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EDITORIAL. 05

20-11-2015 08:49

O tempo é o maior dos mestres

 

O Projecto António Telmo. Vida e Obra comemora hoje o seu segundo aniversário. Seria pouco afirmar que o fazemos com a satisfação do dever cumprido. Não nos move a obrigação, nem mesmo o interesse nos move. Agimos com entusiasmo.

Dentro de dias, serão publicados dois novos livros a que prestamos apoio institucional e científico: Filosofia e Kabbalah seguido de Álvaro Ribeiro e a Gnose Judaica e outros estudos, IV Volume das Obras Completas de António Telmo, e António Quadros e António Telmo: epistolário e estudos complementares. Em apenas dois anos, serão já oito os títulos que se inscrevem no universo télmico que se publicam com o concurso inequívoco do nosso Projecto.

Graças às Obras Completas em curso de publicação, ficará reposta no mercado livreiro toda a bibliografia em livro, havia muito esgotada, que António Telmo publicara até ao final da década de oitenta. Complementarmente, são já centenas as páginas inéditas, exumadas ao seu espólio, ou dispersas, que neste âmbito se reuniram em volume. Graças à acção da Zéfiro, chancela que as edita, as obras de António Telmo voltaram a ter uma presença forte e marcante no mercado livreiro, abrindo-se à descoberta das gerações novas.

A publicação de António Quadros e António Telmo: epistolário e estudos complementares, livro que será co-editado pela Labirinto de Letras e pela Fundação António Quadros, traduz bem uma exemplar e frutífera conjugação de esforços entre instituições cuja credibilidade se mede também pela forma como sabem preservar, potenciar e ampliar os espólios dos respectivos patronos, tornando-os vivos. Depois do trabalho realizado pelo nosso Projecto em 2014 em torno dos escritos agostinianos que se guardam no espólio télmico, a concretização deste novo projecto, revelando o nobre e fecundo diálogo mantido durante décadas pelos dois mais lídimos discípulos de Álvaro Ribeiro, aponta uma direcção que o futuro, por certo, irá confirmar: a necessidade de, mediante parcerias, alargar e actualizar a compreensão vivente da filosofia portuguesa, e aqui a Colecção Thomé Nathanael – Estudos Sobre António Telmo, este ano criada em parceria com a Zéfiro, poderá ser um espaço privilegiado para a realização de tal trabalho.

Nessa perspectiva se inscrevem aliás os colóquios que em Sesimbra, no âmbito das Tardes Télmicas 2015, dedicámos aos centenários da Arte de Ser Português, de Teixeira de Pascoaes, da revista Orpheu e da morte de Sampaio Bruno. Os dois primeiros tiveram já lugar e quem a eles pôde assistir testemunhou momentos de excelência. Tanto basta para que as Tardes Télmicas, pelo terceiro ano consecutivo, voltem a marcar presença, no próximo ano, na já histórica Sala Polivalente da Biblioteca Municipal de Sesimbra. Assim honramos os nossos compromissos com uma comunidade.

Mas 2016 será também o ano em que o Projecto António Telmo. Vida e Obra inicia em Lisboa uma actividade pública regular, promovendo, entre Janeiro e Julho, em parceria com a Livraria Barata e o Centro de Estudos Bocageanos a primeira edição do ciclo As Artes da Misteriosofia, cujas sessões, mensais, terão lugar naquela livraria às quintas-feiras. O programa será aqui anunciado em breve. 

Agostinho da Silva, um dos quatro mestres de António Telmo, cujo estudo, divulgação e edição intensamente marca, desde o seu início, a actividade do Projecto, continuará a ser uma das nossas prioridades. Se o ciclo de palestras Agostinho Revisitado: Novas Aproximações, ainda em cartaz no Auditório do Centro de Estudos Culturais e de Acção Social Raio de Luz, se revelou uma aposta ganha pela representatividade dos oradores, pela novidade das suas propostas e pela adesão entusiástica do público, temos agora a franca expectativa de que a sua renovação, com algumas cambiantes, na Biblioteca Municipal José Saramago, no Feijó, concelho de Almada, não ficará atrás do sucesso já alcançado. Com início a 5 de Dezembro próximo, e uma nova sessão a 16 de Janeiro, este ciclo terminará a 13 de Fevereiro, dia do aniversário de Agostinho. Em festa. Mas não se quedam por aqui as iniciativas agostinianas de matriz télmica em 2016. A edição integral em livro, com a chancela da Zéfiro, da última entrevista de imprensa do filósofo, ainda amplamente inédita, ou a realização a 15 de Outubro, no Auditório do Centro Raio de Luz, em Sesimbra, das primeiras CONSIDERAÇÕES – Encontros Anuais com Agostinho da Silva, são algumas das acções que desde já podemos confirmar. Outras se seguirão.

