ele escreveu, numa estética tese: «Ora, harmonizar em mim ortopraxis com ortodoxia, não será tarefa fácil.» Erro crasso é escrever a seguinte calinada: que Voltaire era ateu, e materialeiro. Em vez disso, ó didacta, ele professava o deísmo. A prová-lo, ó ledor, está o dístico seguinte: «L’univers m’embarrasse, et je ne puis songer / Que cette horloge existe et n’ai pas d’horloger». Ou melhor: a lei moral é autónoma, ou então autoritária. E concordamos, caroal, com o feraz Sampaio Bruno ( Porto, 30/ 11/ 1857 – Porto, 11/ 11/ 1915 ), que foi o firme fundador da Filosofia Portuguesa: se se regiam, os tempos de outrora, por a letal autoridade, é tempo agora, pra nós outros, da solerte Liberdade. Como vemos, por a sua data natal, o Autor de «A Ideia de Deus» é plasmado, marcado por o número 3. E diz e aduz o Pinharanda Gomes ( Quadrazais, Riba-Côa, 16/ 07/ 1939 – Loures, 27/ 07/ 2019 ): não é tradição, em Portugal, o ignorar, ou verrinar, o nome de Deus: isso equivale, ó ledor, isso equivale a um acto de analfabetismo. Concordamos, deveras, com o arguto Francis Bacon ( The Strand, Londres, 22/ 01/ 1561 – Highgate, 09/ 04/ 1626 ): se um pouco de Filosofia conduz o homem ao ateísmo, o leva, a muita Filosofia, a acreditar, perene, em Deus. O feraz, luciferino Fernando Pessoa ( Lisboa, 13/ 06/ 1888 - Lisboa, 30/ 11/ 1935) é Autor, curial, do comento seguinte: as palavras, e as lições, do Novo Testamento, a serem tomadas, deveras, à letra, são elas, francamente, simplesmente anarquistas. Como está consignado nos «Actos dos Apóstolos», o comunitarismo, ou a comunhão de bens, eram apanágio dos primeiros cristãos. Que afirma, deveras, infere e afiança o Santo Agostinho ( Tagaste, Numídia, 13/ 11/ 354 – Hipona, Numídia, 28/ 08/ 430 ): «Nenhum cristão deve ser mercador.» São Basílio de Cesareia ( 329 – 379 ), afamado e estimado Doutor da Igreja, vai mesmo ao ponto de asseverar: «O dinheiro é o esterco do Diabo.» Veja-se em Act. 2: 44, 45: «Todos os crentes viviam unidos e possuíam tudo em comum. Vendiam terras e outros bens e distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada um.» Cotejemos, agora, com Karl Marx ( Trier, Alemanha, 05/ 05/ 1818 – Londres, 14/ 03/ 1883 ), in «Crítica ao Programa de Gotha»: «De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades.» E, como se vê, a diferença não é muita. E como infere o Autor do «Dicionário Filosófico»: «Quando se trata de dinheiro, todos professam a mesma religião.» Ora isso plasma, em termos marxistas, o feiticismo, ou fetichismo, da mercante mercadoria. Num edital datado de 24 de Setembro de 1770, o referido Dicionário é mandado queimar, na Praça do Comércio, por o Marquês de Pombal ( Lisboa, 13/ 05/ 1699 – Pombal, 08/ 05/ 1782 ), e eis a pena, percuciente, da despótica Polícia. E diga-se, aqui, a vera verdade: no tempo em que vicejou o Poeta Bocage ( Setúbal, 15/ 09/ 1765 – Lisboa, 21/ 12/ 1805 ), o Grande Inquisidor ele era, no lance, Diogo Inácio de Pina Manique ( Lisboa, Santa Catarina, 03/ 10/ 1733 – Lisboa, Anjos, 01/ 07/ 1805 ), e eram, suas «moscas», o terror e o castigo dos infrenes jacobinos. E avante vamos na vitória. O fim do livrinho do fantástico Ferrer é sagrado, e consagrado, ao símbolo da Romã. Invertendo, do sintagma, as letras, nós ficamos com «Amor». E, tirando o til ficamos nós, rapsodo, com «Roma». Ou, se preferirmos, com «Ramo». Não alembras, ó ledor, «O Ramo de Ouro», «The Golden Bough», por James George Frazer ( Glasgow, Escócia, 01/ 01/ 1854 – Cambridge, Inglaterra, 07/ 05/ 1941 ) ? Acatando, na cita, Miriam Assor, a Romã é o «símbolo da unidade entre os maçons, separados na sua individualidade e personalidade mas unidos por um ideal comum.» Atributo de Hera e de Afrodite, na antiga Grécia, a romã é um símbolo de fecundidade, de numerosa e copiosa posteridade. E os sacerdotes de Deméter, em Elêusis, no decurso dos Mistérios, coroavam-se, deveras, de ramos de romãzeira. Designando essa romã, na lírica Poesia, as pomas da mulher. E trago, à colação, duas adivinhas: «Sou rainha, com orgulho, / A dizê-lo não me escuso; / E a prova do que afirmo / Está na coroa que uso.» Ou estoutra, inda mais bela: «Às direitas, sou cidade; / Às avessas, sentimento; / Sou fruta bem saborosa, / Com um til por acrescento.» Mas citemos, feérico, o Ferrer, é dele, dessarte, a voz e a vez: «Estamos então na presença da ROMÃ! Fruto da romãzeira, árvore de pequeno porte, quase arbustiva, com a designação científica de «Punica Granatum» atribuída pelo famoso botânico alemão Lineo, pertence à família das Punicáceas e é cultivada desde a Antiguidade, sendo originária da Pérsia, encontrando-se na actualidade distribuída por todo o Mediterrâneo e um pouco pelo Mundo.» Continua o Poeta, socorrendo-se, agora, da Filologia: «romã» deriva da língua árabe «ruman» e é conhecida, no nosso Portugal, por «romeira», «milagreira», «milgranada» ou «milgrada», e, no Douro Transmontano, por «amerigada», cuja casca é usada, em infusão, qual remédio para a «soltura». Para signarem a romã, dizem, os castelhanos, «granado», nominam, os franceses, «grenadier», falam, os ingleses, «pomegranate», os italianos, «melograno», os galegos, «miligrandeira» e os tudescos, alfim, «granatapfel». Provindo, o «granatum», da grande quantidade, da abundância de grãos. A cópia, por isso, das suas sementes a liga à fecundidade, à celebração da vida, à abundância forte e fértil. Sendo a Roma a sideral. Sendo, a «romãzeira», o anagrama de «amorzeira». Que ela medra, ela cresce, para o Islame, nos jardins do Paraíso. Por Magia simpática, na Índia, as mulheres casadas bebem o seu sumo, assegurando, assim, a feraz fertilidade. E em rito lilial do povo português, é manducada, a romã, na festa da consoada e, também, no Dia de Reis, são os votos, bem-querentes, da prosperidade, do feliz Ano Novo. E como os arcanos são veramente universais, mencionemos as Artes Plásticas: de Sandro Botticelli, «Nossa Senhora da Romã», e, de Leonardo da Vinci, «Nossa Senhora e o Menino com uma Romã». E «last but not least», o simbolismo maçónico: cada uma das colunas do Templo iniciático ( quero eu dizer, a Jaquin e a Boaz ), é encimada, selectamente, por um conjunto de três romãs. Querem, os Iniciados, re-apresentar: se a romã mantém unidos os seus multíplices grãos, mantém coesos, a «ecclesia», os seus muitos maçons. É tempo, agora, de findar. Por Pessoa nós sabemos que a Tradição Secreta do Cristianismo tem íntimas relações com a Santa Kabbalah, com a oculta essência da Maçonaria. E para António Arnaut, que já citámos, «não há nenhuma incompatibilidade entre a fé católica e a Maçonaria. Jesus Cristo teria sido iniciado nos Mistérios Essénios, que são uma das raízes ancestrais da Maçonaria.» Da Maçonaria ligada, em Portugal, à Ordem da Milícia dos Cavaleiros do Templo. Que é tempo, agora mesmo, da evolução. É tempo, assim o queremos, da Revolução.

