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VOZ PASSIVA. 65

09-10-2015 09:10

ÁLVARO RIBEIRO, SEMPRE!

No dia em que se completam 34 anos sobre a exaltação de Álvaro Ribeiro, oferecemos aos nossos leitores, em pré-publicação, o primeiro capítulo de O Teorema de António Telmo, ensaio prefacial que Ruy Ventura escreveu para Filosofia e Kabbalah seguido de Álvaro Ribeiro e a Gnose Judaica e outros estudos, IV Volume das Obras Completas de António Telmo, a ser lançado, ainda este ano, com a chancela da Zéfiro e o apoio institucioonal e científico do nosso Projecto. É, estaremos em crer, um excerto elucidativo da profunda cumplicidade que unia o discípulo ao seu mestre.   

O teorema de António Telmo (excerto)

Ruy Ventura 

 

 

Os sábios são aquelas divinas inspirações que põem ordem nos pensamentos, ponderam as palavras, abrilhantam as obras, compõem a vida e tudo dispõem rectamente. Quem caminha juntamente com estes sábios torna-se sábio. […].”

 

Santo António de Lisboa

Sermão da festa do protomártir S. Estêvão

 

1.

 

Conta António Telmo em Filosofia e Kabbalah que Álvaro Ribeiro ensinava os seus discípulos “a converter os poemas e os filosofemas, sempre que possível, em teoremas”, explicando-lhes que tal deveria traduzir-se “numa figura geométrica visível, porque o desenho, se viesse a ser traçado segundo as regras da arquitectura, nos revelaria o desígnio do poeta ou do filósofo” [FK[1], 174].

Isto dizendo, indicava o filósofo d’ A Razão Animada pelo menos duas tríades: a primeira estabelecendo uma hierarquia de géneros (poema, filosofema e teorema) e a segunda aclarando a gradação do percurso hermenêutico (desenho, desígnio e arquitectura). Se estivermos atentos, repararemos que a segunda é o desenvolvimento do vértice superior da primeira, ou seja, do teorema – “figura geométrica visível” –, desenho instrumental que leva à revelação do “desígnio” do autor do texto poético ou filosófico, por obediência às “regras da arquitectura”. Tratar-se-á não só do projecto, propósito ou intenção do ser escrevente, mas também da vontade de um autor superno, legislador dessas “regras”, ou pelo menos do seu nome ou designação. A “figura geométrica visível” deve assim ser entendida assim pela expressão inversa, sem a qual esta não existiria, pelo seu reverso, oculto, incluso ou latente no texto analisado. Se há manifestação de uma figura, do aspecto exterior de um corpo ou de uma sua representação, é porque além do representante está o representado. Se é necessária a geometria, terrestre, é porque esconde a medida do empíreo ou do mundo inferior. Se algo se torna, assim, visível, é porque estava invisível. O verbo que a tudo preside é revelar, vocábulo dúplice que mostra e esconde no seu prefixo. E as “regras da arquitectura” assim se evidenciam porque obedecem ao arkhé, ao princípio, ao segredo e à potência, emanados daquele a que a tradição maçónica – de que Telmo e Ribeiro se reivindicavam – chama Supremo Arquitecto do Universo, ou seja, Deus, o Théos incluso no teorema e também na theoria de que aquele é expressão.

A acção hermenêutica sobre um texto poético ou filosófico deve assim visar a sua revelação, sendo ele a expressão de algo de divino, de que o filósofo ou o poeta é agente, inspirado por intermédio da imaginação. Em rigor, o que Álvaro Ribeiro propunha e António Telmo propaga era algo de muito sério e perturbante, nomeadamente para aqueles que se habituaram a surfar nas águas do relativismo estético e ético: a poesia e a filosofia só detêm veracidade se permitirem a theoria, que é muito mais do que uma teologia.

Se, para Platão, a theoria era a visão da essência, o platonismo tardio entendeu-a como ascensão da alma que deseja tornar-se semelhante a Deus (homoiosis), requerendo, na opinião de Boécio, a sua participação no Espírito Divino mediante um pensamento puro (participatio) e tendo como consequência, segundo Cassiano, uma luta intelectual em recolhimento, em quietude e contemplação (contemplatio). Trata-se de um caminho de esforço mental e de purificação da parte animada do ser, que se encontra presa no corpo (cf. Lüdemann in DM, 829). Tal actividade – dirigida ao nous – consiste numa perpétua descoberta, conduzindo da potência ao acto, segundo Aristóteles (cf. Santiago, 2013: 152).

António Telmo, ao longo de 58 anos de produção escrita (1952 – 2010), pôs em letra de forma as três modalidades (poema, filosofema e teorema), sendo sobretudo assinalável a sua actividade hermenêutica, praticando sempre aos ensinamentos daquele a quem devia “ter podido escrever quanto escrev[eu]” [FK, 7], mesmo quando tal não é manifesto. Tinha consciência de que “a filosofia é uma arte, a Arte de Bem Cavalgar Toda a Sela” [FK, 8] e por isso se expressou nos mais diversos géneros literários. No teorema procurou a theoria, submetendo-se sempre às “regras da arquitectura”. Não sendo “paleógrafo” nem “biógrafo”, podemos incluir assim o autor de Congeminações de um Neopitagórico na conta dos “arqueólogos”, definidos assim pelo seu mestre:

[…] o arqueólogo pretende comparar a cultura do seu tempo, não com a cultura do passado, mas com os princípios que a transcendem, porque esse é o seu processo de realizar obra de filosofia. Na meditação dos princípios aristotélicos o arqueólogo arquitecta, isto é, desenha de dentro para fora, o movimento gerador da alta cultura. […]” (Ribeiro, 1953: 44)

Se António Telmo aplicou às obras que analisou os princípios metodológicos expressos por Álvaro Ribeiro, creio que construiu a sua com as mesmas regras de ocultação ou velatura, embora procedendo inversamente. Escrevendo ensaios, crónicas, diálogos, peças de teatro, contos, poemas ou aforismos, submeteu-os na maior parte, se não na totalidade, a uma disciplina arcana, jogando com o leitor e exigindo-lhe um esforço adicional que o incita a passar do nível literal de entendimento aos restantes definidos por Dante, no seguimento da antiga tradição judaico-cristã. Cabalista como era, sabia que a kabbalah medieval considerava que o Éden era, por excelência, o “lugar da leitura”, ao qual se chega subindo quatro degraus. Já Orígenes e São Jerónimo, alguns séculos antes, haviam proposto três degraus que levariam a um correcto entendimento das Escrituras: um primeiro, histórico ou literal; um segundo, tropológico ou moral; e um terceiro, místico ou alegórico. A boa tradição da kabbalah foi radicar-se, contudo, em dois outros autores cristãos, Cassiano e Santo Agostinho, que vislumbraram a perfeição hermenêutica em quatro etapas: na primeira domina a letra, oferecendo um sentido histórico, ao ensinar os acontecimentos do passado (littera gesta docet); na segunda, salienta-se a alegoria, ao desvelar o conteúdo da crença (quid credas allegoria); na terceira, exibe-se o conteúdo tropológico, que apresenta o sentido moral dos textos, iluminando o modo como convém agir (moralis quid agas); no cume da escada, temos o sentido anagógico ou escatológico, que esclarece o objecto da nossa esperança (quod tendas anagogia) (cf. Mendonça, 2013: 255 – 257). Nos alvores do Renascimento, Dante Alighieri tomou como sua toda esta tradição, definindo:

[…] as escrituras [podem-se] compreender e devem explicar[-se] mormente por quatro sentidos. Um se diz literal, e é aquele que não vai além da letra das palavras fictícias, tal como são as fábulas dos poetas. Outro, alegórico, e é aquele que se esconde sob o manto destas fábulas, constituindo uma verdade oculta sob uma bela mentira […]. § O terceiro sentido chama-se moral, e é aquele que os leitores devem atentamente andar buscando nas escrituras, para sua utilidade e dos seus discentes […]. § O quarto sentido chama-se anagógico, isto é, super sentido; ocorre quando espiritualmente se expõe uma escritura, a qual, ainda que seja verdadeira também no sentido literal, pelas coisas significadas diz das coisas supernas da glória eterna […]” (Alighieri, 1992: 61 e 62).