O Projecto António Telmo. Vida e Obra é hoje uma realidade insofismável. Dois anos bastaram para o creditar como parceiro do Clepul no Triénio Pascoalino, membro do Instituto Fernando Pessoa, colaborador de diversos municípios, associações, editoras e revistas em todo o país. E de viva voz faz soar a memória do seu patrono em importantes encontros científicos, de que o Congresso Internacional Judeus e Cristãos Novos no Mundo Lusófono, já aqui anunciado, constituirá exemplo próximo.

Tudo isto só foi possível graças à confiança por nós recebida da família de António Telmo e, em particular, de Maria Antónia Vitorino, a quem nesta hora saudamos. Não somos poucos, não estamos sozinhos, não nos isolamos no suposto privilégio exclusivo de uma geração. Aqui nos apresentamos a prestar contas do nosso trabalho em torno do legado de um filósofo. Seria bom que outros o fizessem. O tempo é o maior dos mestres.

UNIVERSO TÉLMICO. 31

10-11-2015 09:18

Publicamos hoje, na íntegra, o texto da palestra sobre Agostinho da Silva e as suas Sete Cartas a um Jovem Filósofo que Risoleta C. Pinto Pedro proferiu no passado dia 31 de Outubro, no Auditório do Centro Raio de Luz, em Sampaio, Sesimbra, no âmbito do ciclo Agostinho Revisitado: Novas Aproximações.

(In)disfarçada confissão em Sete Cartas a um Jovem Filósofo, de Agostinho da Silva

Risoleta C. Pinto Pedro

 

Uma das características dos que têm vindo a formar a egrégora da Filosofia Portuguesa é a ausência de radicalismo ou de fanatismo em relação a qualquer uma das componentes daquela: aquilo que poderíamos designar, embora sem rigor, por conteúdo e forma, ideia e expressão, mas talvez melhor: filosofia e poética. Daí a nossa originalidade. Uma poética filosófica ou uma filosofia poética, embora as duas expressões tenham diferentes correspondências, porque a ordem não é arbitrária, mas não sou a pessoa indicada para falar sobre isso.

Trago o assunto a lume, porque abordarei o Agostinho das Sete Cartas a um Jovem Filósofo como sempre tenho feito em relação a restantes partes da sua obra: do ponto de vista literário, mas não, exclusivamente, do ponto de vista da forma, porque nele, como em outros, a poética é essência e a ideia também dá forma. Assim, ao tratar da sua poética, impossível se torna deixar de lado a filosofia, ainda mais num livro que tem por título o destinatário: um filósofo enquanto jovem.

Tal como Agostinho, ou, sem querer ser papista, talvez mais ainda do que ele (porque nele, acredito, parece-me ser muitas vezes uma pose, um teatro, sinto que ele tem mais certezas do que diz…), não tenho a certeza de nada, ou de muito poucas coisas. Não estou segura de tudo o que aqui afirmo, é um afirmar que enferma de pouca firmeza, mas assumo firmemente a responsabilidade pelo que firmarei.

Andarei entre literatura, pensamento e símbolo, que afinal são a mesma coisa.

Começamos bem com o sete, com cartas, e com um jovem que é ou pretende ser filósofo. Três trunfos com pano para mangas sem batota, mas com muito jogo, neste baralho de cartas só aparentemente não de jogar.

As cartas são escritas por José Kertchy Navarro, um heterónimo de Agostinho? Vejamos. Um outro? Que não apenas no nome? Veremos.

O texto foi publicado em 1943, tal como o Diário de Alcestes, ambos em edição de autor.

