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DISPERSOS. 13
24-08-2015 09:27A conversão[1]
A conversão de Leonardo Coimbra ao catolicismo é interpretável e tem sido interpretada pela parábola do Filho Pródigo, mas alcança-se, na altura, todo o sentido da parábola? Deve a conversão ser entendida como o abandono do erro e o retomar do caminho direito? Ou como uma iluminação?
Tudo quanto o filósofo pensou, escreveu e disse, enquanto andou por fora e bem longe, é para desprezar ou só alguma coisa? Que livros devemos ter por legendas, isto é, dignos de serem lidos?
Ou dizemos que apenas a vontade errava, mas no pensamento Leonardo Coimbra foi sempre católico e só no fim se comoveu a vontade? Neste caso, terá para nós um interesse meramente exemplar.
O que é a parábola do Filho Pródigo?
Imaginemos que a Maçonaria foi o Egipto de Leonardo Coimbra. Diremos então que essa tão discutida instituição, tão intimamente ligada às ciências materialistas, mas também às ciências ocultas, com seu sonho republicano de liberdade política e religiosa, foi a terra negra onde se entenebreceu a luz do seu espírito e se degradou a energia do seu pensamento?
A parábola do Filho Pródigo poderá representar, nos termos de Leonardo Coimbra, a entropia, pela qual a energia se degrada e perde até ao aniquilamento da Criação. Mas, no seu pensamento, a vida é já o movimento contrário ao da entropia. Quando o éon perdido dos onze (fuga de José para o Egipto) ou, o duplo extraviado ou extravagante da parábola, ou o Filho de Deus descido e encarnado na terra regressa, não haverá um «aumento de ser» ou tudo fica como dantes na «inutilidade de um mundo feito»?
Nos termos iniciais: A conversão de Leonardo Coimbra não veio trazer nada de novo ao catolicismo?
Esta interpretação pela parábola do Filho Pródigo do regresso de Leonardo Coimbra à religião de infância pode receber a forma desta pergunta: O que andou fazendo entretanto o emigrante e porquê?
Porquê a erradia circulação das energias?
Havemos de continuar a pôr em termos de bem e de mal as oposições que necessariamente se dão com o movimento criacionista da energia espiritual? Nem no mundo da família é um mal a oposição do filho ao pai, do filho que parte e se separa à procura de uma vida diferente, nem no mundo natural as aves emigrantes são menos belas, menos fortes, menos audaciosas do que as aves sedentárias.
Todos sabemos da importância que Leonardo Coimbra dava à «experiência», isto é, ao viver em perigo ou em esperança. Assim, escreveu:
«O desprezo da experiência produz contemporaneamente a morte da ciência e da moral integral ou religião. Quando o homem cristaliza, em dogmas repousados, as grandes experiências cósmicas, resulta uma invasão do pensamento pensado e a estagnação da actividade científica ou religiosa. São os períodos de formalismo excessivo e, consequentemente, de um desatinado egoísmo de seita. A mística, romântica erupção do cósmico através do individual, é um prenúncio de libertadora atenção à realidade, como mostra a história da Idade Média e a sua condenação pelo Dogma».
É ainda preciso perguntar pela razão da sua «extravagância»?
Em escritos e discursos fez a apologia da Maçonaria; militou pela República contra jesuítas e reaccionários; opôs-se ao ensino eclesiástico. Explica-se assim a surpresa de amigos e discípulos, quando tiveram notícia da sua conversão. Todavia, se pensarmos que, na realidade, lutava por uma Igreja renovada ou restituída, muito semelhante à que hoje vemos desenhar-se na mente do actual Papa, teremos maior interesse em saber como sempre foi católico do que em verificar que foi anti-católico.
À luz do «criacionismo», a parábola do Filho Pródigo toma, pois, outro sentido. Não é legítimo ver à mesma luz a tentativa de uma Igreja Lusitana, de Teixeira de Pascoais, a Condição e Destino do Pensamento Português, de José Marinho e o movimento de Filosofia Portuguesa, de Álvaro Ribeiro?
Neste sentido, não houve conversão de Leonardo Coimbra. Ou, por outras palavras, a conversão foi a sua última experiência que antecedeu o seu verdadeiro regresso nove dias depois.
Se a religião é a moral integral, a filosofia é, pelo pensamento em que é e se move, «a única oração eficaz». Na verdade escreveu que «o pensamento filosófico é a única oração eficaz». Esta frase pode, evidentemente, receber a interpretação de que não há oração eficaz fora do pensamento filosófico.
Escreveu também: «O pensamento tem em si a sua própria garantia».
Somente a própria garantia?
Já vimos que não. Vimos que o pensamento não é só para pensar. Quando é bem consciente de si, a sua verdadeira e íntima natureza é o amor. Move porque é o amor. Todos toleram a filosofia quando está ao serviço da Religião ou do Estado. Não admitem que, por si só, possa servir Deus ou a Terra.
É a partir daqui que podemos compreender a hostilidade para com Leonardo Coimbra e para com a filosofia portuguesa, e, em geral, para com todos os filósofos, desde Sócrates a Álvaro Ribeiro. É uma hostilidade que vem da direita e da esquerda e que tem sempre um cómico ao serviço. A filosofia, porque é sincera, humilde, corajosa e verdadeira constitui um alarme para a tranquilidade instável estabelecida sobre um determinado conjunto de interesses. Há nela qualquer coisa como a rebeldia dos Anjos. Mas a rebeldia dos Anjos não é, sob outra forma, a parábola do Filho Pródigo? Porque é que o anjo rebelde não há-de um dia regressar, pelo seu retorno reintegrando todas as parcelas de luz dispersas?
É este um dos sentidos mais fundos da filosofia de Sampaio Bruno. Os comparativistas hão-de reconhecer um dia em Leonardo Coimbra toda a herança de Bruno. O conceito de entropia, que vai buscar aparentemente à ciência, é, no mundo da matéria, a ideia da queda que Bruno situa no mistério insondável de Deus. Há uma perda constante de energia, que a vida biológica ininterruptamente recupera e que a vida espiritual inverte num perpétuo «aumento de ser». Tal é, no «criacionismo», o movimento pelo qual se ligam os três mundos que constituem o universo.
E a missão do homem?
Onde Sampaio Bruno responde que é «ajudar a evolução da natureza», Leonardo Coimbra hesita, contradiz-se, retoma humildade e coragem para perguntar:
«É o homem capaz de criar energias?»
Duas concepções se opõem no espírito do filósofo: uma segundo a qual o mundo criado por Deus é um grande autómato, girando sobre si próprio, por tal forma agenciado nas partes e no todo que sempre em si conservará a mesma quantidade de movimento; outra que imagina o mundo como uma corrente da plenitude do todo para o abismo do Nada. A primeira deriva dos filósofos matemáticos, como Descartes e Leibniz; a segunda inspira-se dos modernos físicos e identifica-se como um dos aspectos da filosofia de Bruno. Se o homem tem por missão colaborar na ordem do mundo enquanto elemento dessa ordem, destruindo a liberdade, «essa missão é bem estúpida e ignara»; Leonardo Coimbra não quer perder tempo com uma doutrina conservadora que é o oposto da ideia criacionista; outro oposto dessa ideia é o facto inegável de «que o homem assiste ao envelhecimento próprio e alheio, quase impotente, e é levado na corrente da degradação física para a morte do planeta e dos mundos».
A missão do homem poderá ser, pois, a de criar energia, a de ser capaz de se assumir como um centro poderoso: «O homem seria Deus porque criava ser, visto que aumentava ou diminuía a realidade».
A que corrente de pensamento alude aqui Leonardo Coimbra? Conjecturamos que ao martinismo que deve ter conhecido através de Sampaio Bruno e que parece tê-lo seduzido de passagem. A conjectura nasce das implicações contidas nas seguintes linhas: «Neste desejo humano (de criar energia), há o orgulho de anjo rebelde, há um movimento para a Unidade de que o homem seria o foco e a razão única».
Aos mesmos responde, reflectindo, com as noções ocultistas de evolução e involução: «De resto, é a evolução integral e perfeita? é desacompanhada duma involução superior que a justifique?
É tão trágica a descida das energias, a corrida para um equilíbrio físico?
Não é antes um sinal bem evidente da divindade, dum poder de criação que renova os mundos, ou, por uma superior ordenação, acode à queda física?»
No último parágrafo está condensado todo o «criacionismo». Mas, então, qual é o papel do homem?
A sombra da primeira concepção, que fora arredada por estúpida e ignara, levanta-se de novo, não obstante a imagem da cadeia tenha, para nossa felicidade e do próprio pensador, sido substituída pela da escada da visão de Jacob por onde os anjos descem e sobem. É, todavia, necessário ressalvar a liberdade do homem.