Telmo praticou este método como legente-hermeneuta. Escreveu desafiando os seus leitores para o exercício dos mesmos procedimentos, como se desejasse a todos a chegada ao Paraíso (pardèsh). Como teorizador, conheceu e expressou sempre o valor da humildade, quantas vezes através da auto-ironia, nos diálogos em que se foi vendo ao espelho. Num deles, uma das figuras chega a afirmar que “os seus livros são a expressão de um profano que se pôs a falar do que só por ouvir dizer conhecia” [CNP, 76]. Afinal, abordamos alguém que se definiu como “um pensador errante, sem casa própria”, reivindicando o direito a errar, defendido por Fernando Pessoa e por São Karol Wojtila (que ele cita) [FK, 10], ou seja, ao engano e à errância, ou não se apresentasse ele como um peregrinus [cf. DLP, 484] e também, deduzo, como um filósofo viajante ou um cabalista nómada.

Percebendo quanto há de indeterminação na interpretação de qualquer texto que se preste a uma tradução teorética, António Telmo surge a defender um método associativo, que não entra em colisão com os quatro sentidos de um texto da antiga tradição judaico-cristã. Se a sua meta é, como se viu, a revelação da vontade superna num teorema, tem consciência da incerteza que domina as relações com o sagrado e com o divino. Constata assim ser esse o melhor meio hermenêutico, quando se confronta, por exemplo, com uma obra de arte com a altitude da Mater Omnia, de Gregório Lopes, pertencente à Santa Casa da Misericórdia de Sesimbra:

Há um processo de interpretação por associações significativas de imagens e ideias, falsamente tomado por ‘simbólico’, que podemos aplicar ao estudo do painel […]. Não se trata de pensamento simbólico porque as conclusões a que se chega não contêm um carácter de evidência ou de certeza. […] Não há certeza na interpretação mas apenas uma conjectura.” [S, 41]

Esta via reveste-se de grande contemporaneidade. Se, por um lado, aplicada aos escritos de Telmo, reduz à sua verdadeira dimensão todas as leituras que se têm apresentado como verdades ou certezas, não escondendo alguma jactância (ao recusarem o artigo indefinido que Pedro Martins apôs humildemente no título de um livro seu (cf. Martins, 2015)), por outro vem recordar-nos o que há de melhor na Filosofia Portuguesa, que, sem complexos de inferioridade ou nacionalismos serôdios, pode ombrear com as melhores conclusões de outras linhas da nossa cultura e da cultura extralusitana.

António Telmo aplicou aos seus objectos de análise o método defendido, em ensino acroamático, por Álvaro Ribeiro. Claro está que não foi, como o correspondente de José Régio, um filósofo hierático. Sem deixar de ser sagrada, a sua via foi contudo outra, talvez mais lúdica, na medida em que entendia o jogo como algo de muito sério (como se pode ler em textos como “O Best” ou “A Dama de Oiros” [FK, 28 – 35]), envolvendo um risco e um perigo que vale a pena enfrentar com coragem: “[…] bem pesados os prós e os contras, se todos estamos no grande jogo e todos vivemos alucinados pela prestigiosa irrealidade do mundo sensível, não há nada como arriscar, antes que a rotina nos torne definitivamente brutos” [FK, 31].

Parece-me assim ser a hora de submetermos os seus textos ao mesmo processo, simultaneamente associativo e arqueológico. Para descobrir o desígnio de António Telmo é, pelos vistos, importante desenhar uma figura geométrica visível onde ele se manifeste.

Um bom ponto de partida será sempre Filosofia e Kabbalah. Quem leia este livro pelo menos três vezes, como aconselhava e fazia o filósofo de Uma Coisa que Pensa, conhecendo já algo da obra restante do escrito de Almeida e Estremoz, perceberá que esse volume, editado pela primeira vez em 1989, aos 62 anos de idade, é não só o eixo de toda a sua filosofia, como também o seu cume e a sua súmula retrospectiva e prospectiva. Se alguém ler outros títulos de Telmo sem conhecer este que menciono, ficará com uma visão fragmentária e desfocada de quanto pensava. Pelo contrário, se o ler, sem se aproximar de outros, beneficiará da recepção da essência ramificada do seu pensamento, no núcleo, nos temas e, até, nos géneros pelos quais se espraiou a sua escritura.

Essa ideia de totalidade parece ter presidido, aliás, à elaboração do livro. Se tivermos em conta que o “Prolóquio” é continuado em “Caçando com cão”, teremos um volume constituído por vinte e dois textos que abarcam todos os temas fundamentais da filosofia de Telmo. Não por acaso, o vinte e dois simboliza a manifestação do ser na diversidade, um ciclo completo e a conclusão da obra do Criador, sendo o número do Universo; por isso mesmo, são vinte e duas as letras do alfabeto hebraico, vinte e dois os capítulos do Apocalipse e, até, vinte e dois os arcanos maiores do Tarot [cf. DS, 1019]. Se juntarmos porém os dois textos supracitados, dando-lhes um carácter prefacial, ficaremos apenas com vinte e um capítulos; assim se verá sublinhada a perfeição de Filosofia e Kabbalah, centrada num objecto transcendente (Théos ou nous), sendo vinte e um os atributos da Sabedoria divina (Sb 7, 21) [cf. DS, 1018 – 1019]. Este raciocínio é confirmado pelo tempo que medeia entre as únicas duas datas inscritas no livro (20/6/1972 e 20/6/1980), precisamente oito anos. À perfeição e à totalidade se vê assim associado o algarismo do equilíbrio cósmico, da mediação entre o Céu e a Terra (entre o círculo e o quadrado), da justa completude e, ainda, da transfiguração, da eternidade e da beatitude [cf. DS, 511 – 512].

 

(...)



[1] Os livros de António Telmo, bem como os dicionários, são citados através de uma sigla, seguida do número da página. Essas siglas estão indicadas na bibliografia. Na citação dos textos restantes, segue-se o uso habitual.

 

DISPERSOS. 14

04-10-2015 16:44

Filosofia e Cabala no pensamento de Álvaro Ribeiro[1]

 

«O mal é só o que os homens fazem aos outros por pensamentos, palavras e actos».

É só. Logo, para Álvaro Ribeiro, na natureza, criação divina, não há mal. É, no entanto, difícil, ou pelo menos apressado, concluir que o mal, na concepção de Álvaro, não tem origem, como ensina a Cabala, no mistério insondável de Deus. «O diabo, escreveu ele também, não é o inimigo de Deus, mas sim da natureza». E duas vezes alude a um misterioso agente intermediário que tem por fim monstruoso separar o homem da mulher.

Como quer que seja, a inveja dos homens que fazem mal por pensamentos, palavras e actos nasce do sofrimento que neles causa a felicidade dos outros no amor ou na filosofia. As melhores amizades têm sido envenenadas pelo intermediário que instiga a inveja.

Na natureza não há mal. As naturezas adoecem por acção do homem. No mundo criado a imaginação divina move o amor. A imaginação do homem pode, em certas condições, contrariar a imaginação divina pela magia que, neste caso, é propriamente aquela que se designa por negra. A medicina integral, isto é a filosofia, conforme se diz num admirável escrito de João Rêgo[2], é a que imita a imaginação divina lutando contra a doença. Enquanto integral actua contra a magia negra ali onde, como no ensino e na política, ela procede contra o amor e contra a filosofia.