A versão sobre a qual trabalhei é de 1993 e intitula-se:

Sete Cartas a um Jovem Filósofo, seguidas de outros documentos para o estudo de José Kertchy Navarro

Está organizada da seguinte forma:

Às sete cartas seguem-se  “Os Poemas em Prosa”, um “Esquema Biográfico” e uma “Nota Final”.

Debruçar-me-ei, por agora, apenas sobre as “Sete cartas…”, se houver espaço e tempo, do que duvido, o “Esquema Biográfico” e a “Nota Final”, e deixarei a parte incrustada: “Os Poemas em Prosa”, para objecto da minha próxima intervenção sobre Agostinho, em Fevereiro. De outro modo dizendo: ocupar-me-ei primeiro da coroa e depois das joias.

O destinatário das cartas chama-se Luís, ficamos a saber na primeira carta, que começa com um tema muito caro a Agostinho: a imponderabilidade das decisões:  “[…] tanto faz decidir-se depois de ter pensado bem um ponto como decidir-se atirando uma moeda ao ar;[…]”

Das cartas ao jogo de dados. Com moeda.

Os dados uma vez lançados, confirmemos, mais adiante, de que forma este jogador joga connosco:

“parece-me perfeitamente absurdo preferir uma à outra. No entanto, como lhe disse, penso sempre.”

Pensa sempre, este pensador jogador. É um filósofo que é, ao mesmo tempo, a primeira carta do tarot, o mago. O jongleur, acrobata ou saltimbanco. Tudo se lhe aplica. O filósofo que, brincando connosco, jovens aspirantes a filósofos, ri. Não de nós, mas das suas próprias acrobacias de pensamento. Sempre eticamente. Mesmo quando nos tira o tapete:

“penso sempre, porque o mundo pensa, não jogo porque na essência do universo não há jogos. Mas então porque joga você?”

Adiantando imediatamente a resposta, como retirando as palavras da boca do seu destinatário:

“o não haver jogo essencial no universo não quer dizer que não haja jogos aparentes;”.

Como se não bastasse, para atear a fogueira e aumentar a confusão nas hostes, lança, mais à frente, outra acha: “parece-me grave que você compre vigésimos e se recuse à moeda; “

Com quem está ele a falar? Com o seu jovem filósofo Luís ou consigo mesmo, que, como dirá noutro passo, nunca usou a moeda?

A imponderabilidade dos acontecimentos e das decisões, das acções e reacções com que inicia as cartas, é um tema muito agostiniano. Ele arrasta-o, aliás, ao longo da sua vida através de um ao mesmo tempo sério e irónico agradecimento aos mais adversos acontecimentos pelos quais as melhores coisas lhe foram proporcionadas. Apesar de defender, logo no início, como estando ao mesmo nível, a moeda ao ar ou a reflexão ponderada, acaba por afirmar outra vez com séria ironia, mais à frente, que nunca resolveu nada através da moeda, mas percebe-se que não o fazendo ele, não despreza o jogo que lhe faz a vida, nem despreza olhar para a moeda por ela atirada e caída. Só não o faz porque tem quem o faça por ele, uma pitonisa privada chamada Existência. Digo eu.

Este aparente diálogo, parece-me ser, afinal, um processo literário de ocultamento do monólogo interior que aqui vejo. Porque está à vista, apesar de alguma cosmética literária no sentido da verosimilhança, em partes que permitem entrever os bastidores, como alusões a conversas entre cartas, alusões a contextos conversáveis fora do universo de observação do leitor, que nos deixam com curiosidade e vontade de preenchê-las nos pressupostos contextos do entre-texto, como:

“Você tem razão num reparo que me fez:”, ou:

“A menos que você prefira vir por cá para que palremos” ou ainda “A nossa última conversa foi tão rápida e em lugar tão pouco propício”,

respectivamente do final e do início da primeira e da segunda cartas.  Outras alusões, porém, aparecem como muito pouco verosímeis. Tal é o caso, logo na primeira, quando afirma:

“como já teve ocasião de me dizer, não possuo muito o talento da construção lógica”. Atrevimento pouco plausível num jovem discípulo aspirante a filósofo. Assim sendo, se não é alguém fora dele que lho diz, não é difícil tirar as conclusões, assim ficando justificado para o leitor, o que anuncia:

“esta conversa de hoje tem fatalmente de seguir um pouco o curso errante de outras nossas conversas”.