 

Tomar, 06/ 04/ 2023

 

SPES MESSIS IN SEMINE

 

CENTRO DE LITERATURA E FILOSOFIA COMPARADAS

 

PAULO JORGE BRITO E ABREU

CORRESPONDÊNCIA. 60

16-04-2023 11:47

Carta de Max Hölzer para António Telmo, de 8 de Abril de 1977

 


Le vendredi saint  77

Mon cher ami António Telmo :

Votre lettre qui m’a trouvé tout ouvert et ému −, malgré mon désir d’y répondre immédiatement, est restée trop longtemps sans réponse ; étant trop absorbé par des problèmes quei concernent aussi ce dont vous me parlez. Je crois que je vous comprends bien, et bien que l’opposition entre absence et présence extérieures cache autre chose, nous – je dis nous, puisque là se joue la « relation » principale – sommes dans un stade qui nécessite beaucoup d’observation sincère et de patiente. Une patiente qui semble être en contradiction avec l’urgence… La chose principale, entretemps, devrait être de « libérer » toujours de  nouveau cet inconnu qui vit en nous, de le libérer sans cesse de tout ce qui le lie à ce que nous, « connaissons », de ne pas le réduire ni aux jugements, aux « certitudes », aux « faits », de ne pas le laisser subir nos attractions « volubles », même spirituelles. Contentons-nous maintenant de nous retourner  vers nous-mêmes autant de fois qu’il est possible et de le constater en nous cette présence inconnue, innommable [?] – qu’elle puisse croître. Observons comment se font ces monuments (hors de penser), attenons entre ce qui nous « engage » vers « l’extérieur », tout ce qui crée en nous des pensées, associations, sentiments, jugements, et cette présence véritablement mystérieuse. – Toute vraie connaissance que nous pourrions avoir un jour, dépend de la croime faisait sentirssance, du contact avec elle qui reste inconnue et innommé.

− Hélas, ici je fus interrompu, et pris [?] de moment de continuer.

Les phénomènes que vous décrivez et mentionnez on pourrait les lier à une certaine attente – justifiée, comme je le crois − . Mais ils sont aussi autant de tentations : lisez, dans cette perspective, certaines paroles de l’Evangile. Vous connaissez aussi le mot dans le Bouddhisme : «  si vous apparaît un Bouddha, touchez-lui la tête ! » L’engagement, si je puis dire, comme chercheurs « futurs » que nous voudrions être, se situe dans une profondeur qui exclue de pouvoir s’appuyer sur de tels « faits » (ou « non-faits ») – sauf de pouvoir être en face d’eux avec une attention spéciale développée auparavant.

c’est un peu la même chose avec des expériences personnelles qui nous attirent (et que nous ne pouvons pas encore situer). Tout dépend du commencement juste ; et de notre désir inextinguible – d’ « être » (mais c’est inconnu…).

(− Peut-être le présage de Virgile, qui résiste? – Mais qui est alors Aristée ? Eurydice ? – Sommes-nous tous − Orphée  −?) – L’épisode d’Orphée a d’ailleurs remplacé un autre, l’éloge d’un gouvernement tombé en disgrâce…).

De tout cela, nous devrions parler – ou « simplement » évoquer les choses en étant ensembles…

Ce que je disais en haut, n’est valable que pour nous. – N’est-il pas significatif que ce n’est pas à vous que se sont montrés [sic] les apparitions ? Je ne plaisante pas.

(Une indication, peut-être utile, encore : ce « rappel » n’est pas du tout une sortie du corps, mais le contraire. Là commence l’expérience et « l’expériment » [sic] – et tout est à découvrir à partir de cela – « corps » ; relation etc. etc.) – la nature de l’attention…)

 

−Je vais terminer ces lignes deux semaines ! après les avoir commencé. Je ne cessais de réfléchir sur nos possibilités.

Je me propose de venir chez vous autour de Pentecôte. Je ne sais pas si cela me prend trop de temps – mais je pensais souvent d’entrer au Portugal via Badajoz et de venir vous voir à Borba. Dites-moi franchement ce que vous pensez. Seulement il serait nécessaire d’organiser : 1º une rencontre ou même deux avec nos amis Francisco et Carlos S. à Lisbonne. 2º une conférence publique ou semi-publique sous la « protection » de quelque organisation qu’elle soit prête à laisser le faire dans son cadre : il y a certainement ces institutions culturelles comme une  «Uranie » ou quelque cercle de « formation », ou un séminaire. Réfléchissez-y, le temps n’est pas long, mais faites-le, quelque aide vous viendra si vous êtes ouvert et sans préjugés. Titre : la signification de l’ésotérisme dans notre temps. (Peut-être il y a même un intérêt chez « Gulbenkian » ?) –

La pensée de revenir et vous revoir m’emplit d’une vibration joyeuse.

Je vous embrasse amicalement   –   Max[i]

Tenez s.v.pl. les autres amis au courant du projet ![ii]



[i] É quase ilegível, mas mais provavelmente será o nome próprio.

[ii] Escrito na vertical, na margem lateral esquerda da última página.

