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UNIVERSO TÉLMICO. 24
26-05-2015 17:17CARTAS DE AGOSTINHO DA SILVA PARA RUY VENTURA. 06
6
[carimbo do correio – Lisboa, 22.9.1993; cartão]
21.9.93
Querido Amigo
Espero que, passado todo este tempo, já não haja mais, com o internamento de seu Pai, os problemas de que falou (9). Toda a religião que vale é apenas a crença que se pode ter seguido que não é demonstrável por matemática, e que é, quanto a mim, a Credibilidade Absoluta, aquilo que é totalmente o de que nós todos temos uma centelha, o sermos todos criadores, mais ou menos apreciados, o que não importa; seja como for criemos. E para o enjoo que tanta vez o diário traz, o mesmo remédio que se usa a tudo [?]: Olhar o horizonte, e escutar o grito da chegada, mesmo que o não haja. O grande abraço do A. (10)
____________
Notas de Ruy Ventura:
(9) Referência a Joaquim Baptista Ventura, meu pai, e ao seu internamento nos hospitais de São José e da Cruz Vermelha, ao longo de várias semanas, devido a um acidente de trabalho ocorrido na Sociedade Corticeira Robinson, de Portalegre, onde então trabalhava como operário.
(10) Esta foi, de facto, a última carta que recebi de Agostinho da Silva. Depois dela, chegaram a minha casa, então na aldeia de Carreiras (Portalegre), apenas algumas das suas “folhinhas”, pelas quais esperava ansiosamente. Recordo que a derradeira correspondência da minha parte terá sido um postal ou cartão a desejar-lhe as boas festas natalícias. Tudo isto há-de estar guardado no seu espólio, se o tempo ou alguém não se encarregou de lhe dar descaminho.
DOS LIVROS. 42
24-05-2015 15:18
Mombaça, terra do mal
Ao dobrar o cabo da Boa Esperança, dir-se-á que Vasco da Gama se tornou um homem novo, liberto da Hybris, do orgulho desmedido, da violência, do sangue. O que é que, na narrativa d’Os Lusíadas, nos permite dizer isto? Eu compreendo que a inflexão da rota para Oriente, para aquele Oriente que Camões insistentemente diz ser o fim da viagem, se deva interpretar simbolicamente como uma «viragem» na alma. Porém, onde é que está isso afirmado explicitamente por Camões?
No meu texto dos Teoremas de Filosofia digo que Deus é o Amor. Direi agora que o Amor, o puro Amor é o Espírito Santo.
Dobrado o Cabo, as forças negativas reagem. Sempre a um momento de exaltação do intelecto divino em nós se seguem terríveis obstáculos. Os iniciados sabem isto, mas com alguma atenção todos o podemos verificar no próprio curso das nossas vidas, se nesse «todos» o desejo do melhor tiver algum lugar.
Aqui, n’Os Lusíadas, esse momento da reacção das forças do mal teve como nome «Mombaça».
Baco, sabendo que viriam dois exploradores informar-se das terras e de qual a qualidade das suas gentes, mascarou-se de sacerdote católico e celebrou missa para assim agradar aos dois exploradores.
Significativo é, porém, o facto de, nessa missa, se ter fingido o culto ao Espírito Santo, donde devemos depreender que o poeta considerava tal culto aquele que exactamente identificaria a religião dos portugueses.
Os dois navegadores, vendo isto, de joelhos na terra, puseram «os sentidos naquele Deus que o Mundo governava».
Este é o verdadeiro Deus, o Espírito Santo e, por este modo, o falso Deus adorava o verdadeiro:
Ali tinha em retrato afigurada
Do alto e Santo Espírito a pintura,
A cândida Pombinha debuxada
Sobre a única Fénix, Virgem pura;
A companhia santa está pintada
Dos Doze, tão torvados na figura
Como os que, só das línguas que caíram
De fogo, várias línguas referiram.
Aqui os dous companheiros conduzidos
Onde com este engano Baco estava,
Põem em terra os giolhos, e os sentidos
Naquele Deus que o mundo governava.
(…)
(Canto II, 11-12)
Como se pode ver, aquele Deus que o mundo governava, é o Espírito Santo. Mas não é o que mais nos importa aqui para entendimento de toda a articulação interior do grande poema épico. O que devemos ver na estrofe é que para Baco, o inimigo, o melhor meio de enganar os portugueses é pô-los a assistir à missa que era a sua verdadeira missa. Em vez do Crucificado, está o alto e santo Espírito, está a pomba pairando sobre a única Fénix, estão os doze, figurados no momento em que, meio atónitos, vêem cair as línguas de fogo e se vêem de súbito com o dom das línguas, isto é, não só de as falarem, como de saberem encontrar a verdade em todas as Tradições.
António Telmo
(Publicado em Luís de Camões, 2010)
UNIVERSO TÉLMICO. 23
21-05-2015 23:30Risoleta Pinto Pedro publicou há pouco, no seu blogue A Luz das Casas, o magnífico ensaio sobre O Estranhíssimo Colosso - Uma Biografia de Agostinho da Silva, de António Cândido Franco, que generosa, gentilmente partilha agora com os leitores da página do Projecto António Telmo. Vida e Obra, de que, tal como Cândido Franco, é membro autor. Ambos serão aliás oradores, a 31 de Outubro, na segunda sessão do ciclo de palestras Agostinho Revisitado: Novas Aproximações, que o nosso Projecto promove este ano em parceria com o jornal Raio de Luz, de Sesimbra. Les beaux sprits se rencontrent...
Considerações acerca de uma colossal estranheza
Risoleta C. Pinto Pedro
Sobre: O Estranhíssimo Colosso,
Uma Biografia de Agostinho da Silva
Por António Cândido Franco
É sobre a minha mesa da cozinha que recebo Agostinho e o sol da Primavera. Esta Primavera ficará mais doce na memória, porque aconteceu o teatral renascimento de Agostinho num espectáculo único para mim encenado enquanto espectadora. Sobre a mesa e ao sol, esta personalidade tão complexa e tão simples, cujo interesse e área de acção vai do estudo das moscas à política mundial com Jânio Quadros.