A nossa missão, diz-nos, é ver, meditar e compreender. É o pensamento. Se, por uma superior analogia, pudermos repetir em nós «o Universo resplendente de acção criadora e presença divina» erguendo-se «sobre o Universo visto em fatalidade» teremos encontrado o único sentido possível da nossa liberdade.
Nas páginas que vimos reflectindo d'A Alegria, a Dor e a Graça (194-197), o problema da liberdade humana procura uma solução também no modo de «experiência» que utilizarmos. Leonardo Coimbra escreve a palavra Experiência em itálico e com inicial maiúscula. A quem se dirige, quando diz compreender «muito bem a necessidade da Experiência? A que modo ou tipo de experiência se refere, quando logo opõe que ela «só é uma longa e meditativa conversa com o Ser»? Porque, dos dois adjectivos, só sublinha o segundo?
Não é certamente à experiência científica. Refere-se, sem dúvida, a um modo de experiência mediante o qual o homem possa criar energias. Não é, certamente, à experiência científica, porque nunca se trata aí de criar energias, mas de conduzi-las. Há um outro passo do mesmo livro onde a mesma pergunta é posta de outro modo, mas com incidência no mesmo problema: «É o homem capaz de criar imagens?» De criar, isto é, de pô-las viventes e bem objectivadas, fora de nós.
Não haverá aqui, de novo, alusão ao «martinismo», operativo no domínio da magia e da teurgia?
Se assim é, compreende-se que Leonardo Coimbra oponha a tal operatividade, que se propõe criar imagens e energias, a sugestão de uma experiência que seja só uma longa e meditativa conversa com o Ser. Todavia, o módulo experiencial, num e noutro caso, deve ser o mesmo.
São as seguintes as palavras terminais de A Razão Experimental:
«De olhos cerrados, em íntima meditação, deixemos a alma apontar seu rumo».
Tal modo de meditação é, em si, a experiência do «grande sentido oculto do Universo», na qual podemos confiar porque «basta uma hora de meditação para conhecermos que somos um espírito».
Para tanto, duas virtudes são, pelo menos indispensáveis: coragem e humildade. Porquê coragem?
Não foi por falta de coragem que pôs de parte magia e teurgia, mas por humildade:
«O que há de propício no estranho é a sua parte de essência, que nós podemos penetrar pelo movimento, ou amor, mas que não poderemos aniquilar ainda que bem diabólico seja o desejo».
Mas a experiência é sempre um risco ainda quando seja «a socialização do nosso ser ou liberdade com os outros seres». Deve-mos acrescentar aqui «visíveis e invisíveis».
Eis, pois, dado um dos aspectos da visão ocultista de Leonardo Coimbra. Quem se aproximar da sua obra sem a noção de analogia poderá, evidentemente, descobrir muito no domínio do seu pensamento exterior, mas o essencial, aquilo que se revela pelo encontro do pensamento com a experiência ficará inteiramente por conhecer.
Leonardo Coimbra, isto é, o movimento da sua filosofia não deve ser apenas interpretado, mas interiormente repetido, por forma a que, enquanto nele meditamos, se transforme numa perfeita ressonância que é, já fora de Leonardo Coimbra, a nossa própria visão.
António Telmo
EDITORIAL. 04
22-08-2015 20:17
O futuro tem um nome: António Telmo
O número de visitas desta página conheceu ontem um novo recorde: 492. Se o facto se explica sobretudo pelas diversas publicações com que nesse dia e na véspera assinalámos a passagem do quinto aniversário da partida do nosso patrono, não deixa porém de ser digna de registo e de sublinhado uma marca absolutamente invulgar neste domínio.
Dentro de três meses, o Projecto António Telmo. Vida e Obra terá completado dois anos de vida. É hoje uma realidade inquestionável, implantada a nível nacional (com particular incidência na Grande Lisboa, no Alentejo, em Coimbra e no Porto), fruto de uma acção séria, persistente, dedicada e – por tudo isto – reconhecida, respeitada. A este propósito, não devemos ainda esquecer a presença do nosso Projecto no Brasil, através da colaboração dos nossos confrades que o representam em metrópoles como Brasília, Rio de Janeiro ou Belo Horizonte.
As Obras Completas de António Telmo, editadas pela Zéfiro, casa que é nosso principal parceiro, e que contam com o apoio institucional e científico do Projecto, veem, neste momento, o seu IV Volume em fase final de elaboração. Até ao final do ano em curso, e em pouco mais de dois anos, estarão repostos no mercado livreiro todos os livros que António Telmo publicou até ao final da década de 1980. Ao mesmo tempo, centenas de páginas inéditas têm sido exumadas do espólio do filósofo, em muito ampliando os horizontes do conhecimento da sua vida, da sua obra, do seu pensamento.
Ainda em parceria com a Zéfiro, foi inaugurada, já este ano, a Colecção Thomé Nathanael – Estudos sobre António Telmo, com a edição do primeiro livro de um só autor sobre o nosso patrono.
As Tardes Télmicas, promovidas em colaboração com a Câmara Municipal de Sesimbra, retomarão no início de Outubro a sua segunda edição, que, à semelhança da anterior, vem conhecendo apreciável sucesso.
Assumindo-se como um projecto irradiante no seio da Filosofia Portuguesa, o Projecto António Telmo. Vida e Obra continua ainda, em parceria com instituições como o jornal Raio de Luz ou a Câmara Municipal de Almada, a promover o estudo e a divulgação da obra de Agostinho da Silva, um dos quatro mestres de António Telmo, através dos ciclos de palestras Agostinho Revisitado: Novas Aproximações, e isto depois do enorme sucesso que conheceram, em 2014, as comemorações agostinianas de matriz télmica do 20.º aniversário da partida do Estranhíssimo Colosso, de que o momento culminante terá sido, em 26 de Novembro último, a sessão de homenagem “Encontro com Agostinho da Silva”, promovida pela Biblioteca Nacional de Portugal em parceria com o nosso parceiro Centro de Estudos Bocageanos, e na qual se apresentaram os dois únicos livros de agostiniana publicados nesse ano comemorativo, ambos com o selo inquestionável do nosso Projecto.
António Quadros será outro dos nomes a celebrar este ano pela família télmica, com a edição, pela Fundação António Quadros e pela Labirinto de Letras, e que conta com o apoio institucional e científico do nosso Projecto, do livro António Quadros e António Telmo: Epistolário e Estudos Complementares.
Ainda em 2015, António Telmo estará em foco em dois congressos internacionais, um a realizar no Porto, em Novembro, comemorativo do centenário da morte de Sampaio Bruno, e o outro em Dezembro, em Lisboa, sobre Judeus e Cristãos-Novos no Mundo Lusófono. Em ambos serão oradores membros do nosso Projecto, que assim neles garantirão a presença télmica.
A acção do Projecto António Telmo. Vida e Obra estende-se ainda à colaboração com revistas que se constituem como nossos parceiros privilegiados, casos da revista de cultura libertária A IDEIA e da DEVIR – Revista de Cultura Ibero-Americana, que ainda este ano darão a lume escritos inéditos de António Telmo e outros da autoria de membros do nosso Projecto, sobre Telmo ou sobre figuras marcantes do seu universo.
Para além de toda esta actividade, mais notória, o Projecto é – hoje e sempre – uma realidade que se cumpre ainda no trabalho de investigação biográfica e bibliográfica e de estudo do pensamento de António Telmo, continuando o seu ponto de partida – a página que o leitor agora está a ler – a ser o ponto de encontro de quantos lhe dão alma, tornando o seu patrono cada vez mais vivo, mais presente, mais movente.
Não cabe nomear aqui qualquer um dos trinta e cinco membros autores que integram presentemente o Projecto António Telmo. Vida e Obra. Há, porém, um nome que não podemos deixar agora de consignar: o de Maria Antónia Victorino, membro honorário do nosso Projecto. Pela confiança, pelo estímulo e pela colaboração com que continuamente nos honra. Para ela, a nossa mais profunda e sentida palavra de gratidão.
O tempo tem mostrado que esta causa vale bem a pena. Que os combates que, por vezes, com desassombro, houve que travar eram necessários e não foram em vão. Que o futuro tem um nome: António Telmo.
VERDES ANOS. 14
22-08-2015 17:33
«A Razão Animada» de Álvaro Ribeiro[1]
Este novo livro de Álvaro Ribeiro vem confirmar a sua tese fundamental de que a filosofia é uma arte. Tese pela primeira vez defendida entre nós, é de tal importância no pensamento deste discípulo de Leonardo Coimbra, Teixeira Rego e Sampaio Bruno, que aparece compreendida no título de um dos seus livros. De facto, se fosse demonstrado que a filosofia não é uma arte da palavra, todas as restantes teses de Álvaro Ribeiro cairiam pela base. A filologia ou estudo da língua pátria deixava então de poder ser o método da filosofia.