 

INÉDITOS. 105

16-04-2023 11:27

História Secreta de Portugal, o mais célebre livro de António Telmo, tem ele mesmo uma história que pode igualmente ser considerada secreta, no sentido de que somente o estudo do espólio do filósofo permitirá esclarecer – pelo menos em parte – o correspondente processo de gestação e de desenvolvimento da obra. Em O Horóscopo de Portugal e escritos afins (Volume VII das Obras Completas de António Telmo, publicado pela Zéfiro em Junho de 2017), haviam já sido dados à estampa alguns escritos inéditos contemporâneos da História Secreta e que revelavam afinidades com a sua ideação; em História Oculta de Portugal precedida de No Meio do Caminho da Vida e Os Meus Prefácios (Volume VIII das Obras Completas de António Telmo, publicado pela Zéfiro em Dezembro de 2017) foi a vez de se publicar uma grande parte dos materiais de uma primitiva versão da História Secreta, então ainda com o título História Oculta de Portugal. De natureza fragmentária e organização conjuntural, do conjunto então dado a lume só se deixou de fora os escritos que escassa diferença patenteavam com as versões definitivas, consagradas no livro de 1977, bem assim como um outro – “A inveja como agente da degenerescência espiritual” – revelando uma versão levemente diferente, e de resto inacabada, da que veio a ser escolhida.   

O conjunto de textos que agora se dá à estampa – que quase esgota o conteúdo de um dos proverbiais cadernos manuscritos de Telmo, em cuja capa o filósofo, à guisa de indicação, escreveu: “Serve / A “inveja” e os leonardinos” – vem alargar o nosso conhecimento do processo criativo da História Secreta de Portugal. Será publicado no próximo número (o 32) da revista NOVA ÁGUIA, a sair no próximo Outono.

Destinavam-se todos esses textos a um capítulo da obra – intitulado “Os leonardinos” – que a sua versão final, como se sabe, não viria a contemplar. Enquanto a História Oculta de Portugal, pelas referências que se surpreendem no seu texto introdutório, nos remete para o palco das eleições presidenciais portuguesas de 1976, realizadas no mês de Junho, um dos textos agora publicados faz menção à coincidência de Portugal e Espanha terem primeiros-ministros homónimos: Mário Soares e Adolfo Suárez, respectivamente. Esse texto não deverá, assim, ter sido escrito antes de Julho de 1976. Deste ponto de vista, representará possivelmente um estádio mais avançado da elaboração da obra. Com efeito, se entre os materiais da História Oculta se encontra um plano do livro, aliás manuscrito por Orlando Vitorino, que não vai além da 2.ª Parte – Os Sacerdotes (uma clara antecipação do que, na História Secreta, virá a ser o ciclo do clero), do caderno sobre os leonardinos resulta um novo plano da obra, tendencialmente completo e já bem mais próximo do que virá a ser o ser o seu índice final:    

 

«Introdução

Em seu trono entre o brilho das esferas

 

Ciclo dos Reis

 

I

Santa Maria de Belém

Volve a nós teu rosto sério,

Princesa do Santo Graal!

 

II

A Iniciação de Nicolau Coelho

Na Cruz morta e fatal

A Rosa do Encoberto.

 

[III]

O Barco

 

IV

A Fonte dos Gamos  

Em baixo, onde a terra é, o pastor gela, e a flauta

Cai-lhe, e em êxtase vê, à luz de mil trovões,

O céu abrir o abismo à alma do Argonauta.

 

V

A Poesia de Amor de D. Dinis  

Na noite escreve um seu Cantar de Amigo

 

 

Ciclo dos Sacerdotes

 

VI

Luís de Camões

                        Abria em flor o Longe, e o Sul sidério

Splendia sobre as naus da iniciação.

 

 VII

António Vieira

 

           

Ciclo do Povo

 

VIII

O Brasão (Guerra Junqueiro)

 

IX

Fernando Pessoa

A Europa jaz, posta nos cotovelos…

 

X

Teixeira de Pascoaes

 

XI

Os leonardinos

Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.

Senhor, falta cumprir-se Portugal!

 

XII

O Fim

O mostrengo que está no fim do mar

Na noite de breu ergueu-se a [voar]»

 

A intenção de adoptar para a epígrafe de cada um dos capítulos do livro versos de Mensagem, de Fernando Pessoa, anunciada no texto sobre o poeta que integrava a História Oculta de Portugal (cf. História Oculta de Portugal precedida de No Meio do Caminho da Vida e Os Meus Prefácios, p. 253) releva aqui um grau de concretização deveras apreciável. O diálogo do “caderno dos leonardinos” com a História Oculta e com os textos afins da História Secreta é, de resto, bastante assinalável e fecundo. Assim, o escrito intitulado “Homens sem sono” e incluído em O Horóscopo de Portugal e escritos afins conhece interessantes desenvolvimentos numa das presumíveis variantes de “Os leonardinos”. Também o sentimento de inveja (com a sua etimologia e a sua psicologia) ou a ideia de uma inversão dos pólos, já abordados nos materiais da História Oculta, conhecem nesse caderno reformulações não isentas de diferença ou novidade. Por muito que Telmo, em “Os leonardinos”, se distancie do profetismo, a sua proposição de que a revolução de 25 de Abril de 1974, por enfim ter dado curso ao socialismo em Portugal, seria, segundo uma rigorosa lei histórica que o filósofo enuncia, o prenúncio do fim desta corrente mental na Europa e no resto do mundo, não deixará de impressionar o leitor ciente ou recordado do que, no final da década seguinte, sucedeu na Europa Central e de Leste…     

 

Os leonardinos

 

Se a saudade é o sentimento que nos caracteriza como povo criador, parece ser a inveja o factor mais evidente da nossa degenerescência mental. António Vieira, que foi uma das suas nobres vítimas, considerava-a o vício nacional. A inveja não é um vício, mas a energia torva da vontade. Assim, em francês, o étimo latino evoluiu para envie, que significa desejo ou vontade, mas onde se perdeu ou se não ganhou, como em português aconteceu, a relação da palavra com o sentido da vista. Popularmente, a inveja é o mau olhado. Invejar é não querer ver ou não poder ver, por se nos tornar insuportavelmente dolorosa a evidência do valor alheio.

A inveja encobre-se. É um sentimento “pálido”, como escreveu Virgílio. Não se manifesta violentamente como o ódio. Disfarça-se. Reclui-se na intimidade sofredora e, se o invejoso não chega a adquirir uma nítida má consciência de si, é porque actua sempre em nome da justiça, de valores pseudo-cristãos como a igualdade, proclamando que não está certo que uns sejam mais do que outros, opondo-se até à existência do outro, só porque este é uma diferença, defendendo a vida grupal em massas e legiões e partidos, construindo

 o socialismo no mundo, como ainda há bem pouco tempo observou o Bispo do Porto.

O seu encobrimento vai até ao ponto de simular uma admiração sincera, de simular para si próprio também, em relação a certos valores inegáveis, mas obedece, na escolha desses valores, a uma tónica secreta que tem por fim esconder aos seus olhos e aos olhos de toda a gente o valor que verdadeiramente gostaria que não existisse. Assim, se eu posso ocasionalmente admirar um Heidegger, longe na Alemanha, ou um Duns Scoto, longe no tempo, não suporto que o meu vizinho, o meu próximo, o meu compatriota, seja um filósofo de prestígio. Pela inveja se explica assim a subserviência dos portugueses para com os estrangeiros e para com os mortos.

