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VOZ PASSIVA. 58
23-07-2015 14:36Os escritores António Telmo e António Quadros e um bolsista do Brasil – 2
Carlos Francisco Moura
Ler aqui a primeira parte:https://antonio-telmo-vida-e-obra.webnode.pt/news/voz-passiva-54/
[“Árvore chamada Jenipapeira e gente que pede esmola para a Festa do Espírito Santo Diamantino da Província de Mato Grosso. Janeiro, 1828. Hercules Florence.” A Expedição Langsdorff em Mato Grosso: desenhos e pinturas inéditos há 150 anos]
Por indicação do Antonio Telmo fui procurar o Escritor Antonio Quadros, Diretor da Bibliotecas Itinerantes da fundação Calouste Gulbenkian.
- A quem devo anunciar?
- Um bolsista do Brasil.
António Quadros recebeu-me com a maior simpatia:
- É sempre com alegria que recebemos estudantes do Brasil que vêm estudar suas origens.
Mais satisfeito ficou ainda ao saber que trabalhava com Mestre Agostinho da Silva, e era amigo do António Telmo.
Expus o problema que estava tendo com a demora da concessão da bolsa e, por sugestão do Antonio Telmo, vinha propor a venda de exemplares da separata “Nagasáki, Cidade Portuguesa do Japão”, artigo publicado na Revista Stvdia, do Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, primeiro estudo publicado em Portugal
sobre a fundação da famosa cidade do Japão.
Antonio Quadros gostou muito do estudo, e comprou logo um bom número de separatas para as Bibliotecas Itinerantes..
Perguntou de que região de Portugal era minha família, e ao saber que da região de Coimbra, Província da Beira Litoral, chamou um senhor que estava trabalhando numa sala próxima:
- Branquinho, quero apresentar-lhe o Carlos Moura, que veio do Brasil fazer investigações históricas. A Família dele também é da sua região. Conte para nós uma daquelas suas histórias das montanhas da Beira.
Era o escritor Branquinho da Fonseca, que relatou, diante de nós um dos seus famosos contos: A Capela do Diabo. Uma experiência única: ouvir de viva voz de um grande autor, um conto antológico.
Não devo a António Quadros apenas a compra de separatas. Ao se despedir de mim, ele recomendou – O estudo sobre a fundação de Nagasáki é muito interessante, sugiro que procure o Prof. Artur Anselmo: ele coordena verbetes para o Dicionário da História de Portugal, de Joel Serrão.
Fui falar com o Prof. Artur Anselmo, e ele encomendou-me a redação do verbete Nagasaqui, para o Dicionário de Joel Serrão, e também conseguiu que escrevesse outro verbete Nagasáqui para a Enciclopédia Verbo. Os verbetes, posteriormente, saíram também nas segundas edições dessas obras. Assim, eu, recém-chegado do Brasil, sem conhecer quase ninguém da área acadêmica em Portugal, graças às indicações dos Professores Antonio Telmo, António Quadros e Artur Anselmo, em
pouquíssimo tempo tive textos de minha autoria publicados em obras de referência em Portugal. Encontrei-me com o Prof. Antonio Quadros outras vezes em Portugal, em conferências e eventos culturais. De volta ao Brasil, mantive correspondência com ele. Quando ele vinha ao Rio, ficava geralmente num hotel em Copacabana, na Av. Princesa Isabel. E telefonava-me: - Carlos Moura estou por apenas dois dias no Rio, pois sigo logo para S. Paulo e Brasília. Se você tiver tempo e puder passar pelo hotel, gostaria de saber o que anda estudando.
Num desses encontros ocorreu um fato singular.
- Vou fazer uma surpresa ao Professor: oferecer-lhe exemplar do meu livro que acaba de ser publicado: A Expedição Langsdorff em Mato Grosso: Desenhos e Pinturas inéditos há mais de 150 anos.
Cumprimentou-me pela publicação e ao abrir o livro uma surpresa ainda maior: a primeira página que apareceu foi a de número 58, que continha a reprodução de uma aquarela a cores intitulada “Árvore chamada Jenipapeira e gente que pede esmola para a Festa do Espírito Santo”, datada e assinada pelo autor “Diamantino da Província de Mato Grosso, janeiro, 1828 Hercules Florence”.
Uma surpresa e uma coincidência enorme, por ser o Prof. António Quadros estudioso da Festa do Espírito Santo, e abrir o livro justamente nessa página.
Basta lembrar dois estudos primorosos que publicou: Portugal Razão e Mistério: Introdução ao Portugal arquétipo – A Atlântida desocultada – o País Templário – Livro I Uma Arqueologia da Tradição Portuguesa (Lisboa: Guimarães Editores Lda, 1986) e Portugal Razão e Mistério, II – O Projeto Áureo ou o Império do
Espírito Santo, 2ª Edição (Lisboa: Guimarães Editores, 1987).
BIBLIOGRAFIA
“Nagasaki, Cidade Portuguesa no Japão”. In: Revista Stvdia, nº 26, Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, abr.1969, PP.115-148, Il.
“Nagasáqui” In Dicionário da História de Portugal, dirigido por Joel Serrão, 1ª. Edição, Lisboa: Iniciativas Editorias, 1971, PP. 448-449.
“Nagasáqui” In: Verbo Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, 1ª. ed., vol. 13º. Lisboa: Ed. Verbo,1972, p. 1661.
“Nagasaki cidade portuguesa do Japão”, In: Boletim do Museu e Centro de Estudos Marítimos de Macau, no. 1, Macau, China, Julho 1988, 18 p.
“Nagasáqui” In Dicionário da História de Portugal, dirigido por Joel Serrão, 2ª. Edição, Porto: Livraria Figueirinha, 1984, pp. 448-449.
“Nagasáqui” In: Verbo Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura Edição Século XXI, vol. 20. Lisboa / São Paulo: Editorial Verbo, 2001, pp. 1004-1005.
A Expedição Langsdorff em Mato Grosso: Desenhos e pinturas Inéditos há mais de 150 anos. Rio dde Janeiro: Universidade Federal de Mato Gosso / Editora Imprinta, 1984.
VOZ PASSIVA. 57
20-07-2015 13:50
Apresentação do livro
UM ANTÓNIO TELMO – MARRANISMO, KABBALAH E MAÇONARIA
Pedro MARTINS, 2015, Col.‘Tomé Nathanael - Estudos sobre António Telmo’, Ed. Zéfiro, Sintra
Rui Arimateia
Estremoz, 20 de Junho de 2015
Notas introdutórias
Diz-nos Daniel Serrão que:
“O futuro do Homem é viver num Universo colectivo de inteligências comunicantes onde não haverá nem mestres que ensinem, nem discípulos que aprendam. Todos aprenderão com todos.”
A frase anterior poderia constituir uma das ideias-força do pensamento não só de António Telmo mas também de Agostinho da Silva e de toda uma plêiade de escritores e de pensadores que honram com os seus trabalhos e reflexões a língua e a filosofia portuguesas, e onde poderemos adivinhar, latente, a famosa tríade da Revolução Francesa e adoptada pela Franco-Maçonaria: Liberdade, Igualdade e Fraternidade.
António Telmo, foi de facto um homem livre e de livre pensamento ao serviço da Obra!
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Digo desde já que este não foi para mim um livro de fácil leitura, tive necessidade de recorrer aos dicionários e a trabalhar alguns conceitos filosóficos e teológicos menos comuns mas fundamentais para a abordagem e para a possível compreensão da obra télmica. Por outro lado, são citados neste livro de Pedro Martins, como importantes para o entendimento das múltiplas facetas abordadas de António Telmo, nada mais nada menos do que 118 autores, muitos deles de conhecimento e leitura obrigatórios para uma profunda compreensão do texto e das ilações retiradas dos escritos de António Telmo.
O trabalho de Pedro Martins agora publicado, que trata, no fundo, de uma proposta de desocultação da Obra de António Telmo, fez-me reflectir sobre a forma de a olhar que necessariamente será semelhante mas simultaneamente diferente da forma de olhar de outro sobre a mesma Obra. Perante a mesma substância temos miríades de formas de a olhar, de a compreender. É esta a riqueza do legado filosófico de Telmo. A liberdade que nos dá para até ele chegarmos e a surpresa que eventualmente possamos experimentar quando constatarmos que no final da Obra estaremos todos de mãos dadas, tal Cadeia de União Simbólica, porque a sua finalidade última, penso eu, será o Encontro com a Unidade e a Unicidade da Vida e a certeza de que a Vida vencerá a Morte!
Assim, olhando com “olhos de ver” a obra de António Telmo, intuímos que se encontra “contaminada” com a tríade filosófica atrás referida – Liberdade, Igualdade, Fraternidade – que imediatamente nos coloca num registo de compreensão enquadrada numa “Escola de Pensamento” cujo fio condutor nos leva pelo menos até aos antigos Mistérios da Filosofia Perene da Idade Média, de Roma e da Grécia… a Escola Universal dos Livres Pensadores Franco Maçons.
Contudo, metodologicamente teremos de encontrar outras ferramentas de abordagem que nos permitam uma compreensão mais profunda – e dentro de cada um de nós – das mensagens que António Telmo intuiu e nos tentou transmitir. No fundo cabe a cada um de nós encontrar uma chave simbólica que consiga penetrar na fechadura dos mistérios télmicos, desocultando a Sageza aí latente.
Uma dessas abordagens é a poética. Só a poesia entra em esferas inatingíveis para os estados normais e normalizados de vigília (ou adormecimento?). Só a poesia é detentora de uma linguagem que permite uma comunicação com o Todo e com o Uno, e a linguagem de Telmo é de facto uma totalidade que nos envolve, que nos penetra nos nossos poros, que nos alimenta como uma Mãe – como uma Tellus Mater...
Outra abordagem possível será a analógica. Talvez porque só analogicamente, só pesando no nosso mais íntimo Ser, realidades diferentes nós possamos ter consciência de todo o processo histórico, mítico e humano e da transmissão dos Mistérios através dos séculos e das diferentes Culturas.
Ainda uma outra abordagem será a imaginária. A imaginação criadora (realidade filosófica tão querida do nosso António Telmo) realiza milagres, pequeninos milagres (haverá outros?) tais como: o desabrochar do significado oculto de uma palavra... o sorriso envergonhado de uma metáfora que se debruça e nos espreita do fundo de um texto... aquele conceito lá muito no profundo poço do nosso subconsciente que nos devolve a nossa imagem refletida... a sombra e as contra-sombras de um texto mais esotérico... um grito latente de desespero ou de alegria... uma palavra que adivinhamos... o harmonioso cântico da Vida e do seu Mistério...
Agarremos então nestas (e porque não noutras que possamos inventar?...) ferramentas de “observação”, de “escuta” e de “exegese simbólica” e partamos em demanda das profundezas Télmicas. Veremos que talvez se entreabra a porta do coração, do nosso coração, para as sentir, para as intuir, para as olhar, para as ver e compreender no mais íntimo do nosso Ser.
Diz-nos António Telmo, na sua História Secreta de Portugal, que estamos “num mundo onde a presença do mistério impõe que nada se possa realmente saber fora dos termos desse mistério. Assim, os mais lúcidos e imprudentes não desistiam de procurar a palavra perdida da Sabedoria.”
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Breves reflexões sobre o livro
Do Texto introdutório[p. 11]
Abre este livro com um notável excerto de Álvaro Ribeiro [in “A Literatura de José Régio”], que nos apresenta uma brevíssima mas muito clara caracterização cultural do povo judeu, remetendo para o livro de Sampaio Bruno, “O Encoberto”, onde este autor refere que a principal causa da decadência dos povos peninsulares resultou como consequência da expulsão dos judeus no século XV…, ainda no reinado de D. Manuel.
Matéria interessantíssima para pesquisa e para reflexão, contudo fora do âmbito dos ensinos oficiais dos poderes dinasticamente instituídos, antes e após o 25 de Abril de 1974.
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Do Prefácio, por António Carlos Carvalho [pp. 13-18]
“Quem foi, quem é António Telmo? Partiu há quase cinco anos, deixando-nos uma saudade imensa, um vazio que nunca conseguiremos preencher, uma vasta obra por decifrar, um exemplo de filósofo errante e exilado na sua própria terra, como sempre acontece neste País envolto em brumas de inveja. Mas desde então a sua ausência física tornou-se presença constante entre aqueles que o conheceram e os que o vão descobrindo nas páginas que publicou. (…) foi alguém que buscou precisamente a luz e soube transmitir as suas centelhas nas reflexões que nos legou. (…).”[p.14]
Explicação [pp. 19-26]
Com este pequeno capítulo introdutório à obra agora analisada pretenderá Pedro Martins, muito sinteticamente, problematizar os pontos abordados ao longo do livro. Nomeadamente a condição de marrano em António Telmo que marcou consciente ou inconscientemente a sua obra e a sua vida. Mais do que um sincretismo religioso, assumido por António Telmo, a questão cripto-judaica aparece “resolvida” interiormente mas sintetizada de modo poético, filosófico e vivencial com uma assunção do Cristianismo… mas também do ocultismo Cabalístico e de todo um conjunto de referências teosóficas e maçónicas.