Felizmente para a cultura portuguesa, não é possível refutar esta tese nem as suas consequências, sem cair em qualquer forma de positivismo que defina a filosofia como ciência ou como técnica. Ao longo de uma série de opúsculos e de volumes, este autor acumulou uma argumentação poderosa, cujas provas se vão desenvolvendo na razão directa da compreensão das novas gerações. Neste sentido, é curioso observar que a obra de Álvaro Ribeiro, tão bem acolhida pelos escritores da geração de 50, não logra o mesmo entendimento entre os contemporâneos do autor e muito menos entre os ensaístas já consagrados e prestes a entrar na Academia das Ciências. A prova do que afirmamos está em que o autor não oculta a sua amargura por verificar que, após alguns anos de doutrinação, crítica e propaganda, não conseguiu convencer as autoridades responsáveis a substituírem o ensino das filosofias estrangeiras pelo da filosofia portuguesa, nas escolas públicas, nomeadamente nos liceus e nas universidades.
Em Portugal, o valor dos livros e dos escritores estabelece-se em função da opinião pública, que é a opinião dos outros, e não pela leitura e análise directa dos textos. Assim acontece que, a respeito dos livros de Álvaro Ribeiro, já tenhamos ouvido os juízos mais contraditórios. Esperamos que o leitor os julgue por si próprio e não se limite a confiar na nossa recensão, que tem apenas o intuito de dar notícia de uma obra de pensamento notável, pelo menos quanto ao contraste que estabelece com a mediocridade do ambiente.
A Razão Animada, como o título indica, desenvolve-se no contraste com a opinião medíocre de que o homem é um animal racional e deste modo se justifica o subtítulo do livro, que diz ser um «sumário de antropologia». Efectivamente, se o homem é essencialmente razão ou discurso, enfim, silogismo, é natural que nas disciplinas filológicas tenhamos de procurar as características da humanidade. Por isso, o autor nos propõe a reflexão dos problemas de estilística, poética e retórica, à luz do seu critério antropológico, que expressamente filia em Bergson, mas do qual extrai consequências que o filósofo francês não alcançou. Na consecução deste programa, Álvaro Ribeiro detém-se a estudar os três géneros literários em prosa, (conto, romance e novela) dotando-os da respectiva justificação filosófica, o que, segundo cremos, nunca tinha ainda sido tentado na nossa cultura.
Ante esta luminosa fenomenologia da literatura, empalidecem os livros clássicos de historiadores, tais como Hernâni Cidade, Fidelino de Figueiredo e Teófilo Braga, cujas monografias, por muito prestáveis que sejam ao estudioso, carecem do essencial que é a legitimação filosófica, para não falarmos em críticos e historiadores do nosso tempo que muitas lições podem receber na leitura da Razão Animada.
Seguindo o preceito do seu mestre José Teixeira Rego de que «a literatura é expressão do sobrenatural» e não da sociedade, conforme dizem os positivistas franceses, o antigo aluno da Faculdade de Letras do Porto, hoje o filósofo português de maior audiência nas novas gerações, investiga, na estrutura das obras literárias, o conteúdo filosófico de temas tais como o amor, a justiça e a morte. E dessa investigação, quando levada a efeito com a metodologia adequada, hão-de os estudiosos colher as provas da existência da filosofia portuguesa.
Foi este livro já notado também pelo rigor e pela fluidez do estilo que o escreveu. Difícil é caracterizar uma prosa sem par em toda a literatura portuguesa. Todavia diremos que, para Álvaro Ribeiro, que alude à imagem do remo, as palavras ora são o ponto de apoio, ora representam a potência ou a resistência de uma alavanca poderosa da navegação espiritual, que agora começamos a ver ter sido toda a história da cultura portuguesa.
António Telmo
Liv. Bertrand — Lisboa, 1957.
[1] 57, ano I, n.º 1, Lisboa, Maio de 1957, p. 10.
VOZ PASSIVA. 61
21-08-2015 00:33António Telmo no convívio do Grupo da Filosofia Portuguesa
João Ferreira
[João Ferreira, no Porto, em Dezembro de 2014]
António Telmo no convívio do Grupo da Filosofia Portuguesa
João Ferreira
[...] "Meu caro João Ferreira, que memórias guarda da tertúlia nos cafés de Lisboa nos anos 50 e 60? Lembra-se de ter visto o Telmo por lá? Como era o relacionamento entre Álvaro e Marinho e destes com os discípulos? Recorda algum episódio em particular? O seu testemunho ser-nos-á precioso!..."
Carta de Pedro Martins a João Ferreira. Em 16 de julho de 2015.
Pedro Martins, coordenador da edição das Obras Completas de António Telmo e autor de Um António Telmo publicado neste ano de 2015 pede-me um depoimento sobre António Telmo na tertúlia filosófica presidida por Álvaro Ribeiro e José Marinho em alguns cafés de Lisboa pelos anos 50 e 60. Naturalmente meu depoimento será muito limitado e apenas a versão daquilo que pude testemunhar. Outras pessoas do tempo poderão completar minha versão.
Para nos situarmos no tempo lembro que regressei da Itália em dezembro de 1953 e fui residir em Leiria onde estive até junho de 1963. Ia a Lisboa algumas vezes ao ano, e aproveitava para me encontrar com meus amigos do Grupo da Filosofia Portuguesa no café Palladium.
Em 1954 publiquei na revista "Colectanea de Estudos" Temas de cultura filosófica portuguesa. Sobre a posição doutrinal de Pedro Hispano e enviei uma separata do ensaio a Álvaro Ribeiro. O Mestre se entusiasmou com o que leu sobre Pedro Hispano, e publicou no Diário Popular um comentário falando do trabalho, de Pedro Hispano e do aristotelismo em Portugal. Me convidou a visitar o Café Palladium para conhecer o grupo da Filosofia Portuguesa na próxima vez que fosse a Lisboa. Aconteceu que tive de ir a Lisboa nessa altura, e então escrevi ao Álvaro e marcamos o encontro no Palladium. Bem benevolente, Álvaro me apresentou a José Marinho, a Orlando Vitorino,que eu já conhecia, a Afonso Botelho, a António Quadros, a António Braz Teixeira e aos demais componentes do grupo. Não me lembro se nesse primeiro encontro estava António Telmo, mas é bem provável que sim pois ele sempre acompanhava seu irmão Orlando. Havia outros membros jovens na tertúlia : Fernando Morgado, Luis Zuzarte, Francisco Sottomayor, entre outros. A impressão positiva que recolhi foi que Álvaro Ribeiro e José Marinho repartiam a liderança com a autoridade de mestres e sábios inteligentes.Mantinham-se em seus lugares como pares de todos os outros, deixavam fluir as temáticas e os debates. A presença deles estimulava os jovens. Álvaro Ribeiro ouvia e dialogava. José Marinho tinha como característica acompanhar, com um olhar muito vivo, a intervenção de cada um nas discussões. Por vezes iam também ao café figuras ilustres da amizade do grupo sobretudo leonardistas ou antigos alunos da Faculdade de Letras do Porto. Numa de minhas visitas ao Palladium encontrei José Sant'Ana Dionísio, que havia publicado em 1953, pela Seara Nova, O Poeta essa ave metafísica. Álvaro Ribeiro sugeriu-me que levasse para a tertúlia um comentário sobre o livro. Sant'Ana Dionísio compareceu e houve um interessante debate sobre o livro.
O que deve ser ressaltado é que grande parte dos componentes do grupo participava não apenas dos debates no café, mas de publicações, de conferências e debates que se desenvolviam na área de interesse do grupo. Delas participava António Telmo.
Entre esses eventos históricos que intensamente se produziram estão os Teoremas de Teatro, que acompanhei de 1955 a 1957 no Teatro Trindade e que eram coordenados por Orlando Vitorino e Azinhal Abelho. Antônio Telmo participava do debate que era aberto ao público após a apresentação dos Teoremas de Teatro.
A partir de 1957, o Grupo da Filosofia Portuguesa entrou numa nova fase. António Quadros publicou o jornal "57" e com ele nasceu naturalmente um novo movimento cultural dentro do grupo da Filosofia Portuguesa. Foi publicado nesse ano de 1957 na revista Itinerarium(Ano III, n. 3, pp.221-259) Fundamentação geral da Filosofia Portuguesa minha primeira manifestação escrita sobre debate da Filosofia Portuguesa. Nesse tempo quando era ainda muito escassa a bibliografia sobre o assunto, o ensaio serviu como guião de um debate sobre Filosofia Portuguesa no Centro Contemporâneo de Cultura, no Largo do Mitelo, 1, em Lisboa. Telmo tinha então 30 anos. Seu irmão Orlando Vitorino entusiasmado com a grande oportunidade em debater um problema que ainda era conhecido só em ambientes restritos, pegou o número da revista Itinerarium, e colocou-o aberto na mesa da presidência do Centro, convidando o público a discutir os principais pontos que ali eram desenvolvidos. A sala estava cheia. Havia personalidades ilustres interessadas no debate. Entre elas lembro a figura de Orlando Ribeiro(1911-1997), fundador do Centro de Estudos Geográficos, "o geógrafo português do século XX com mais projeção internacional". António Telmo participou do debate também, juntamente com outras figuras do grupo do café Palladium. Entre eles, Álvaro Ribeiro, José Marinho, Afonso Botelho, António Quadros e outros. Em rigor, este seria o primeiro debate público, fora dos ambientes de café e das páginas do livros de Álvaro Ribeiro, e dos textos dos componentes do grupo da Filosofia Portuguesa.