Álvaro Ribeiro parece ter-se recusado a escrever sobre o problema do mal nas suas relações com o mistério insondável. Como se viu, não deixou de explicá-lo pelo seu segredo, que é a magia negra.

Tendo sido, como foi em vida, um filósofo que pôs no centro do seu pensamento a exaltação do amor entre o homem e a mulher, concitou a hostilidade dos sinistros instrumentos do mal que o agrediram com pensamentos, palavras e actos. Usou, por isso, de prudência no dizer. A palavra Cabala só quatro vezes aparece nas quatro mil páginas que escreveu para o público. Vestiu por vezes a pele do lobo para não ser devorado pelos lobos, mas a fidelidade constante à excelsa e bondosa doutrina é visível em cada proposição que pensou e escreveu.

Pinharanda Gomes classifica-o entre os «gnósticos» no seu Diccionário de Filosofia Portuguesa. Há, com efeito, em Álvaro Ribeiro o desgosto do mundo humano e a ideia de que a salvação vem pelo conhecimento. Como, porém, o conhecimento é interpretado em analogia com «O Homem conheceu a Mulher» do Génesis, o seu pensamento opõe-se a todas as correntes gnósticas que põem como condição do aperfeiçoamento humano a abstenção de relações sexuais ou a tolerância delas como um mal necessário, segundo o ensino de São Paulo. Deste ponto de vista, Álvaro Ribeiro não é um «gnóstico», é um adversário da Gnose.

Aquilo a que podemos chamar a baixa gnose e que perpetua degeneradamente o ensino de São Paulo, na impossibilidade do puro, natural, santo impulso do amor entre o homeme a mulher, procedeu à sua conspurcação pelo cinema, pela imprensa, pela televisão, pela pornografia, fingindo defendê-lo ao tornar patente e público o que só é verdadeiramente pelo segredo e e pela relação individual. A colectivização do acto sexual constitui a última e aparentemente decisiva, julgam eles, consagração da magia negra pelo socialismo. Compreende-se assim que o nome de Álvaro Ribeiro seja silenciado e odiado à esquerda e à direita.

O amor entre o homem e a mulher é, em primeiro plano, uma relação sem mácula de duas naturezas. Pela palavra, a relação natural torna-se transparente do sobrenatural. A sua socialização movimenta as palavras e as imagens obscenas que atraem o que no sobrenatural constitui o mais baixo e reles demonismo. A palavra é pelo pensamento como o acto é pela palavra. Só o pensamento, criando as palavras da imaginação amorosa faz nascer o acto que eleva e redime. O pensamento é, porém, como o filósofo diz, uma actividade invisível do espírito cujo meio próprio é o segredo e o mistério.

Assim se evidencia a íntima ligação da filosofia com o amor. Pelo pensamento poderemos viver o mistério que é o universo, o imenso universo de que o amor entre o homem e a mulher assistido por Deus é a renovação miniatural, mas infinita. O perfeito amor é o que corresponde a uma perfeita filosofia e essa é a de Deus que devemos procurar imitar.

O pensamento de Álvaro Ribeiro evolui pelo sistema das categorias fixadas por Aristóteles. Quando eu era moço, o filósofo entusiasmou-me a procurar a correspondência entre as categorias aristotélicas e o sistema hebraico das dez sefiras. Infelizmente, só alguns anos depois de nos ter deixado, encontrei a demonstração publicada em Filosofia e Kabbalah de que os dois sistemas se reflectem um no outro. Essa demonstração, que passou despercebida em Portugal, movimentou certos meios iniciáticos franceses de vasta influência que nela viram a prova provada de que se deve rever a imagem que da Grécia e da sua filosofia foi formada e propagada pela filosofia alemã. Álvaro Ribeiro conhecia essa correspondência que explica o seu aristotelismo hebraico.

Cabe, então, interpretar pela árvore das categorias aquilo que, no ensino clássico de Aristóteles, se diz ser «a imanência das ideias», em oposição ao platonismo que as teria concebido separadas. O movimento é contrário ao do êxtase.

A contemplação não tem por fim libertar a alma da prisão natural, mas de fazer descer as influências dos mundos superiores aos mundos Inferiores, tornando-as activas pela razão. Tal o sentido da crítica que o filósofo escreveu contra o misticismo e o cepticismo da Teoria do Ser e da Verdade do seu companheiro de viagem José Marinho.

Nos termos da Cabala, a contemplação tem por fim chamar Tiphereth, orando, a Malcuth, através de lesod. O processo é descrito no livro de A Santidade das Relações entre o Homem e a Mulher de Gikatila para que se cumpra em cada lar o mistério da encarnação de inteligências superiores. Álvaro Ribeiro não pôde ter conhecido este livro, traduzido do hebraico para o francês alguns anos depois da sua morte. É pela activação da inteligência  que a união das sefiras inferiores, no plano fecundante de Yesod, prolonga a união das sefiras superiores. Daqui a suprema «dignidade do cérebro» insistentemente celebrada no segundo volume das Memórias de Um Letrado. Demora-se neste volume o filósofo a estudar as relações de Keter com Binah, cifrando a sua reflexão nos termos pelos quais Henrique Bergson descreve as relações do cérebro, «órgão de escolha e de acção» com a memória infinita.

Há, pois, uma educação sexual, mas não aquela que se propõe banalizar e desdivinizar o amor, «pondo a ferros a imaginação», como dizia José Marinho. Só pelo aprendizato da filosofia portuguesa o rapaz português e a rapariga portuguesa poderão aspirar à perfeição mental, cada um no seu género, criando as condições e as qualidades indispensáveis à celebração do «mistério supremo» (ver São Paulo, Epístola aos Coríntios).

Não é pela exposição e descrição das entranhas carnais, que só podem suscitar repulsa, que se faz educação sexual. É pelo aperfeiçoamento e desenvolvimento da alma masculina e da alma feminina. A alma é que é a amante.

Tal educação faz-se sem que a alma dê por isso. Ela não pode ainda saber que o estudo da gramática, da retórica e da dialéctica, da dança, da matemática, da astronomia têm por fim o matrimónio e a acção do homem e da mulher no plano terrestre de Asiah. Descobri-lo-ão, maravilhados, mais tarde.

É um pouco o que acontece neste escrito em que o leitor pode, talvez, sentir perturbada a corrente da leitura pelos termos hebraicos que designam e significam as sefiras. Sem que a sua alma dê por isso sentir-se-á, porventura, chamada, nem que seja pela presença de uma vaga irritação, a imaginar o que ainda não sabe o que é.

Álvaro Ribeiro escreveu um volumoso livro sobre A Literatura de José Régio. Dizia ele que cada filósofo tem o seu poeta com quem dialoga. José Régio terá sido o poeta do filósofo Alvaro Ribeiro.

A verdade, porém, é que, se quisermos encontrar um poeta cuja teoria do amor seja a que o filósofo pensou e ensinou, teremos de reconhecer que, bem mais exactamente do que José Régio, foi Camões quem versejou a sublime doutrina.

Neste sentido, tem inteira razão Fiama Hasse Pais Brandão, quando defende serem Os Lusíadas a obra de um cabalista.

O leitor evocará logo a Ilha do Amor.

Menos se recordará das estrofes sobre Afonso de Albuquerque. As virtudes que exalta no herói estão, segundo ele, maculadas por um grande crime, o de ter castigado cruelmente um dos nobres que o seguiam por este se ter deixado enlear por uma beleza negra em cujo Paraíso de volúpia se deixou envolver. «O mal é só o que os homens fazem aos outros por pensamentos, palavras e actos.»