O homem que recusou pensões e títulos e devolvia a parte que não gastara dos subsídios que lhe eram atribuídos para projectos, assim criando embaraços técnicos institucionais, porque não estava previsto. O homem que dava quase tudo o que recebia, porque não precisava, já que os seus únicos gastos eram com viagens e a fransciscana única refeição por dia. O homem que afrontou todos os poderes que se opuseram à sua realmente inalienável liberdade, o homem que não trocava nada por uma boa conversa, que fazia mais facilmente amizade com o porteiro do que com o embaixador, mas que não desprezava ninguém, o homem que traduzia do latim e do grego, como quem traduz do inglês, que estudava quando os outros dormiam, ia fazer conferências aonde o convidavam e pelo meio de um sem número de outras coisas ainda escrevia livros a um ritmo e qualidade muito acima do normal.
É desse homem que tão incompletamente acabo de descrever que tratam as setecentas e tal páginas do livro que me vai acompanhar durante umas semanas.
Garrett começa à janela as suas Viagens e eu também próxima de uma janela de onde vejo árvores, é sobre a mesa da cozinha que viajo. Depois da louça lavada e tudo em ordem, sento-me perto da janela e aí recebo, saudosa, Agostinho e o sol. Abro o livro e deixo vir até mim o passado. Para ser rigorosa, é mais do futuro que se trata. É na Primavera que se passa esta leitura, e quando começo a escrever este texto, ainda estou na Primavera do biografado, saudoso Agostinho da Silva. Pela narrativa rigorosa e expressiva de António Cândido Franco, seu biógrafo, torno-me personagem de uma infância que no tempo me teria sido inalcançável. Dia após dia a leitura prosseguiu até à aparentemente impossível e quase indesejada última página e eis o que ficou em mim:
Esta biografia tem a forma de relato comovente e épico em tom paradoxalmente lírico, terno e sorridente, que exemplifico facilmente, bastando-me abrir, quase ao acaso, o livro:
“Esta do meu plantígrado se pôr em pé na asa de um avião em voo só mesmo para Agostinho. É outro leão de ouro para pôr no mostrador da sua biografia. Nem Sinatra se atreveu a tanto; ficou-se só pelo cantar à chuva. Que pobreza, ao pé da grande dança cósmica de Agostinho na asa de um avião em voo!”
Lê-se esta biografia sobre o morto mais vivo do mundo e queremos ressuscitá-lo. Pela leitura o faremos. Precisamos dele.
Escrevi num outro lugar, a propósito de mortos e vivos:
“Há muito quem se amofine com o estado de graça em que entram os mortos na boca dos vivos uma vez ausentes desta comunidade.
A mim aborrece-me mais que os vivos se maltratem por palavras, obras e intenções.
Se a morte traz aos que partiram algum estado de graça, apenas vejo aí uma graciosa mudança dos vivos em relação aos que não o são.
Diria mais, talvez o sentido do morrer seja, pelo menos por enquanto, ensinar os vivos a verem as qualidades para as quais estão obnubilados durante a vida dos outros.
Beneficiam os mortos com isso? A mim parece-me que mais ganham os vivos do que os mortos, porque aprendem a criar novos filmes com suas línguas, aí onde antes apenas destilavam veneno nasce um alquímico cuspo de beijo ou amor.”
Também numa biografia não vejo necessidade de fazer criação de larvas, e ainda que as haja, porque sempre as há, estamos no mundo delas, cumpre ao biógrafo o esforço de compreender fraquezas , reveses e condições, aparentes deslizes e desaires. Como competiria a um médico de mortos.
Com a vida de Agostinho, não tem o biógrafo de fazer grande esforço para apresentar a estrela, ela brilha com luz própria, mas não há vida sem sombra, e é o que se percebe na passagem que segue:
“Este exame de consciência roeu-o por dentro. […) Mas Agostinho não era um triste que ficasse a chorar os pecados em que caíra. Se errara, havia que alterar a direcção e seguir por diante. “
Quem quiser aprofundar-se nestas páginas encontrará um olhar sem maquilhagem, mas fundo, profundo e misericordioso. Como o do “mestre”.
A biografia de Agostinho possui, além de outras de que falarei, uma particularidade que é um mérito: a escolha do eixo, ou tronco mais ou menos visível, consoante a parte da vida em que se encontra, no qual vai plantando os ramos. Esse tronco é o Agostinho escritor, aquele que não tem sido, pelo menos para o grande público, que mais o conhece por via das entrevistas televisivas, o revelado.
“… andando no desconhecimento geral, chegam para fazer um escritor aos 18 anos.”
Não que ACF confunda biografia com percurso literário, mas porque nesta exuberante selva que foi esta exuberante vida é necessário seguir um trilho, o mais desenhado no chão, tanto mais se o mais expressivo trilho tiver sido, também, o mais ocultado.
O escritor está, então, feliz e generosamente presente nesta biografia, com especial dedicação à vertente deliciosa que é a do criador de heteronímia para… os heterónimos. E entretanto “mata” os heterónimos para que não possam queixar-se. Ou denunciá-lo. ACF fala, preferencialmente, de pseudónimos, um rol infindável de pseudónimos, muito antes de Pessoa ter entrado no horizonte de vida de Agostinho.
Paralelamente à actividade literária, com ela e através dela, vai-nos conduzindo pelos meandros da vida do seu biografado e para que não nos percamos nem fiquemos para trás, que a tentação de saborear é grande (quem quiser apenas o alimento mais frugal dos factos pode limitar-se a ler a cronologia que ocupa cinco páginas no fim), para que não nos desorientemos, dizia, vai-nos puxando por um fio narrativo às vezes sorridente, pelo gracioso método de retomar acontecimentos anteriores. Sem duvidar da nossa memória. Com bondade. Com rigor e vivacidade.