Ora que há mais próximo deste “curso errante” que o monólogo interior?

Assim, como afirmei anteriormente noutros textos que escrevi, ele escolhe aquele de que fala. E escolhe, daquele de que fala, os aspectos espelho em que se revê. Aqui desdobra-se em si e si próprio, dá-se um nome, coloca-se como discípulo de si mesmo e discorre. E temos: “Je suis moi” ou “c’est moi lui”, ou melhor ainda: “C’est moi Luís”, para finalmente: “Luís c’est moi”.

Vejamos como se denuncia:

“você, querido Amigo, estava em transe, em plena crise de faquirismo, e tanto lhe fazia que eu o ouvisse como não; ou falava como uma torrente que rompe o dique e rola sem nenhuma possibilidade de se conter, ou, como me parece que às vezes acontece consigo, falava para se ouvir a si próprio: é o grande perigo das pessoas que falam bem: são as serpentes de si próprias, saem dos cestinhos para ouvir a música deliciosa e o que podia ser uma manifestação esplêndida de humanidade transforma-se em espectáculo de rua. Note que não o censuro nada: você faz o que pode; mas há aí um lado inferior da sua personalidade; ou talvez seja o defeito de uma qualidade.”

Agostinho alerta Agostinho. Não que ele seja exactamente isto ou se veja assim, mas talvez por vezes se tenha sentido sobre o cume, a lâmina de onde se vê o abismo, o outro lado. Nem sempre no sentido do defeito, ou da sombra, como se pode ver:

“Você tenciona, pelo que depreendo da sua carta, ser um filósofo. Não no sentido de que exporá doutrinas alheias ou construirá uma sua doutrina e se dará satisfeito com tudo isso, mas no sentido de que tentará pôr a sua vida de acordo com a sua filosofia”.

Como sabemos que Agostinho fez, tanto quanto é possível a alguém consegui-lo.

E prossegue o monólogo interior, onde vemos espelhada, quase em antecipação, a sua vida como naquilo a que hoje se chamaria programação neurolinguística, processo muito antigo, desde que existe Deus e criação:

“Um Séneca, como você talvez já saiba, teve o desprezo das riquezas, mas foi banqueiro; um santo tem o desprezo da riqueza e nunca é banqueiro: são duas atitudes diferentes. Você naturalmente vai pela primeira: se a miséria vier, paciência, se vier a riqueza, paciência também.”

Este é um livro de jogos silogísticos de nível avançado, porque a sequência dos raciocínios tem de ser procurada pelo meio da fresca e viva corrente conceptual. É um jogo, juntar as peças do puzzle e completar o raciocínio em seu esplêndido brilho. Pensamento e moeda, calculada, dramática e sorridentemente atirada por um deus.

É esta a ética de que estes textos não se alienam, uma ética tão quotidiana quanto grandiosa, humana e quase divina, tão concreta quanto abstracta. Não é possível falar da escrita de Agostinho linearmente.

Vejamos:

“Não lanço a moeda, porque não renuncio a compreender, porque não renuncio à deliberação, porque não renuncio a uma vontade em que não acredito.”

E mais à frente:

“No entanto, continuo a suplicar dos deuses, a ter como mais firme dentro em mim a inspiração de que um dia atinja o heroísmo de me atirar a todas as batalhas em que não haja esperança de vitória.”

Muito menos estoico do que o Ricardo Reis porque pede. Ricardo Reis que, nesta altura, como António Cândido Franco afiança e concordo, ainda não conheceria, mas com o qual já apresentava alguns pontos de confluência. Avant la lettre. Misteriosas comunicações. Mas afinal RR também pede… que não seja tentado pelo pedir:

“Aos deuses peço só que me concedam/ O nada lhes pedir. A dita é um jugo/ E o ser feliz oprime/ Porque é um certo estado./ […]”

Também não posso deixar de reparar nesta semelhança fonética entre o “jugo” de RR e, de Agostinho, o jogo. Não é sobre a fonética que se baseia a Gramática Secreta… de Telmo, essa que da língua tenta compreender o sopro, a respiração, a música, a presença divina?