“Quem ao pé do invejoso morou, nem ele medra nem o invejoso medrou”. A inveja, que é coisa da vista, só actua a uma certa distância. Deus foi morto em Cristo, porque em Cristo se tornou visível. O invejoso não suporta a evidência do outro: desvia o olhar. Mas para olhar e lançar a energia torva da vontade precisa de ter a vítima próxima, distinta, circunscrita. Só há um processo de fugir ao olhar mortífero: a fuga.

Sampaio Bruno escreveu um dia que era um exilado na sua Pátria. Nela viveu tanto quanto pôde como um “encoberto”.

Mas o homem verdadeiramente distinto, insuportavelmente visível, foi Leonardo Coimbra. O que espanta, neste espírito, é que ele foi imediatamente espírito. Não se lhe conhece mestre visível, e talvez por isso mesmo fundou e criou uma escola de filosofia, que haveria de assumir, neste fim de ciclo, em que a inveja parece ter consumado a sua obra, a missão de tornar evidente o que, até então, estava oculto e oculto marcou os homens e a sua história. A filosofia de um povo só aparece no termo da vida desse povo: “a ave de Minerva só voa ao anoitecer”.

Nem Leonardo Coimbra, nem os seus discípulos, com excepção talvez de Agostinho da Silva, se caracterizam pela profecia. Não confiam a demonstração da verdade à História. Dizer que a História ou o tempo de tudo decidem, ou na forma inferior que consiste em classificar uma doutrina da falsa porque não é actual e está ultrapassada pela experiência pela experiência dos homens e do seu espírito, ou na forma superior, a de Bruno, por exemplo, que vê no tempo o próprio Espírito Santo, pode ser um dos caminhos de progresso especulativo, mas fecha as portas a qualquer tentativa individual de exercer a liberdade do pensamento ou de livremente aderir ao que foi pensado pelo espírito vivente, de uma vez para sempre, em qualquer ano da vida do mundo. A história modificará a face do homem; todavia, ele continua, “por mais que a ciência a inútil gleba lavre”, e “a religião viva o sonho do seu culto”, a ser um mistério para si próprio, o mundo e a própria ciência e a própria religião continuam a ser um mistério, de tal modo que o silogismo poético de Fernando Pessoa deveria ter antes esta conclusão: procura e crê porque tudo é oculto.

Caminho de progresso especulativo sim, mas nunca uma artimanha do “espírito que nega”, da inveja para dissuadir o homem, enquanto indivíduo, de pensar. É incrível como há tanta gente que se deixou convencer de que vivemos num mundo sem mistério e que a solução dos nossos problemas depende do tempo ou da evolução da ciência, como se alguma coisa se soubesse do germinar da semente ou do eclodir da ideia que não reclame sempre de novo a actividade “criacionista” do pensamento. Se eu tenho a intelecção das coisas “em potência” é no sentido de que essa potência passará a acto em qualquer momento do tempo. Não se compreende uma ciência definitivamente encerrada em letras ou números, sem que eu, enquanto sujeito de intelecção, eu e mais ninguém por mim, possa movimentá-las em ideias e restituí-las ao espírito. A letra em si nada significa. É o espírito, tornado activo e vivente, que lhe dá sentido.

Todavia, só o espanto e outros demónios análogos da inspiração teorética podem suscitar em mim a vida do pensamento, isto é, desencadear em actos livremente elaborados a potência de ser, aparentemente morta que tenho em mim. Por isso, a inveja, o espírito que nega procura, por todos os modos, evitar que os homens se espantem, admirem e venerem o que lhes é superior. Há formas da alma que provocam a descida do espírito, mas que, por sua vez, só se produzem ou pela acção mecânica dos vários alucinogénios ou pela reflexão superiormente orientada por um mestre exterior ou interior! Homens tem havido que têm orientado a reflexão dos outros homens no sentido de criar um estado de alma onde se espelha um mundo sem mistério ou segredo, para ser vencido, na sua cenobita inviolabilidade pétrea, pela vontade ou pela astúcia. É que, uma vez petrificado o mundo pela nossa maneira de o olhar, logo ele surge como uma enorme, imensa massa impenetrável, indiferente no seu majestático movimento sem alma à nossa vontade de o possuir. Assim o diabo cai na própria ratoeira que armou.

Leonardo Coimbra escreveu, num comentário ao Regresso ao Paraíso de Pascoaes, que «os demónios fiéis a Satanás procuram corromper as almas adormecendo-as no esquecimento da sua origem divina». A psicologia actual começou por negar com Augusto Comte[1] a possibilidade de autognose, mas desenvolveu-se no mesmo sentido negativo até ao ponto de o homem se conceber como um ser destituído de vida interior. A autognose de impossível passou a ser considerada sem objecto e, portanto, como uma actividade vazia. O “conhece-te a ti mesmo” perdeu o sentido que lhe atribuíam Sócrates e Platão e tantos outros para quem a alma é de origem divina. Dentro de mim, encontrarei apenas fosforescências e reflexos que exprimem as reacções, mais ou menos profundas, às forças sociais que sobre mim actuam. Sou um elemento mínimo de um grande grupo, traumatizado por falta de inserção na sociedade, essa entidade mística dos tempos modernos.

Compreende-se que os leonardinos se tenham ligado aos poetas e que, tenham defendido contra todos, que a poesia, na forma superior que lhe transmite um Pessoa, um Régio ou um Pascoaes, não é só uma vivência típica de certos seres com sestro, mas uma forma real de investigação da verdade. Repudiaram, por isso, a crítica literária que estuda os poetas e não a poesia, vendo em cada um apenas um estilo de sentir ou de imaginar, sem efectiva participação no conhecimento objectivo do mundo e do homem. É a custo que empregamos a palavra objectivo, de que já conhecemos a impropriedade em língua portuguesa, mas se há o que é e também o que parece, por objectivo significamos o que é, isto é, a verdade.

Claro que, sendo assim, a classificação dos poetas por escolas, épocas, correntes, que tem por fim anular o peso objectivo da poesia sobre o seu entendimento das coisas subordinando-a à história, não mereceu dos leonardinos a mínima atenção. Tanto faz que Pascoaes seja ou não romântico. E Pessoa o que é, esse poeta tetrafronte, que desafia o tempo e o espaço? E José Régio e o seu conhecimento dantesco dos infernos da alma? Eles interrogam o mesmo mistério que nós. Ouçamos o que dizem e como respondem às perguntas que fazemos. Só isso importa.