Com ele, passei a fazer parte da infância de Agostinho e desconfio, até, que alguns fios do tempo se cruzaram realmente.
Revi o Porto que não fez, julgava eu, parte da minha infância, mas afinal o Porto que eu não conhecia é o de hoje. Este é, ou tornou-se-me, estranhamente familiar.
Viajei com Agostinho pelas galáxias até divisar o sítio onde, por quase engano, nasceu. Mas como é sempre possível, enquanto se está vivo, corrigir um erro, lá foi parar, ainda nos primeiros tempos, onde era seu propósito. Podia ter ficado logo pelo resto do mundo, mas este homem gostava de viajar. Era preciso afastar-se para ter o prazer de se aproximar. Além disso, para quê nascer apenas num lugar, só para um país, se se pode viver ao mesmo tempo quase em dois? Como o compreendo, eu alentejana nascida virada para Espanha, sul da Europa e norte de África.
Talvez por ter faltado a Agostinho um GPS ao nascer, este livro vem acompanhado de um GPS de última geração.
À semelhança da selva, onde A. também viveu, a sua vida é um longo emaranhado de lianas pelo qual o biógrafo nos vai conduzindo e criando, de vez em quando, como nos aeroportos e espaços de grande confluência de gente, pontos de encontro. Esses pontos são sinopses onde agremia determinados aspectos da vida de Agostinho já narrados, nunca os mesmos, com que nos orienta no espanto que é impossível não partilharmos com ele, por muito que tenhamos acompanhado, mais ou menos perto, mais ou menos de longe, esta admirável vida.
Essas analepses ou recuos temporais, concentrados, pegam com um talento notável, nas pontas de várias páginas aparentemente dispersas reunindo-as em coerência; uma aranha antiga pode fazer a síntese:
“… quem diria que Agostinho se levantava das duas e meia para as três, para trabalhar de seguida – com uma única paragem às quatro da manhã para audição das Sonatas de Beethoven tocadas por Fritz Kreisler e leitura do Larousse Ilustrado – até às nove da manhã. Momento em que entrava nas explicações – que Ruben A. Diz que ele aviava como quem come figo. Era o que dizia quem lá estava e é o que pode pois interessar esta biografia. Mais tarde, em Santa Catarina, foi com uma negra tarântula tropical a passear-lhe na mão, a rir, sem a mais pequena preocupação, que o meu Silva recebeu Lourenço e esposa. E quem o diz é quem o viu. É pois esse ponto negro que melhor o retrata nesse período. “
Esta, uma das imensas e sempre criativas, novas, surpreendentes sinopses em jeito de analepses (acaba de ser inventado um estilo novo), apesar de feitas com acontecimentos narrados, aqui elegantemente rematada por uma prolepse:
“Agora é tarântula na mão, amanhã será puma na cama. Espere o leitor para ver. “
O estilo abrange arcaísmos, como “nanja”, “bonda” “destarte” e outros, neologismos como é o caso deste a nível da conjugação: “adolescera”, passando pelo uso original da metáfora, riquíssima: “tricotar letra no papel”, “talha dourada verbal”, “quando abriu os olhos, era apóstolo de Agostinho”, “escrever uma biografia de Agostinho da Silva é andar com o mundo ao colo”, a alegoria de uma quase insuportável beleza, a propósito da agonia dos últimos dias: “Era um castanheiro centenário cujas raízes já não tinham forças para chupar a terra. Já as partes baixas estavam secas e ainda as folhas teimavam em despontar.”, o humor: “Foi por um triz que se salvou de ser frei Agostinho da Selva.”, passando pelo coloquial, “Boa malha, ó Silva!”, “é tanga, meu!”, “dar cana”, ou mesmo o calão, a par da linguagem mais elaborada e culta. Mesmo nas páginas mais recheadas de listagens e exaustiva informação, nunca há monotonia ou tédio nesta montra lírica, informativa, exclamativa, dialogante, coloquial…
Como texto biográfico, saliento a habilidade para conduzir subtilmente o leitor pelo meio de indícios, dúvidas, até lhe apresentar a prova documental. Outras vezes (mais raras) é mesmo com a dúvida que o deixa. Então ficciona-a. Assumidamente. Abertamente, à vista do leitor, com a sua cumplicidade. Assim lhe dando (ao leitor, à dúvida) honra e dignidade: “Agostinho palestrou no departamento de Machado da Rosa. Aposto que a conversa, de que não conheço registo, nem mesmo a mais pequena referência, meteu no público muito açoriano […] e de mistura, claro, muito Império do Espírito Santo.”
O tom, de um risonho humor e ironia : “nem uma palavra deixou. Foi e acabou. Ponto de exclamação.”, aparece temperado com generosas camadas de entusiasmo e espanto: ”Boa malha, ó Silva! Assim é que é! Fazia afinal o preparo de alguém que não estava disposto a esperar por uma revolução para viver num país livre; comportava-se como homem livre e bastava.”
O biógrafo não consegue e não se esforça por esconder a admiração pelo biografado.
ACF introduz, ou segue os passos do mestre num novo estilo de biografia que, sem abrir mão do rigor, se liberta do frio espartilho pseudo-científico.
A admiração e o nunca ultrapassado espanto do biógrafo vão avivando as páginas, se é que estas disso necessitavam: “Que obra!”, “Notável! Não é?”, “este homem foi uma excepção. E que excepção!”, “Que malha, dia meu!”. Entre inúmeras outras emocionadas exclamações.
E interpreta o que vê: “Só o sonho justifica tanto ânimo.”
Às vezes não sabe ou não tem a certeza ou não consegue provar e afirma-o:
“não sei”, “que agora não encontro”, “Não garanto, mas é muito aceitável que…”, “Impossível saber. Presumo porém que…”, “Pode ser que sim”, “Não digo nem que sim nem que não. Passo.”, “Não me admiraria que…”, “Não me custa imaginar…”.