Afinal, é a vida que vale a pena jogar e só é possível fazê-lo sem cálculo, não julgando, renunciando ao pequeno jugo:

“querido Amigo: embarcar num navio que nunca chegará, rumar por mapa e bússola ou goniómetro para o porto que não existe; meter-se uma pessoa ao maior jogo sem jogar.[…] Jogar a vida, mas não jogar nada dentro da vida.  Você, às vezes, dá-me a impressão de que, não tendo coragem para jogar a vida, se entretém em pequenos jogos dentro da vida, é fraco em tudo. Espero vê-lo um dia descer do vigésimo à cautela; a cautela convém-lhe porque é barata e sórdida.”

Seria um paradoxo, este aparente jogo de acusação, humilhação a roçar o insulto, se não estivéssemos num jogo de espelhos de José… Agostinho consigo mesmo. É esta a face do dado que atiro, receando, contudo, enganar-me. Mas só isso explica esta frequente incoerência entre o tratamento quase insolente que é dado ao destinatário da carta e a quase suplicante ternura com que se despede: 

“E passe por aqui quando puder. Sempre muito amigo.”

Nesta implícita ponte com Pessoa/Reis, não poderia deixar de aparecer Campos, segundo o seu criador: “tipo vagamente de judeu português”, através da alusão a Beethoven, e o heroísmo, a tragédia e a liberdade que associa à sua música, e isto é a força, de que havemos de falar mais tarde. A ponte de que falo, repito, sou eu que a imagino, que neste momento é muito pouco admissível o conhecimento do poeta dos heterónimos por Agostinho.

Através da admiração por Beethoven, a aproximação a uma estética musical, literária e filosófica já não baseada no equilíbrio, mas na “energia”, nas capacidades de um “gigante”, o único capaz de se dedicar à filosofia como a um sacerdócio: 

“Você vai precisar de todo o seu tempo, de toda a sua energia, de pensar de manhã até à noite nos problemas filosóficos;”.

É uma filosofia épica, ao nível da épica poética de Campos, e não um “ascetismo filosófico”, que ele declina.

Aqui reentra o judaísmo de Campos e a força necessária a quem sobreviveu em desertos e abriu mares. Mas também o de Camões, esse fiel do Amor, avesso a Roma e avesso de Roma, escravo apenas da sua Amada, que é, nesta caso, a Filosofia. Tal como Jacob no soneto de Camões, para ter Raquel, se dispõe a “servir outros sete anos” a Labão, Agostinho usa uma belíssima expressão inspirada no Poeta de quinhentos transposta para a Filosofia:

“Escravo, pois, e tão escravo que só lamentemos a brevidade da existência: que longa a tornaríamos se o pudéssemos;”

que nos faz lembrar o camoniano:

“Mais servira, se não fora/ para tão longo amor tão curta a vida!”

Assim viveu Agostinho, numa alegre e livre escravatura a tudo o que nele foi sentido como Amor, em livre e alegre assunção do sacrifício, no sentido de aproximação a Deus ou ao sagrado, mas não afastado da inquietação, essa qualidade tão presente nos judeus:

“há em mim uma inquietação que não se acalma”.

Talvez por isso precise de recorrer, de vez em quando, aos clássicos. Não é contradição, é pausa, é repouso, é respiração:

“Há um meio-termo: seja medíocre para minha segurança, querido amigo; para que eu me repouse dos meus temores.”.

Até parece que se conforma à aurea mediocritas, numa das suas frequentes e apreciadas imagens náuticas ou estética marítima, reparem na musicalidade da alegoria:

“E então vou de noite, no meu pobre barco a remos, e rodeio-o no ancoradouro, escuto o menor chapinhar na água e surpreendo-me a bater-lhe palmadas afectuosas no costado e a dizer-lhe: “Cuidado! Cuidado com as ondas de través, cuidado com os blocos na bruma, cuidado com os fundos, cuidado com os fogos!”.

Mas esta aurea mediocritas  não passa de aparência, porque logo a seguir, declara:

 “Perfeitamente absurdo.”.

Terminando a carta a reclamar, significativamente, a devolução do Whitman que teria emprestado ao seu jovem amigo, esclarecendo: “E eu, de vez em quando, leio o Whitman.”