É evidente que tudo está em saber interrogar. Ensinar a interrogar é a primeira missão de uma escola de filosofia. Sabe-se a pressa que os homens têm em encontrar respostas para tudo, antes mesmo de terem sabido fazer as perguntas. Isso resulta, em grande parte, do medo de ser sozinho, sem um ponto firme que lhes dê a ilusão do estar. Em geral, a língua que aprendemos por termos nascido num país, constitui já de si um sistema automático de respostas. Nunca saberemos, todavia, o que significam as suas respostas se não soubermos quem perguntou e qual o verdadeiro fim da pergunta. Julgamos ter uma teoria e somos tidos por ela. Eis por que Sócrates, nos Diálogos de Platão, conduz o adolescente pelo método dialéctico até à aporia inevitável que abala os fundamentos, ilusoriamente firmes, das convicções do interlocutor. Cria-se um momento de perplexidade, de espanto e até de medo. O espírito, apanhado de surpresa no vazio de si próprio, reage automaticamente, negando-se a prosseguir. Mas já não há refúgio possível para ele, se assumir seriamente a própria negatividade. Refugia-se aonde, se tudo ruiu?

E é então que Sócrates inicia o segundo momento da iniciação. Pode tomar um de dois caminhos: ou conta um mito, que mais tarde virá a interrogar, mito que sugere estar a solução da aporia numa visão transcendente; ou faz o elogio da filosofia, da coragem de filosofar como de um pleno que não deixará de correr para o vazio de uma ignorância que conscientemente se assume. E o diálogo prossegue de dificuldade em dificuldade até à epoptia final.

Este método socrático é também o leonardino. É um método iniciático, que permitiu a formação de uma verdadeira escola de filosofia. Claro que ele tem como maiores adversários os cartesianos, cujo método, por semelhante que lhe pareça, é precisamente o seu inverso. A dúvida de Descartes não corresponde à perplexidade de Platão e, muito menos, à ignorância de Sócrates. Descartes duvida, divide-se em dois, um dos quais se afirma a partir do cogito, logo como um ponto firme, inabalável, sobre o qual irá constituir-se o edifício francês das ideias lúcidas e distintas. Tudo o mais é sombra, inexistência, quimera.

A perplexidade platónica surge do sentimento de insuficiência que de si tem o espírito perante a diversidade dos próprios caminhos no mundo imenso das ideias; Descartes conclui desta diversidade a sua irrealidade e é, pelo contrário, na autosuficiência do espírito que põe o núcleo firme da realidade. Quem duvida, acaba sempre por afirmar uma das duas coisas e tentará anular a segunda pela vontade. O problema central dos platónicos era, pelo contrário, o das relações do uno com o múltiplo, entendidas de tal modo que toda a pluralidade ficasse garantida pela presença formatriz da ideia. É o que realiza Aristóteles.

Os leonardinos constituem uma escola de tradição platónico-aristotélica. Nos dias que correm, ser-se platónico ou aristotélico constitui um absurdo ou um contrasenso histórico tão nítidos que a filosofia portuguesa aparece como uma manifestação de heroísmo quixotesco aos olhos daqueles para quem o destino da Pátria se decidirá no palco da economia.

Do que não há dúvida, porém, e aqui está a grande razão quixotesca dos leonardinos, é que a definição da Pátria por qualquer dos três internacionalismos equivale à sua negação.

 

Os leonardinos constituem uma escola de tradição platónico-aristotélica. Afirmam, como se sabe, a existência de uma filosofia portuguesa, que arranca desta tradição e assume a sua forma específica pela língua em que os indivíduos a pensam. Não só afirmam essa existência como a superioridade.

Não se poderia esperar senão o repúdio geral desta ideia pela aparente tolerância que vê nos poetas e nos filósofos uns lunáticos que só por si respondem e não respondem pelo mundo. A inveja cria esta imagem para tornar inoperante a influência que mais teme. Não se ignora o que aconteceu a Sócrates, a Platão, a Giordano Bruno, a Leibniz, a António Vieira, a Camões, a Sampaio Bruno, a Fernando Pessoa, a Leonardo Coimbra, a José Marinho. A inveja perseguiu-os até ao túmulo e, muitas vezes, cavou-lhes o próprio túmulo.

Os leonardinos representam o único acto heróico neste crepúsculo da Pátria, o único risco. Tudo o mais, em breve, será cinza.

 

Os leonardinos constituem uma escola da tradição platónico-aristotélica. Afirmam a existência e até a superioridade da filosofia portuguesa, fazendo coro com os nossos grandes poetas. Só que a estes não competia defender o valor da filosofia, mas da Pátria, que um deles significativamente identificou com a língua. Para os leonardinos só há Pátria se houver filosofia, pois lhes parece que a sua definição por qualquer dos três internacionalismos equivale à sua negação.

É uma situação claramente quixotesca. Nas condições mentais do fim do ciclo, a ideia de uma filosofia portuguesa tinha de ser fatalmente repudiada e até ridicularizada. Isto aconteceu sobretudo durante o socialismo positivista de Salazar, incapaz como todos os socialismos, de aceitar reconhecer e expressar a liberdade do pensamento. Vir dizer ao “povo mais anti-filosófico do planeta”, e ainda por cima quando atingiu um ponto de extrema degenerescência mental, vir dizer que há uma filosofia portuguesa constitui um acto de heroísmo quixotesco. Todavia, como D. Quixote tinha as suas razões, os leonardinos também têm as suas.

Pondere-se, por exemplo, este facto simples: de um lado uma língua, a portuguesa, que é o próprio pensamento na complexidade imensa das suas articulações secretas; do outro um povo que ainda não deixou de falar e que, enquanto memória, lhe está ligado em substância. Mas o plano subtil onde se exerce o acto comum de pensar define-se pela mediocridade das ideias, pela incapacidade de ligar duas ideias e muito menos de deduzir uma terceira. Como é isto possível?

O mesmo fenómeno foi verificado pelos linguistas americanos (um Sapir, um Boas, um Lee-Whorf) que têm estudado as línguas ameríndias. Povos completamente estupidificados falam idiomas que são complicadíssimos sistemas de compreensão do mundo. Como é isto possível?

A hipótese de Sapir é que nenhuma relação substancial existe entre a língua e o povo. Então, quem pensa na língua?

 

Os leonardinos constituem uma escola da tradição aristotélica. Afirmam a existência, fundada em Platão e Aristóteles, na língua e no génio individual, de uma filosofia portuguesa. Ao dizerem-na superior, só estão com eles os poetas da Mensagem, do Maranus e de El-Rei D. Sebastião e poucos mais, que acreditaram na missão transcendente da Pátria.  

O ponto decisivo é a língua. Para Fernando Pessoa “a Pátria é a língua portuguesa”. Acontece, porém, que uma língua é um fenómeno subconsciente. Tudo se passa, quando falamos, como se um gramático interior soubesse o que nós ignoramos. Nos três planos linguísticos – o fonético, o morfológico e o sintáctico – actuam sempre os mesmos padrões gerativos a todo o esforço da linguística moderna, – de Sapir a Chomsky, passando por Lee-Whorf –, tem assistido em determinar esses padrões[2] [sic] para cada língua estudada. Assim Lee-Whorf encontrou a fórmula de formação fonética dos monossílabos ingleses e pôde depois escrever: «No plano fonológico, os fenómenos essenciais são regidos por modelos que não são produzidos pela consciência individual. Acontece o mesmo nos planos superiores da língua que designamos por “expressão do pensamento”.»