 

António Telmo



[1] Nota do editor – Publicado originalmente em Nova Renascença, vol. XIII, n.º 48, Porto, Inverno de 1993, pp. 93-96. Republicado em António Telmo, O Mistério de Portugal na História e n’Os Lusíadas, com o título “A Ilha do Amor no Pensamento de Álvaro Ribeiro”, Lisboa: Ésquilo, 2004, pp. 259-263.

[2] A Medicina em Álvaro Ribeiro, Edições Tomé Natanael.

 

VOZ PASSIVA. 64

17-09-2015 08:26

Um Sorriso para ANTÓNIO TELMO

Manuela Morais

 

"A amizade é uma alma que habita em dois corpos,

um coração que habita em duas almas."

 

Aristóteles

 

"Quando a minha voz se calar com a morte

meu coração continuará te falando."

 

Rabindranath Tagore

 

 

Estamos no amanhecer de uma nova era na história da humanidade, o grande momento da expansão da espiritualidade. Um enorme despertar da humanidade para a força divina, para os Céus.

Encontrava o António Telmo assiduamente, em Vila Viçosa, quando eu corria apressadamente para os correios, ao fim da tarde.

Sorríamos, eu esperava que terminasse de comer a empada de galinha, e falávamos de livros, da Maria Antónia, da Anahí e, claro, do trabalho de meu Marido, o Espiga Pinto. Dizia-lhe, com humor, que o fechava à chave no atelier para trabalhar, como a mulher do Vermeer, o pintor do belíssimo retrato "Rapariga com Brinco de Pérola".

Um dia contei-lhe que não podia entrar no atelier, porque o Espiga estava lá fechado com sete belas raparigas. António Telmo perguntou, com graça, se eu não sentia ciúmes. Claro que não, respondi pausadamente.

Inteligente como era percebeu imediatamente do que se tratava. Então, mais para o fim da conversa,  perguntou quando e onde era a próxima Exposição, pois queria ver as tais raparigas.

Fomos visitá-lo várias vezes a sua casa, em Estremoz. Não medíamos o tempo e era sempre com saudade que o deixávamos.

As nossas conversas, entre mim e o Espiga, não tinham fim.

Saíamos de casa de António Telmo carregados de informação sobre livros importantes, a não perder. Às vezes, no dia seguinte, rumávamos a Badajoz à livraria a procurar essas preciosidades.

António Telmo marcava profundamente quem se cruzasse com ele. A sua calma transmitia uma energia extraordinária. Até a laranjeira próxima da porta de sua casa era muito maior e mais frondosa que as suas vizinhas.

António Telmo sabia escutar atentamente. Os nossos encontros eram um aprendizado contínuo, tinha a capacidade de tornar o complexo muito acessível. Era um Mestre em todas as circunstâncias, mesmo nos silêncios.

Como editora do seu livro "CONTOS SECRETOS", tive, sem dúvida, uma venturosa e iluminada experiência. O Espiga arregaçou as mangas para realizar o excelente trabalho dos desenhos para o seu belíssimo livro e vivemos a suprema harmonia dessa manifestação de força que transcende a compreensão humana.

António Telmo foi um exímio estudioso do significado e simbolismo do número 9 que representa o círculo místico perfeito. Pertenceu à mais antiga associação de homens do mundo. A continuidade não é concebível sem a Tradição e é ela que permite preservar a sua identidade. Era um Ser que habitava um lugar elevado, guiando os nossos passos e elevando os nossos espíritos a vibrações intensas, fazendo a ligação entre o Espírito e os lugares Sagrados. O seu Espírito era radiante e luminoso, caminhando na Ordem dos Grandes Mestres do Esoterismo. Toda a sua atitude era de um autêntico filósofo com lugar destacado na Filosofia Portuguesa, na Filosofia e Tradição, escritor, professor. Um Taurino com vontade firme, constância, persistência e contemplativo.

A sua Obra é notável. Pessoalmente, sinto-me mais próxima de “ História Secreta de Portugal”, “Viagem a Granada”,” Filosofia e Kabbalah” e “Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões”.

António Telmo ingressou no mundo espiritual, o mundo da realidade suprema e comunhão, em perfeita harmonia com o espírito do universo, permeado pelas poderosas vibrações com os princípios divinos da criação, pelas vibrações da luz. É um verdadeiro filho de Deus com um brilho intenso, misterioso e maravilhoso, - está no plano astral. Estamos no alvorecer da civilização espiritual, na era da reconstrução, do dia, da luz resplandecente e divina, da civilização paradisíaca. A luz do sol é a luz verdadeira que brilha no céu, elevando o nosso nível espiritual. A nossa felicidade será indestrutível. Obrigada, António Telmo,  por me ter permitido privar consigo e com a sua Família.

Um beijinho para a Maria Antónia e para a Anahí da

                                                                                                                                            Manuela Morais

INÉDITOS. 57

15-09-2015 08:39

Antecipamos hoje aos leitores o breve capítulo inaugural de Sobre Álvaro Ribeiro (Contra o maniqueísmo), um dos dois livros inéditos que António Telmo dedicou ao pensamento de seu mestre Álvaro Ribeiro e que integram o IV Volume das suas Obras Completas, a sair ainda este ano, com a chancela da Zéfiro e o apoio institucional e científico do nosso Projecto. A transcrição do texto manuscrito é de Ruy Ventura, que prefaciará o novo volume, Filosofia e Kabbalah seguido de Álvaro Ribeiro e a Gnose Judaica e outros estudos.

Abertura

 

O judaísmo que se exprime na filosofia de Álvaro Ribeiro é o judaísmo de um cristão-novo. Cristão-novo é uma palavra composta que sempre se interpreta em sentido histórico, isto é, como a designação de um judeu ou de um islamita convertidos violentamente ao cristianismo. Há, porém, a possibilidade de a interpretar em sentido espiritual: cristão-novo é aquele que traz um novo cristianismo, aquele que está em condições de compreender plenamente a mensagem de Cristo, porque é, como ele, judeu e confrontado com toda a tradição judaica e a religião de seus pais, vindo, não para a renegar, mas para a purificar. Ele distingue-se do cristão velho e do velho judeu, confronta-se com ambos, que são o seu passado, um por herança de tradição trazida no sangue, outro por transmissão cultural e institucional. Quando Álvaro Ribeiro insistia sobre a originalidade e a superioridade da filosofia portuguesa fazia-o com inteira legitimidade porque a interpretava como a expressão da espiritualidade do cristão-novo. É certo que a síntese que o cristão-novo deve realizar defronta um duplo obstáculo, no próprio seio da comunidade nascente: o dos cristãos-novos que se mantêm completamente fiéis ao judaísmo e que não traem e o dos cristãos-novos que se identificam inteiramente com a Igreja dos goim, vendo nela a Igreja judaica, para não falar já no quádruplo obstáculo que resulta de haver duas comunidades originais. Daqui a grandeza dos cristãos-novos como Uriel da Costa, mestre de Espinoza, Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra, Álvaro Ribeiro, Pascoaes e Pessoa e a pequenez da multidão de intelectuais divididos na alma e na inteligência, vivendo em drama, como Antero, ou servilmente, como tantos outros. A filosofia portuguesa aparece como a síntese que resolve o drama e liberta para novos caminhos.

A doutrina capaz de conduzir a síntese na inteligência do mundo, do homem e de Deus é a Cabala Hibérica[1] que, no entanto, o cristão-novo que encontrou o sentido do seu destino espiritual deve esconder de cristãos velhos e de judeus velhos e da multidão servil dos cristãos-novos. Ambas as Igrejas a hostilizam, uma porque ela transporta os valores do judaísmo, outra porque ela é a concepção nova de Cristo.

O cristianismo desempenha, frente às duas ordens que se apresentam como representando o divino no humano, o papel do satanismo, aquele elemento individual que revolta em nome verdadeiro da luz e do amor.