No entanto sabe os seus limites, afirma:
“Posso ser solto de palavra, mas tenho por ponto de honra ser escrupuloso.”
O biógrafo que se conhece. E respeita.
Quando inventa, anuncia que está a fazê-lo desta deliciosa e sedutora forma que vai buscar ao modelo de inocência, o menino que nele vive: “Esta dos condutores que iam à bola com ele não é da minha testemunha, é minha, só minha. Às vezes deixo-me embalar e o resultado é este, dou por mim a inventar.”
Um estilo pessoalíssimo, um “dolce stil novo” que, se não se inspira, é certamente inspirado pelo biografado na sua faceta de biógrafo.
Vejamos:
“Sem pudor, que era escusado, pegava de conversa com o seu escolhido e ia com ele de passeio, a céu aberto, […] de modo que o leitor pudesse seguir a sua presença. Dito doutro modo: a biografia era o modo de dizer que Montaigne estava vivo e respirava.”
Refere-se este trecho a Agostinho biógrafo. Mas se experimentarmos substituir os tempos verbais pelo presente e “Montaigne” por “Agostinho” não há aqui nada que não se ajuste ao biógrafo António Cândido. Na biografia Agostinho está vivo e respira, neste passeio a céu aberto com António Cândido.
E aqui temos o que poderíamos designar como uma Arte Poética aplicada à biografia, de que ambos comungam. Fazer biografia é restituir o sujeito à vida para o leitor. Um trabalho… colossal! E, provou-se … possível!
Veja-se outra passagem e avalie-se se não seria possível afirmá-lo sobre esta biografia:
“a biografia de Montaigne por Agostinho da Silva é um livro poético com largos recursos criativos que não pode ser tido como um repositório documental nem como o fruto asséptico dum historiador; ele é antes o resultado de uma operação delicada de selecção e montagem, que passa primeiro pela percepção de uma alma e depois pela criação de um modelo mimético, quase dramático, capaz de restituir no papel a vida desse arcano eterno.”
A biografia de Montaigne, e a biografia de uma montanha, uma mesma concepção acerca do que é fazer uma biografia de alguém que não acreditava na morte, que era o caso de Agostinho, logo, apenas como vivo, ou trazendo-o à vida, se pode falar dele. Tal foi o feito de ACF.
Aproximamo-nos da relação com o biografado. De que forma se lhe refere?
Não serei exaustiva, nem sequer respeito a ordem, mas não resisto a “exemplificar”:
“meu jovem”, “meu moço”, “…meu Plutarco…”, “o meu exilado”, “o meu aldeão”, “meu pedestre”, “ meu macróbio”, “o meu maduro”, “o meu Hércules”, “o meu Silva”, “meu mestre”, “o meu biografado”, “anormal que sacava vintes”, “Adamastor de Palhavã”, “Aquele lapuz”, “meu Tertuliano, “o meu doutor”, “o meu anormal”, “o meu Atlante”, “meu bicho”, “meu cavaleiro andante”, “meu George”, “O meu escritor”, “o meu inventivo”, “meu novel professor”, “o meu bandeirante”, “meu celtibero”, “meu zagal”, “o meu cigano”, “o meu chefe”, “o meu crítico”, “o meu rústico”, “o meu templário”, “meu boieiro”, “meu berbere”, “o ecuménico do candomblé”, “o meu despreocupado”, “O velho grisalho de terno preto”, “meu astuto”, “o meu índio”, “meu velho índio”, “meu homem”, “este meu bárbaro”, “o meu doido”, “o meu filósofo”, “o meu brincalhão”, “o meu despachado”, “o meu falador”, “o meu mestre-sola”, “o meu meileca”, “o meu pião”, “o meu campestre”, “meu soldado”, “o meu velho”, “meu irreverente”, “o meu vagabundo”, “meu danado”, “índio da Itatiaia”, “o meu sáurio”, “meu peixe”, “incêndio de generosidade e génio”, “o meu socorrista do sertão”, “meu sátrapa”, “um tripeiro de Campanhã, um Zé dos Anzóis qualquer…”, a que acrescenta: “… que chega a conselheiro da Presidência do Brasil aos 55 anos”
Às vezes senti por detrás o sorriso, mais frequentemente o espanto, a admiração, muitas vezes a incontida emoção.
Certas designações tanto podem comparecer com ou sem o possessivo, é o caso de “Atlante” e “anormal”.
Verificamos que a maioria das vezes usa o possessivo, com ou sem o artigo, com que cria ou desfaz intimidade, outras o deítico espacial: “aquele” com que o distancia para melhor o observar?, enquanto que outro deítico espacial associado ao possessivo “este meu” o puxa para junto de si e se apropria dele; “meu Silva” é frequente e atravessa todo o livro, talvez com incidência no início, algumas expressões são absolutamente isoladas, servem para um retrato instantâneo, há uma evolução de trato, diria de confiança ao longo do livro, um maior à vontade, também isso evolui com a vida de Agostinho, alguns epítetos não são o que parecem, quando o designa como “anormal” é ao nível da épica que o eleva, o ser especial, diferente, o Titã, o divino em aparência humana. “Anormal” quase substitui uma interrogação de espanto ou quase incredulidade ou incapacidade para integrar tanta grandeza. Também aqui está presente o neologismo, como as mães que nem sabem que mais nomes inventar para os filhos… e criam nomes novos, usam os insultos como cúmulo de ternura, alternam entre substantivos e adjectivos. Algumas expressões poderiam ser de uma mãe orgulhosa do filho que teve: “é um caso raro, se não único, de dar saltos e gritos de vitória.”.
Um biógrafo apaixonado pelo biografado (nem seria possível escrever uma biografia assim sem essa condição…) : “O meu doido”, de onde extravasa todo o amor, ternura e admiração que cabem num coração.