As investigações deste linguista, na sequência das de Sapir, mostraram que povos num estado extremo de degradação mental – o caso dos povos ameríndios – possuem línguas que constituem complicadíssimos sistemas de compreensão do mundo. Como é isto possível? De qualquer modo, mesmo que se conclua do facto, como o fez Sapir, que raça e língua são entre si independentes, a verdade é que há quem fale a língua, há quem a fale através de um povo, num determinado momento histórico e se, no curso da vida desse povo, os indivíduos que o compõem vão sendo atraídos para formas de vida grupal inferiores, nas quais se afundam mais e mais, há sempre a possibilidade, enquanto existir a língua, de os levar a assumir conscientemente as formas de conhecimento do mundo que a língua guarda nos seus planos superiores.

Pretendem os leonardinos, através da proposição de uma filosofia portuguesa, levar o povo a esse conhecimento, esperando assim poder inverter o movimento do ciclo ou dar, no momento em que a roda pare, o impulso de uma ideia que faz tudo começar de novo?

É evidente que tudo se modificaria em Portugal se os seus pensadores começassem a ser lidos por aqueles que detêm o poder político e se a maçonaria dominante se repensasse nos seus valores originários, projectando-se exteriormente “em formas superiores de vida política”, conforme as palavras de Eanes, mantendo a fórmula socialista embora, mas em consonância com o lema profético de Eanes Bandarra:

 

Rei e povo governarão.

 

Moisés possuía genealogia real, mas ignorava-a. Édipo, criado por pastores, só quando assumiu o poder em Tebas, soube ter morto o pai Laos e casado com a rainha sua mãe. Cristo, da casa de David, nasceu numa cabana. O arquétipo toma forma histórica no momento de crise dos povos e até da humanidade.

Impressiona nesta revolução do 25 de Abril a multiplicação de sinais e de opiniões carregadas de significado mítico, de que os indivíduos não têm consciência, mas que são lançados no domínio público, como se uma mente invisível comandasse os acontecimentos. Desculpe-se a audácia poética da interpretação:

Os cravos identificam-se com as chagas.

“Homens sem sono” é a expressão clássica de designação maçónica e iniciática dos “vigilantes”.

As alusões frequentíssimas nos jornais ao “encoberto”.

[A ideia,] tão ridicularizada, mas profundamente séria, de construir um socialismo à portuguesa.

A anunciação por parte de certos políticos de uma Nova Era, iniciada com o 25 de Abril.

A simbólica do terceiro mundo do célebre poema de Pessoa.

O nítido sentido de inversão de Gomes da Costa para Costa Gomes.

A coincidência de haver um primeiro-ministro em Portugal chamado Soares e em Espanha chamado Suarez.

O facto de Cunhal (a pedra sobre a qual se constrói o templo) ser entre o povo o Cavalo Branco.

A série de nomes medievais que se tornam dominantes: Eanes, Veloso, Sebastião.

 

Não desconhecemos que esta visão poética assume aspectos ridículos ou até cómicos, como, por exemplo, a de identificar a iniciados homens que, na sua maioria, se revelaram de uma mediocridade assustadora. Todavia, se tivermos de reconhecer que o 25 de Abril pôs termo a um ciclo histórico, de dominação do polo norte, fazendo parar a roda e pondo-a a girar ao contrário, o que agora nos parece ridículo toma o aspecto de um conjunto de sinais, que há que ter em conta, independentemente dos homens que lhe estão ligados. Uma lei histórica, mais evidente no domínio da cultura, rigorosa, é a de que quando uma corrente mental chega a este extremo ocidental está prestes a perder-se e a extinguir-se na Europa e no resto do mundo. Assim aconteceu com o movimento medieval dos trovadores, com o gótico na arquitectura, com os valores do Renascimento, com a Reforma, com o iluminismo, com o fascismo, etc… O 25 de Abril que apareceu sob o signo do socialismo marca também a extinção desta corrente política no mundo.    

 

 

António Telmo  



[1] Nota do editor - No original manuscrito: “Compte”.

[2] N. do E. – É de admitir que António Telmo tivesse pretendido escrever: “tem-se assistido ao determinar desses padrões etc.”.

 

DOS LIVROS. 72

26-03-2023 13:39

Natália Correia[1]

Prólogo:

Folhando o “catálogo”, lê-se, a páginas tantas da história da literatura: Natália Correia, surrealista; bibliografia: Le Surréalisme, Colecção “Que Sais-je?”. Esta escritora, porém, não é francesa; nasceu nas ilhas e é muito bonita. Andou, de facto, na mesma escola do Cesariny, do Herberto Helder e do António Maria Lisboa.

(entram dois jovens)

1.º jovem: “O “catálogo” já está à venda na Faculdade de Letras, mas ainda lá não figura o nome de Natália Correia.”

2.º jovem: “Não procuraste nas redacções dos jornais, secção páginas literárias?”

1.º jovem: “Sim, e encontrei. Referem até o último livro, A Madona. Mas eu queria saber o que dizem os catedráticos. Surrealismo está lá, em francês e com o artigo, le surréalisme. Diz assim, em certo ponto: “Escola ou corrente literária, que também se aplica a Portugal”; e alguém escreveu a tinta, na margem: “É uma glória para nós!”

2.º jovem: “Não o fazem por mal. Querias uma Universidade regionalista? Seria ridículo. Nem os escritores gostariam de se verem tratados como não-europeus. E é preciso que haja um perfeito entendimento entre os “creadores” e os “homens de ciência”.”

1.º jovem: “Não te entendo. Ainda ontem lias e aplaudias em A Madona umas frases que há por lá. Ou estás troçando.”

2.º jovem: “Quais frases? Não me lembro.”

1.º jovem: “Sublinhei-as no meu exemplar. Vamos ver. (Folheia e detém-se a pgs. 58) “Só por isso se matriculara na Faculdade de Letras de onde saíra até ao fim de poucos meses berrando que aquilo era o serviço militar do espírito”. Que estupendo! O serviço militar do espírito. Mas há mais. (Folheia até pgs. 17) “Acabarás o teu curso, o curso! a conspícua glorificação dos burros.” Página 18: “É só mesmo por isso que estás em Paris, onde vieste buscar à escola de Corbusier o prestígio do lá fora que é em Portugal a auréola das mediocridades obstinadas em vencer na vida”.

2.º Homem[2]: Estou a pensar nessa forma para toda a manga que é o romance. Permite dizer o que se quer e falar sobre o que se quiser. Não vês a Natália? A propósito: Ela tem curso? De Letras ou qualquer outra coisa?

1.º Homem: Não me digas que estás a pensar que é uma despeitada. Isso foi coisa que te ficou de teres ensinado numa Universidade brasileira.