Cristo é, na visão do cristão-novo Sampaio Bruno, o supremo cabalista, aquele cujos milagres são argumentos. Esta síntese gloriosa das duas tradições é, pois, o fim da filosofia portuguesa que se realiza por entre múltiplas hostilidades.

Temos, pois, de entender a imitação de Moisés, não como do Moisés legislador e despótico, mas do Moisés da revolta contra os Egípcios que escravizavam e torturavam o povo hebreu, uma espécie de Moisés-Messias, o Moisés próprio da idealidade do cristão-novo (Jesus Cristo), cuja imagem Jesus Cristo purifica e transubstancia.

 

António Telmo



[1] N. do O. – Mantivemos a grafia de intenção etimológica de António Telmo.

 

VOZ PASSIVA. 63

13-09-2015 19:54

Telmo e Temúria

Memórias de um laboratório de “ternúria”

Risoleta C. Pinto Pedro

Desde muito cedo, talvez quando comecei a ler, que inexplicavelmente para mim, e só para mim, porque nunca o confidenciei a ninguém receando que me metessem num manicómio, procedia mentalmente, em actividade incessante e compulsiva, a algo que considerava fúteis jogos de palavras e sons, mas que vim, muito mais tarde a saber, tratar-se de uma séria  actividade que na Tradição ocidental se designa como Guematria, Notaria e Temúria. Precisamente o meu jogo: transposições, observação e deleite com o aspecto dos signos desdobrados em outros, comutações e combinações.

Não fazia ideia que procedia intuitivamente a operações imaginativas muito próximas da numerologia hebraica: inventava um valor numérico para letras e palavras, que depois relacionava em interpretações simétricas. Altas operações mentais de que hoje seria incapaz.

Esta pequena Cabalista procedia também a exercícios de Notaria, estabelecendo divinamente que a cada letra de uma palavra correspondia a abreviatura de outra. Conseguia até, com uma palavra, construir uma frase, numa espécie de exercício anagramático avant la lettre dentro da minha história, e com um notável rigor no mistério. Consoante a inspiração do momento.

Finalmente, a mais alta magia da Temúria, que ao que recordo era a que mais me divertia, procedendo à permuta de letras e sílabas dentro das palavras de modo a criar palavras novas. Muito pouco rigor Cabalístico, pois desconhecia as tabelas, mas um rigor afectivo e emocional que me desviou talvez de outras obsessões através desta, que na altura considerava totalmente gratuita e hoje percebo que me alimentou a criação, a liberdade, a imaginação, o símbolo, a capacidade para estabelecer correspondências, o matrimónio secreto e sagrado entre o número e a letra, e uma familiaridade leve e alegre com o mistério e a magia operativa da língua.

Relaxava-me, divertia-me, curava-me sei lá de que desconhecidas doenças, ainda antes de se manifestarem. Mesmo que assim não fosse, não conseguiria fugir-lhe, mas tornou-me íntima das palavras e números, ficando a conhecê-los por fora e por dentro, pelo menos na minha imaginação.

Que teria acontecido se me tivesse “queixado” a alguém desta secreta vida, para mim, na altura, muito próxima da loucura?

Como ainda não havia tantos psiquiatras como hoje há, talvez com sorte me tivesse saído bem, caso contrário não teria escapado a umas pílulas que me teriam reduzido a actividade mental ao nível da alface, com todo o respeito e afecto que tenho pela dita, mas não me parece que se entretenha, na horta ou nas bancadas do mercado, com exercícios de temúria.

Por essa altura, mesmo muito lendo, não conhecia Platão, era ainda uma infanta, mas se o tivesse feito, ter-me-ia tranquilizado com o Fedro, que cito a partir de “As estranhas etimologias de Platão” in Contos, de António Telmo:

 "O melhor que nos é dado vem-nos por mediação do delírio, que é, sem dúvida, um dom divino. A profetiza de Delfos, as sacerdotisas de Dodona, quando estavam inspiradas pelo deus, deram aos gregos avisos que os encheram de benefícios na vida pública e na vida privada; mas, no seu estado de consciência normal, pouco sabiam ou nada".

"Eis o que vale a pena trazer aqui: os homens que, na antiguidade, estabeleceram os nomes não consideravam o delírio (manía) uma manifestação vergonhosa e um opróbrio. Se assim tivessem pensado, não teriam ligado este nome ao nome da arte por excelência que é a arte de adivinhar o futuro (manikê). Viam no delírio uma bela coisa, dado que provinha de uma dádiva divina...” 

Fui, sem o saber, uma pequena sacerdotisa.

Telmo ainda não tinha chegado às minhas leituras. Publicaria, nesses arredores temporais, a Arte Poética, que eu, por muito precoce que fosse com os livros (e era-o), não saberia ler, e também ele ainda não tinha escrito, por essa altura, os Contos, onde mais tarde eu viria a encontrar-me e a encontrar:

“a Cabala, [...] usa exactamente os mesmos métodos de Platão na explicação dos nomes: a Temúria, a Guematria e a Notaria.”

E mais à frente:

“Olhe, vou-lhe ensinar uma coisa. Você diz que o que ali vemos em actividade é o génio da fantasia. De facto, como o próprio Sócrates o declara, podemos juntar letras, tirar letras, trocar letras. Parece assim muito fácil explicar qualquer nome e dar dele a explicação que quisermos. Experimente fazê-lo com, por exemplo, a palavra céu.

- O que é que devo fazer precisamente?

- O que Sócrates fez com os nomes que explicou: encontrar a palavra ou as palavras que estão escondidas na palavra céu, mas por tal modo que uma nova significação venha iluminar a significação corrente, enchê-la de profundidade.

Pus-me à procura e não encontrei nada.

- Como vê, não é fácil. Não é sequer possível num estado normal de inteligência. Se fossemos capazes de pensar a ideia do céu, eu não digo a ideia de céu, em ligação com a palavra que a designa, logo se apresentariam a exprimir o pensamento a que tivemos acesso as palavras foneticamente concordantes ou convergentes.

É o que Fernando Pessoa fez com a palavra Mensagem. Pensou-a à luz da ideia de levantar do chão o seu povo. Na sua qualidade de bateleur que faz da mentira uma verdade e da verdade uma mentira, sentou-se à mesa operativa de escritor e deixou-se possuir pelo daimon da analogia. Reconduzindo a palavra ao latim, jogou com as suas letras, desencobrindo os seus possíveis sentidos dentro da ideia vivente de Pátria concebida pelo seu espírito. Encontrou assim as seguintes significações: "MENS AGEM", "MENS AGITAT MOLEM", ENS GEMMA", "MENSA GEMMARUM", isto é, "A mente actua, "A mente remove as massas", "O ente pérola", "A mesa das pedras preciosas", aquela mesma mesa que é a mesa do bateleur.”

Sem querer ser ou parecer presunçosa, acredito que fiz parte de uma ordem secreta a que todas as crianças são agregadas na condição de depois tudo esquecerem, havendo no entanto algumas, mais obstinadas, que consegem manter na alma, ou na mente, algumas reminiscências. Essa ordem é responsável por conservar aceso no Universo o “génio da fantasia” escondido na palavra céu, a fim de o aprofundar. Isto não é possível “num estado normal de inteligência”, mas apenas possuído pelo “daimon da analogia” e assim, jogando, desencobrir o que as crianças conseguem.

Alguns adultos podem fazê-lo mantendo-se adultos e recordando a criança. Não é possível o fenómeno acontecer na ausência do adulto, a não ser no estado de criança. A criança que, embora crescendo, não atinge a condição de adulto, perde esta capacidade, perde o adulto e perde a criança. O adulto que perde a criança também não consegue ser adulto. É indispensável que o adulto cresça e a criança permaneça. É desta união inocente e poderosa entre consciência e imaginação, que a memória pode brilhar em focos de luz celestial à “mesa das pedras preciosas” que é a língua, nesta consciência enobrecida.