Diz-nos Pedro Martins sobre António Telmo:
“Ímpar pensador do ocultismo entre nós, é pelo lado de dentro que António Telmo opera a conciliação, ali onde o cristão gnóstico e o cabalista judeu subtilmente se concertam pela interioridade harmónica do recôncavo gnósico. A kabbalah de António Telmo é aquela que ressuma das páginas d’O Bateleur: uma síntese portuguesa da kaballah hebraica que remonta a Moisés e da kabbalah cristã que remonta a Cristo.”[p. 20]
São referidos os livros onde António Telmo abordou estes temas, nomeadamente “História Secreta de Portugal”, Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões”, “Congeminações de um Neopitagórico”, “A Aventura Maçónica – Viagens à Volta de um Tapete”, “Filosofia e Kabbalah”, “Viagem a Granada”, além de serem igualmente nomeados autores que muito importaram na obra e no pensamento de António Telmo: Álvaro Ribeiro, Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra, António Quadros, José Marinho, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa, Luís de Camões, Agostinho da Silva,Natália Correia, Herberto Helder e ainda Luís António Verney, Pascoal Martins e Luís de Camões.
Teoria do Marranismo
“Tudo em Portugal, se explicará pelo compromisso do consciente cristão com o subconsciente hebraico.”
[in António Telmo, 1989, Filosofia e Kabbalah, Guimarães Editores, L.da, Lisboa]
Importante a referência à filiação maçónica de António Telmo para a conciliação e harmonização das questões teológicas, tanto judaicas como cristãs.
Podemos então ler na página 35: “(…) A Ordem maçónica intenta conciliar, por via de uma síntese harmonizadora, estes dois aspectos antagónicos do mundo divino, graças ao equilíbrio incessantemente promovido por Schadaï (ou El Schadaï), assimilável, segundo a lição de Benzimra [in Contribution Maçonnique au dialogue entre les religions du Livre – Le grand secret de réconciliation, Paris, Dervy, 2010, p. 160], ao Grande Arquitecto do Universo que os franco-maçons procuram glorificar com o seu trabalho. (…).”
Agostinho da Silva, O Marrano do Divino [pp. 29-90]
Este é o capítulo mais longo da obra em referência em que o autor nos leva, metaforicamente falando, numa viagem com os dois companheiros de vida e de pensamento, António Telmo e Agostinho da Silva, através das concordâncias mas também através das suas dissonâncias conceptuais. Não só em relação às questões e problemáticas ligadas com o marranismo e também a muitas outras que, no fundo, caracterizam as especificidades idiossincráticas de natureza espiritual, filosófica e literária dos dois autores.
Assim, são por Pedro Martins rigorosamente identificadas algumas subtis nuances de pensamento entre os dois filósofos, nomeadamente na assunção da condição de marrano, e mais conceptualmente em assuntos de mor importância para a compreensão dos seus pensamentos e filiações filosóficos.
Por exemplo, poderemos ver a pequena citação de um texto de António Telmo sobre a tecnologia nas sociedades modernas, referindo a posição de Agostinho da Silva sobre a matéria e sobre a evolução das concepções de trabalho e de ócio nas sociedades ideais, bafejadas pelo sopro e inspiração do Espírito Santo:
“Agostinho da Silva vê o perigo. Os computadores podem libertar os humanos do trabalho, mas ao mesmo tempo tornar tudo previsível, como já se começa a ver em meteorologia. Ora sendo o imprevisível manifestação do Espírito Santo, tornar tudo calculável não será como que um esboço do único pecado imperdoável”.[p.38][in António Telmo, A Terra Prometida: Maçonaria, Kabbalah, Martinismo e Quinto Império, pp. 74-75]
No seguimento deste desencontro entre António Telmo e Agostinho da Silva, refere-nos Pedro Martins, à p. 38:
“(…). Noutro escrito, desta feita uma prancha maçónica, (…), o filósofo, coberto pelo recato secreto e restrito dos adeptos, ao reflectir sobre o mal entrevisto na “aplicação do sistema binário que tornou possível a cibernética” [António Telmo, A Aventura Maçónica – Viagens à Volta de um Tapete…, Sintra, Zéfiro,2011, pp. 54-55], pôde afirmar:
“Não é difícil ver para onde isto aceleradamente nos encaminha. A Humanidade degenerará numa vastíssima comunidade de autómatos, obedecendo a comandos electromagnéticos. Todos estarão em linha, mas não haverá, dentro de poucos anos, um único obreiro que possa dizer-se livre. Alguns admiradores da tecnologia, como esse extraordinário homem que foi entre nós Agostinho da Silva, têm pensado que ela nos libertará do trabalho que escraviza, proporcionando-nos o ócio paradisíaco que nos deixará todo o tempo para cultivar a Beleza, a Força e a Sabedoria. Se ele caiu nesse engano, todos nós podemos cair. A época pós-moderna pode aparecer-nos como a idade do Espírito Santo, prometida pelas profecias. Todavia, assim como não devemosconfundir a internet com o Livro da Vida onde o G.A.D.U. tudo regista, também devemos ver que o império do número não é o Quinto Império.”
Outra dissonância muito interessante entre António Telmo e Agostinho da Silva, e que nos põe a reflectir é a concepção que os dois diferentemente possuem do ser-criança. A apresentação desta dissonância por Pedro Martins faz-se através da apresentação de dois textos fundamentais dos dois filósofos compadres:
De António Telmo que deixou escrito um texto inédito intitulado “Infância e Conhecimento”, agora publicado integralmente em livro. Eis um excerto:
“Todos nós nascemos não para sermos os homens que somos; a natureza cria-nos para ser outra coisa; aquilo de que a criança é embrião ou desaparece completamente no homem feito, a que Fernando Pessoa chamou “cadáver adiado”, ou se reclui numa intimidade impenetrável; a educação, não só a do Estado mas também essa, desvia o que noutros tempos constituía o curso inevitável da natureza (a criança é o ser que cresce) e, em lugar de desenvolver esse embrião de poder e conhecimento, faz o pobre ser frágil que é o adulto – poltrão, vaidoso, cuja afirmação de si não é mais estúpido do que o esconder de uma radical insegurança. Ai de quem denunciar essa insegurança!”
Por sua vez, de Agostinho da Silva recorda-nos o seu livro Educação em Portugal [1996, Ed. Ulmeiro, Lisboa, pp. 23-24], “onde a criança ocupa um lugar central na economia do pensamento agostiniano”[p. 42]. Um excerto:
“O ponto fundamental do culto popular do Espírito Santo não é, porém, nem o banquete comum e livre, nem o soltar dos presos, nem a procissão que segue a pomba, no estandarte ou coroa; é a instalação de uma criança como imperador do mundo. No paraíso terrestre que se quer dispensam-se os adultos de todas as funções dirigentes que têm tido até hoje e se declara mais importante que tudo quanto possam ter sido na vida o menino que foram e tão infelizmente morreu, declara-se que todos os Imperadores de qualquer Império declarado Santo pela vontade, os interesses e os apetites dos homens, devem ceder seu trono às características infantis de atenção contínua à vida, de existência total no presente, de ignorância de códigos, manuais e fronteiras, de integração no sonho, de valorização do jogo sobre o trabalho, de simpatia pela cigarra, que logo a nossa escola substitui pelo aplauso à formiga, já que uma convém à alegria, apenas, e a outra ao lucro.”[p.42]
Para Agostinho da Silva – a criança ficará cristalizada, em estado de inocência, gerindo os destinos do Império. Contudo, a inocência, sem uma conscientização trabalhada intimamente, interiorizada através da experiência e da educação, poderá gerar ignorância, insegurança…
Para António Telmo – criança é o ser que cresce, o adulto em devir; a criança, através da educação deverá atingir o estado adulto com uma inofensividade (ahimsa) que a tornará um “príncipe, isto é, um ser que em si tem o seu princípio e do qual o Infante é o seu perfeito símbolo.”
Recordemos o Infante do poema Eros e Psique de Fernando Pessoa:
“(…).
E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era A Princesa que dormia.”
Inofensividade é um estádio de evolução psicológica e espiritual que acontece após a fase de inocência da criança; é um estádio em que a reflexão e o autoconhecimento constroem um homem novo. Nos contos do maravilhoso, o Príncipe e ou a Princesa, no início da saga encontram-se normalmente num estádio de graça onde a inocência impera! Através das provas físicas e psicológicas, através da experiência perigosa de contacto com o mundo real, vão adquirir força, beleza e sabedoria interiores suficientes para assumirem a transformação/crescimento do Ser e, através da escolha e do livre arbítrio transmutam a inocência (estádio inconsciente) em inofensividade (estádio consciente). O autoconhecimento tem aqui um papel fundamental.
Não resisto a apresentar o “poema de infância” da autoria de Maria Beatriz Serpa Branco, em casa de quem tive o prazer de conhecer o António Telmo nos inícios dos anos 80 do século passado, do seu livro de poemas “A face e as sombras” [Colecção Daimon, Evora, 1959]:
“como deuses vivendo-se em disfarce
deuses de velhos mitos as crianças
descem do horizonte da distância
e vêm por um dia
a habitar nossa vileza
como deuses mendigos as crianças
vêm a provocar nossa riqueza
pedindo em sabedoria
as migalhas de saber
da nossa mesa vazia”
De Telmo a Herberto, Os Passos em Volta: Notas para uma Propedêutica do Agnosticismo Marrano[pp. 91-105]
Herberto Helder Luís Bernardes de Oliveira, nasceu a 23 de Novembro de 1930 no Funchal, ilha da Madeira, no seio de uma família judaica. Conviveu literariamente, em Lisboa, com o grupo do Café Gelo de que faziam parte nomes como os de Mário Cesariny, Luís Pacheco, António José Forte, João Vieira e Hélder Macedo. Em 1958 publica o seu primeiro livro: O Amor em Visita.
Pedro Martins faz-nos uma brilhante proposta de uma desocultação sobre as condições marrânica e cabalística, tendo como objecto de estudo o livro de contos publicado em 1963 (ano em que António Telmo publica o seu primeiro livro – Arte Poética) por Herberto Helder, Os Passos em Volta, estabelecendo uma comparação do conteúdo dos diferentes contos com a obra e a evolução do pensamento de António Telmo, tendo sempre subjacente leituras de um sentir interior judaizante e cabalístico. É obrigatório ler o livro de contos de Herberto Helder, considerado uma espécie de autobiografia do poeta. Contos marcados por uma estética surrealista, em que faz passar conteúdos literários marcados pela inquietação e inteligência (como dizem Pedro Martins e António Telmo: “os dois grandes indícios judaizantes” dos cripto-judeus, dos marranos…), pela morte, pelo agnosticismo, pela prostituição “sagrada”, pela demanda errática, pela experiência psicologicamente subterrânea de vida. No final do capítulo, Pedro Martins sugere-nos a leitura de um excerto do conto “Holanda”, em que o poeta fala de si:
“Sente-se como um apóstolo sem fé. Desejaria morrer, arder no fogo apocalíptico das cidades. Ou ser devorado pela lucidez, estiolar de excessiva inteligência no meio da loucura campestre. Tradição, compreende uma: ama-a. Perdeu o nome, essa sabedoria. Beleza, é pouco. Verdade, é muito. Trata-se de um termo subtil que participa de uma e outra, que se tornou inútil, insensato.”[p.104]
Pensamento Pós-Atlântico[pp. 109-142]
Os ensaios apresentados por Pedro Martins inseridos no capítulo Pensamento Pós-Atlântico, abordando o encontro entre António Telmo, António Quadros e Teixeira de Pascoaes, pretendem “mostrar que a kabbalah, em António Telmo, se constitui como um regresso à terra e a terra – a uma terra firme, mas vivificada pela descensão das energias espirituais (…). Mais do que o marrano está aqui em causa o kabbalista (…).”
Hermenêutica Camonina [pp. 145-182]
Diz-nos Pedro Martins que:
“A Hermenêutica Camonina, tema central do pensamento télmico onde o marranismo, o cabalismo e o maçonismo naturalmente afluem, autonomiza e domina a terceira parte do livro, em que a conversação do filósofo com o poeta ora se firma de um modo directo, ora se estabelece pela interposta pessoa de Verney.”[p. 24]
Verney que não conseguiu ou não quis penetrar nas profundidades da poesia e do pensamento do fiel-de-amor que foi Luís de Camões, principalmente através das mensagens cifradas na sua obra-prima “Os Lusíadas” e que António Telmo tão bem intuiu e apresentou nas suas reflexões ao longo de toda a sua vida literária e filosófica.
As palavras de António Telmo mais uma vez elucidam, recorrendo ao seu mentor:
«(…).
Álvaro Ribeiro dá em A Razão Animada o preceito central de hermenêutica: “A leitura de escritos que versem acerca dos problemas humanos, dos segredos naturais e dos mistérios divinos só é útil na medida em que o leitor pratique a autognose.”
(…).
“Conhecer-se a si próprio é, efectivamente, conhecer-se como espírito. A energia primordial que assim é dada à consciência não deve, porém, ser confundida com o pensamento, segundo o erro de Descartes, nem com os princípios da lógica escolar, segundo o erro de Hegel.”
Todavia:
“Ao conhecer-se a si próprio, gnosicamente, o homem adquire a certeza que pensa e raciocina para se relacionar com o espírito universal…”
(…).»[in António Telmo, 1989, Filosofia e Kabbalah, Guimarães Editores, Lisboa, pp. 99-100].