Outro evento que está documentado e que teve a participação de António Telmo juntamente com os principais membros da Filosofia Portuguesa aconteceu em fevereiro de 1956. Em carta de 29 de janeiro de 1956, Álvaro Ribeiro escreve a João Ferreira em nome do grupo da Filosofia Portuguesa para ir a Lisboa para participar de uma programação preparada pelos amigos do grupo da Filosofia Portuguesa. De acordo com a carta de Álvaro Ribeiro, da programação fazia parte, em primeiro lugar, um colóquio entre meia dúzia de amigos escolhidos às 18 horas em casa do Dr. Afonso Botelho. Em seguida, haveria um jantar na residência de Afonso Botelho e às 22 horas a conferência A Saudade e seus problemas para os sócios do Centro Nacional de Cultura, com discussão, no final, para esclarecimentos.Álvaro Ribeiro acrescentava na carta "Pedimos que nos apareça munido de todos os seus trabalhos inéditos porque queremos fazer uma proposta de edição da conferência e de outros escritos menores". Paralelamente à carta de Álvaro Ribeiro recebi também uma carta de Afonso Botelho, no dia 2 de 1956 me convidando para jantar no dia da palestra ("para a qual já partiram os convites") que haverá no Centro Nacional de Cultura. A conferência A Saudade e seus Problemas foi realizada na Quinta-feira que se seguiu ao dia 4 de fevereiro. Afonso Botelho, Antônio Telmo, seu irmão Orlando Vitorino, Antônio Quadros, Álvaro Ribeiro, José Marinho, António Braz Teixeira,entre outros estiveram no centro de todo o debate que se constituiu em torno da temática apresentada. A presença de João Ferreira no Centro Nacional de Cultura celebrava a reabertura do Centro que havia sido inaugurado em 1952 com uma conferência de Teixeira de Pascoaes.
Há outros eventos a relatar que envolvem integrantes do Grupo da Filosofia Portuguesa e António Telmo. O mais importante talvez seja um evento quase desconhecido e pouco badalado mas muito real que aconteceu em 1956. João Ferreira era então professor de Filosofia dos estudantes do Curso de Filosofia do Seminário Franciscano de Leiria. Organizou para seus alunos um Curso de História da Filosofia Portuguesa (cf. António de Sousa Araújo. "João Ferreira e o seu Cruso de História da Filosofia Portuguesa". In: Itinerarium, ano XLVI, nº 168, setembro-dezembro, 2000, pp.389-480). A notícia deste curso interessou Álvaro Ribeiro e os amigos de Lisboa. Aos poucos, João Ferreira trabalhou também por estabelecer um vínculo mais profundo de Lisboa com Leiria. Com a anuência e colaboração do padre José Alves Pereira foi possível organizar uma conexão envolvendo palestras e presenças importantes idas de Lisboa. Segundo carta de Afonso Botelho que falou em 27 de abril de 1956 sobre "Situação do conhecimento em Portugal", o conferencista dizia:"Devo levar comigo os amigos daqui e por essa razão teremos que voltar no mesmo dia." Na verdade, Afonso Botelho e seus amigos idos de Lisboa compareceram em peso no salão do convento da Portela em Leiria. Além do doutor Luís Filipe, amigo de José Marinho, e de Afonso Botelho, conferencista, foram de Lisboa: José Marinho, Álvaro Ribeiro, Orlando Vitorino, Antonio Telmo e outros elementos do Grupo da Filosofia Portuguesa, e ainda, como surpresa, dois ícones da Renascença Portuguesa: Augusto Casimiro e Mário Beirão, autor de "O último Lusíada", parceiro de Pascoaes em A Águia e na Renascença Portuguesa. Tudo isso nos dava a sensação de que estávamos numa segunda versão simbólica da Renascença Portuguesa, desta vez, porém, convergindo das Letras para a Filosofia. Na Carta de 20 de maio de 1956, depois da palestra em Leiria, Afonso Botelho agradece a recepção em Leiria:"Foi-me gratíssimo encontrar na simpatia humana com que nos receberam a marca dessa fundamentada esperança". "Os nossos comuns amigos cá vão, acabando os seus livros e eu a animá-los a meterem-se em novas empresas para as quais conto com o concurso do convento da Portela." Afonso Botelho confidencia a João Ferreira: " Que diz a uma História da Filosofia Portuguesa colaborada por todos ou pelo menos uma História da Filosofia Contemporânea?". Mais tarde Orlando Vitorino falará também, por sua vez, a João Ferreira sobre uma História da Filosofia Portuguesa e convida-o a escrever a parte medieval até ao século XVI. Afonso Botelho, em carta de 25 de agosto de 1956 fala de um Livro sobre Pensamento português e fala de um capítulo reservado para João Ferreira: "O pensamento português no ambiente da Escolástica. Pedro Hispano e sua influência"[...]. E fechava a carta, dizendo: "Todos os Amigos que estão em Lisboa lhe enviam cumprimentos".
Lembrando o encontro em Leiria, José Marinho comentava em 1963, numa carta a João Ferreira: "Desde que o simpático dr. Luís Filipe me levou à Portela ando com desejo de lá voltar. Vamos a ver quando poderá efetivar-se. Se vier a Lisboa peço-lhe que não se esqueça de me dar sinal".
Estes excertos de arquivo e vestígios de memória mostram alguns dados importantes relativos a atividades do Grupo de Filosofia Portuguesa em seus primeiros tempos de constituição e da ligação de António Telmo com o Grupo.
31 de julho de 2015
VOZ PASSIVA. 60
21-08-2015 00:02O voo de Lúcio
Risoleta C. Pinto Pedro
No dia 21 de Agosto de 2010, António Telmo fazia uma radical descida ao “poço da alma”, para usar as suas palavras no texto “O Quarto Inimigo do Guerreiro”, in A Terra Prometida: Maçonaria, Kabbalah, Martinismo e V Império.
Poderíamos dizer que esta descida o conduziu ao Grande Oriente Eterno, mas detém-nos um pudor que tem a ver com uma sua convicção, ou pelo menos repetida afirmação, que poderíamos condensar numa passagem do mesmo referido texto:
“[...] o Jung, apesar do seu nome que parece chinês, está-me indicando que o caminho de um ocidental não é o do Oriente.”
Mesmo para um filósofo com olhos de oriental, que misteriosamente a vida ou, se quiserem a biologia, ou para outros, Deus, lhe terá dado, o caminho do Oriente não era o mais sedutor, ou o mais... iluminador. A sua escolha, o seu escol era o da lucidez, para lá das escolas, tendências ou modas. Era o escol do pensamento próprio.
Evidemente que o Oriente da Eternidade é outra coisa, ainda mais sendo um Oriente Grande. Na Eternidade o Grande Oriente terá de ser tão, mas tão grande, que lá caiba também o Ocidente e todos os outros pontos cardeais que sabemos e ainda mais os que existam para além do nosso conhecimento planetário.
Antes, no mesmo texto, escrevera este sempre jovem:
“Estou velho”. Isto comove-me. Faz-me mais pensar em algo como: “Estou cansado”
Há dias caiu-me no jardim, como em poço, um passarinho. Examinei-o, parecia íntegro, nem asas, nem patas mostravam qualquer mal. Deixei-o ficar aí um dia em gaiola, Lúcio pareceu-nos o nome perfeito para um ser caído do céu a fim de repousar ou iluminar-me ou mimar-me gaiola e jardim.
No dia seguinte, após vertiginoso voo rasante de chão, elevou-se no ar e voou.
Ao crepúsculo um bando de andorinhas cruzou vertiginosamente o céu do jardim em diversos sentidos e direcções e durante uns momentos o meu céu parecia um palco de caças em tempo de guerra. Mas era pela paz. Assim como apareceram, assim partiram. Anunciaram algo que ainda hoje desconheço. Mas não posso deixar de evocar outra afirmação do filósofo:
“Um dos sinais do Quinto Império é que ainda há andorinhas.“
Prefiro, por isso, pensar que a presumível derradeira queda de António Telmo no poço da alma, a mais grandiosa queda, a mais elevatória descida, é só uma pausa para descansar, íntegro, apenas poiso para este homem lúcido, antes do voo de Lúcio. Em direcção ao Grande Oriente. Eterno e como nenhum outro, interno. Tal como começa por ser o V Império, antes de se materializar.