DOS LIVROS. 44

08-09-2015 09:11

O best

 

Há nas cartas de jogar uma figura, o best, capaz de assumir todos os valores, embora em si não possua valor nenhum. Análogo ao papel do best no jogo de cartas é o do zero matemático nos sistemas numéricos. Se o sistema é binário, o zero vale 1, se o sistema é décimal, o zero vale 9. É uma valência que varia de acordo com a estrutura numérica em que se integra e que permite a circulação infinita das operações.

Best é o melhor, mas este sentido comuta-se com o de beast. Nas cartas de uso português, aparentemente não existe o best. Todavia, em certos jogos, como por exemplo o sete e meio, uma convenção popular atribui ao dois de paus a mesma função. Porquê o dois de paus? Não haverá nesta escolha uma figuração secreta, a de uma besta cornúpeta?

Dada a versatilidade do best, esta sua capacidade de receber o valor que se queira, o jogador a quem ele coube em sorte encontra-se numa situação em princípio favorável, mas a dinâmica dos movimentos — associações e antíteses — que o desenrolar do jogo desencadeia, pode vir a tornar ineficaz a acção do best. Isto não significa que ele não seja por definição e à partida o outorgador do poder.

A sua relação com o dinheiro, sem o qual o jogo das cartas é um passatempo de crianças, está na própria definição de um e de outro. Também o dinheiro, na forma de ficha ou de papel-moeda, do papel-moeda sem valor material em ouro, prata ou cobre, cuja invenção Goethe atribui a Mefistófeles, também o dinheiro é um nada que se transforma em valor, no valor que se quer quando o produto se altera em mercadoria e o comércio se assenhoria do mundo. Marx pretendeu uma humanidade sem best. Como os cátaros na Idade Média, Lutero e Calvino e os demais protestantes, este filho de um rabino tentou forçar o mundo a girar sem o elemento essencial, sem aquele princípio de revolta e de luz, que a filosofia tem designado por princípio de individuação.

É o indivíduo o valor que eu assumo, aquilo que me permite ser singular e jogar-me como um projecto na existência. Mas se o best é o princípio de individuação, é também o ser genérico, o ser que podendo ser tudo é nada, a matéria que assume todas as formas e ela mesma não tem forma nenhuma, pelo que uma humanidade sem best é uma humanidade totalmente identificada com o best. Reduzir o jogo de cartas a uma única carta – o best – é tornar impossível o jogo e com ele o valor.

 

António Telmo   

 

 

(Publicado em Filosofia e Kabbalah, 1989)

 

VERDES ANOS. 15

04-09-2015 12:56

Ensino do Português e Latim[1]

 

No número de Novembro de 1952 deste Boletim, o amigo da língua portuguesa, Sr. Dr. Hernâni Dias da Silva, publicou um tão raro, entre nós, como notável e meritório breve estudo sobre os verbos auxiliares. Raro, notável e meritório pelos caminhos que toma e pelos resultados a que chega. Reconhece na nossa língua, além de «ter», «haver» e «ser», outros verbos auxiliares, os quais encerram acção futurível, segundo vários modos que atentamente discrimina. Surpreende-se o leitor ao verificar que, nas notas ao seu trabalho, o autor não utiliza exemplos extraídos da língua francesa, mas sempre compara com o inglês e o alemão; mas logo cai da sua surpresa ao reconsiderar que a lista gramatical dos verbos auxiliares, se tem permanecido limitada, é porque os linguistas têm insistido em elaborar a gramática portuguesa pelo modelo da francesa. É certo que, hoje, quase todos os linguistas reconhecem os malefícios do comércio idiomático com a França, mas, na sua maior parte, limitam-se a denunciar e combater o galicismo do morfema. No domínio da sintaxe, quanto à ordenação dos elementos fundamentais da oração, introduzem alguns o justo reparo de que constitui, quase sempre, um galicismo sintático a sequência «sujeito-predicado-complemento». De facto, se uma oração se relaciona com a ventura, como nomear a série «sujeito-predicado-complemento», já de si fechada, e em que o elemento médio é, na língua francesa, essencialmente tempo presente, visto como o que é perfeito, por definição, não seja futurante? Também a ordenação das preposições, no período francês, que é rectilínea disposição de sentenças rectas, não dá perspectivas, pois não resulta da interferência de planos diversos. O carácter dos elementos vem a participar do carácter do discurso. E assim o galicismo que mais importa combater é o estilístico, pois dele resulta o total anquilosamento e a inteira alienação da alma pensante.

Justamente, porém, se orgulham os Franceses do seu idioma. Na abundância de partículas concisas, na precisão do período, curto e claro, na composição enquadrante, exacta do discurso, tem o francês as condições necessárias de inigualável delineação de quadros descritivos. Mas não deixa de ser prematura e prejudicial a sujeição a seus moldes de qualquer outro idioma que, na imprecisão e no capricho, sinala irrealização de virtudes, se não exprime verdades indescriptíveis. Se a ordem lógica da verdade é outra, outra terá de ser a ordem verbal que a exprime. E assim a língua portuguesa, nos escritores seus verdadeiramente representativos, do latim herda a expressão das substâncias eternas e de si cria as relações pelas quais age no tempo futurante a eternidade das substâncias.

Os escritores genuínos da língua portuguesa mostram vincados vestígios de demo-rada convivência com a língua virgiliana. Pelo contrário, o jornalismo, formado pelos apressados escritores de «todos os dias», contempla, boquiaberto e sonambúlico, os mode-los que da França nos traz quotidianamente o Sud-Express.

 Aqui, porém, urge que paremos e reparemos.

Apontamos o mal que nos vem de ser a gramática portuguesa construída sobre a francesa. Paralelamente concorre para mal idêntico o ensino do latim, entre nós, pelo modelo do ensino do latim entre os franceses. No liceu, o ensino do latim é o ensino de o traduzir. Quem queira consultar a Traduction du Latin, de Marouzeau, ou quem rememore o método usado para levar a cabo uma tradução, verá como consiste em rectificar o labirinto sintático que o texto original oferece. Para tanto, importa, quanto ao período, colher primeiro a oração principal, e em seguida as coordenadas e as subordinadas; quanto à oração, encontrar o predicado, e em seguida o sujeito e os complementos. Posto cada termo no lugar que lhe cabe na construção sintática francesa, achada está a tradução. Deste modo, o latim, em vez de, como língua que é originante da nossa, nos possibilitar uma bela e original redacção do português, serve de instrumento para, com o idioma pátrio, escrevermos francês. Todos nós que um dia aprendemos latim nos surpreendemos a interrogar como se compreenderiam entre si os romanos, tal o hábito do pensamento sem curvas, simples e correntio. Métodos ingleses, todavia, abundam que ensinam a traduzir o latim sem saltos, à medida que se vai lendo, seguindo, embora com esforço, mas com surpresa e emoção, o curso labiríntico do pensamento. Consoante este processo de leitura, será depois, como é óbvio, a tradução redigida, e, o que mais importa, redigida consoante o português será, no momento em que o escritor defronta o próprio pensamento.

Estamos agora na ocasião propícia de sugerir que, no liceu, o ensino do português seja ministrado apenas pelos licenciados em filologia clássica. Mas para que a recta intenção não seja ludibriada, convém que o latim seja ensinado por método diferente do que vigora, método de acordo com as directrizes que sugerimos.