Agostinho, lendo esta biografia, teria posto de lado a admiração, como a carne que não comia, mas não teria sido insensível ao amor, ele que toda a vida o respirou e recriou. Nem ao humor; acima de tudo ter-se-ia divertido com a sua própria imagem, com o riso refletido dela, ele que nunca se levou demasiado a sério. Eliminava da sua vida os problemas próprios para ficar mais disponível para os dos outros, como na biografia, a páginas tantas, é dito.
Quase poderíamos recriar a vida de Agostinho com uma boa listagem (que não seria esta minha caótica e incompleta lista) dos epítetos utilizados, exaustiva e seriada.
Não se pense, todavia, que este herói, pela excepcionalidade, aparece nebuloso, mental e diáfano. Não. Ele é bem corporal. Às vezes a descrição é quase animalesca, e desta forma ainda mais o eleva: “recebeu, quando calhou receber, […] quarto onde metesse corpo em leito decente e manjedoura modesta mas limpa onde arrumasse dente.”
“Agostinho é um varão seguro, espadaúdo, bíceps rijo e teso.”
Avançando na leitura, há quatro momentos especialmente dolorosos: aquele que corresponde ao tempo da prisão política, o acidente do filho Pedro, a fase das Conversas Vadias e a doença, que no fim da vida acabou por levá-lo. De resto, até os problemas são divertimento e animação, para Agostinho. E para nós, que com ele vamos aprendendo.
Mas é doloroso, faz mal ao coração recordar o período destas entrevistas televisivas, onde o ouro foi algumas vezes desvalorizado pelo outro. Um homem de idade avançada brilhando de vivacidade e futuro e, em alguns casos, não em todos, jovens bolorentos fedendo a naftalina. Foi o que viu quem esteve atento, é o que a biografia confirma.
Agostinho que acreditava, como testemunho encontrado mais à frente no livro, que as doenças reflectem o que nos fez mal na vida, não terá ficado bem do esforço que o coração teve de fazer nestes duelos desiguais opondo coração e mente, inocência e preconceito, sabedoria e resistência.
Não referi as muitas considerações sobre educação, sobre política, sobre amor e sexo, crítica social, crítica literária. De biógrafo e biografado. Lá estão, mas não se confundem. Uma abraça a outra, uma dá colo à outra. Não era possível caber tanta coisa neste texto já longo.
Ler este livro torna-nos melhores. Porque nos recorda o que de melhor pode existir num ser humano, como inteligência, coragem, talento, resistência, modéstia, generosidade, humildade, misericórdia, criatividade, espontaneidade, fé, compaixão, entusiasmo, optimismo, desprendimento, solidariedade, liberdade, fraternidade, frontalidade…
E também porque o livro é a prova de que a literatura e a arte podem ser uma forma de justiça pela reunião do amor com a sabedoria e a beleza.
Não consigo imaginar alguém lendo este livro a espernear. Embora já tenha havido quem o fizesse. Deve ser um enorme sofrimento. Como se nos pusessem à frente a melhor e mais divina das iguarias, mas por razões obscuras não pudéssemos mostrar o nosso prazer e fôssemos obrigados a deliciar-nos, mas ao mesmo tempo fazendo caretas e contorcendo-nos obscenamente de agonia a fingir que não gostamos. Deve ser doloroso. Mas é possível, porque já aconteceu. Mistérios. Ou talvez não.
Não vou esmiuçar, o ambiente está perfumado de Agostinho e seu biógrafo, não quero estragá-lo, mas quem tiver curiosidade sobre a explicação para um ou outro feroz ataque com que o livro foi recebido, explicações não faltam. Bastariam as páginas entre 276 e a 284 para, numa certa óptica, ajudar a compreender acicate tão cerrado a esta biografia. Que, aliás, não é ela, a biografia, que incomoda, mas flashes de biografias outras que, em nome da verdade, aqui aparecem. Como diria o Garrett das Viagens¸ ele poderia descrever a estalagem desta ou daquela maneira, ao gosto da época, dos leitores, dos críticos, o problema é que nada disso lá estava…
Esta biografia na aparência épica, em V cantos, épica pelo tema, pelo herói, pelo tom, pela extensão, apenas aparentemente o é. É biografia, não é épica. É que, para além de uma ou outra passagem em que assume brincar com os factos, não há aqui ponta de invenção. O homem era mesmo assim, um muito, mas mesmo muito estranho colosso. Não há volta a dar-lhe e outro título também não poderia ter, para não deixar de ser fiel à vida:
“Um homem sem medida… na bitola comum.”
Mesmo assim, uma ou outra vez acontece a necessidade de relacionar a extensão e a tarefa com o valor e a acção:
“É por esta e por outras invulgaridades que o meu Silva merece longa biografia.”
“Mas é por isso mesmo que ele merece vir aqui. Se não fosse este seu espírito livre, não estaria eu aqui, tantos anos depois dos sucessos, a falar deles.”
Quanto mim, direi sem pudor que estou ainda em espanto como em criança perante qualquer tipo de grande monumento. Como é possível tal livro, tal vida?
Este livro talvez pudesse também intitular-se “Da felicidade”, porque afinal de contas de outra coisa não falou Agostinho desde que falou: Como podemos ser felizes e criadores e assim espalharmos a felicidade no mundo?
Contudo, este título não daria conta do monumento realizado e da monumental forma de o fazer. Nem da estranheza perante a grandiosidade da vida e da obra.
ACF percebeu a dificuldade em abraçarmos a complexidade desta vida, pelo que, como professor que não deixa de ser, para além do poeta, do investigador e do escritor também aqui presentes no seu livro, foi fazendo resumos, sinopses, sínteses, elipses, revisões da matéria. E que matéria!
Como se tivéssemos de prestar provas. E não teremos de prestar provas à nossa própria vida depois de lermos sobre esta Vida?