Não se referem, os que o viram nos últimos tempos, antes da partida, a asas a necessitar conserto. Assim, partiu para pausa, descanso, novo voo. Como sempre, lúcido. Luminoso e hermético. Como muitos filósofos, é preciso descodificar o que diz, porque é portador de uma semântica própria. Traduzamos assim, sem receio, “velho” por “cansado” e “descer ao poço da alma”, “repousar antes de continuar”. Não faço ideia em que parte do caminho se encontrará, se já chegou, se já partiu novamente. Mas acredito que estará fascinado em mais uma invesigação do pensamento. Radical. Este corajoso pensador do transcendente que perto do final do caminho teve a coragem de se interrogar, como quem, à beira da obra completa, tudo abandona e recomeça tudo, do princípio: “se é que há alma e não só corpo.”.
Comove-me esta coragem, esta dúvida, esta verdade, esta grandeza de quem arrisca pôr em causa toda uma obra e todo um pensamento. Assim, pela verdade (Pelo amor. À verdade), a salvando, o salvando, se salvando, nos salvando.
20 de Agosto de 2015
CORRESPONDÊNCIA. 27
20-08-2015 23:24
[Álvaro Ribeiro na Cotovia, em Sesimbra, no final de década de 60. A foto foi gentilmente cedida por Conchita e Germano Teixeira, a quem muito agradecemos]
Carta de António Telmo para Álvaro Ribeiro, de 28 de Abril de 1971
Meu caro sr. Dr. Álvaro Ribeiro
Com o título Sampaio Bruno e a Tradição Hebraica Portuguesa, envio-lhe o que escrevi nestes dias a partir do que por cá tinha. Parece que o escrito tem unidade e configuração para livro. Fiquei com uma cópia. Agradeço que lhe dê o destino combinado. Não referi todas as citações aos livros, porque não disponho de todos estes e porque suponho que se pode fazer em trabalho sobre as provas. Se achar que convém fazê-lo já, agradecia que mo mandasse dizer.
Assino o livro com “António Carvalho”, por razões que o sr. Dr. Álvaro Ribeiro conhece…
Quando passam por aqui?
A Maria Antónia e todos nós gostávamos de ver em nossa casa o casal outra vez.
Como vai a Conchita e a Mónica?
O novo escrito já vai muito adiantado?
O Pinharanda Gomes escreveu-me requisitando três respostas para três perguntas sobre Filosofia Portuguesa.
Já escrevi, mas ainda não enviei porque me falta uma referência do nome do filólogo que tem um estudo sobre a língua portuguesa a demonstrar a sua superioridade sobre as europeias. Li este estudo na casa do Roque e preciso encontrá-lo para saber o nome do filólogo.
Cumprimentos meus e da Maria Antónia a sua Esposa.
Um abraço à Conchita e beijinhos à Mónica da Anahí, que está ao pé de mim a falar no Germano.
Do discípulo muito reconhecido
António Carvalho
[Biblioteca Nacional, Espólios N9/1053]
VOZ PASSIVA. 59
20-08-2015 23:17
Evocando António Telmo (2-5-1927/21-8-2010) hermeneuta de Diálogos de Amor de Leão Hebreu e autor de A Verdade do Amor
Eduardo Aroso
A luz intensa e súbita pode cegar. Não se tem dito o mesmo do amor verdadeiro, esse quando irrompe como lava de vulcão, mais em forma de luz do que de temperatura… sobre as emoções rotineiras, vulgarizadas também como afectos, ou desalmadamente sob a forma de “ter um caso”, ou na degradada e absurda expressão “fazer amor”.
Pode amedrontar e em simultâneo causar espanto se o amor surge como uma espécie de epifania. Receio que nos pode paralisar momentaneamente, pois também a isso não ficou imune, na visão, Paulo na estrada de Damasco, onde os seus olhos ficaram cobertos de escamas durante dias. A verdade é que somos, por enquanto, vasos frágeis para conter essa torrente misteriosa que faz estremecer o mundo da matéria, ao mesmo tempo que só ela o pode mover.
Quando esse amor amedronta e causa espanto é também o sinal de que chegou a hora de sermos guerreiros de luz afrontando um falso adamastor que se ergue para barrar a verdadeira aventura divina no campo de batalha mais desamparado e obscuro em que presentemente vivemos.
Se é verdade que houve céu antes da terra, é certo que "a terra antes do céu" tem o sentido da Grande Obra, pois que da terra ninguém se pode alhear seja qual for o nirvana! Quem ergue a espada de luz, afrontando o adamastor do receio e do espanto, tem já dentro de sim a certeza, como se fosse um terraço que dá para o mar imenso de todas as possibilidades que se abrem na linha do horizonte. Também nós, os do Portugal da esfera armilar, queremos o oceano antes do céu.
Cabo Mondego, 20-8-2015
VERDES ANOS. 13
20-08-2015 18:44
Sampaio Bruno, crítico literário[1]
Um dos aspectos pelo qual menos conhecem Bruno os nossos intelectuais revela os seus grandes dons de «crítico literário», senhor de segredos e processos filológicos de hermenêutica que lhe abriram o acesso a todas as zonas da literatura. Páginas e páginas se seguem e alternam nos seus livros, nas quais estuda a literatura francesa, desde os românticos aos simbolistas, a literatura russa, Shakespeare, Dante, Novalis e Goethe, toda a literatura portuguesa, para não falar da Geração Nova, um volume inteiramente dedicado a estudos literários.
Com a superioridade do filósofo que exerce a crítica, Sampaio Bruno interrogava a literatura de modo a descobrir a concepção do mundo pensada pelo poeta, pelo historiador ou pelo romancista. Consciente de que um novo pensamento ou uma nova ideia desce a escala que da literatura vai até à política pelo ensino, não caía no erro ingénuo de considerar, como querem os positivistas, a literatura uma sobrevivência do passado. Decifrava, utilizando a filologia, qual esse pensamento, qual essa ideia actuante. E assim resolveu muito problema obscuro e declarou muitos enganos no domínio dos conflitos políticos e das preocupações religiosas.
Em geral, os críticos literários acreditam na literatura como um objecto, uma coisa, não deixando, com os seus paralogismos, ver ao leitor o sujeito que está por detrás do objecto, a causa que se esconde na coisa. O autor da Geração Nova sabia muito bem como surge a questão literária, pois gozou de uma grande vantagem sobre quase todos os seus contemporâneos: a de ser inteligente. Se aceitamos a definição de Álvaro Ribeiro de que inteligente é aquele que compreende o que lhe querem dizer antes de lho terem dito, se adoptamos a menos subtil definição de que inteligente é aquele que não se deixa enganar, temos de reconhecer que a maioria dos intelectuais republicanos portugueses não era constituída por pessoas inteligentes, porquanto, mesmo e até depois de lho terem dito, não compreenderam e totalmente se deixaram enganar. Esses ingénuos Vencidos da Vida, e dizemos ingénuos para não ferir seus, por ventura ingénuos, prosélitos da hoje, escritores eles admiráveis que tanto contribuíram, por meio do poder do estilo, para instalar o que diziam querer destronar, para contrariar tudo o que diziam querer favorecer, não parecem pessoas inteligentes inteligentes, quando os comparamos à geração, pelos críticos menosprezada, de Garrett e Herculano. Efectivamente, tanto quanto diminui as figuras, os escritos e as acções de Antero, Eça e Oliveira Martins, exalta Sampaio Bruno as de Garrett, Herculano e Castilho. Também a Teófilo Braga não escapou o equívoco da influência dos Vencidos da Vida.
A crítica destes ao positivismo consiste no fundo no combate à filosofia portuguesa de Teófilo Braga. Outro foi o ponto de vista e de partida da crítica sistemática feita por Sampaio Bruno à doutrina de Augusto Comte. Fazendo depender a literatura da história e, por conseguinte, da lei dos três estados, dependência que ainda hoje (! ) orienta os cursos de filologia das Faculdades de Letras com as suas disciplinas de História da literatura portuguesa, inglesa, alemã, francesa, etc., os positivistas têm sempre pretendido dissociar a literatura da filosofia ou enterrar e ignorar definitivamente a filosofia na literatura. Deste modo, a ciência pitagórica, adoptada pelos positivistas, passará, no último limite, a reivindicar a totalidade dos direitos no domínio jurídico do ensino oficial e público, e a redenção das pátrias e da humanidade será retardada, uma vez que se-vede o aprendizato e o estudo das artes tradicionais.