2.º Homem: Qual história! Perguntei isto precisamente na ideia de que se ela tivesse curso não a podiam acusar de despeito. Mas ainda falando no que estava a falar: O romance é o género-polvo; deita tentáculos para todos os lados. Vê lá tu A Madona, cujo tema é o sexo, com essas arremetidas de lavagante contra os estrangeirados!

1.º Homem: Perdão! Às vezes a relativa é mais importante, porque mais disfarçada e íntima, do que a principal. Disseste: Cujo tema é o sexo. Não queres falar sobre isto? O tema de A Madona é, de facto, o sexo?

2.º Homem: Como querias que não o fosse? Não é o livro escrito por uma mulher inteligente? E em que é que se distingue uma mulher dum homem, antes de mais nada? Em o corpo ser diferente, em até a matéria do corpo ser diferente, como ela própria diz: “Achámo-nos nos braços uma da outra como duas mulheres, sem as arestas que o litígio criado pelos homens lhes acerou na alma. Uma só carne pulsando no amor de se saber indivisível no núcleo. Fulcralmente invulnerável à estratégia masculina que só aparentemente a reparte”. Ora o espírito de Natália está num corpo feminino, enraizado num corpo masculino. Ela ou ELE está numa carne feminina, carne que a multiplica, depois de se ter dividido, no abrir da vagina prenunciando o desdobrar da célula. Que bela ocasião teve o espírito em Natália para pensar, estando dentro ele, o Mistério do sexo!               

2.º Homem (sic)[3]: Todavia, as glândulas, sob o controle, alteraram-se. E, quando se lhe tornou impossível suportar a tensão de ter esperma transformado em energia espiritual, foi um cataclismo. Romperam-se as artérias subtis e o ímpeto da corrente extravasou refugiando-se, sem articulação interna, na forma lábil do homossexualismo.

1.º Homem: Deixemos, porém, o Anjo, que me parece arranjado para pôr na história o Perfeito. Há um outro homem: é Manuel. Esse é o de cá de fora, o de uma esfera exterior ao círculo da iniciação. Representa a força genesíaca do homem, no seu primitivismo de bruta rudeza e, se por momentos atrai Branca, porque só ele é o complemento dela como mulher igual a todas as mulheres e lhe parece convir para dar uma solução negativa ao “dualismo do ser”, toda a ironia cruel das almas divididas eclode de súbito em Branca, no prazer que sente o Espírito de humilhar e ofender a natureza.

2.º Homem: Parece-me que já estás a meter aí filosofia germânica.

1.º Homem: Deixando passar a expressão, o que estou a fazer é a mostrar o “maniqueísmo” de Natália Correia.

2.º Homem: Diz-me, porém, uma coisa. Achas que esse “maniqueísmo” é consciente ou inconsciente?

1.º Homem: Consciente, sem dúvida; como se prova até por aquilo do perfeito cátaro metido à força no corpo do Anjo.

2.º Homem: Não me parece que tenhas razão nesse ponto. Essa história do Anjo e da sua Queda é ainda do bom catarismo ou maniqueísmo, como quiseres. “Este vive para expiar a abjecção de todos nós. Não o deixemos morrer porque ele é a caricatura da nossa miséria. Ele esgota as forças da abjecção e isso liberta-nos. É o azazel da nossa imunda cidade interior”. Uma espécie de cano de esgoto.

Creio que Natália explica muito bem a transmutação do puro em sórdido que caracterizou muita seita maniqueia. Por exemplo, a dos Carpocratas, para não falar de alguns menos distantes.

Se eu te fiz a pergunta da consciência ou inconsciência, é porque me assaltam muitas dúvidas, não quanto à tua interpretação, que me parece exactíssima até certo ponto, mas quanto a Natália Correia, no sentido de saber se se trata duma maniqueia ou cátara, o que seria, sem dúvida, verdade, se tivesses demonstrado a existência no romance de um catarismo inconsciente. Tenho as minhas dúvidas se há disso ainda nos portugueses, a não ser por “via erudita”, para usar a linguagem dos etimologistas. Será o caso de Natália Correia, que deve ter lido Denis de Rougemont, Péladan, René Nelly e outros semelhantes. Bem sei que há quem defenda, entre nós, uma genealogia secreta, que nos enraiza o subconsciente nos celtas, através de Prisciliano, com a sua gnose que “celtifica” o maniqueísmo, para, depois de um largo período de latência, ressurgir entre os medievais, nas cantigas de amigo. Por aqui explicam também o maravilhoso entendimento dos nossos trovadores com os provençais e catalães. Conheço um tal António Telmo que defende isto mesmo: a “via popular” do maniqueísmo céltico.

Assaltam-me muitas dúvidas. Por exemplo, o final de A Madona. Como o explicas tu? Em termos vulgares: o Anjo foi uma decepção, Manuel um joguete da crueldade feminina, Miguel reapareceu na aldeia, (depois de ter comido guisadas as pernas da amante), num estado de prostração interior, perdida a antiga convicção nos caminhos do mal. Pobres homens! A começar pelo pai, morto de uma síncope na hora da digestão do jantar por ter trocado, na mesma sensação, os prazeres do estômago com os do sexo. Símbolo: – o fruto proibido de Adão e Eva. E a mulher? Condoída de Miguel e, nele, de todos os homens, reencontra-se como mãe, não a mãe besta que cria os filhos como a vaca cria vitelos, mas, contudo, a mãe natural, a mãe piedosa, aquela que sente “o próprio sofrimento do mundo que falhou e isso é mil vezes mais pungente”. “É aqui que deve resplandecer a piedade da mulher como uma força criadora que inaugure o novo ciclo”. Assim a Virgem Estéril se transforma na Virgem Mãe.

1.º Homem: E então?

2.º Homem: Isto aqui já não é maniqueísmo, é catolicismo. E do inconsciente.

1.º Homem: Não me digas que vais explicar todo o romance como o livro de uma escritora católica. Sabes o que Natália diz dos padres através daquele padre frequentador dos serões familiares. Acha-os lúbricos e torpes. Deves concordar que o anti-clericalismo não é independente do anti-catolicismo, embora muita gente queira ver na Igreja e no Clero o trigo e o joio que convém destrinçar. É idiota! Não há Igreja Católica sem sacerdócio, e quando se acusa um padre de ser mau padre, não se acusa o padre, acusa-se o homem. Que eu me lembre, há só uma frase no livro que justifica o teu ponto de vista: “Todos os latinos são católicos.”

2.º Homem: Eu não disse que era esse o meu ponto de vista. Eu não disse que Natália Correia era católica. Vou descobrir o meu jogo: o que eu penso é que Natália é o mais perfeito tipo de cristã nova e quer busque exprimir a sua inquietação no “maniqueísmo”, quer busque exprimi-la no surrealismo (daqui o engano dos europeizantes), o que ela manifesta sempre é o drama duma alma dividida, no cerne, entre duas castas, inimigas, de que ela representa o impossível compromisso. Sim, ela é católica, mas é ao mesmo tempo outra coisa.