Será o próprio biógrafo que se sente em prova? Ou talvez solidário com o leitor, entre o III e o IV capítulos, o Brasil ficando para trás:
“Quem passa a prova do Brasil na biografia de Agostinho está safo.”
Quem é que está safo? Ele? Nós? Nem me passa pela cabeça pensar que poderia ser Agostinho. Agostinho, se tivesse ficado no Brasil, ainda estaria vivo. Este cantinho mental era demasiado pequeno, as artérias não cabiam em espaço tão acanhado.
E assim terminou o gigante, aquele que não precisava de descansar. As últimas páginas são comoventes, a narrativa do abandono do sopro faz-nos sentir mais sós, como se ele voltasse a abandonar-nos em cada leitura.
Por isso prefiro concluir as minhas impressões sobre esta tese na forma de biografia, com um início.
A tese deste livro seria, na minha atrevida especulação:
No princípio é o verbo, isto é, o livro faz a defesa, no meu entender com muita propriedade, justiça, arte e competência, de que o seu biografado foi especial e quase miraculosamente visitado pelo sopro, tendo, para além da espantosa vida que viveu, um raro talento na área do verbo, que se expressa quer na comunicação oral, quer na palavra escrita.
Quem leu, quem ler, julgará este meu atrevimento.
Maio de 2015
UNIVERSO TÉLMICO. 22
21-05-2015 11:39CARTAS DE AGOSTINHO DA SILVA PARA RUY VENTURA. 05
5
[carimbo do correio – Lisboa, 14.8.1993; meia folha A4]
13.8.93
Irmão Ruy
E quem sabe se não seremos todos um dia de uma Ordem Geral dos Irmãos Servidores, que só daqui a muito[s], muito[s] anos tenha estatuto e cuja Regra essencial seja a de nunca mandar, mas servir, e com gosto e com agradecimento. As Folhinhas, conto eu, não vão acabar, vão agora ser irregulares e decerto aparecerão selos para elas se valerem a pena, o que é discutível. Está bem? Suas coisas e ideias andando firmes? […]
do A.
VOZ PASSIVA. 54
19-05-2015 16:35Do Rio de Janeiro, Carlos Francisco Moura, membro do Projecto António Telmo. Vida e Obra, enviou-nos o número 104 do Círculo da Távola, uma publicação da sua autoria, onde, correspondendo ao repto que lhe lançáramos na Páscoa, evoca num dos artigos a presença dos portugueses em Brasília sob a égide de Agostinho da Silva, na segunda metade da década de 60, com importantes apontamentos históricos sobre os tempos conturbados da Ditadura Militar e a diáspora que Agostinho planeou perante a iminência da implosão do Centro Brasileiro de Estudos Portugueses. Para além de difundirmos hoje, pelos endereços da nossa lista de correio electrónico, a referida publicação, publicamos aqui este escrito belíssimo de Carlos Francisco Moura, que supomos vir a ter continuação. Tal como João Ferreira, radicado em Brasília, Carlos Francisco Moura constitui, a partir do Rio, um dos elos do Projecto António Telmo. Vida e Obra com a memória de António Telmo e Agostinho da Silva no Brasil. São duas presenças que muito nos honram!
[Carlos Francisco Moura, no Aeroporto de Brasília, em 1968]
Os escritores António Telmo e António Quadros e um bolsista do Brasil – 1
Carlos Francisco Moura
Conheci meu ilustre e saudoso Amigo António Telmo Vitorino quando entrei para o Centro Brasileiro de Estudos Portugueses da UnB em 1968.
E logo ele evidenciou seu espírito piadista e irônico.
Ao ser apresentado a ele pelo Diretor, Mestre Agostinho da Silva:
- Telmo este é o Moura, nosso novo colaborador no CBEP. Ele cumprimentou-me e disse:
- Moura você é um homem famoso.
Já desconfiado daquela afirmação descabida, disse:
- Não sabia. Como pode ser isso?
- Camões já cita você!
- Nos Lusíadas?
- Não, naquele poema:
“O dia em que eu nasci moura e pereça”.
A piada provocou o riso de todos os presentes, inclusive Mestre Agostinho.
A citação é do primeiro verso do famoso poema de Camões, baseado nas lamentações de Jó, contidas no Velho Testamento e a palavra
moura está por morra:
“O dia em que eu nasci morra e pereça”.
O Telmo dizia – O Moura é um positivista: só acredita nos documentos históricos. E sabendo que na época eu estava pesquisando o emprego de vidro nas construções antigas portuguesas, resolveu pregar-me uma peça. Comentou com um colega:
- O Moura anda à procura de documentos sobre o uso de vidraças em Portugal, e eu sei de um documento muito antigo, medieval que prova. Só me falta encontrá-lo.
Isso fez-me perder um tempo imenso a ver se encontrava o tal documento, até que, finalmente o Telmo disso rindo – era uma brincadeira. Não conheço nenhum documento mais antigo que os que você tem encontrado.
O Prof. Agostinho da Silva, que havia sido preso político em Portugal antes de vir para o Brasil, e por suas ideias libertárias e utópicas era visto com desconfiança pelo Regime Militar vigente. Com a invasão da UnB pelo exército e outras ameaças, ele reuniu os professores e disse:
- Do jeito que a coisa vai, o CBEP será implodido e, portanto, antes que isso aconteça, vamos organizar a diáspora.
E foi determinando o rumo que cada um deveria seguir. O Telmo, por exemplo, iria para a Espanha.
Deixou-me para o fim, e perguntou:
- Moura você tem dinheiro para a passagem de avião para Portugal?
- De ida, creio que sim, mas como vou manter-me lá, e dinheiro para a passagem de volta?