Em Les Nouvelles Littéraires de 6 de Novembro do corrente ano, lemos de Gabriel Marcel este apontamento: «Le problème de la traduction française en ce qui concerne Shakspeare doit être regardée comme à peu près insoluble. Bien sûr, on peut toujours retenir le sens, mais neuf fois sur dix la musique disparait». No mesmo número, Francis de Niormande, numa coluna dedicada, como de costume, à língua francesa, escreve: «Aucune erreur ne resiste à une phrase française bien faite; ou, plus exactement, il est impossible d'exprimer dans une phrase juste une pensée elle-même contrefaite. Cette épreuve est infaillible. Les ideologies plus ou moins fumeuses elaborées par des cerveaux mal équilibrés ne peuvent être dénoncées que dans un affreux jargon. Et les voilà jugés par le fait même». Estas duas citações, especialmente a segunda; vêm confirmar, ex ipsa origine, o que hemos dito. Consoante, em frases bem feitas, declara o jornalista francês, a sua língua é eminentemente disciplinar. Nela a razão encontrou o idioma próprio. E o fantasioso, desequilibrado Shakespeare logo se torna prosaico e sisudo, quando traduzido para francês. Não é admirativa a nossa subserviência à língua estranha. Mais do que isso, se não por inteiro, há o intuito agido de, à disciplina da língua que reúna as referidas condições, um povo imperfeito submeter, precisamente porque, porque imperfeito, busca na aventura da língua aquela remota palavra perdida que os lábios de Deus pronunciaram. Não o negamos. Na verdade, ao pensamento matemático nenhuma língua o exprime tão perfeitamente como a francesa. Língua perfeita, é, por isso mesmo, apta como nenhuma para as grandes sínteses historiográficas. Como nenhuma, é, por isso mesmo, tão inapta para a profecia.

 

António Telmo



[1] A Bem da Língua Portuguesa, ano IV, n.º 1, Lisboa, Jan. 1953, pp. 6-7.

 

 

INÉDITOS. 56

02-09-2015 09:04

Por volta de 1993, António Telmo e alguns membros do seu círculo procuraram dar corpo ao projecto de uma revista que esteve para se chamar Portugal. O Encoberto e Átrio foram outros nomes possíveis desta publicação. O ensejo gorou-se, mas o texto de “Apresentação”, escrito e assinado pelo filósofo, ficou. Mais tarde, num período que presumivelmente se situará entre 1998, ano da iniciação maçónica de Telmo, e 2000, ano do começo da publicação da revista Teoremas da Filosofia, o filósofo parece ter querido recuperá-lo para uma outra publicação, afecta ao movimento da Filosofia Portuguesa. O dado novo mais significativo deste recomeço, também frustrado, parece, porém, ser a inspiração maçónica que António Telmo pretendia conferir ao novo projecto. Ao título inicial, dactilografado, acrescentará pelo seu próprio punho os seguintes dizeres: “a Oriente de Estremoz de uma revista literária”... 

Apresentação a Oriente de Estremoz de uma revista literária

 

"É o começo que falta ao homem. Encontrá-lo não é difícil; o obstáculo é imaginar que se é obrigado a procurá-lo."

Gustavo Meyrink

 

O domínio intelectual de Lisboa e de Coimbra sobre o país, através da Universidade fundada pelo rei poeta, que perdurou e se intensificou no decurso dos séculos, tem funcionado, sobretudo a partir do Marquês de Pombal, como um meio de recepção, de adaptação e de propagação das ideias estrangeiras e de formação de juristas políticos, hoje também de engenheiros, que as utilizam na governação do povo. O movimento que se desencadeou no Norte, partindo de Sampaio Bruno, com dois exércitos perfeitamente harmónicos, o da Renascença Portuguesa e o da Filosofia Portuguesa, tentou, por entre reacções ferozes, a reconquista espiritual da Pátria. No seu discurso parlamentar sobre "A Questão Universitária", o filósofo iluminado Leonardo Coimbra, fundador da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, disse assim:

 

A força de inércia ou coesão das associações é a grande força conservantista das sociedades, é como uma memória social implícita, hipnótica, parente dos instintos animais. Pertence à massa ignara. A força de dissociação e criação de novas associações pertence, singular e esporadicamente, aos génios; pertence sistematicamente aos organismos intelectuais superiores, que são a parte lúcida e criadora da consciência colectiva. Nesses organismos contam, desde o século XII, as Universidades.

As Universidades são, pois, grandes factores de evolução da crença. E assim é que sempre que um bando tenta impor uma crença, adormecer o espírito humano num dado associacionismo psíquico, esse bando vai à conquista das Universidades. É deste modo que a um período de esplendor da Universidade portuguesa segue, com D. João III, a conquista pelos jesuítas do colégio das artes e depois a confirmação da Universidade de Évora, sendo obrigatório o curso do colégio das artes para a matrícula na velha Universidade, e vindo a conseguir que os jesuítas graduados em qualquer Universidade fossem como graduados na Universidade de Coimbra.

 

Os dois primeiros discípulos de Leonardo Coimbra, José Marinho e Álvaro Ribeiro, e o décimo terceiro, Agostinho da Silva, logo após a morte do Mestre, trouxeram até à capital física do outrora Império do mundo o movimento da reconquista. O Alentejo, que recentemente viu reformulada nos moldes coimbrões a Universidade de Évora, manteve-se, desde a implantação da República, distante e alheado da guerra santa, constituindo uma zona desértica ou de "armamento" espiritual. Não é, pois, um acaso, o facto desta revista ter como sede a cidade alentejana de Estremoz.

Durante a ocupação de Portugal pelas tropas do duque de Alba, quando se constituiu aqui um governo de portugueses ao serviço do rei de Espanha, os alentejanos saíram e foram formar o Brasil. Jaime Cortesão conta-nos como isso foi na sua Introdução à História das Bandeiras. Enquanto a América espanhola nasceu dos "aldeamentos" organizados pelos jesuítas que, entre os seus muros, submetiam os índios vencidos a uma rigorosa disciplina, a América portuguesa foi feita pela aliança dos índios e dos portugueses, que traçaram o mapa do Brasil com os pés, por vales e montanhas. Os alentejanos foram capazes de tal proeza por estarem habituados a longas caminhadas atrás das perdizes até as cansarem. O verdadeiro "começar" não é, porém, sair, embora seja preferível fazê-lo a ficar escravo e, sobretudo, quando se imagina transplantar para longe a Pátria, criando-a de novo ali.

O rio Tejo é o diafragma de Portugal. Se nos representarmos o país na figura do Homem, o Alentejo aparece-nos em baixo, sob esse diafragma, cindido, na sua vagarosa digestão dos alimentos da terra, da vida superior do Espírito, que mora no Porto e no Marão. Estabelecer nele um foco de domínio material pelas ideias foi o que esteve na mente dos fundadores da Universidade de Évora. O Norte, intelecto e princípio da Pátria, já isolado no próprio corpo que superiormente inspira pela torácica acção das zonas de recepção e de projecção das influências exteriores, dificilmente poderá fazer-se sentir no Alentejo e no Algarve. Pensamos ter chegado o momento de aqui levantarmos um Castelo de irradiação espiritual. A antiga relação, hoje desfeita, com o pensamento islâmico e judaico encontrará assim, actualizado, um meio de reanimação. A profunda afinidade, outrora existente, entre as filosofias esotéricas de Prisciliano, no norte galaico, e de Ibn Qasi, mestre de Ibn Arabi, no Algarve, assume, através dele[1], a força de um símbolo.

Deve-se à operatividade intelectual de árabes e judeus o conhecimento pela Europa de Aristóteles e Platão. Há uma escolástica hebraica e uma escolástica islâmica, antes ainda de uma escolástica cristã. As três tradições conviveram harmoniosamente até D. Afonso, em terra portuguesa. O Alentejo e o Algarve eram então zonas de profunda irradiação da sabedoria filosófica.