Para combater o positivismo, escreveu Sampaio Bruno o Brasil Mental. Porquê o Brasil e não Portugal? Em 1857, ano em que morreu Augusto Comte e nasceu Sampaio Bruno, (curiosa coincidência!), já a doutrina, a que o biólogo Husley chamou um «catolicismo sem cristianismo», se encontrava implantada no Brasil, mediante acção de agentes franceses que ensinaram na Escola Naval do Rio de Janeiro. O positivismo não veio por terra de Paris; veio sim do Rio de Janeiro, por barco, em pacotes de livros. Tratava-se, portanto, de combatê-lo no seu ponto, para nós originário e nevrálgico. Simultaneamente, assim o filósofo evitava ferir os prtugueses; seus compatriotas.
Elucidativo é que seja nesse livro, o Brasil Mental, onde Bruno insere o seu admirável estudo sobre a Pátria. Guerra Junqueiro, que, como se sabe, fora iniciado por aquele na filosofia de Pascoal Martins, apartara-se, desiludido, dos Vencidos da Vida. Entre Guerra Junqueira e Antero de Quental, Sampaio Bruno escolheu, sem dúvida, o autor da Oração à Luz, o poeta iluminista, o poeta da Pátria e do Catolicismo português (como viu F. Pessoa), ao pé do qual o Catolicismo germânico do autor dos Sonetos não sustenta comparação. Como sucede com Oliveira Martins, existem nos livros de Bruno muitos passos explícitos denunciando em Antero os sofismas hábeis ou inconscientes do seu estilo. Mas nenhum leitor atento e perspicaz é enganado com o alvo da crítica ao poeta-didacta brasileiro Martins Júnior. O visado é ainda Antero de Quental.
A inferioridade da poesia didáctica é, em geral, admitida por todos os intelectuais. Isso não impede, porém, a admiração que muitos perfilham por todos aqueles poetas que puseram a literatura ao serviço da ciência, da política ou da religião. Medíocre leitor de Schopenhauer e de Hegel, Antero foi, sem dúvida, um excelente propagandista do pensamento germânico, servido como era por admiráveis qualidades de estilo. A mistura, nos Sonetos, de algumas noções de filosofia alemã com a mitologia católica, sustentada pelo lirismo, sentimental e enciclopedista, duma alma em perpétua contradição, não basta para fazer dele, como em geral se faz, o poeta-filósofo por excelência.
Só à cegueira provocada pelo ensino oficializado da literatura se deve atribuir a ignorância de tão fáceis explicitações. O positivismo faz ver ao invés a ordem por que se processa a tríade literatura, ensino e política e promove, por conseguinte, a sociologia a primeira das ciências. Daí a correlativa apologia da poesia didáctica, com a substituição do mito pela alegoria e do símbolo pelo emblema. A ordem «à rebours» que assim se estabelece, miragem na qual a literatura aparece como resultado, não deixa ver a verdade; tão bem formulada por Teixeira Rego. «A literatura é a expressão do sobrenatural». Somente quem o pensar poderá descobrir a íntima realidade daquele processo existencial que faz descer a palavra à política, e conceber o princípio do movimento que anima a humanidade.
O ensino de Sampaio Bruno, a actividade que desenvolveu como crítico literário não se perdeu. Hoje a literatura começa a ser estudada, nos meios afastados do ensino oficial, em função da filosofia. Tivemos de referirmo-nos, enquanto articulávamos estas linhas, a Teixeira Rego e Teófilo Braga. Estudando a obra destes três escritores, poderá alguém, no futuro, escrever a verdadeira história da nossa literatura, a última história da literatura portuguesa. Cem anos após o nascimento do grande pensador tornou-se possível confiar na virtude dessa esperança.
António Telmo
UNIVERSO TÉLMICO. 28
17-08-2015 21:59Raquel, Rafael, a “Escola” e as Escolas
(Resumo de uma viagem a Atenas
com regresso a Portugal, sem de cá ou de lá sairmos)
Risoleta C. Pinto Pedro
“Como é difícil a uma criança
distinguir o seu sonho,
que é a sua realidade,
do que os homens já cristalizaram
em realidade para eles!
As escolas, meu Deus, que tortura!”
Leonardo Coimbra, Adoração, cânticos de amor
Causarum cognitio, de Raquel Gonçalves
O Conhecimento das causas
A Escola de Rafael Sanzio
«Os intelectuais de “A Escola de Atenas”
encontram-se muito abaixo do nível de Deus,
abaixo ainda do nível dos poetas.»
Raquel Gonçalves
Raquel Gonçalves-Maia, cientista, divulgadora de ciência, tem feito numerosas e importantes pontes entre ciência, arte e símbolo, assim como já andou pela ficção. É um espírito veloz, curioso, insaciável, e tem tanto de tranquilo como de inquieto. Escreve agora sobre “A Escola de Atenas”, de Rafael Sanzio, afresco que pode ser admirado no Museu do Vaticano.
Livro precioso, porque é o olhar livre e despreconceituoso da cientista sobre a arte, a filosofia, e a história de ambas. Num colo que é ciência.
A autora brinda-nos generosamente com um olhar científico, estético, filosófico e simbólico.
Recomendo-o por múltiplas razões: porque ensina, porque abre horizontes, interroga, expande, espanta-se, assombra-nos e indicia. E tem uma linguagem bela, a cientista divulgadora e ficcionista.
Será “A Escola de Atenas” o objecto ou o pretexto para este livro? Ao leitor as respostas, tantas as respostas quantos os leitores, certamente muito mais numerosas e ricas as respostas, que a amplitude desta minha ingénua pergunta.
Quem está no centro deste livro que analisa a pintura onde foram reunidos génios do pensamento desde o século VII antes de Cristo ao século XVI depois de Cristo? Aristóteles? Platão? Sócrates? Os Sofistas? Rafael Sanzio? A Pintura? A Filosofia? A História? A Ciência? Ou Averróis? Ou o Papa Júlio II? Ou...? Ou...?
Livro com vários centros e todos se encontram, como no mundo das ondas.
Da filosofia antiga à ciência moderna, passando pela eterna estética, pela eterna poética.
Entramos com Raquel na pintura e não sabemos aonde a viagem nos conduzirá, é muito arriscado entrar em certas pinturas. Que existe do outro lado da tela?
Não é de menosprezar a figura de convite que é a epígrafe, e que dá o tom, pelas palavras de Agostinho:
“Espero que um dia olhemos a serpente e a vejamos oculta; que a Ciência e a Filosofia sejam, no presente, um sonho do passado e que o mesmo aconteça com a Arte e com a Religião.”
Agostinho da Silva
Eu acrescento: Que o mesmo aconteça com a Escola, como Rafael a pinta, como a viveram os atenienses e como continuaram a vivê-la alguns filósofos... portugueses:
“Afastados do ensino oficial, dispensados de compromissos com as normas legais de validação do ensino, [...] os dois amigos [Álvaro Ribeiro e José Marinho] criaram uma escola de filosofia que é certamente das mais notáveis actualizações da livre docência dos grandes mestres atenienses.[...] Unidos pelo amor da sabedoria, mestres e discípulos exercitaram aquela ascese intelectual que José Marinho com propriedade designou de anagogia.”
In: Filosofia Portuguesa para a Educação Nacional, Joaquim Domingues
Acompanhemos então esta cientista também escritora, que perante a arte não se contenta com a sensação ou com a emoção. Experimentemos a sua escrita analítica, poética, rigorosa e elegante.
Na pintura em causa no Conhecimento das Causas, Platão e Aristóteles são, inequívoca, especial e espacialmente, as figuras centrais. As cores e os lugares (ou o não-lugar) para onde apontam, distinguem-nos. Eles são dois dos guias por onde entraremos no labirinto das infinitas possibilidades da arte, “as respostas nunca definitivas”.
A magia dos números compõe o quadro da complexidade: “nesta composição grandiosa (7,7 m de comprimento por 5,5 m de altura)”. O método científico aqui aplicado à arte não afugenta o mistério, não o expulsa, não o queima na fogueira.
Se não o sabíamos, ficamos a amar Rafael, que com onze anos de idade já administrava os conflitos familiares, e aqui estamos nos bastidores da obra antes da obra, as suas fundações.
Este precoce diplomata dos matizes emocionais, filho de mãe chamada Magia, precocemente perdida, é, ao contrário dos costumes da época, alimentado junto ao coração. Como precioso passarinho bebendo o leite alado. Para voar.
Entretanto, cresce. Conhece Leonardo. Admira-o. No afresco espelha, nas feições de Platão, o rosto de Leonardo. Assiste à luta dos titãs Leonardo e Michelangelo. Acaba por ser chamado para Roma, pelo Papa. Um sonho que se concretiza. O sonho do pintor que, sem o desejar, mas por causa do seu talento, foi responsável por o papa ter despedido todos os outros pintores ao seu serviço.
A partir da pintura, a análise aprofundada no espaço, no tempo, nas diversas perspectivas, como já referi: artística, histórica, filosófica, ética, estética, simbólica e mitológica. Ao pormenor. Não para arquivar em gavetas de laboratório, mas para procurar os paradoxos, as possíveis contradições.