- Se tem para a ida, embarque logo. O resto a gente resolve depois. Desembarcado em Lisboa, siga para Évora, no Alentejo, e procure o Dr. Petronilho, na Câmara Municipal e o Dr. Armando Perdigão, na Junta Distrital. Lá a Câmara tem uma casa vazia no Jardim Infantil, que conseguimos pusessem à disposição dos bolsistas do Brasil. Você fica lá sem pagar aluguel, e, enquanto isso, procuramos obter uma bolsa da Fundação Gulbenkian, para você se instalar em Lisboa, pesquisar na Torre do Tombo, no Arquivo Histórico Ultramarino, na Biblioteca Nacional e em outras instituições, para prosseguir nas pesquisas iniciadas no CBEP.
Voltei a encontrar-me com o António Telmo em Portugal, e isso foi providencial. Percebendo que eu estava muito preocupado com a bolsa que não saía, ele procurava tranqüilizar-me:
- Fique calmo, tudo vai arranjar-se.
Levou-me de carro, juntamente com a esposa, Profª Maria Antónia Vitorino a várias regiões do interior de Portugal, inclusive a Vila Nova da Barquinha, próximo ao famoso Castelo de Almourol, que fica num rochedo no meio do Tejo.
Em Évora pesquisei vários artigos e consegui que fossem publicados em revistas de cultura de Évora e de Lisboa; não eram pagos, mas elas forneciam um bom número de separatas. Um deles foi Nagasáki, Cidade Portuguesa no Japão, publicado na revista STVDIA, da Junta de Investigação Científica do Ultramar.
Com o passar dos meses, e a bolsa sem sair, minha situação financeira se agravava. Sabedor do agravamento do problema, o Telmo apresentou uma idéia:
- Vá à Gulbenkian, e procure o Orlando Vitorino.
- Ele é seu amigo?
- Não sei se é, mas pelo menos é meu irmão – E deu uma gargalhada.
Depois pensou um pouco e disse:
- Melhor ainda. Vá à Gulbenkian e procure, da minha parte, o escritor António Quadros. Ele é diretor das Bibliotecas Itinerantes da Fundação, e certamente poderá adquirir para elas um bom número de suas separatas.
CORRESPONDÊNCIA. 24
17-05-2015 22:13CARTAS DE ANTÓNIO TELMO PARA ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO. 07
Estremoz
18-3-90
Meu caro António Cândido Franco
Envio-lhe esta carta por Fátima, para que a leia antes de terça-feira. O café, às 18 horas, é o Águias de Oiro, onde o espero e ao seu colega.
Concordo que o “histórico” seja excessivo no seu romance[1], mas não julgo excessivas as minhas palavras de exaltação. Direi, porém, que o peso, que é demora, do enredo histórico com o inútil que há nele em relação ao essencial constitui uma imitação da nossa vida, que se arrasta ao longo dos dias aparentemente feita do que é metafisicamente inútil, mas onde se vai secretamente formando a nossa forma de luz – a ígnea Inês. É este contraste entre o tédio da viagem e as súbitas revelações que há nela que eu também amei no seu livro. O oásis só é porque há deserto.
Vai ficar surpreendido, mas a verdade é que nunca li livro de Herberto Helder. É a segunda vez que me fala dele e a primeira que, com ele, se bem percebi, meu complementar me inscreve na rosácea Templária. Não sei se, ao substituir o triângulo duplo pelo duplo quadrado esteve perfeitamente consciente de tudo quanto a nova figura envolve. Dir-lhe-ei que, no seu desenvolvimento geométrico aparece de novo, no centro, o misterioso hexagrama. Se estiver interessado, e não o souber, podemos falar mais demoradamente sobre isso.
Claro que gostaria de ler Herberto Helder.
Há à venda nas livrarias de Lisboa?
Se não lhe causar incómodo, poderá enviar-me o livro que mais amar dele, emprestado, já se vê, pois não sei quando irei à Cidade.
Terça-feira falaremos sobre a ida a Setúbal.
Não percebi bem do que se trata.
Até lá, um grande abraço do
António Telmo
[1] Nota do editor – António Telmo refere-se ao romance de António Cândido Franco Memória de Inês de Castro, Mem Martins, Europa América, 1993.
UNIVERSO TÉLMICO. 21
15-05-2015 16:02CARTAS DE AGOSTINHO DA SILVA PARA RUY VENTURA. 04
4
[carimbo do correio – Lisboa, 27.7.1993; cartão]
Querido Amigo
Deve estar chegando à sua mão uma Folhinha que ainda tento […] As coisas tomaram agora o caminho […] deveras principia pelas Juntas de Freguesia, mas doravante junto das populações. […], em Portugal, já se escreveu bastante. Falta agir, não lhe parece?
Afectuosamente, A.
DOS LIVROS. 41
12-05-2015 16:32Quos Jupiter vult perdere prius dementat
Assiste-se, nestes anos do fim e do princípio, a dois movimentos que se combinam e misturam perigosamente: o de uma vastíssima corrente, invasora de todo o humano, que se pode caracterizar pela intenção, progredindo de uma consciência oculta para uma subconsciência superficial, de cindir do divino o homem, afundando-o e submergindo-o no sórdido e no macabro, e o de outra, excessivamente obcecada pelo esotérico e seus mistérios, que aceita todas as ligações com o divino desde que este não seja tido e entendido como tal. A ciência tecnológica ou tecnomágica marca o passo e o ritmo de uma e de outra, ela que, na sua pureza newtoniana original, não foi mais do que só isto: uma expressão superior do espírito erguendo-se das trevas para a luz.
Uma e outra, aparentemente contrárias, estão fabricando a demência dos homens, demência que pode ser entendida de dois modos rigorosamente etimológicos: como corrupção da mente humana ou como separação dela da realidade. Quos Jupiter vult perdere prius dementat. Não é a poluição do respirável, do audível, ou do comestível agredindo e consumindo lentamente a vida o propósito primeiro do espírito que nega. É a dementação que persistirá para além da morte, nos prolongamentos subtis do género humano. Para tanto dispõe de múltiplos e indefinidos mecanismos: o do ruído que ensurdece, desorienta e desequilibra, ferindo, como os franceses bem sabem através da sua língua, o entendimento; o da imagem que hipnotiza ou adormece as resistências da alma pondo no íntimo de uma memória esquecida de si múltiplos obstáculos à faculdade de pensar; são constituídos por tudo o que o leitor facilmente reconhecerá invadindo-lhe a casa pela televisão, pela rádio, pelas máquinas de uso doméstico, actuando na escola, no café, nos congressos, no desporto. Para o espírito que nega, se a demência for conseguida tudo o mais virá por acréscimo e consequência. É falso que o homem moderno viva em inquietação. Tornou-se indiferente ao que de monstruoso se vai produzindo, ao crime que perverte a natureza, a todas as formas de homogeneização que lhe destroem a individualidade.