Compreende-se assim porque escolhemos para capa da revista a Rebis alquímica, tal como a concebeu Rafael na figura dos dois filósofos gregos. Segundo Tomé Natanael, nosso mestre, Rafael não pintou a oposição de Aristóteles a Platão. O que, na verdade, ali está é o seguinte: a energia celeste é captada pelo dedo indicador de Platão, dirigido ao alto em ponta, e a energia terrestre pela palma da mão de Aristóteles, voltada para baixo paralelamente ao chão; as duas correntes de energia espiritual combinam-se no ponto que, na alma, corresponde ao encontro dos dois olhares e constituem-se numa terceira de que teremos a revelação perfeita quando os dois filósofos, que vêm andando para nós, descerem os quatro degraus da história.

A Escola de Atenas, pintada por Rafael, aparece-nos como o excelso modelo do ensino acroamático, proposto à nossa imitação hoje sobretudo em que o ensino para toda a gente, de louváveis intenções e de sinistros fins, pretende, não a vida do Espírito, mas adestrar os "escravos" com a instrumentação cultural indispensável para servirem, contentes e iludidos, a sociedade tecnológica. Quem a pode ter por ideal são as tertúlias. As tertúlias é que constituem autênticas escolas de ensino particular ou acroamático. E é por isso que o problema da legitimidade do ensino particular que é, afinal, o da liberdade de ensinar, tal como é posto habitualmente, se deve ou não ser reconhecido e autorizado pelo Estado, é um falso problema. Ensino público apenas para o Estado. Ao público as tertúlias chegarão pelos livros e pelas revistas.

O que hoje sabemos ter distinguido a Faculdade de Letras da Universidade do Porto, extinta por Salazar, dos outros organismos estaduais de ensino foi duas coisas: a acção directora de um homem de génio, Leonardo Coimbra, e o facto de coexistir com ela uma tertúlia. Conforme a indicação de Álvaro Ribeiro: «A Faculdade de Letras da Universidade do Porto constituiu o exemplo de como uma associação secreta pode funcionar aberta ao público.»

O funcionamento de uma tertúlia activa e criadora depende da existência de uma tradição sófica, isto é, aquilo que a garante como verdadeira é a presença de quem continue a cadeia formada por sucessivas gerações de mestres e discípulos vivendo a mesma doutrina esotérica. Este é o caso das tertúlias de filosofia portuguesa, que foi fundada por Sampaio Bruno no ano em que, com trinta e seis anos, publicou as Notas do Exílio, vindo de Paris, onde terá recebido a iniciação no martinismo. A revista Leonardo foi a expressão actual de uma delas e constitui um foco de irradiação espiritual em Lisboa.

O que distingue a revista de outras é a identificação da arte de filosofar com a arte poética. Aparece, pois, como uma publicação em que predominam o conto, o poema, o ensaio, o aforismo. Sabemos que a razão não convence ninguém, se não falar aos sentimentos. O perigo que nos espreita é o da adulteração da filosofia pela literatura.

 

António Telmo



[1] Nota do editor – António Telmo grafa entre parêntesis manuscritos, seguidos de um ponto de interrogação também manuscrito, a expressão “através dele”.

 

CORRESPONDÊNCIA. 28

31-08-2015 12:16

CARTAS DE ANTÓNIO TELMO PARA ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO. 09

 

Estremoz

6-3-90

 

Estimado Amigo

 

Recebi o seu livro. Há dias enviei-lhe, pelo João Rêgo, o que me tinha pedido de Joseph de Maistre. Recebi a sua carta. Fiquei contente da sua vinda para Évora. Quando? Não mo diz. Claro que terei muito gosto em jantar consigo.

Há quinze dias que convivo com o seu espírito. Puseram à venda, na tabaqueira de Estremoz, um exemplar do seu livro para mim. A alma, tranquila, cristalina corrente tem a ressonância de um ritual [vitral?] na minha alma. Amo tudo no seu livro: a perfeita atenção e memória do mundo exterior acompanhadas, o saber subtil do pequeno, o convívio esotérico com a natureza e os seus segredos, a visão física de Inês pelo seu nome, a funda e certa reflexão sobre o sentido da História de Portugal. Pasma-se. António Cândido Franco, Mestre de Avis da Filosofia Portuguesa.

Há momentos em que se nos revela a perfeita Beleza. Por exemplo: a maçónica reflexão de Hirão em Mira.

Desde criança de dez anos em Arruda dos Vinhos que tenho sonhado escrever o que Shakespeare escreveria sobre Pedro e Inês. Tantos o têm tentado em vão, até o Vítor Hugo da mesma idade. É, porém, um caso que, em si, é tão perfeitamente significativo que nada é deixado à ideação do indivíduo que pretende descrevê-lo. Daqui o insucesso dos grandes espíritos que o tentaram. V. olhou e contou. Limitou-se a ver e a sentir e pensar o que viu. Daí o conseguimento onde outros fracassaram. Que idade tem, António Cândido Franco? Em si, a memória é um milagre.

Até mais ver. Seu dedicado   

 

                                               António Telmo

 

 

VOZ PASSIVA. 62

29-08-2015 22:05

De uma (re)leitura de História Secreta de Portugal de António Telmo

Eduardo Aroso

 

Santa Maria, no portal sul do Mosteiro dos Jerónimos – e cuja posição arquitectónica a António Telmo não passou despercebida na sua ímpar obra – lançando o seu olhar sobre o Atlântico, como que acompanhando a frota de Cabral, parece profetizar sobre a grande civilização do futuro a que se chama Brasil. De outro modo podemos vê-la, como indizível presença no altar dos céus que é o Cruzeiro do Sul, constelação que, segundo o emérito astrónomo brasileiro Ronaldo Rogério de Freitas Mourão, em A Astronomia em Camões a refere como «uma das glórias dos navegantes portugueses, que a teriam registado pela primeira vez». Não é descabido, portanto, vê-la com mais ou menos metáfora no céu nocturno sobre a cruz das quatro estrelas que Camões em Os Lusíadas, VIII, 71, refere do seguinte modo: «Descobrir pôde a parte que faz clara/ De Argos, da Hidra a Luz, da Lebre e da Ara.»

Santa Maria a mesma Senhora resplandecente sobre uma azinheira no centro de Portugal, e que no trânsito mistérico se poderá esclarecer talvez um dia se este local, onde, bem perto, os Templários assentaram praça, tem repercussão com o famigerado centro do mundo conhecido por Agartha e outros nomes. É deveras interessante pensarmos que o culto à Senhora, o mesmo é dizer a um supremo princípio maternal e feminino, foi requerido pelos Templários, guerreiros do lado de fora e secretos do lado de dentro, mas onde se vê claramente que os dois círculos e até o princípio da dualidade (veja-se o cavalo com duas figuras, que alguns identificam como o signo astrológico de Gémeos, o do movimento e das viagens) numa ordem guerreira, portanto dinâmica e marciana, tenha tido no seu seio a vibração da candura feminina da Virgem Maria.

Já que de planetas também se fala, não me consta que se tenha reparado num pormenor notável: é que tanto as aparições de Fátima, de Maio, como as de Outubro se dão nos meses dos signos Touro e Balança, ambos regidos pelo planeta Vénus, da harmonia e da paz, conhecido também como a estrela d’ alva ou estrela da manhã e estrela da tarde.
Assim, no olhar benevolente e cintilante como o mais amplo horizonte ao nascer do sol, a mesma Senhora vigilante no portal sul dos Jerónimos ou da azinheira do centro de Portugal, parece confirmar e aguardar serenamente aquela frase que tantas vezes o mestre António Telmo proferia: «reunir o que está disperso».

29-8-2015, dia de plenilúnio Virgem-Peixe

 

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