Da Inveja, essa hiena da alma [pp.183-199]
Remeto mais uma vez para as palavras de Pedro Martins:
“Na última parte, Da Inveja, essa hiena da alma de que nos fala Telmo, surgem dois dos mais altos espíritos portugueses do século que passou, Leonardo Coimbra e Fernando Pessoa. Irmanados na morte, pois que a ambos os levou a Parca em pouco mais de um mês, nessa dobra fatídica do calendário de 35 para 36, ei-los também irmanados em vida pelo génio cintilante da palavra que os faz sofrer as agruras da invídia, o desencanto da I República e o embate agreste do Estado Novo. (…).
(…). A inveja, que matou Mestre Hiram, é simplesmente o não querer ver, trate-se da verdade do amor ou da verdade da razão…”
Mais uma vez a palavra a António Telmo:
«(…). Todos somos filhos da Inquisição. Os nossos antepassados transmitiram-nos pelo sangue o medo e, mais do que o medo, a censura automática a tudo quanto seja menos certinho, a qualquer desvio da norma geral, em suma, à afirmação de uma personalidade original. Na aliança do medo e da autocensura emerge a inveja, essa hiena da alma.» [pp. 95-96]
[in “Marranos”, 2014, António Telmo, A Terra Prometida – Maçonaria, Kabbalah, Martinismo e Quinto Império, Col. ‘Obras Completas de António Telmo’, Vol. I, Edições Zéfiro, Sintra.]
Conclusão e Agradecimentos
Uma palavra de agradecimento a Pedro Martins pelo desafio proposto e a todos os Amigos e Amigas do Projecto António Telmo. Enquanto se trabalhar e pensar a Obra de Telmo este estará vivo e presente entre nós, continuando a sua excelsa obra hermenêutica e de desocultação da língua, da cultura e do génio português.
Obra labiríntica esta a de Pedro Martins, mas também labiríntica se poderá considerar a Obra de António Telmo. Contudo, simbólica e mistéricamente, o Labirinto foi feito para chegarmos sempre ao Centro. A questão de encontrarmos ou não o Minotauro no Caminho para o Centro e a questão de o dominarmos ou não durante a nossa Demanda é outra conversa! A natureza do Minotauro confunde-se com a nossa própria natureza e a escolha é única e exclusivamente nossa, e como na fábula: teremos de decidir se alimentamos o lobo mau ou o lobo bom...
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* *
PEDRO MARTINS - NOTA BIOGRÁFICA
Pedro Martins nasceu em Lisboa em 22 de Janeiro de 1971. Jurista e advogado, licenciou-se em 1993, pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Pós-graduou-se em Sociologia do Sagrado e do Pensamento Religioso, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa. Vive há muito em Sesimbra. Ali ou em Estremoz, conviveu uma década bem contada com António Telmo, de quem é um continuador. É autor dos livros O Anjo e a Sombra: Teixeira de Pascoaes e a Filosofia Portuguesa (2007); O Céu e o Quadrante: desocultação de Álvaro Ribeiro (2008); O Segredo do Grão Vasco: de Coimbra a Viseu, o 515 de Dante (2011); Teoria Nova da Saudade (2013); Agostinho da Silva em Sesimbra (em colaboração com António Reis Marques, 2014); e Cartas de Agostinho da Silva para António Telmo (em colaboração com João Ferreira e Rui Lopo, 2014). Tem colaboração nas revistas A Ideia, Devir, Invenire, Callipole, Nova Águia, Teoremas de Filosofia e Cadernos de Filosofia Extravagante, de que foi coordenador entre 2009 e 2013. Membro fundador do Projecto António Telmo. Vida e Obra, integra a coordenação editorial das Obras Completas de António Telmo, em curso de publicação na Zéfiro. Integra a equipa de investigadores do projecto “Redenção e Escatalogia no Pensamento Português”, da Universidade Católica Portuguesa, onde irá colaborar com artigos sobre Grão Vasco, Jaime Cortesão e António Telmo.
CORRESPONDÊNCIA. 26
14-07-2015 12:29UMA CARTA INÉDITA DE ANTÓNIO QUADROS PARA ANTÓNIO TELMO (NO 92.º ANIVERSÁRIO DO AUTOR DE PORTUGAL, RAZÃO E MISTÉRIO)
Lisboa
12.2.87
Meu caro António Telmo:
Agradeço-lhe a sua carta, sobretudo porque é bom reflectir um pouco em diálogo com uma pessoa como você.
Duas palavras, a principiar, acerca das ideias do centro e da revista. Depois dos meus almoços, trocas de impressões, etc., estou francamente desanimado quanto a tais possibilidades, pois verifico que os discípulos estão ainda mais divididos, ora por razões de pensamento, ora por causas pessoais, de que imaginava.
Seria necessário da minha parte um enorme esforço e para isso seria preciso colocar entre parêntesis os projectos de obras que tenho em perspectiva. Entre outros menores mas que também darão trabalho, principalmente o III vol. de Portugal, Razão e Mistério, que talvez afinal se intitule (para não ser demasiado saudosista), Da glória do Império ao desafio do Futuro; e a Introdução à Filosofia Portuguesa ou título parecido com este, cujo esqueleto já está delineado e vários textos aprontados, pois tive de os preparar para o curso da Universidade Gama Filho. Um outro livro em perspectiva para breve, é O Primeiro Modernismo Português . Da Vanguarda à Tradição (Pessoa, Sá-Carneiro, Almada, os futuristas, A. Ferro, Sousa Cardoso, Raul Leal, etc.)
Acho que você é capaz de ter razão, os sessenta anos são próprios para fazer obra mais sólida e avessos ao tipo de acção do 57. Uma parte de mim continua a querê-lo, mas há também uma aversão à ideia de perder tempo com coisas fugazes, quando a margem que temos à nossa frente vai diminuindo rapidamente.
Mas, até à Páscoa, compromissos grandes me ocuparão, só nessa altura podendo lançar-me àqueles dois livros de fundo.
O II vol. de Portugal… está quase a sair, assim como o 10.º vol. da Obra em Prosa de Pessoa na Europa-América. Quanto àquele, cerca de 1/3 parte é dedicada aos Painéis, que expressamente procurei interpretar nos quatro planos de Dante: o literal, o ético, o alegórico e o anagógico. Verá o resultado em breve. Quanto ao Pessoa, julgo que num dos volumes, que intitulei A procura da verdade oculta, sintetizei no prefácio, talvez bastante melhor do que até aqui, o pensamento filosófico, neo-pagão e gnóstico do poeta.
Noto que estou a falar demasiado de mim e pouco de si. Mas, creia, a sua obra está sempre presente (embora em leitura selectiva, no que está mais de acordo com o que sinto e penso), no que faço em áreas afins.
Por hoje, tenho que terminar.
Um abraço do seu amigo dedicado,
António Quadros
VOZ PASSIVA. 56
08-07-2015 22:54A misteriosofia
Risoleta C. Pinto Pedro
Sobre o livro de Pedro Martins:
Um António Telmo, Marranismo, Kabbalah e Maçonaria
À aproximação do solstício, passei da mesa da cozinha, onde li o Colosso de António Cândido Franco sobre Agostinho da Silva, para o terraço, para ler o livro de Pedro Martins sobre António Telmo e as três colunas, digo, Marranismo, Kabbalah e Maçonaria.
O livro guia-nos entre filosofia e bibliografia, fazendo-nos esquadrar as acima citadas colunas.
Entretanto, quando chovia, eu recolhia ao templo casa. Foi pois num verdadeiro percurso errático judaico entre sol e chuva, que se escreveram estas linhas.
Tal como afirmou, muito acertadamente, Miguel Real numa apresentação deste livro, a identidade dos marranos ou cristãos novos foi sendo feita ao longo dos séculos pela duplicidade de ser e não poder mostrar-se como se é. Também os maçons dizem que nem todo o segredo pode ser revelado. Por razões diferentes. Ou talvez não. Uns e outros encontram-se perante o dualismo do que se esconde sob o que se revela. Entre ambos, como fio que liga, a Kabbalah. É isso que se verá neste livro, entre outras surpresas ou revisitações refrescadas pelo olhar agudo e original do autor. E de sua musa.
Livro muito importante, porque vem pôr em causa algumas crenças ou ideias mais ou menos assentes, como por exemplo, a da origem do culto do Espírito Santo.
Telmo é o fio condutor na análise ou detecção, ora de marranismo, ora de judaísmo, e ainda de gnosticismo, como um vedor procurando ocultos veios de água com uma vara de radiestesia, começando pela génese das cantigas de amigo e a muito possível influência do Cântico dos Cânticos.
O pensador aparece aqui, em todas as suas dimensões, como um sol, ou citando Pedro Martins: “ o centro de um círculo cujo perímetro se define pela irradiação de oito linhas dialogantes com outros tantos autores portugueses: Herberto Helder, António Quadros, Teixeira de Pascoaes, Luís de Camões, Luís António Verney e Leonardo Coimbra” assim como “Agostinho e Pessoa”.
E o livro é um excelente guia que nos conduz pelo meio das mentes mais brilhantes dos últimos séculos. Com Telmo como ponto de partida. E de chegada.
É através do seu pensamento, como uma rigorosa medida psicológica, que nos apercebemos da maior aproximação destes autores ao marranismo. E da irregularidade de percurso do próprio Telmo, na sua História Secreta de Portugal, que mais tarde, sem autocomplacência, como afirma o autor, corrigirá.
É, aliás, a António Telmo, que Pedro Martins, por sua vez glosando o mestre numa afirmação relativamente a Álvaro Ribeiro, declara “ter podido escrever quanto” escreveu. E assim se forma uma cadeia de aprendizes mestres de mestres. Di-lo claramente sem presunção, como pode verificar-se pela leitura do livro.
Pedro Martins vê-se como um continuador. É, de resto, curioso que não figurando ainda entre os incluídos no livro António Telmo e as Gerações Novas, por ser uma edição de 2003 e o seu contacto com Telmo ser, então, relativamente recente, de três anos, tenha sido ele a escrever o primeiro livro de um autor sobre o filósofo. O livro sobre o qual este texto se debruça. Assim como o dinamizador do largo trabalho de divulgação do pensamento, vida e obra de António Telmo, com publicação de originais e republicação de edições há muito esgotadas, através do Projecto António Telmo. Vida e Obra.
Um António Telmo é um texto ensaístico em torno daquele que ele considera (e com que muitos concordam) o Filósofo do Futuro, com frequente recorrência ao pensamento dos seus pares e mestres, alguns já acima enumerados: Leonardo Coimbra, Fernando Pessoa e Teixeira de Pascoaes, a que se acrescentam também Álvaro Ribeiro, José Régio e José Marinho, alguns dos poetas e filósofos da profecia, nas palavras de Telmo, retratados pelo autor deste livro, como cabalistas teosófico-teúrgicos, a partir do modo como Telmo os define: “O que lhes é comum é o modo de entender a oração como uma forma poética ou filosofia de acção sobre o mundo espiritual capaz de acelerar o processo colectivo de redenção.”, que, segundo o autor, vem corroborar a tese da Gramática Secreta e seu carácter sagrado.
Na análise dos pontos onde as ideias de Agostinho e Telmo se distanciam, consegue mostrar, ao mesmo tempo, a delicadeza e o respeito com que Telmo vai apresentando a sua discordância em relação a algumas ideias do mestre. A elevada ética que não lhe permite polemizar com alguém com quem aprendeu, que respeita e ama, e ainda assim não abdicando das ideias próprias. Discordância discreta, humilde, elegante, sem polémica, que se limita a ser fiel ao incontornável pensamento próprio. Agostinho, esse que inventava personagens fictícias para criar polémica consigo mesmo nos jornais, não poderia não gostar disto. Recordo-me, aliás, de uma passagem de um livro seu que já usei como citação para livro meu:
“Para o pai não existe a sua própria altura, existe a pequenez dos filhos; e por isso os pais se curvam para eles, e os acariciam e os tomam nos braços, e já são grandes […] e descobrem, erguidos ao alto, os horizontes que o pai nem sonhou […]”
Agostinho da Silva, Sete Cartas a um Jovem Filósofo
Esta passagem retrata não apenas a relação de pai com filho, mas também a relação entre mestre e discípulo permeada de amor, respeito, reconhecimento e crescimento. Por isso, Telmo, como nos diz Pedro Martins, não nomeia Agostinho quando dele discorda, acrescentando o mesmo Pedro Martins uma achega de Sampaio Bruno a este tema: “fazer guerra às ideias deixando os homens em paz.”
É um livro altamente didáctico, porque não trata apenas dos conteúdos, mas também das formas: filosofia de ponta num contexto ético feita por figuras elegantes. Muito inspirador, tudo isto.
Uma boa parte do texto vai andar em torno da tensa cisão dilacerante que acompanhará o cripto-judeu e pode manifestar-se das mais diversas formas, como o materialismo ateu ou o materialismo católico e ainda os judeus secretos, podendo assumir ainda outros cambiantes, com a consequente inquietação de alguém dividido entre o judaísmo e o cristianismo. Pode, contudo, materializar-se, e cito António Telmo tal como Pedro Martins o faz “numa nova religião, aquela que cada cabalista da noite vê à luz do pensamento como a superior síntese dos dois sublimes contrários.”
No capítulo referente a Agostinho da Silva, em que passa um rigoroso e implacável scanner pela sua variada obra a fim de detectar sinais de “sintomatologia do recalcamento” vai fazê-lo de uma forma que eu diria, pedindo emprestada uma expressão a Miguel Real numa sessão de apresentação deste livro, mas a propósito do capítulo sobre o marranismo em Herberto Helder, de “levar qualquer um ao tapete”. E vai mostrar, magistralmente, de que modo Agostinho vai dar outros nomes ao que não assume como marranismo, chegando a mostrar um anti-judaísmo teológico. Sendo que para Pedro Martins, o recalcamento observado em Agostinho acaba por ser um sinal de marranismo no seu atávico ocultar. Demonstra-o, contudo, de forma brilhantemente isenta, amigável até, quase terna. Um ensaio não tem de ser seco e este não o é.