António Telmo
(Publicado em A Terra Prometida, 2014)
CORRESPONDÊNCIA. 23
07-05-2015 20:59
CARTAS DE ANTÓNIO TELMO PARA ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO. 06
Estremoz
7-3-94
Meu caro António Cândido
Já não se chama Portugal mas O Encoberto.[1]
Virá como tudo quanto se sonha com o pensamento. Não sabemos desistir.
Muito obrigado pelos livros enviados. Admirei muito o seu D. Sebastião[2], que lembra o do Cutileiro em Lagos. Muitos parabéns mais uma vez. A dificuldade comigo é conseguir não o admirar.
Por acaso ou sorte, na Quinta-Feira às 15 horas, na sala de Exposições da Biblioteca da Universidade Católica, falarei sobre “O Encoberto: o mito sebástico”.
Terei o prazer de o poder abraçar?
De qualquer modo, abraço-o agora com um grande abraço
António Telmo
[1] Nota do editor - António Telmo refere-se a uma revista projectada no seio do seu grupo, que se não chegou a concretizar.
[2] Nota do editor - António Telmo refere-se ao romance de António Cândido Franco Vida de Sebastião, Rei de Portugal, Mem Martins, Europa América, 1993.
UNIVERSO TÉLMICO. 20
06-05-2015 11:13
Onde a terra se acaba. 03[1]
Agostinho da Silva
Falando Camões da «piscosa» Sesimbra, o que, se sabe, já deu origem a que um comentador, não entendendo que o poeta se referia a peixes, tivesse explicado gravemente que se tratava de piscos, graciosamente substituindo a asa à barbatana, poderia pensar-se que o verso de que tiro o título geral destas notinhas – «Onde a terra se acaba e o mar começa» – lhe teria vindo à ideia peneirando a vista dos altos do Castelo ou das fragas a que se encosta a Califórnia.
A hipótese é pelo menos boa para que no próximo ano em que se lembra haver-se, há quatro séculos, publicado Os Lusíadas, recorde esta vila o Poeta que algumas vezes a deve ter visitado e pense um pouco, largando a fantasia como quem estende rede nas águas, no que seria ele quando ocorreu a visita ou na comparação que entre duas idades poderia fazer, se em mais de uma oportunidade esteve por estes lados.
Talvez tivesse vindo antes de embarcar para a Índia, depois de o terem soltado do Tronco de Lisboa, pois esteve Camões preso, não por engano mas por culpas; o Poeta, efectivamente, não era de piedosas virtudes, já lhe dando bastante trabalho ser o que era para ainda lhe acrescentar o de fingir que o não era; bastantes vezes falou nos erros seus, mas, segundo parece, era o arrependimento de pouca dura; além de tudo, empregava o Governo como soldado: vivia, portanto, da violência, como não. Pois em Sesimbra o imagino, sabendo-se já contratado para matar, depois de ter sido castigado por quase ir matando, a pensar que a má Fortuna, de que também falou em versos seus, o obrigava, para viver livre, a emigrar, como tantos outros de seus compatriotas emigrariam a construir terras estranhas, só uma delimitando para si próprios, o Brasil, e a fazendo grande como sua grandeza e a carregando de sonhos de futuro, seus próprios sonhos, aqui, desfeitos.
Talvez tivesse voltado depois, exactamente nesse ano de 1572 em que seu poema se ia publicar, com uma vida já quase toda para trás e os anos para a frente se anunciando como difíceis, sem bens, sem companhia, sem amor e quase sem esperança, apenas um raiozinho dela luzindo em D. Sebastião; a esse mesmo lhe apagam os fados em Alcácer; e crê «morrer com a Pátria» porque as ilusões da Índia lhe ocultavam o que seria Brasil e o que poderia ser África.
Quem sabe se a mesma Sesimbra das fronteiras entre mar e terra, inspiradoras do verso célebre, lhe não viu compor os outros versos, dolorosos esses, em que renuncia à voz poética e se queixa da indiferença, do desprezo ou da soberba com que lhe acolheram o poema os poderosos do momento, todos laçados pela ganância dos bens e o prestígio das posições, interessados em estar bem com a camarilha real ou, melhor ainda, fazer parte dela, presos aos negócios com as grandes casas bancárias da Alemanha ou Itália, ansiosos, tanto como el-rei, por uma boa campanha de Marrocos que lhe trouxesse a glória de mandar e a satisfação à vã cobiça, e sempre o desdém por quem pensa e escreve ou, pior ainda, também pensa e não escreve porque nem escrever sabe, ou já desaprendeu, ou o duro trabalho lhe não dá hora vaga.
É bom lembrar o Camões da estátua, e é bom lembrar, para que não mais os haja, o Camões da fome; é bom lembrar o Camões das bibliotecas e das escolas, e é bom lembrar que niguém praticamente lê Camões, a não ser a minoria que o roça lá pelo 5.º ano, ou ainda a menor minoria que ouve prelecção de Faculdade; é bom lembrar o Camões da Fé e do Império e é bom lembrar o que perdeu saúde e sangue, por aí se irmanando com aquela verdadeira sua grei que o mesmo fez e faz por América, África, e Europa e Ásia. Sobre esse segundo bem do contraponto gostaria eu que Sesimbra, lembrando, meditasse.