1.º Homem: Uma espécie de Ester na corte do rei Assuerus.

2.º Homem: A única espécie de Ester, que é possível no nosso tempo. Isso explica as diferenças.

1.º Homem: Cristã nova ou não, do que não tenho dúvida é de que, se estivéssemos no século XVI, Natália seria queimada como feiticeira.   

 

António Telmo

                                                      

(Publicado em A Terra Prometida - Maçonaria, Kabbalah, Martinismo e Quinto Império, 2014)



[1] Texto encontrado no espólio.

[2] A partir daqui, e até final, António Telmo passa a designar os dois interlocutores por “Homem” e já não por “jovem”. Por outro lado, a partir deste mesmo ponto, as suas falas deixam de surgir entre aspas [nota do organizador deste volume].   

[3] António Telmo introduz aqui, de modo imediato, uma segunda fala consecutiva do “2.º Homem” [nota do organizador deste volume]. 

 

UNIVERSO TÉLMICO. 76

26-03-2023 13:15

Sonho de infância

Paulo Jorge Brito e Abreu

 

( invoco, para a Musa minha, o Arcano do Sol )

 

«A criança é o antepassado do homem.»

 

William Wordsworth

 

( «In Memoriam» de António Telmo )

 

Ah, suave e dourado sonho de infância

Em que eu contava as estrelas do Céu!!!

Pequeno bicho pequeno, a Distância

Aproximando do meu ser sem véu!!!

 

Já depois, meus dedos tocando as nuvens,

Meus olhos a imensidão a contemplar……

Meus dedos sãos, tenros, puros e jovens,

A alada leve e louca, e ao Luar.

 

E o Éter lilial lá das alturas!!!

Prazer bom, leve e morno, o Infinito…

E eu palpando, eu absorvendo, tão fito,

Rectas ondulações, cumes!!! Lonjuras……………………….

 

Ai, a almofada onde eu dormia – tão fofa!!!

E os lençóis que me aqueciam – de cetim…………

A Acidália sem til era estofa:

Meninas brincadas chamando por mim………………….

 

Circulares anjos, formando uma corte

Onde se bailava respirando jardim,

De toda a sorte ogivais rosas, metas, metas!!!

Meninas brincadas chamando por mim……………..

 

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Súbito acordo, eu, o delinquente

Dum fundo mar salgado e cheio de vícios,

À volta de mim olho, vejo só, somente,

- Asas aladas, negros precipícios……………………

 

Lisboa, 16/ 02/ 1978 – Tomar, 01/ 03/ 2023

 

SPES MESSIS IN SEMINE

 

PAULO JORGE BRITO E ABREU   

 

CORRESPONDÊNCIA. 59

26-03-2023 13:08

Carta de Max Hölzer para António Telmo, de 31 de Dezembro de 1976

 

Paris, dernier jour de l’année 76

 

Mon cher ami,

 

Je suis très heureux d’avoir des nouvelles de vous : merci ! Permettez que j’entre dans le « vif ».

Vous savez bien que vous étiez, lors de mes tentations, déjà presque abandonnées à cause de multiples et inévitables malentendus, de former ce « cours » − que c’était vous qui avez fait possible une liaison initiale. Non pas des raisonnements, non pas persuasion, non pas intéresser les autres pour une conviction quelconque, mais par ce « quelque chose » que nous avons senti, nous deux, communiquant entre nous, quelque « courant » (qui dépassait toute « sympathie », ne regardait pas le personnel) – et c’était ce « courant » que les autres ont que constater sans le toucher, inconsciemment, et qui les a infléchis, de temps en temps, d’accepter une chose aussi « folle », à ce moment, que ce cours. Depuis ce moment nous avons à supporter, à réconcilier ce double mouvement d’une intensité qui se voudrait la plus sincère, et la moins « conditionnée » pour des données extérieures et intérieures, et cette autre chose qui nos dépresse, et qui – engendrant la lutte en vous dont vous me parlez dans votre lettre – nous restera toujours, d’une manière isolante mais aussi comme seule possibilité de communication et de connaissance (co-naissance) vraies, l’Inconnu…

Vous devinez, et vous « savez », qu’il y a un certain « commencement » qu’on ne pourrait pas manquer sans se trouver, par la suite, dans l’impossibilité absolue d’atteindre quoi que ce soit de «réel ». Mais la structure de notre existence actuelle est telle qu’elle nous incite à s’appuyer sur « nous-mêmes» justement là où nous devrions suivre certains conseils nous venant directement  des plus expérimentés et chercher quelques attitudes nouvelles, et de vouloir «se faire» là où il est impossible qu’un autre fasse quelque chose pour nous. – Finalement, rien n’est à abandonner, mais dans l’état actuel de notre « être » nous ne savons pas utiliser une seule chose pour notre évolution, pour l’argumentation de notre conscience. Toujours de nouveau, au cour de ma vie, j’ai rencontré des «plus expérimentés», mais maintenant je vois la lignée.

Mon ami António Telmo sait, devrait savoir que je souhaite de tout mon cœur de revenir chez vous. CE qui concerne votre patrie à laquelle je me suis attaché profondément – pensez, pour comparaison, sur une autre échelle, à ce qui pouvait, et parfois ne pouvait pas signifier pour les juifs « Israel ». Moi, j’y trouvais une gamme de possibilités presque complète.

Ce qui concerne un travail possible, je vous pose la même question que je posais à notre ami Francisco dans une lettre récente. Il faudrait un nombre si petit qu’il soit des intéressés, non pas liés par des sympathie et amitiés comme condition (au contraire !) et aussi des couples, qui consentiraient à travailler vraiment pour quelques semaines, en surmontant tout empêchement personnel ou accidentel comme secondaire, et en se réunissant deux fois par semaine sous des conditions un peu différentes que la première fois. Après cela seulement on pouvait voir si une suite ultérieure est possible. Mais, je le dis tout-de-suite à mon ami António Telmo – non sans lui. Ils devraient participer aussi notre ami Francisco et Carlos Silva et sa femme. Je connais quelques jeunes gens que je rencontrais par hasard heureux les derniers jours  à Lisboa dont je ne sais pas s’ils y sont toujours, mais que je voudrais inviter sous les mêmes conditions.

Ce que vous dites de José Marinho, me touche vraiment. Nous avons pu avoir des entretiens très subtils dont j’espère qu’ils l’ont confirmé dans des expériences très intimes. Il était le premier d’entre autres que je rencontrais lors de mon deuxième séjour au Portugal en 1969 qui m’a impressionné profondément – le voyant et entendant lire et interpréter un poème de Teixeira de Pascoaes.

Mes meilleurs vœux, et les plus amicaux pour vous, cher António Telmo, et votre famille.

Je vous embrasse –

Max

 

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