Viajar pela Filosofia antiga e pela sua história através de uma pintura, pela mão de uma cientista: encantadora e conseguida ideia neste livro concretizada.
O estilo é vivo e caloroso, como ela própria: “Vazio? Que horror!”
Que longe está a fria antiga pedra científica do laboratório!
A viagem é a Atenas em tempo de outra troika, de onde e da qual recebemos quase tudo, trio amoroso e insuspeito, sábio e não assustador, inquieto, não inquietante, com "Sócrates, o «Sábio», Platão, o «Mestre», e Aristóteles, o «Professor» [..] membros desta ilustre trindade".
Afinal não é troika, segundo Raquel é Trindade (a maiúscula é minha, a cientista não me perdoaria a corrupção) e é fácil encontrá-la: na "Escola" de Rafael. O guia da visita é o extraordinário livro de Raquel Gonçalves-Maia, guia ciencioartística da intemporalidade.
Da minha parte, tudo aqui ficou por dizer: por incapacidade e propósito. Só há um remédio, colocar sobre cada mesa de cabeceira este livro de Raquel sobre Rafael e a história da Filosofia clássica, que é berço da nossa, embora não obrigatoriamente “condição” ou “destino” (sobre isto recomendo muito a leitura de O Céu e o Quadrante, de Pedro Martins,) e adormecermos todas as noites embalados pela Escola de Atenas. A sonhar com a Nossa. Aquela que, levantando-se da sombra, ainda se encontra semi-oculta, mas brilhou, por momentos, na Universidade de Leonardo Coimbra e nas tertúlias: selva, casas, montanha, naus, ruas e cafés. Com ele próprio, Leonardo, com Sampaio Bruno, com Álvaro Ribeiro, com Pascoaes, com Fernando Pessoa, com Agostinho da Silva, com José Marinho, com Delfim Santos, com António Quadros, com Afonso Boelho, com António Telmo, e outros, e outros...
Falta-nos Rafael, ou um pintor como ele, que os junte e os ponha a falar para nós ouvirmos, que projecte o som através dos tempos a ponto de ser ouvido por uma cientista apaixonada por história, filosofia e arte e que sobre eles escreva e transcreva, com tecnologia de ponta, os diálogos que tiveram e até mesmo os pensamentos que repeliram.
Um pintor inspirado e documental que pinte a Escola de Lisboa, a do Porto, a de Brasília, a de Sesimbra, a de Estremoz... E que, como Rafael e Raquel, lhes dê movimento e som.
Neste livro-altar em templo de arte, realiza-se casamento e diálogo de duas histórias: a da Filosofia e a da Ciência, bem como a influência espiritual exercida pelos professores, estes sábios na antiguidade. Essa influência espirital dos professores está igualmente patente numa página de Joaquim Domingues a propósito de Álvaro Ribeiro (a já acima citada Filosofia Portuguesa para a Educação Nacional), evocando o importante mestrado e convívio do mestre (Leonardo Coimbra) com o discípulo (Álvaro Ribeiro), depois tornado mestre de mestres.
Cito:
“[...] como as formas superiores de docência se distinguem do que habitualmente se pensa da relação professor-aluno, aproximando Leonardo dos mestres atenienses [...]” (sublinhado meu).
E retomo a citação:
“Sem cair em fáceis antinomias, opondo o que é complexo, há-de entender-se aqui como mestre o que abre a inteligência para níveis superiores de compreensão, numa relação que envolve uma dimensão sagrada, sacerdotal ou secreta: «O mestre é senhor de segredos que só revelará aos iniciandos e iniciados. Situado no seu quadro sacerdotal, Pitágoras figura evidentemente como o precursor de Platão, filósofo capaz de ver para além do visível.»
Assim, os mestres da Renascença Portuguesa reactualizaram uma tradição interrompida ou esquecida desde há muito, como defende Dalila Pereira da Costa.”
Diz ainda Joaquim Domingues, a propósito de Álvaro Ribeiro (que é, segundo António Telmo, o formador da Filosofia Portuguesa - de Sampaio Bruno teria vindo a emanação, para Pedro Martins, fundação, e de Leonardo Coimbra a criação): “acima de tudo, foram as tertúlias filosóficas que lhe ofereceram a cátedra mais eficaz e fecunda.”
É a tertúlia filosófica que Raquel mostra e que aprendemos dos gregos, que tem sustentado a Filosofia Portuguesa, quase sempre à margem da Academia, sempre à margem das instituições que conferem prestígio a peso. Mas com bicho, prestígio rapidamente deteriorável. Não é o caso da Escola de Atenas. Não é o caso da Escola da Filosofia Portuguesa.
A passagem do texto de Raquel Gonçalves que usei como epígrafe a esta minha recensão, nivelando os intelectuais, no afresco, abaixo do nível dos poetas, foi o motor que me levou a estabelecer o paralelo entre a Escola de Atenas e a Escola da Filosofia Portugesa. É que a Escola da Filosofia Portuguesa, que convém distinguir de Escola Portuguesa de Filosofia, e que não se pode separar do estudo da Língua, da Poesia e da Gramática, nasce com um rei poeta, o maior dos primeiros, o mesmo e o primeiro que fixou a língua para além da fala. Com este rei, a sua medida administrativa e sua poesia, nasce a nossa tradição filosófica e poética da saudade. Isto está magnificamente demonstrado por Pedro Martins, no livro já acima referido, O Céu e o Quadrante, em que explica de que forma a Filosofia Portuguesa reune a Poética e o Pensamento num abraço saudoso e profundo. Os poetas não estão, neste caso, abaixo dos intelectuais. Abraçam-se.
O caminho que aqui nos conduziu chama-se O Conhecimento das Causas e está, definitivamente, em lugar nobre na minha estante. É incontornável para quem pretenda conhecer ou esclarecer-se sobre “as correntes filosóficas” e os “avanços científicos” na “Antiguidade, mas também no período Medieval e Renascentista”.
E o que me levou a reunir o livro de Raquel Gonçalves e “A Escola da Filosofia Portuguesa” num mesmo texto é esta mesma sensibilidade à tradição do pensamento que pode encontrar-se inequivocamente no seu livro e inequivocamente nos Filósofos Portugueses que aqui referi, nomeadamente, num pequeno grande livro de Álvaro Ribeiro que recomendo (com sorte talvez consigam encontrá-lo em algum alfarrabista): O Problema da Filosofia Portuguesa: “não é de filosofia em Portugal, mas de Filosofia Portuguesa que a nossa cultura verdadeiramente carece; [...] Tudo depende [...] de recomeçar uma tradição [...] que venha a formular, em sistema ou sistemas, a filosofia própria da fisinomia nacional.”
Já terminara a escrita desta recensão ou testemunho da reflexão da minha alma, quando, relendo o que escrevera, um raio de sol da meia-noite me soprou ao ouvido a lembrança de que António Telmo, uma das mais eloquentes e recentes vozes da Filosofia Portuguesa, afirma, em Filosofia e Kabbalah, que em Aidós ou no Hades, a sombra de Platão e Aristóteles reflete a imagem pintada por Rafael. Atrás deste fio de luz veio a minha memória, a lembrança vaga do conto “No Hades” inserido no livro acima referido, onde, estimulado por Tomé Natanael, o protagonista chega a subir os quatro degraus que lhe permitiriam ver e ouvir, no que parecia ser uma imagem bidimensional, o movimento, as falas, a vida tal como a conhecemos.
É a essa mesma vida que Raquel Gonçalves, pelo método científico temperado de Graça, acede e nos convida.
Já era tarde qando concluí este texto, que seria (será e foi) o meu humilde e agradecido presente de aniversário para minha amiga e admirada Raquel, mas o bichinho já tinha entrado, estava instalado e não resisti a ir lá, a António Telmo, apresentar-lhe Raquel. E vice-versa. Ouçamos, então, António Telmo, em diálogo com Raquel Gonçalves, que ainda a noite é uma criança.
Aqui vos apresento Filosofia Portuguesa e Ciência em diálogo, no seu melhor, no seu nível mais alto, unidas pela Ética e pela Poética, diálogo santo entre o Hades e o Gerês:
Começa Telmo:
“Não ouvíamos o que diziam [Platão e Aristóteles] porque nada diziam que se ouvisse cá em baixo. [...] pela disposição desses livros e pela disposição das mãos que as duas sombras estavam uma para a outra na exacta relação ritual do esquadro e do compasso. [...]
O que ali me aparecia era o símbolo do perfeito entendimento entre os dois filósofos. Eles conduziam e projectavam na nossa direcção a mesma energia urânica, um recebendo-a, pelo dedo em ponta, na mão fechada e passando-a para o outro que a dirige para nós pelos dedos separados da mão de palma voltada para a terra. Os olhos nos olhos concentram num único ponto o foco interior dessa energia. [...] Procurava as ocasiões em que havia clientes na loja para me pôr diante das imagens dos dois filósofos, como se, de um momento para o outro, os pudesse ouvir falar. Tinha, porém, a certeza íntima que isso só aconteceria se conseguisse lançar-me fora de mim e subir aqueles quatro degraus. Enquanto o não fizesse, permaneceriam indiferentes ao meu desejo, mudos e imóveis até à eternidade. [...]”