Esta análise vai evoluindo na forma de observação, em paralelo, do pensamento de Agostinho e do pensamento de Telmo.
O método com que nos conduz no percorrer desta evolução da relação entre pensamentos é a apresentação de leituras focadas de ambos, permeadas por reflexões do ensaísta.
Em relevo, neste livro, uma cuidadosa análise da muito provável origem judaica do culto do Espírito Santo, a possibilidade de a criança estar no lugar de Metatron, o Clemente, anjo da mística judaica, daí a libertação dos prisioneiros.
Em relação a Agostinho, mostra-se um pressuposto e uma preocupação: o perigo da vulgarização do seu pensamento através de meia dúzia de conceitos descontextualizados e apressadamente digeridos e assim difundidos, carecendo de profundidade. Quando, afinal, ao seu paradoxal pensamento não é possível aceder sem o aprofundamento a que nem sempre temos assistido.
É muito visível neste livro a relação entre continente e conteúdo de uns textos em relação aos outros, com textos que migram de uma obra para outra, o que faz todo o sentido num autor como António Telmo, onde a gramática, o símbolo, a geometria, a historia, a mística, a guematria, a tradição, a religião, a ficção, a biografia e o quotidiano não como interfractais que se contêm mutuamente, partes de todos e todos nas partes.
O texto que no-lo mostra é profundamente didáctico sem simplificar, mas mantendo a complexidade, dá-nos acesso a matérias complexas que partilham da teologia, filosofia, teurgia, religião, tradição, gramática…
Outro mérito deste livro é a revelação de íntima convivência com o espectro mental de vários autores do universo judaico e marrano, e seus teorizadores.
Também o Herberto Helder de Os Passos em Volta vai ser objecto de análise, usando Pedro Martins, para defender a sua tese de marranismo, as mesmas duas ferramentas com que Telmo nomeou os indícios de judaísmo aos olhos dos inquisidores: a inteligência e a inquietação, sendo que mostra este último indício logo no modo como o apelida: “outro livro do desassossego”. Seguirá, na análise, a medida de tensão que segundo Telmo prevalece no marrano por via da duplicidade entre o credo interiorizado e o credo novo imposto.
Também a metáfora é aqui apreciada como precioso instrumento de dissimulação, valiosa ferramenta do judeu. Dá também relevo à sincronicidade da data da publicação de Os Passos em Volta e da Arte Poética de Telmo: 1963.
A análise do recalcamento cripto-judaico acaba por transversalizar Agostinho, Helder e o próprio Telmo da 1ª fase, na História Secreta. Regressará a casa a partir daí, à pureza inicial do encontro com o pensamento de Álvaro Ribeiro, assumindo-se na teoria e na prática (escrita, poética) como marrano.
Mas não deixando de ser o conciliador do judaísmo e do cristianismo: a salvação não contra o corpo, mas através dele, e aqui estão duas ideias base das duas religiões: elevação da alma e dignificação do corpo.
Procura (e consegue) este livro, realçar, no ensinamento de Telmo, que os historiadores, ao contrário da valorização que têm feito do consciente cristão e do inconsciente celta, não reconheçam o nosso subconsciente hebraico. Defende assim, claramente, o que não sei se poderei arriscar em designar por glorificação do corpo no sentido da sua sacralização na Kabbalah, por oposição à Gnose e sua recusa do corpo, sexo, criação, com a vida recorrentemente atirada para o céu. Associa os sacrifícios humanos, em cuja linha se inscreve a Inquisição, à recusa do corpo e escapismo do mundo dos Gnósticos. Inquisição também herdeira da degenerescência do templarismo português invadido por um gnosticismo celta ou atlante e camita.
Também referido o estudo do texto d’Os Lusíadas, onde se revela o pensamento pós-atlântico de Telmo, presente no Velho do Restelo; o regresso a terra, mas não já da mesma maneira: “uma oitava acima”, segundo Pedro Martins. A defesa da terra por oposição à guerra templária atlântica, o contrário de Ícaro voando para lá dos limites a “forçar as portas do céu”. A salvação, não na fuga, mas em organizar o caos na companhia dos outros.
“Decifração desocultante” é uma expressão feliz de Pedro Martins para a leitura de Camões feita por Telmo. Os Lusíadas como uma aventura que não é um acto de vontade, mas uma descida aos infernos, esses inferiores lugares de onde se extrai a luz. A partir do breu.
Não limita Os Lusíadas à visão política, mas também não ignora essa direcção.
Contudo, para ele, a nação é uma entidade espiritual, não apenas política. O forte foco do seu olhar ilumina Os Lusíadas enquanto viagem iniciática. As divindades pagãs não como “adorno”, mas como metáfora escondendo, do Santo Ofício, a heresia.
Pedro Martins mostra muito bem a evolução do pensamento de Telmo acerca d’Os Lusíadas, desde a tese iraniana no Desembarque dos Maniqueus até à posterior aproximação a Fiama no sentido de uma interpretação cabalística “num exercício de imparcialidade e honestidade intelectual que exemplarmente o define.”.
António Telmo vê nos desvios sinais, e em Metraton, afinal, o Cristo. Ou o Amor.
Conflui, no olhar de Telmo sobre a obra de Camões, a visão persa, a hebraica ou cripto-judaica e a gnóstica ou, segundo Pedro Martins, um “discreto paracletismo”. Visão que na sua transfiguração vai criando confluência e acrescentando ou aprofundando olhar, como é o caso da visão maçónica. Deste caldo alquímico vai emergindo a filosofia do mistério, onde o ensino não é definitivo, uma, segundo Telmo, “misteriosofia”.
Ou, como brilhantemente descreve o autor do livro: “Método tópico de progressão poliédrica”. Assim se formou o poliedro de luz que é este cintilante pensamento: “um sólido de feição irregular que, como um assombro, perpetuamente se recria – sólido translúcido, mas incompleto, pois que sempre uma outra face lhe ficará a faltar, cabendo ao leitor que transporte o facho a dita de a encontrar.”
O livro mostra claramente a evolução do pensamento obra, ou melhor, do pensamento que é obra ou que cria a obra de António Telmo em direcção ao cripto-judaísmo, com um ou outro desvio que sempre é o companheiro de um percurso não dogmático.
Denuncia-se, também, nestas páginas, o silenciamento, por parte do saber instituído, do “labor hermenêutico anónimo de António Telmo, tal como o de Fiama.” Assim como todos os sinais de estudos de cripto-judaísmo nos poetas recuperados e branqueados pelo sistema. Remata: “Percebe-se porquê.”
Quase no final, a comunicação de Pedro Martins no Colóquio sobre Verney, brilhante discurso sobre a “tirania” da “razão”, mais uma vez fazendo o contraponto com António Telmo, que cita: “É este dom felino de ver na noite que faltava de todo ao frade barbadinho e que faltou também a outro frade, aquele que foi encarregado de censurar Os Lusíadas”.
“É este dom felino de ver na noite” que António Telmo possui e que Pedro Martins demonstra.
O contrário daquilo a que o “endeusamento da razão” conduz - visão míope:
Sabiam que Os Lusíadas para além de variadíssimos erros tem uma grave falha na Proposição? Pois descobriu-o o Verney, o “iluminado”!
Pela Divina Guarda! Tanto século a analisar e a dividir orações e afinal tem um erro! Verney dixit. Mas disse mais:
“E porque havemos nós servir-nos das [divindades] gregas, tendo outras melhores? O que suposto, merecem riso os poetas que se ocupam com estas ridicularias […] Que o poeta em uma metáfora, em uma semelhança, ou em alguma breve alusão, tocasse alguns destes pontos, poder-se-ia alguma vez perdoar, mas introduzi-los em todo o corpo do poema, como faz o Camões na Lusíada, que introduz Vénus e Baco por toda a parte, sem discrição alguma […] isto é mostrar que não têm juízo ou discernimento na aplicação dos ornamentos poéticos”.
Então, para quem não soubesse: as divindades gregas são do piorio, Camões é ridículo e imperdoável, Vénus e Baco uns escandalosos e Camões, finalmente, no que toca a ornamentação poética, um zero à esquerda.
É no que dá, citando Pedro Martins, a “ditadura da norma”.
Acredito que Pedro Martins saiu inteiro deste congresso, porque as palavras que levou foram as do próprio Verney. A dar tiros, lá do passado, nos próprios pés.
Falando agora de coisas sérias, é evidente que terá explicado, como explicou, as razões daquilo que Telmo explica ser um processo de ocultação. E é aqui que começa a ser interessante o Congresso sobre Verney: Como “fiel-do-Amor”, Camões tem de “cifrar”, ocultar. A “oscuridade” da arte poética é terreno propício a tais ocultamentos. Cita então Pedro Martins três razões enunciadas por René Guénon e adoptadas por Telmo, de que destaca a terceira, por mais importante: “algumas verdades só se podem afirmar através da revelação, ou seja, escondendo”.
O que Verney não entendeu, embora ainda segundo Pedro Martins, “não lhe poderíamos exigir mais no contexto histórico-cultural em que se situava.”
Ficam bem estes sentimentos cristãos a um marrano, mas chama-se a isto rigor e isenção.
Eu, que não me obrigo a tanto, afirmo que Verney não só não compreende o que se viu, nem o talento literário de Camões. E isso está fora do tempo e do contexto, já vem da nossa poesia medieval.
Voltando à Proposição, que segundo Verney, apresenta um erro, que é o de Camões não se limitar, e cito Pedro Martins: “a propor a D. Sebastião a acção principal” mas, nas palavras de Verney, “a inteira história de Portugal”, é com Telmo que o autor do livro vem em socorro da confusão instalada por Verney, recordando que “Portugal, desde a origem, é a expressão visível, no plano histórico, de uma sociedade iniciática.” E por aqui me fico relativamente a este assunto, mas vale a pena ler os desenvolvimentos no texto e as citações em que apoia o pensamento, como esta:
“Habituado a pensar significações diferentes das que correm entre o vulgo, o estudante desvia-se dos seus semelhantes, e na sua extravagância pode chegar a descobrir tesouros escondidos. A arte de filosofar depende, em grande parte, do exercício que associa a palavra secreta com a intimidade do pensamento, mas por isso se diz que a essência da filosofia é incomunicável.”
Se mais razões não houvesse, que as há, bastaria esta reflexão sobre a essência da arte no seu exercício do equívoco e da plurissignificação que conclui com esta citação de Álvaro Ribeiro. Totalmente de acordo com Telmo e com Álvaro Ribeiro e com Pedro Martins.
Pela minha parte, penso poder concluir tratar-se a filosofia, olhada por este prisma, de uma arte. A filosofia não positivista, obviamente. E aqui o atrevimento é meu. Não é grande atrevimento. Outros, antes, o pensaram.
O livro aproxima-se da sua conclusão com uma análise da peça A verdade do Amor, de António Telmo, onde se mostra que nesta peça, como de resto na sua restante obra, nada é puramente decorativo, embora a sua escrita seja sempre estética, no que esta palavra abraça de ética, de poética e de palavra profética.
Uma profecia que devolve ao futuro o passado, porque vê o que os outros não viram através das, segundo Telmo trazido por Pedro Martins, palavras que fazem ver, nomeadamente, nas palavras de Álvaro Ribeiro lembrando Leonardo: “veículo expressivo, comunicativo e persuasivo de que o didacta pode tirar efeitos terapêuticos, compatíveis aos da magia”.
Ou, segundo o relembrado Álvaro nas palavras de Pedro Martins: “o emprego da palavra pelo educador possa ser visto como a administração de um sacramento por sacerdote laico.”
O referido penúltimo texto, que para Telmo é teatro filosófico e para Pedro Martins é “verdadeira obra de arte”, vejo-o eu como dança, uma reflexão dançada em ritmo de valsa dramático-simbólica em três actos ou tempos em que se sente que a verdade é o que, paradoxalmente ao título, permanece oculto.
O último título, “A lâmina”, é uma verdadeira, sintética e magnífica "ilustração" acerca da anteriormente demonstrada polissemia da linguagem, da arte poética e da linguagem criadora em geral.
Resta acrescentar, para concluir, que o estilo apresenta uma linguagem culta, mas clara, linguagem expressiva, mas sóbria, uma particular forma de beleza no paradoxo: “Por isso todo o Marános está – mas não está – nos dois primeiros cantos do poema”.
Um enorme vigor e rigor na expressão, mesmo quando alude ao símbolo e ao mistério, e é elegante na sobriedade rigorosa e musical, a aliteração madura e plena, como exemplifico:
“averbe-se a verve vibrátil do génio”.
Ou ainda, a beleza quase lírica:
“Nada nele afinal se nega, perde ou contraria: na grande arte da síntese se revê Velho no Restelo o navegador ancião que, enriquecido por todas as viagens, volta a pisar terra firme.”
Com esta música convido, quem o quiser fazer, a penetrar nessa outra música que são as ideias. De António Telmo a si mesmo, passando por aqueles que maior brilho mostraram no universo do pensamento filosófico e poético português contemporâneo e não só.
Este é um livro que coloca alguns pontos nos ii (ou nos yod’s, esse sol em Thiphered), que separa o trigo do joio com rigor, mas sente-se, movido pelo amor a um pensamento, uma obra, um Projecto de futuro.
8 de julho de 2015
VOZ PASSIVA. 55
30-06-2015 10:42Risoleta Pinto Pedro apresentou, no passado sábado, na Biblioteca Municipal de Sesimbra, durante a quarta Tarde Télmica, as Páginas Autobiográficas, um dos livros agora reunidos no III Volume das Obras Completas de António Telmo. Numa viagem palavra a palavra, página a página, escrito a escrito, de que agora nos oferece o registo cartográfico.
Sobre Páginas Autobiográficas de António Telmo
O Galo e a Rosa
Risoleta C. Pinto Pedro
O pensador que da sua própria sombra extrai luz e assim nos ilumina.
Para mim, um convite para ler ou escrever sobre António Telmo não precisa de ser feito duas vezes. Antes da formulação já eu estou frente às páginas. Porque me é música para a alma, rebuçado para a mente, recreio para a criança.
Confidenciava no outro dia a um muito querido amigo que sempre pensei especialmente nos livros de António Telmo, de que destaco particularmente a Gramática Secreta, como uma reserva de luz solar na minha vida. Se tudo falhasse, havia essa luz.
Era algo assim o que eu dizia:
“António Telmo é uma espécie de semente de felicidade, algo que germina e germinará, pelo conhecimento, pela ética, pelo arrojo, pelo testemunho, pela Presença, pelo brilho elevado até na sombra. Se tentar descrever o que sinto desde sempre quando penso nos livros dele, é muito parecido com o sentimento que em criança (e recordo-me muito bem) dedicava aos brinquedos mais sonhados, mais desejados, como objectos mágicos. Algo assim: se tudo falhar existem estes livros, existe este pensamento. “
Agora já não tenho um pensamento catastrofista, mas as palavras pensamento de Telmo permanecem sóis. Daí o meu sentimento de felicidade por estar aqui nesta celebração convosco.
Mas não sei se António Telmo, que eu não duvido que esteja connosco, vai achar muita graça a esta minha apresentação, por, pelo menos, uma razão.
E vou já “despachar” este assunto, antes que perca a coragem.
Assim entro nas Páginas Autobiográficas:
Ao contrário de António Telmo, que com muita graça fala disso num destes textos, a propósito de umas conferências em Sesimbra, eu lerei os meus papéis:
“Ora era regra por mim estabelecida, a fim de evitar o aborrecimento dos ouvintes, que os oradores não podiam ler discurso escrito, mas deviam sim falar livremente de improviso. Para tanto é necessário coragem, inteligência, imaginação e entrega a Deus. “
O que significa que, lendo, estou aqui a fazer um “streaptease” onde me dispo de coragem, inteligência, imaginação e entrega a Deus. Ainda por cima dou-lhe razão, por isso espero que não se vão embora, quanto mais não seja pelos meus pares nesta mesa… E retomo António Telmo, a propósito de uns acidentes de percurso nas tais conferências:
“Aquele que nos foi imposto leu seus papéis e lá fomos aguentando que passasse infindavelmente as folhas até respirarmos de alívio. Este mau hábito de ler quando se fala para o público foi banido do Brasil, onde me aconteceu ver esvaziar-se uma sala cheia de ouvintes logo que o orador pegou nos papéis. O que aconteceu em Sesimbra foi bem mais interessante.
Terminada a leitura, seguiu-se o colóquio com perguntas e respostas. Um pescador ergueu o braço pedindo a palavra:
– Diga-me lá! Foi o senhor que escreveu isso?
Respondeu o conferencista: - Então quem havia de ser?
E o inteligente homem do mar: – Eu é que sei?! Pode muito bem ter sido outra pessoa. Como podemos ter a certeza que foi v. que escreveu isso? “
A minha sorte é que não haja aqui nenhum pescador e que se houver seja caridoso comigo.
Assim, peço-vos que não se vão embora antes de me darem uma oportunidade, e confesso já que não fui eu que escrevi tudo: a parte melhor do que vos vou dizer é obra de Telmo e o resto é meu, embora não possa apresentar nenhuma prova para além da minha palavra. Eu própria não tenho a certeza do que estou quase a jurar.
Comecemos então pelo início. Não do livro, mas de tudo:
O galo eleva-se dentro de si mesmo para soltar as cinco notas anunciadoras do Sol.
Telmo não poderia deixar de trazer o galo da infância, esse animal iniciático, o que acorda das trevas, aquele que faz essa paradoxalmente difícil passagem da escuridão para a luz.
Para matar saudades e confirmar as cinco notas, que eu sou como S. Tomé, andei a ouvir galos na internet porque já desapareceram dos quintais da minha infância e os dos telemóveis não os acho fiáveis.
Seja como for, o importante aqui é trazer perante vós, através deste iniciador que é o galo, esse outro iniciador que foi e é António Telmo, um galo na terra a recriar o céu terreno.
Mesmo os iniciadores tiveram uma infância, e sobretudo eles viveram-na intensamente, como uma dura iniciação.
Essa infância por onde constantemente viajei no início deste livro.
“O silêncio do campo fazia-me pânico. Ainda não tinha lido os filósofos alemães e não podia saber que era a minha própria presença que me apavorava. “
Que criança não conhece isso? É como se ele falasse por mim, por nós, por todas as crianças. Não era este tipo de conhecimento que deveríamos aprender na escola? Os filósofos deveriam manter um constante diálogo com as crianças a tranquilizá-las sobre o silêncio e outros lugares assustadores. Como faz Telmo, com coragem e bondade.
Ele teve, como eu, como todas as crianças com sorte, alguém que lhe contava histórias de terror. É melhor ouvi-las do que vivê-las.
Mas mesmo assim, assistimos aqui ao desmoronar dos mitos sobre a infância: nem Paraíso, nem inocência, nem segurança.
“A ideia que se faz da infância como de um paraíso na vida não é tão certa quanto rezam os livros, pelo menos se a minha pode servir de exemplo. Vivia num mundo hostil, povoado de medos.”
A mim, fez-me sentir muito acompanhada, este relato, a essa menina que ainda está lá atrás numa total solidão debaixo dos cobertores nocturnos a tremer com o som do vento. Também ali para os lados de Arruda.
No meio dos relatos das dores da infância a alegria da poesia:
“O meu coração maravilhado fez-se pequenino como uma espiga.”
Telmo, meu mestre e irmão, como me ensinas sobre mim. Recito-te:
“vim a atribuir esta obsessiva sensação de instabilidade interior, que nunca mais me deixou pela vida adiante, não à minha infância”,
mas àquilo que ele designa como “atavismo judaico”
Viveu então num perigoso Paraíso feito de árvores, rios e habitado por um lobisomem e uma bruxa. Nada lhe faltou.
Nem um padre que o absolveu para sempre, um padre que, sem o saber, estava banhado pela aura do V Império, ao dizer-lhe aquando da confissão da 1ª comunhão. “_ Vai-te! Tu não tens pecados.”
Um padre libertador, denunciador da moral hipócrita com que os adultos afligem as crianças, como ele refere mais adiante:
“moral que nos era impingida e que todas as crianças odeiam, porque estão antes do pecado original.”
Traz-nos, da infância, memórias do silêncio da igreja como se houvesse ali alguém doente, e é assim mesmo que as crianças lêem aquele inexplicável silêncio, o ar austero dos santos. O mundo dos adultos pelo olhar de um Telmo menino que nunca se esqueceu de o ter sido.
Para além das questões existenciais, estamos perante um precioso documento histórico-etnográfico, como o registo do nome que se dava aos gelados: “esquimós”
“Homens sem alma” mostra-nos cadáveres trazidos da memória da infância da Arruda, na casa mortuária, o espectáculo de “horror cadavérico”.
No início da vida, o convívio com a morte. Sem rede. A criança que Telmo foi, viveu estas experiências no horror da solidão interior, mesmo quando em grupo.
Mas as associações secretas já lá estavam, a vida deste homem é um continuum, não encontro hiatos, como se em cada fase da vida se cumprisse o desígnio da encarnação: leitura simbólica do mistério tão velado quanto para ele revelado no banal quotidiano. Assim, caçar pássaros, colher espargos, procurar o trevo de 4 folhas, encontrar ninhos, são associações naturais, as suas proto sociedades secretas, com seus códigos, seus segredos: os que espreitavam os cadáveres, os que lançavam fisgas ao sino da igreja, cada grupo destes actuava sob a lei do silêncio.
Mais tarde, já em Sesimbra, para onde foi viver aos 16 anos, os seus amigos eram jovens afectados pela tuberculose, cujo convívio ele não evitou. Mas há uma curiosa passagem em que conta como uma voz nocturna o avisou de que, afinal, o perigo vinha de dentro:
«“Não estejas melancólico, senão entuberculizas.”
E acrescenta, este homem que não se conformava com a aparência das coisas:
“O perigo vinha afinal, não do meu convívio com tuberculosos, mas de um estado doentio da alma: a tristeza.”
“A tristeza, descobri eu então como hoje creio, é a expressão de falta de confiança na bondade de Deus.»
Igualmente belíssima passagem poética, a página “Brisa da Terra”, que devolve ao ribeiro que corria em Sesimbra por onde existe hoje estrada, o ânimo, a respiração da água transformada em ar.
Perante estas palavras apetece repassar por todos os lugares por onde ele passou. E deixou seu carimbo, invisível e indelével.
É precioso tudo o que conta, da sua vida, das suas memórias, das suas interpretações, intuições, mas também os testemunhos que nos traz das vidas dos outros, seus companheiros de caminho.
É notável o episódio da atribuição da classificação a um exame de Álvaro Ribeiro feita pelo professor Leonardo Coimbra. Algum professor hoje teria coragem para o fazer? Classificar pelos gestos? Por aquilo que o professor sabe que o aluno sabia, mas não disse? Num tempo como o actual, em que não interessa o que se sabe, mas o que se aparenta saber, em que um exame de Português prévio à entrada na Universidade é preenchido com cruzes, isto é espantoso.
Também de um viver fraterno e ético dentro das instituições por homens excepcionais, estas páginas são impressionante testemunho.
Mesmo no registo da biografia, do episódio, da curiosidade, Telmo nunca faz registos banais, ainda que parta do banal quotidiano, mas a extraordinária e aguda atenção àquilo que para a maioria das pessoas permanece oculto é das suas características que me encantam.
Vejamos:
“Se soubermos estar atentos, e temos a obrigação de estarmos sempre atentos, verificaremos sem dúvida que o primeiro encontro entre duas pessoas que virá a ser muito importante e até decisivo para ambas, seja um homem e uma mulher que virão a pertencer-se como marido e esposa, sejam dois homens dos quais um deles abrirá ao outro o caminho de união com o conhecimento de Deus são encontros sempre acompanhados de circunstâncias que se podem e devem interpretar como símbolos. Encontrei-me pela primeira vez com o Álvaro Ribeiro no Largo da Anunciada e daí ascendemos até ao Campo dos Mártires da Pátria. Não é difícil ver a significação destas circunstâncias.”
Para ele não era, efectivamente, difícil. Era como respirar.
Assim, tal como o mestre Alvaro Ribeiro que dispensava o acento na esdrúxula para melhor evocar ou deixar brilhar a alvorada, foi seu destino olhar os nomes como coisas vivas, símbolos, memórias da respiração de Deus a vibrar.
É como se ele tivesse um órgão a mais, responsável para olhar para as coisas pelo lado do símbolo, como se isso lhe fosse natural como estar vivo, mesmo quando fala de futebol: talvez aí ainda mais se destaque a sua extraordinária propensão.
Outras vezes, ler estas páginas é como assistir ao Génesis, um início de conto inconcluso é um privilégio de princípio do mundo…
Por muito que o leia, Telmo consegue ainda surpreender-me; encontro nele, num texto do final dos anos 60, o mesmo pensamento revolucionário que encontrei, muito mais recentemente, em Caroline Myss, uma curadora intuitiva:
“…antes que venha a morte, e com ela o aniquilamento total de alma, corpo e espírito, é preciso fazer qualquer coisa, assim como uma confissão ou uma extrema-unção, que nos permita continuar a viver noutro plano de existência.
Digo-o sem ironia. Com tanta seriedade como o disse Fernando Pessoa, embora na maneira como o disse arriscando ser mal entendido por críticos e outros poetas:”
Cuidadores ou curadores pelo símbolo, usando e transcendendo, revivificando, isto é, dando vida a uma prática conhecida como cristã, e dando-lhe vida, espalhando esperança de mais vida.
[VARIANTE A:] Para os espíritos práticos, não haverá diferença entre extrema-unção e suicídio e o tempo não está para filosofias. A autognose, para eles, de há muito que foi feita e resume-se na frase de Joaquín Costa: é preciso desafricanizar a Espanha. Ser-se europeu, é a chave do problema, expurgando de nós o mouro, o preto, o judeu, ou então transubstanciando tudo isso pela pedra filosofal do espírito ariano. Assim se chegou ao ridículo de pensar que se alterariam os caracteres craneanos dos peninsulares, se os cérebros recebessem a influência em massa duma educação de tipo europeu.
O conhecimento do símbolo como remédio para o veneno da vida, já tão novo interiorizado, o mesmo que alguns levam uma vida inteira sem o conseguir fazer.