«Olhe agora no intervalo, olhe através dele. O que vê?»
O famoso pormenor do fresco de Rafael com os dois filósofos estava na parede do fundo. Como era possível que ainda não tivesse reparado nisso? Mas logo que baixei o braço para continuar a vê-lo, apareceu-me o fundo da sala envolto numa espessa obscuridade, [...]
«Não pense que teve uma visão. A pintura está lá, isto é, uma reprodução a cores. A sua percepção tornou-se mais subtil. É só isso! Venha ver!»
De facto, na parede do fundo lá estava um quadro reproduzindo o pormenor do fresco com os dois filósofos. [...]
«Tomando à letra o que você me diz, não nos devemos admirar se, a nosso rogo, Platão nos entregar o seu Timeu ou Aristóteles as suas Categorias. Estou-me a ver a levá-los para casa, a folheá-los na minha secretária.»
Tomé Natanael ficou muito sério.
«Observe bem a pintura.» [...] Se estudar as categorias e souber estabelecer as suas exactas relações, poderá determinar a estrutura oculta da composição de Rafael. Conhecerá o que são os quatro degraus, as duas colunas humanas, o pórtico. De nada vale bater à porta da vida sem bater ao mesmo tempo à porta do espírito. [...]
Tomé Natanael, depois de ter lido os apontamentos, não disse uma palavra. Encaminhou-me pelo braço até ao fundo da loja, acendeu a lâmpada e ficou, comigo ao lado, a contemplar o quadro de Rafael durante alguns minutos. Era-me impossível romper aquele silêncio. Imitei automaticamente com o meu a postura do seu corpo. Quem entrasse pela porta ver-nos-ia aos dois, nas nossas roupas cinzentas, direitos e de braços pendentes, como dois candelabros de estanho. Eu sentia aquele momento como uma espécie de oração silenciosa [...]
Somente por uma demorada acção sobre si próprio no domínio da imaginação poética é possível ao homem adquirir a virtude régia que lhe permita passar o grande abismo [...]”
“No Hades”, in Filosofia e Kabbalah, António Telmo
Responde Raquel:
“as expressões das figuras [...] deixam transparecer o seu carácter psicológico. Rafael notabilizou de forma sulime o conhecimento natural do mundo, isto é, o conhecimento dos homens. [...] estamos perante uma cena de teatro duma narrativa em movimento [...] Quase podemos adivinhar os diálogos entre os elementos de cada grupo, quiçá neles participar, ou, simplesmente, atinar com os pensamentos que afetam os homens isolados. Por que corre uma das personagens para o palco, entrando à esquerda com um rolo e dois livros debaixo do braço? Por que se egueira outra, à direita, em passo apressado na mesma linha horizontal? Serão elas imagens do tempo com passado, com futuro e com presente fugaz? [...] Perto de nós, o múltiplo quadriculado do chão de “A Escola de Atenas”, símbolo da Terra, antítese do transcendente, bem pode resumir a captação do instante do homem encarnado.
[...] é bem possível que Rafael Sanzio [...] acreditasse que o curso da humanidade estivesse inscrito, desde o início dos tempos, num plano secreto e arquitectado por Deus, e que o conhecimento pesquisado pelo homem fosse alcançado por inspiração divina. ‘A Escola de Atenas’ foi o seu meio grandioso e encantador de mostrar ao mundo a descoberta do homem.
[...] a ideia subjacente à construção do afresco tem uma importância excepcional. O legado da Grécia e de Roma para a cultura ocidental flosófica e científica merecia, é um facto, uma homenagem desta dimensão. A ‘leitura’ da magnífica obra de Rafael Sanzio é fascinante. Que importa que o século XII espreite sobre o ombro do século VI a.C., se aquele mais deseja aprender sobre a perfeição dos números melódicos? Nada de intrigante que uma acesa discussão, reveladora do Universo e da Terra, tenha lugar entre um mancebo do século VII a.C e outro do século II¸ e para mais, atentamente escutada por pintores renascentistas...”
Causarum Cognitio, O Conhecimento das Causas; Raquel Gonçalves-Maia
O que aqui me apareceu foi “o símbolo do perfeito entendimento” entre um filósofo e uma cientista.
“Nada de intrigante” que o filósofo tenha partido em 2010 para o Hades ou para uma planície ou montanha de luz e a cientista esteja hoje a festejar, provavelmente no Gerês ou em Braga, o seu felicíssimo aniversário, em plena era de abençoada criação e vitalidade, a prometer mais, muito mais, como há anos, ininterruptamente, lhe conheço.
Paz na Terra e Glória nos Céus aos Seres de uma Escola ou Academia de Boa Vontade e Amor pela Verdade. Na interrogação e no espanto.
UNIVERSO TÉLMICO. 27
12-08-2015 12:33De Brasília, o Professor JOÃO FERREIRA dá-nos conta, com preocupação, de um retrato histórico de Agostinho da Silva que tem resistido às intempéries da invernia austral na capital brasileira, e que se encontra num poster precário exposto ao ar livre num espaço existente entre o prédio do Minhocão e a Biblioteca Central da Universidade de Brasília. Mas o privilégio desta sua nota percorre ainda outras memórias do círculo candango de Agostinho, através de uma foto-reportagem realizada em Julho de 2015, por sua neta AMANDA EHRHARDT FERREIRA, estudante universitária brasileira, do Instituto de Arte da UnB.
Uma foto histórica ameaçada
João Ferreira
Esta fotografia do retrato de Agostinho da Silva foi realizada em julho de 2015 pela estudante universitária brasileira, Amanda Ehrhardt Ferreira de Castro, do Instituto de Arte da UnB.
O retrato encontra-se num pôster precário exposto ao ar livre num espaço existente entre o prédio do Minhocão e a Biblioteca Central da Universidade de Brasília. Como é possível imaginar, o pôster é feito de materiais precários e torna-se extremamente frágil por isso.
Quase por milagre, o retrato de Agostinho da Silva resistiu até agora aos invernos e intempéries que a Natureza descarregou sobre o Campus da UnB. Mas suas permanência está ameaçada.
Faz parte de uma exposição ao ar livre, quase uma galeria informal, com as quatro figuras consideradas pioneiras, básicas e representativas na história da Universidade selecionadas em 2012 por ocasião da celebração dos cinquenta anos da fundação da Universidade de Brasília.
Desse quadrumvirato nobre faziam parte:
Darcy Ribeiro (1922-1997), fundador e primeiro Reitor da Universidade de Brasília.
Anísio Teixeira (1900-19710, um dos pioneiros da Educação Nova no Brasil, autor do projeto pedagógicos da Universidade de Brasília, fundador do INEP.
Agostinho da Silva (1906-1994), um dos fundadores da Universidade de Brasília, assessor do Presidente Jânio Quadros para assuntos africanos, fundador e primeiro Coordenador do Centro Brasileiro de Estudos Portugueses e um dos primeiros teóricos e defensores da Lusofonia.
Teodoro Freire (1920-2012), grande figura da cultura popular brasileira, organizador do grupo folclórico Bumba meu Boi e do Tambor da Crioula, funcionário do Centro Brasileiro de Estudos Portugueses e amigo de Agostinho que o ajudou a se projetar no meio cultural de Brasília.
De momento dos quatro retratos da galeria inicial só estão de pé dois deles: o pôster com a figura de Agostinho da Silva e o pôster com a figura de Anísio Teixeira.
A desproteção oficial da Universidade dada à galeria soma-se ao rigor do tempo que tem suas regras de impiedade e desgaste.
Nota redigida em 6 de agosto de 2015
[Nesta foto, João Ferreira encontra-se junto do local onde estava situado o CEC (Centro de Estudos Clássicos) dirigido por Eudoro de Sousa e onde trabalhou com António Telmo. Conta-nos João Ferreira: Entrei no subsolo do prédio que mostra a foto com grades para "rever" o espaço. Mas não há vestígios do passado... a utilização que foi feita posteriormente através de reformas e adaptações transformou tudo para servir ao padrão das necessidades da Faculdade de Educação que é a nova proprietária do espaço. No tempo do funcionamento do CEC, em 1968, por exemplo, quando cheguei a Brasília, a parte de cima era ocupada apela Reitoria e no subsolo, descendo as escadas funcionava o CEC, com saleta do Coordenador, sala administrativa para o Secretariado do Centro, postos para professores e pesquisadores e espaço para o acervo da Biblioteca. Hoje não há mais vestígios de nada. Tudo é outra coisa... ]