“Encontrei da sua parte [do irmão mais velho], não obstante, uma constante hostilidade dentro do grupo. A minha carreira de escritor tornou-se dificílima. Ele não fazia mais do que obedecer à inexorável lei que opõe o primogénito ao benjamim, àquele que representa na família o princípio da revolta e do renovo. O conhecimento desta lei, pela leitura do Antigo Testamento e dos contos tradicionais, ajudou-me muito a manter uma certa impassibilidade, ao mesmo tempo que me incitava a realizar o meu destino de filósofo.”
Opõe ao pensamento (parcelar), o conhecimento (amplo e profundo, composto também do pensamento).
O texto “Páscoa no mar” tem um eco de Sermão, e poderia bem ser a introdução de um dos sermões de Vieira. Pela profundidade, pela visão aguda e divina, pela beleza.
“Também a alma é escura, inquieta e indefinida. Também neste dia ela revive para a harmonia e para a luz.
É um outro sol que a ilumina, mas é o mesmo.
Também ela tem algas, e tem sal e tem peixes.
E também nela os peixes se doiram e as algas reverdecem.
Olhai o rosto de um pescador; vede quanto abismo interior ele revela; vede agora a criança que ensaia, pescando à beira-mar, com curtas canas, a profissão do pai. E reparai quanta graça o seu rosto reflecte.
Neste dia, o pai é o filho, e o filho é o pai.”
Termina, até, com o que poderíamos chamar um conceito predicável:
“Neste dia, o pai é o filho, e o filho é o pai.”
Olha as palavras e vê luz. Acredito que o convívio com Álvaro Ribeiro, as ideias de Sampaio Bruno, a sua metafísica da língua enquanto chave-mestra, como diz Telmo, mas também Pessoa, que transformou a Pátria em língua, que estes lhe tenham acentuado a convicção, mas já nele o verbo feito luz era candeia a iluminar-lhe o mundo. Os mestres eram aqueles que a sua luz precisava de encontrar para não iluminar sozinha.
“O som que se constitui como letra é uma modalidade da luz. “
E é aqui que é completamente único. No estudo e demonstração do som enquanto criação, iluminação e sustentação do mundo e, na ausência de conhecimento, também de destruição.
Tem um olhar que não se detém no que os olhos vêem, mas que constantemente eleva o que está em baixo junto do que está em cima para que adquira vida, sentido e eternidade. Uma forma de salvar o mundo da forma assim o sustentando na mesma forma sobre colunas de luz atenta.
E tanto o faz com os movimentos dos portugueses pelo mundo, como com a narrativa de Camões sobre isso mesmo, como com esse olhar de Pessoa ele próprio já transfigurador, como com os mais banais acontecimentos de cada dia.
Porque tudo contribui para a alquimia do olhar.
Mas é um olhar que não se limita a iluminar a palavra e com a palavra, ele vê símbolo e geometria na deslocação dos povos, nas emoções dos povos, nas crenças dos povos (v. “Cabral e o novo Oriente”), como se possuísse (e não possuirá?, repito) um órgão a mais que lhe permite ver facilmente como num raio x ou numa ecografia, e aplicável a tudo.
A propósito de um dos textos incluídos neste volume que se destinaria a um livro, declara que esse não é um livro de viagens mas “é um livro da viagem. É um conjunto de reflexões a partir da experiência mais funda e séria do homem.”. Esta afirmação acaba por se aplicar a este outro livro que ele não conheceu, porque entretanto ele próprio viaja, e podemos aqui desenhar uma geografia da escrita e do escrito, isto é, do berço onde nasceram as escritas e ou dos locais a que aludem os escritos. São eles Almeida, Angola, Arruda, Sesimbra, Brasília, Granada, Redondo, e ainda Évora, Beja Porto, Lisboa, Tomar …
Contudo a esta seriedade por si aludida mais acima, a “experiência mais funda e séria do homem.”. a ela não é alheio o subtil sorriso:
“Mas se eu escrevo, por exemplo, “uma mesa é uma mesa” pode ser que se ponham a pensar que nisto há um sentido profundo. E é que não há?
Vou ler o Hegel.“
É magnífico o texto sobre as personas: “Três seres distintos em mim”, são muito tocantes as “Páginas Íntimas“, que poderiam ser uma síntese do portal em que se encontra o ser humano após abandonar todas as ilusões: silêncio, solidão, dúvida, nada. Esta é a grande prova da fé, a grande iniciação depois de todas as iniciações. Pungente, honesto e generoso, este grito de Telmo:
“A única esperança é a que uma tábua da nau divina em que me sonhei me possa servir de socorro no mar turvo da minha desolação. Desejei o mais alto. Procurei caminhos para ele. Perdi-me em todos.”
Este ser consegue, conjugando uma imensa simplicidade e humanidade deslizando sobre um olhar que bebe directamente na fonte dos símbolos, criar pensamentos e expressar emoções que seriam o de qualquer um de nós, comum ser. Ele e outros não muitos autores comportam-se como se me tivessem roubado pensamentos secretos, nunca por nunca verbalizados, mas que hoje, no suporte da sua viril coragem e companhia, confesso:
“Em rapaz, eu e outros da minha idade, por muito que o tentássemos, nunca nos foi dado encontrar a excepcional planta. Fi-lo muitas vezes depois. Cheguei a convencer-me que não existia o trevo de quatro folhas e que a tradição popular queria apenas significar com isso que a felicidade é impossível.”
Estas páginas mostram a pessoa por detrás do professor, por detrás do escritor, do autor, por detrás do mestre, por detrás do filósofo, o mistério por detrás do mistério. E no entanto como é grande, mesmo quando se mostra na sua pequenez! Ainda maior quando o faz. Só os grandes conseguem olhar-se e ver-se pequenos, aos outros não é suportável, seria equiparável, para eles, a um suicídio, uma diluição, um desaparecimento, um fenecer.
Este velho contemporâneo estoico do século XXI afirma: “De resto, o que me é contrário deixa-me mais ou menos indiferente.” e lembra-nos o saber antigo, mas engolido, digerido, e devolvido com a chancela do real experimentado por dentro.
As páginas designadas como “Autobiografia e Sobrenatural” estão muito bem neste volume a seguir às “Páginas Autobiográficas“, uma vez que umas e outras vêm da mesma fonte e jorram frescas de mistério, isto é, de vida. Alguns dos apontamentos já eram indiciados, introduzidos ou mesmo narrados nas Páginas. Aqui aparecem já não diluídos em biografia, mas concentrados em ominoso.
António Telmo valoriza o milagre, o que para ele é valorizar tudo, desde a semente que se desenvolve em árvore, às águias que se erguem no céu a apontar-lhe caminhos. Não há diferença. Como não existindo sobrenatural. Tudo é natural, mas umas coisas ocultam-se ao olhar despreparado ou não vocacionado. Tudo é uma questão de atenção ou de olhar inocente, digo, espantado. Perante todas as coisas.
Espanto que não é surpresa. Ele surpreende-se quando não vê milagre, mas espanta-se em cada segundo, quando o vê.
Fala ele de algo que muito me interessa enquanto escritora e que já aflorei há pouco: relermos no que escrevemos a antecipação do que não sabíamos que conhecíamos, sendo a metáfora o veículo:
“pela metáfora é possível conhecer, embora em modo reflectido, a relação do mundo sensível com o mundo subtil imaginal”
Os títulos são, ou retirados das próprias palavras do texto a titular, ou do conteúdo, portanto, com palavras do organizador que no seu entender melhor traduziriam o espírito do que se diz.
Aproveito para destacar a qualidade do trabalho de organização deste livro onde se incluem os títulos e sua atribuição.
O texto síntese que consegui construir quase exclusivamente com os títulos das partes, acrescentando-lhes nada ou muito pouco, mostra, pelo menos, duas coisas:
A justeza dos títulos escolhidos a partir de cada texto e a coerência da sequência criada. Vejam:
Este livro Pórtico oferece-nos as Primeiras Memórias, desde Alter do Chão e o jogo do galo às reflexões tão à António Telmo com o engrandecimento cósmico de enigmas infantis como Quem de vinte cinco tira…
Anda por aqui a infância com a sua inalienável Sombra temível do mal, em Arruda, n’O grande adro de Arruda, mas também Acontecimentos extraordinários na Sesimbra de outrora, como um vento memória de um rio a que chamou A brisa da terra
Na Escola Nacional de Lisboa é-nos apresentado um delicioso Telmo das diabruras infantis, mas não é ele apenas que é apresentado neste livro, aqui também é feita a Apresentação de Álvaro Ribeiro aos sesimbrenses e Teixeira de Pascoaes a todos nós.
Na casa de meu Pai, éramos três irmãos cruzam-se várias histórias: familiares, sentimentais e filosóficas. N’A Alocução do Sr. Aspirante Vitorino encontramos um jovem patriota procurando incentivar os seus pares, pelo discurso e recorrendo já à história. Marés faz-nos dar um salto de gigante para Sesimbra, mas é do eterno mistério do mar que se trata e poderíamos estar em qualquer praia de pescadores desde o início da humanidade. Ressalta o arquétipo. O mesmo acontece em Páscoa no mar e A caça à baleia.
António Cagica Rapaz revela, em torno dos bilhares, o amor admiração por alguém que partiu, assim como Os guizos são veículo para reflexão sobre o mundo subtil, tal como é subtil a rasteira que nos faz em Uma caçada às perdizes, que nos conduz a um inesperado caminho entre a sedução e a profunda dor existencial do acto que não se quis. É como uma mais do que sincera Entrevista a António Telmo em Sesimbra, varanda para o mundo passado e futuro, de onde se observa Cabral e o novo Oriente, mas também Brasília e Granada, a Pérsia à porta, onde foi embaixador oculto de Agostinho no Brasil e de Portugal no Mundo.
As Páginas Ibero-Americanas são séria e complexa reflexão sobre os nossos destino e identidade na Península, na Europa, na América, no mundo, e afinal no navegar no colo de Deus ou aportar ao seu porto.
A Apresentação é uma espécie de antecâmara à conferência Para a História da Cultura em Sesimbra e de Sesimbra.
A maior parte destes textos vieram De um caderno de apontamentos: como o excerto de um diálogo entre Rafael Monteiro e Agostinho da Silva.
Redondo é um comovente testemunho de um adulto que, em contexto escolar, não se esqueceu de salvaguardar o que existe de verdadeiro nas crianças e Três seres distintos em mim uma espécie de autopsicografia de fundo terminando com um enigmático “G”.
Só Deus escreve sobre Deus é um título que eu gostaria que fosse meu e Dois escritos íntimos uma tocante e sincera confissão de “desolação”.
Dies Lunae, o discorrer do fluxo de pensamentos no café, com ciganos, mulheres, horóscopos e livros.
O número 13: página de autobiografia espiritual uma deliciosa reflexão sobre o mistério e o contágio dos números na realidade ou o contrário.
Os Sonhos de Telmo possuem uma carga adicional de mistério que imprimem um especial significado à expressão Sonho mágico que nele assume uma particular potência. É neste ambiente velado que se insere a Carta a um mestre maçon sobre o mundo subtil concluindo esta importante etapa da viagem enfrentando a sombra a que chama O quarto inimigo do guerreiro, assim fechando com dolorosa clave de lua esta comovente Autobiografia e sobrenatural.
CONCLUSÃO
Ler este livro é como conversar com um amigo que me conhece muito bem, o que não é verdade, pelo menos no mundo lógico, porque nos conhecemos de encontros raros, com muita gente à volta e sem oportunidade de pelo menos visíveis trocas profundas, embora tenha apresentado (sorte a minha!) um livro meu, na Serra d’Ossa, e tenhamos trocado uns livros e dedicatórias. Mas o meu diálogo com ele foi sempre uma conversa silenciosa em que ele, ou melhor, os seus livros, falavam e eu escutava. Assim continua a ser. São inesgotáveis, as conversas dos livros de António Telmo. Essa uma das razões porque sinto que não partiu.
São livros em permanente e exponencial criação, ainda que depois de criados, tal como o Universo. Cada vez que abro um deles, mas em particular a Gramática Secreta, é como se nunca o tivesse lido antes. Isso voltou a acontecer-me com este livro, com estas Páginas Autobiográficas. O que é curioso é que isso não se passa apenas comigo, sua leitora, mas também com ele:
“Sempre que leio textos meus antigos, esquecidos entre os meus papéis, mais se me torna evidente que foram elaborados por uma espécie de magia. Sinto-os, pois os esqueci, como alheios. Todavia, encantam-me e seduzem-me como se ouvisse a minha alma falando-me das bandas onde sopra o Espírito.”
Ele escreve sobre a sua escrita e, para mim, sobre a minha, que assim a sinto e também sobre isto tenho escrito. Mas não só eu. Ele escreve sobre os criadores que tão bem conhece de dentro de si. Um jovem amigo, meu ex-aluno, fotógrafo, poeta e pintor talentoso, um dia, e conto isto num dos meus livros, visitando uma amiga, pára deleitado perante um quadro que fora… ele a pintar. Sem se recordar de si como o autor.
Este livro formado de projectos, começos, pinceladas, palavras que prometem e sugerem conclusão que nem sempre têm, pela sua natureza, porque reúne fragmentos, acaba por ter uma unidade, coerência e sentido que só o mistério explica.
Como se as palavras utilizadas tivessem uma extensão oculta que não apreendemos diretamente pelo intelecto, mas que criam um indivíduo, alma ou entidade oracular.
Um dos episódios relatados consiste na narração de um sonho de António Telmo com Álvaro Ribeiro cujo conteúdo apontava para a falsidade da morte do filósofo, logo, que todos os que acreditavam na sua morte teriam sido enganados, sendo que este mesmo sonho fora sonhado simultaneamente por uma outra pessoa. Tenho a convicção, e não brinco, que António Telmo deixou este texto registado como indício para nós, para que, cépticos de sonhos ou de percepções, saibamos que tal como o seu mestre, ele não morreu. Porque não há morte.
Estas páginas autobiográficas, se partem, como já referi, de episódios do quotidiano, biografam acima de tudo a alma, são uma biografia do mistério.
Um misterioso episódio de um encontro com um ser ominoso por altura da sua elevação ao 3º Grau num grupo de iniciados, como ele os nomeia, em que no café, um ser vindo do mundo e começando por receber relutantemente uma moeda por ele dada, como mendigo, tem algum paralelo com o vagabundo do bordão, qual vara mágica que nunca largava, que na infância visitava o pai de Telmo ou recebia a sua hospitalidade vivida em longas e mutuamente apreciadas conversas, assim o iniciando com as notícias do mundo visitado. O bordão deste misterioso visitante é um maço de cigarros da mesma marca de Telmo e acaba por o iniciar com dois beijos rituais com que antecipou o ritual. Tal como nos Contos a caneta de Pessoa é a vara mágica da figura do mago.
Vale a pena ler, em paralelo, estes dois episódios.
De salientar, com muitas estrelas, os comentários finais na Marginália, de Eduardo Aroso, Pedro Martins, Miguel Real, João Ferreira e Agostinho da Silva.
O estilo é, como já escrevi num outro texto, de uma terna beleza, e exemplifico:
“O mar como um seio de Deus”;
“os portugueses, como outrora os judeus, andam à procura da sua terra, que não concebem sólida e firme, imaginando-a flutuante como uma ilha e imponderável como uma metáfora.”;
“O mar, inquieto como a vida, rodeava a barca.”;
“a viagem do sol pelo sul”;
“serem os livros papéis estendidos no espaço”;
“Do Porto Culto para o Porto Oculto medeia um invisível oceano, imenso, subtil e misterioso e a barca do espírito é a metáfora, a palavra divina”;
A metáfora como um barco do espírito ou um “alucinogénio interno”. Mas barco que também é “porto”;
“Um sangue intransformável em leite. Química que transparece no viço.”
Isto é de uma extrema qualidade. E beleza. Se me permitem, concluo citando-me a partir de um outro texto que escrevi recentemente:
“António Telmo tem o talento de se inspirar na biografia transfigurando-a pela alquimia do símbolo e aprofundando-a esteticamente pela metáfora.
É curiosíssimo encontrar pelo meio da sua escrita pinceladas de biografia nas cores básicas ou em tons pastel. O efeito acaba por ser o mesmo. Quer uns quer outros sofrem um fenómeno perante os nossos olhos nunca habituados: a transfiguração, a alquimia. O processo simbólico de Telmo dilui-se na ficção, a ficção tem a originalidade do símbolo, ambas se transformam pela metáfora.”
Do galo à rosa … jogo de mestre
Falta então a rosa anunciada pelo galo:
António Telmo, o filósofo que extrai sol da sua própria sombra, aqui relata que “Foi num adro, o da igreja de Arruda dos Vinhos, que se decidiu (no sentido da cápsula que se abre para libertar as sementes) o que vim a ser depois em participação no espírito ao longo da minha vida.”
É efectivamente no Adro de Arruda dos Vinhos que já se encontrava o chão de xadrez maçónico, era no adro que desembocava o tão marrano “Beco da Amargura”, era na sua pedra de calçada que já se desenhava a dupla cruz, rosa dos ventos anunciadora de futuro.
Mas também, ao lado da farmácia, a Travessa do Conhecimento por onde António Telmo de certeza passou, onde brincou, de onde semeou futuro numa infância já inquieta, já, sem o saber, marrana. É deste lugar de inquietação que vem o conhecimento. Por caminhos tão travessos, Senhor!
São as chispas de luz que desde menino faz saltar da escura amargura da alma, que continuam a iluminar os seus livros, a multiplicar o seu pensamento, a recriar em cada um de nós, seus leitores, a Travessa do Conhecimento.
Encontrei nestas páginas: autobiografia, oculto, filosofia, história, gramática, geometria, guematria, simbologia e tudo o que da sua obra se conhece. Sem deixar de ser Autobiografia. Isto acontece em cada texto e no todo, à imagem dos fractais em que o todo está presente nas partes. É um mistério. E é real. Arte verdadeiramente Real.
Sesimbra, 27 de Junho de 2015
UNIVERSO TÉLMICO. 26
26-06-2015 08:49Na edição de Junho do jornal Raio de Luz, mensário de opinião e informação do concelho de Sesimbra, Pedro Martins, na sua habitual coluna, republica o prefácio que escreveu para o livro Coisas de Sesimbra, de António Reis Marques, recentemente editado pela Câmara Municipal de Sesimbra.
A Arte de Ser Sesimbrense[1]
Pedro Martins
O Município tem a sua história, às vezes assinalada por factos de importância nacional; tem a sua economia própria, a sua personalidade e tradição, etc.
O munícipe deve, portanto, conhecer a história do seu Município, estudando o que ele foi no Passado, as suas características especiais na economia, na linguagem, na paisagem, etc., para melhor compreender as suas aspirações de progresso.
Dando-se-lhe a completa independência que pretendemos, ele deveria organizar a sua instrução primária, tornando-a, por assim dizer, patriótica, sob o ponto de vista municipal, como desejaríamos ver a instrução secundária, sob o ponto de vista nacional.
E assim, em cada Município, o ensino primário abrangeria o estudo da sua própria História, para esse fim redigida por pessoa competente. A criança, depois de saber, na casa paterna, o que houve de bom exemplo na tradição familial, iniciaria o espírito no conhecimento da História pátria, pelo estudo do seu Município, aprendendo a conhecer e a amar a sua terra, os homens que nela se distinguiram e por ela trabalharam, e habilitando-se, portanto, a melhor cumprir, mais tarde, os deveres de munícipe.
Da Família deve sair o munícipe, como do munícipe deve sair o patriota.
Teixeira de Pascoaes, Arte de Ser Português
Agostinho da Silva, que nasceu no Porto, à esquina do Atlântico, e ao colo materno galgou o Douro para resgatar a Barca de Alva, descobriu em Sesimbra, rincão «com litoral de alcantil e praia, com seu castelo e seu porto, suas encostas e seus plainos, seus ocres e seus verdes, seu arreigamento no concreto e sua pronta partida para as nuvens», o perfeito resumo de Portugal. Raros, como ele, navegaram de antemão sem barca, contra a corrente indómita, contumazes ao impossível. António Reis Marques, íntimo do filósofo por cinco lustros, está entre os poucos que o acompanham. Sabe que o futuro é um rio que se sobe até à nascente, e que no lento, dissolvente desaguar da foz tudo se esbate e se perde. De resto, de que valem cursos de água a quem Deus deu a terra toda por regaço e o mar inteiro por horizonte? Por isso só os rios não correm por cá, nesta pequena pátria pintada por Agostinho. Limiar e fronteira, mesmo a alva da barca do pensador dista ainda da fonte; mas é já bem o Nascente, luz indecisa de clarão com que Midas lhe toca as águas.
António Telmo, vindo das fragas do Riba Côa, dessa adusta Almeida paredes meias com as ameias de Castelo Rodrigo, tão vizinho de Agostinho, sulcou menininho os mares do Sul para aportar ao Namibe, onde se apossou do leão que o sestro dos deuses lhe pusera nos astros; já homem feito, cruzou o oceano, desembarcou no planalto, firmou padrão em Vera Cruz; mas só em Sesimbra encontrou o barco. E deu-o por mito à legenda com que lhe leu o brasão.
O leitor, se não sabe ao que vem, terá agora de me desculpar, que eu só sei falar de António Reis Marques na igualha de homens assim, sábios e grandes como ele, e como ele guardando o segredo que o fulgor da visão lhes concedeu.
Hoje, dezasseis anos passados sobre o dia em que tive a dita de o conhecer, julgo saber um pouco desse segredo. Fui-lhe testemunhando a sabedoria a par do saber, uma generosidade tocante, a prudência firme do conselho amigo, uma lealdade sem vacilações, a hombridade que também sabe ser humilde, o estímulo poderoso de uma confiança inabalável nas gerações novas. E, sobretudo, um amor prodigioso à terra que o viu nascer.
Que Sesimbra, com seu hino e seu feriado municipais, lhe seja a pequena pátria, sabemo-lo logo pela leitura das primeiras páginas deste livro, Coisas de Sesimbra, que a Câmara Municipal, com inteiro mérito e plena oportunidade, decidiu agora dar à estampa: Reis Marques cria o povo a que dá voz nos jornais onde lhe descobre a imprensa; e a um governante emérito como Abel Gomes Pólvora confere até o poder soberano de emitir papel-moeda; por ele é já a Piscosa que canta Camões n’Os Lusíadas, ou não tivesse Sesimbra, depois prendada por D. Carlos, esse insólito Ti’Rei, o sinal claro de um privilégio com ter só para si a célebre edição dos piscos a que bem pode chamar sua. E ao próprio Mestre Agostinho, que tanto lhe ensinou, também António Reis Marques dá a sua lição, bem franciscana por sinal, e por isso tão portuguesa, de um cão de água que é só nosso, em seu fraterno viver com o pescador da companha.
Da língua madre que há nesta terra de mar, desse variegado falar pexito, código secreto e musical com que nos cantam e encantam os seus filhos, já António Reis Marques muito nos dissera em O Que Veio à Rede – Vocabulário, alcunhas e topónimos de Sesimbra, de 2001, como marca individuadora dessa sua outra, primeira e imediata nação. Agora, nestas Coisas de Sesimbra, reincide pontualmente, lembrando fórmulas de saudação e tratamento, relevando nomes e adágios da vida piscatória, fazendo soar pregões.
Mas depois do mar há sempre a terra, aquém do rolar das marés. Já Rafael Monteiro, fraterno mestre e amigo a quem Reis Marques não poderia deixar de prestar sentido tributo nestas páginas, memorava algures a unidade essencial do território arrábido-sesimbrense, hoje quebrada, perdida e, por isso, difícil de entender. Que uma pátria, por pequena, não vá sem a promessa de um chão onde os seus homens firmem os pés, bem o sabe o autor, e por isso nos recorda, como quem lamenta, as sucessivas perdas destacadas no mapa, minguante como a lua que, no entanto, há-de renascer. Na geração nova, a recente e espantosa descoberta de Ruy Ventura, pelo prisma da geografia sagrada, da capitalidade arrábida de Sesimbra, vem confirmar a verdade de uma escola que em Joaquim Preto Guerra (Rumina) reconhece o fundador e que através de Rafael e de Reis Marques, seus vultos maiores, chega aos dias de hoje com reconhecida vitalidade, afirmando-se num João Augusto Aldeia e no já mencionado Ventura.
A esta luz, a nota pitoresca de uma “sedição” em Alfarim ao dealbar a Primeira República é saboroso apontamento, entre tantos outros – e são dezenas sobre dezenas neste livro! – que o autor, em porfiosa, amorosa dádiva, nos foi desfiando nos últimos quinze anos, mormente na agenda cultural do município.
Sem prejuízo da adunação espiritual que lhe perfaz a integridade, é uma visão tópica e poliédrica a de António Reis Marques, e nisto em muito se aproxima da do saudoso António Cagica Rapaz, o maior escritor de Sesimbra de todos os tempos. O que este durante décadas nos ofereceu no domínio da crónica em que exímio, magistral, insuperado, pontificou por via de um humor imaginoso e inteligente vertido em narrativas que, aqui e ali, transcorrem para a ficção, propõe-nos agora Reis Marques em registos históricos ou etnográficos tão simples quão rigorosos na sua nitidez fotográfica.
Uma atenção sábia e constante ao universo piscatório, domínio onde se lhe credita um livro já clássico como As Artes de Pesca de Sesimbra, de 2000, surge aqui amplamente desenvolvida e pormenorizada. Será justo realçar, pelo fôlego que lhe anima a envergadura, o estudo sobre “A barca típica de Sesimbra”; mas as miniaturas dedicadas às espécies piscícolas que afamaram a Piscosa, na esteira da importante monografia Peixe-Espada de Sesimbra, a Preto & Branco, de 2008, e bem assim as que, a montante e a jusante, dos moços e dos arrais à antiga lota e ao primeiro molhe de abrigo, se debruçam sobre os agentes e as circunstâncias que envolvem a dinâmica da faina, constituem-se como um precioso repositório testemunhal e documental sustentado na tradição, na observação e na investigação.
A religiosidade dos homens do mar, polarizada no culto popular ao Senhor das Chagas, padroeiro em quem José Rumina reconhecia o maior político de Sesimbra e de quem o Padre Gomes Pólvora afirmava ser o único santo que havia no céu dos sesimbrenses, não poderia deixar de ter lugar de privilégio nestas páginas. Se o peculiar Cristo crucificado de Sesimbra, envolto ancestralmente em lendas miraculosas e motivando a maior procissão portuguesa a sul do Tejo, se impõe como penhor do credo próprio que esta pequena pátria consente e justifica, vários outros são os escritos que Reis Marques aqui dedica à emergência local do sagrado, dos registos de santos e dos santos populares à festa mariana de Alfarim, sem esquecer alguns sacerdotes insignes de que Sesimbra foi berço.
Estudioso e profundo conhecedor do movimento associativo sesimbrense, António Reis Marques, na senda da trilogia que dedicara já a algumas associações venerandas da sua terra – O Clube Sesimbrense – Contributos para a sua História (2003); Bombeiros Voluntários de Sesimbra – Origem, Formação e Percurso (2003); e Breve História do Clube Naval de Sesimbra (2005) –, oferece-nos agora o texto da palestra que em 2006 proferiu na sessão solene comemorativa do centenário da Sociedade Recreio Sesimbrense, o popular Refugo entretanto, infelizmente, desaparecido. Por aqui se evidencia, sem sombra de exagero, e de um modo exemplar, o valor sem preço destas Coisas de Sesimbra. Não fora a alocução de Reis Marques, enfim guardada em livro, e hoje, possivelmente, pouco ou nada subsistiria da memória, já de si imprecisa, da extinta colectividade secular, por onde, como orador, passou um Agostinho da Silva, pouco antes de a polícia política de Salazar o enfiar numa enxovia do Aljube.
Coisas de Sesimbra intitulou o autor, sem réstia de pretensão, este seu novo livro. Não poderia estar mais certo. Ao longo das suas mais de trezentas páginas, desfila em caleidoscópio, pela ordem em que viu a luz do dia, para deleite do nosso olhar, uma miríade pinturesca de pessoas, personagens, personalidades; instituições, lugares e recantos; práticas, usos, andanças; episódios graves ou picarescos, acontecimentos rotineiros ou de excepção, momentos de júbilo ou de tristeza – num encontro em que a tradição dos arcanos coexiste, convive e dialoga, de modo nem sempre pacífico, com a progressiva aspiração futurista a que Sesimbra, senhora de si, como bem o sabe Reis Marques, jamais se poderá eximir. A este propósito, vale a pena prestar atenção às notas lúcidas que o autor projecta sobre os marcos miliários da evolução turística do concelho. Há aqui um caminho a seguir.
Por uma coincidência significativa que não deve por isso atribuir-se ao acaso – e o acaso, ensina Álvaro Ribeiro n’A Razão Animada, é apenas o instante entre o caos e o cosmos –, surge este livro no ano do centenário da Arte de Ser Português de Teixeira de Pascoaes, profeta maior da nossa condição que concebia o Município como um ente relativamente independente, mediando a Família e a Pátria.
Quem tiver atentado na longa epígrafe com que encimei este escrito, poderá depois verificar, pela leitura do livro que agora tem entre mãos, como o seu autor, discípulo fidelíssimo do mago do Marão, o poderia ter intitulado, se a modéstia o não tolhesse, Arte de Ser Sesimbrense. Tanto basta para nos irmanar.
Cotovia, Sesimbra, 2 de Maio de 2015.
[1] Prefácio ao livro Coisas de Sesimbra, de António Reis Marques, Sesimbra, Câmara Municipal de Sesimbra, 2015.
UNIVERSO TÉLMICO. 25
24-06-2015 10:13Onde a terra se acaba. 04[1]
Agostinho da Silva
Novamente se incomodaram muito os amigos por não ter aparecido assinatura no último artigo que me publicou este nosso jornal; acho, porém, que talvez estejam errados e que o acontecimento nos dá ocasião a que outra vez reflictamos sobre o assunto.
A primeira nota que há a pôr é que, apesar de já ter defendido, neste mesmo lugar, que seria muito bom entrarmos todos no anonimato, apenas declarando o nome quando nos fossem exigidas responsabilidades por tal ou tal opinião expressa, lá fui assinando minha prosa, não sei se por hábito adquirido, se por supor que no jornal assim o prefeririam, se, como me inclino a crer, porque, apesar da teoria, fazem costumes, solicitações e agrados que, muitas vezes, vezes demasiadas, nos demos mais à teoria do que à prática e, no fim de contas, não pelas qualidades, mas pelos defeitos, sejamos levados a ter sempre gosto por encontrarmos em letra redonda nosso pequeno nome.
Hábito antigo o de todos nós, algum tempo perdido, readquirido depois. Sabe-se dos homens da Antiguidade, e fora algumas dúvidas dos historiados, quem esculpiu tal estátua, modelou tal cerâmica, compôs tal tragédia ou simplesmente inventou em praça pública uma anedota célebre. Com a revolução cristã, correspondeu a um conceito novo da comunidade de irmãos reverentes, obedientes e de mente voltada para seu pai celeste, a forma cooperativa de propriedade, a educação mútua, o templo em que pintores, escultores ou arquitectos trabalhavam com tal anonimato que só às vezes pelo recibo de pagamento ou por um documento de contacto é possível, discriminando os artistas, atribuir autores às obras.
Parece, no entanto, que não estavam os tempos maduros para o cristianismo, que muitas conversões eram de interesse e não da mudança de espírito posta por Cristo como acto fundamental e que até entre pessoal da Igreja havia pagãos e se tendia de mais a ver Roma não como o altar de Deus, mas como o trono de César. Com o Renascimento, que foi muito mais de latinos que de gregos, triunfou o direito cesarista, julgou-se o homem centro do mundo, constituiu-se a ciência como independente da moral, celebrou-se o triunfo da propriedade privada e libertou-se o juro, instituiu-se a escola como formadora das classes possidentes e dirigentes e, acompanhando o movimento, passaram os autores a assinar ciosamente as suas obras, que, além de tudo, se usaram já não como elementos de educação e como sinais de devoção mas como penhores de uma valia e como adornos de um poder.
Não assinar é, portanto, em última análise repudiar tudo isso e considerar que o que vale é a obra comum, sem o insignificante pormenor das nossas glórias vulgares e apenas com atenção ao avanço geral da Humanidade se formos bastante felizes para nele colaborar, e com humildade perante o Espírito que a todos nos pode iluminar e que a nenhum de nós pertence. Tão convicto estou disto que espero um dia poder mostrá-lo na prática, agradecendo aos jornais em que colabore que me não ponham o nome em artigo nenhum.
Tudo estaria, por conseguinte, em termos excelentes se eu não tivesse de facto assinado o artigo; como, porém, o assinei, e nisso esteve o erro, pode cair sobre alguém a suspeita, e há gente sempre disposta a levantar hipóteses destas de que propositadamente me tenham cortado o nome, o que representaria na verdade um notável exemplo de falta de carácter e de honestidade ou que tenha havido, no trabalho, um descuido imperdoável, uma desatenção absurda, aliás desmentida pela excelente apresentação gráfica de nosso jornal. Fica então assente que nunca mais assinarei coisa alguma que aqui se publicar; pôr o nome ou não pôr o nome ficará inteiramente ao critério da direcção; a mim me basta que as ideias expostas possam ser úteis a alguém, por acordo ou desacordo: ambos óptimos, se conscientes, críticos e em plena lealdade de quem o pense, lealdade consigo e lealdade com os outros.
CORRESPONDÊNCIA. 25
17-06-2015 22:05[Ernst Jünger]
CARTAS DE ANTÓNIO TELMO PARA ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO. 08
Estremoz, 15 de Fevereiro de 2002
Meu caro Amigo António Cândido
Fiquei a sonhar com o livro de Ernst Jünger que me prometeu emprestar quando lho devolvessem. Se não se fizer lembrado… É o que ensina sobre filtros mágicos. A quintessência do mundo vegetal e a sua relação com as diferentes sephiras.
Devo ir à cerimónia de entronização do Manuel Patrício[1]. Lá nos veremos. Até lá, um abraço do seu
António Telmo
[1] Nota do editor - Manuel Ferreira Patrício foi Reitor da Universidade de Évora entre 2002 e 2006.
DOS LIVROS. 43
09-06-2015 12:39O albatroz
Tenho por verdade dividir a história de Sesimbra na era de Jesus em Antes do Albatroz e Depois do Albatroz. Albatroz ou alcatraz.
Explico-me. O primeiro morro que vemos à direita da povoação entrando pelo mar ainda hoje se chama o morro do Alcatraz. É que ali havia um pássaro desse nome que todos os anos aparecia. Elevava-se no espaço e mergulhava a pique no mar donde emergia instantes depois com um peixe capturado. Passávamos horas a assistir a este espectáculo.
Um ano depois deixou de vir. Já se sabe porquê. O mar não era o mesmo. Começava a pertencer aos turistas, às máquinas, aos mergulhadores, aos óleos derramados, à intoxicação.
Poderíamos também dividir a história da Sesimbra cristã em dois períodos, os mesmos que o albatroz marcou, num que acaba quando o pescador começa a saber nadar e noutro em que ele já entra na água seminu como qualquer gringo. A mim espantava-me que os homens do mar não soubessem, na sua generalidade, nadar e dizia-o ao Rafael Monteiro. «Também eu, respondia-me ele, não sei nadar e o mar é o meu domínio espiritual.»
Atrevo-me a imaginar por este modo: entrar nu no mar era como devassar as entranhas do corpo de um deus. E falo em entranhas porque, neste momento, o mar se me configura como um touro arremetendo impetuoso contra as rochas ou desfazendo-se na praia docemente como se seguisse a capa de um toureiro. A suprema arte marítima era cavalgar esse touro nos dias de tempestade.
O nome do nobre animal diz-se de duas maneiras: touro e toiro. Em touro o ditongo ou enrolado pelo r exprimirá o que há no animal de força negra, o instinto do sangue, a convulsão desse mesmo sangue obscuro, uma espécie de fogo fumoso comandando a violência da arremetida. Dizem-me que a composição química da água do mar é a mesma que a do sangue. Mais uma razão, a ser verdade, para vermos no mar um touro. Dizendo isto, recordo-me por contraste da serena tranquilidade das águas da baía de Sesimbra e aparece-me o nome do animal escrito com i (toiro) que é a letra luminosa por excelência.
Hoje que vivemos numa época posterior ao albatroz é difícil que se encontre muita gente que veja no que venho escrevendo mais alguma coisa que uma série de fantasias sem qualquer correspondência na realidade. Mas eu escrevo antes do desaparecimento do albatroz porque escrevo em saudade. A saudade põe estranhas relações entre as coisas. Ainda a propósito de touros e de touradas eu lembro-me de ter escrito n'O Sesimbrense (1972) um diálogo no qual pela primeira vez, creio eu, se estabelecia uma relação entre as zonas sísmicas e as zonas tauromáquicas. O espectáculo não era propriamente um espectáculo; era um ritual, em que se domavam as forças subterrâneas representadas no touro.
Esse mundo subterrâneo aparece hoje à superfície da terra cobrindo o globo a toda a volta. Basta pensarmos que pelas estradas de todo o mundo, de dia e de noite, correm incessantemente os automóveis, os jeeps, os camiões, por tal sorte que se interpõe entre a terra e os astros um autêntico corpo de metal, sempre em movimento pela força daquela substância tenebrosa que faz as guerras e os bancos.
Os homens, entretanto, vão-se entretendo com o futebol. Tu, deusa fantasia, que me estás mostrando a verdade, diz-me agora porquê o futebol e o desporto? Os antigos gregos associavam intimamente o desporto, de que eles são os grandes promotores, aos funerais. Quer dizer: durante os funerais, praticava-se atletismo e vários jogos então muito em voga, como, por exemplo, a luta. Julgavam que assim aplacavam a alma do morto, evitando ao mesmo tempo que os fantasmas saíssem, da terra a empecer os vivos.
A bom entendedor meia palavra basta.
António Telmo
(Publicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006/2009)
INÉDITOS. 54
02-06-2015 10:13Pessoa e Camões[1]
Fernando Pessoa escreveu de Luís de Camões, que almejou superar, ser ele mais «italiano» do que português, isto apesar de ter criado Os Lusíadas que são, com a Mensagem, os poemas heroicos da nossa raça. Está à vista que tinha em mente a estreita relação do poeta lírico com os poetas italianos de Dante até Petrarca, que ele terá imitado e até traduzido dando as traduções como se fossem originais.
Fernando Pessoa segue aqui um critério académico indigno do seu alto e soberano espírito. Não colhe no entanto o eco de uma corrente subterrânea que, desde a poesia trovadoresca vem fluindo até Camões e que se afunda mais a partir de D. João III para ressurgir nos poetas da filosofia portuguesa e nos filósofos de razão poética de Sampaio Bruno até Pedro Sinde e até, mais proximamente, Pedro Martins.
Dizê-la subterrânea é metáfora. Não se confunda com subconsciência mas sim com supraconsciência.
Se Fernando Pessoa tivesse conhecido o grande Comentário de Manuel de Faria e Sousa às Rimas de Luís de Camões não teria decerto afirmado, com algum desdém, ser o autor d’Os Lusíadas um poeta italiano, por isso uma cópia em Portugal de Petrarca ou de Bernardo de Tasso.
Teria sem dúvida visto que a corrente espiritual que em Itália recebeu o nome de Fideli d’Amore, vem directamente da poesia trovadoresca medieval e isto por tal modo que Camões está tão perto de D. Dinis como de Dante, ambos bem activos na transformação da Ordem do Templo, aparentemente extinta, na Ordem de Cristo e na Ordem da Fé Santa, uma e outra criações dos Rosacruz abalados nas Caravelas para o longe inatingível, onde ficaram até hoje ignorados dos homens-demónios que passaram a governar nas esferas menores onde habita a dor e o cisma.
António Telmo
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[1] Título da responsabilidade do editor.