Não nos enganámos muito quando o aproximámos de Campos, esse outro apreciador de Whitman. E da força. Essa poética de um marrano. Aproximação nossa, mas que explica o reconhecimento que iria acontecer mais tarde. Irmãos de alma mesmo separados sempre se reconhecem.

É muito interessante desmontar uma passagem, mais uma vez náutica, que se inicia com uma premissa estoica:

“não force nunca, seja paciente pescador neste rio do existir. Não force a arte, não force a vida, nem o amor, nem a morte. Deixe que tudo suceda como um fruto maduro que se abre e lança no solo as sementes fecundas.”

Não fosse o caso de mal interpretarmos, remata com um:

”Islamismo, claro.”

Entretanto já afirmara:

 “Que não haja em si, no anseio de viver, nenhum gesto que lhe perturbe a vida.”

A vida como o mais alto valor, a que se seguirá, em remate:

“ O suicídio é absurdo e condenável apenas porque me não deixaria viver.”

 E aqui temos, como Pedro Martins já demonstrou no seu livro Um António Telmo, a negação pelo recalcamento, da herança judaica. Como quem pinta um cachimbo e afirma: “Ceci n’est pas une pipe”, Agostinho exalta a vida e ao mesmo tempo é como se afirmasse: “isto não é marranismo”, que é o que diz em: ”Islamismo, claro.”. 

Contudo, é inquestionável que Agostinho, heterónimo de José, ou vice-versa, alternadamente elogia, com a mesma convicção, a exaltação e força Álvarowaltwhitmanianas ainda que não conhecesse ainda Álvaro de Campos, e a ataraxia de Séneca e Reis, este também a conhecer no futuro:

“Tudo pode esperar. Aguardemos pacientemente que em nós brote aquilo a que viemos.”

Mas só ele para transportar para o corpo, até às últimas consequências, contra todo o senso comum, o conceito de aurea mediocritas:

“como é bom ter quase excelente saúde: mas as delícias de uma gripe de quando em quando, quem dignamente as cantará? As delícias e os proveitos, porque estes toques de doença, para quem os percebe e deles faça utilidade, são das melhores dádivas dos deuses. Uma saúde perfeita é insolente, animal, e grosseira. Como são intoleráveis os doentes perfeitos. Mas o meio termo, a mediocridade, como já uma vez lhe disse, é que permite ver a arte e a vida.”.

A doença aqui ao serviço da aurea mediocritas. O corpo olhado com realismo e pinceladas naturalistas de Cesário, mais o heroísmo cru do ainda por si desconhecido Campos.

Ou então, se quisermos avançar até aos dias de hoje, o corpo visto como condição de consciência, e recordo muito particularmente o trabalho de um psicólogo e um médico alemães, psicoterapeutas, nossos contemporâneos, intitulado A doença como caminho, em que esta é reabilitada em termos de auto-conhecimento e libertada da diabolização que vem sofrendo há séculos, essa sim a verdadeira doença. Vista do lado cru e solar, a doença dança e traz à luz o que se escondia no corpo.

Para além disso, naquela bela passagem do texto de Agostinho, as estéticas naturalista e antecipadamente futurista ali abraçadas, ao serviço das ideias.

E novamente, o inquestionável diálogo consigo, o auto-conselho:

“Digo-lhe tudo isto porque você tem grandes tendências para a saúde absoluta e para forçar;”.

A herança judaica já referida, de algum modo também aqui presente, pela importância dada ao corpo, o nosso carimbo no mundo da manifestação acção.

Uma outra passagem contada como história pessoal, mas com inequívoco perfume de lenda, acerca de um pretenso amigo judeu com muita idade (“lembrava-se ainda da coluna de fumo que o tinha guiado no deserto”) a quem os amigos, como prenda de anos, devido ao seu proselitismo, decidiram oferecer um cristão para ele converter. E com uma pequeníssima narração comentada de menos de meia dúzia de linhas conseguiu matar dois coelhos: a lembrança do judeu em si e a tentação cartesiana, idealista ou kantista do seu destinatário, pois é de uma analogia que se trata: a voracidade conversora do jovem filósofo perante os “não-cartesianos, ou não-idealistas, ou não-kantistas”.

A acima referida alternância de contrárias convicções, as aparentes contradições, fruto de um processo de espelhamento, são, muitas vezes temperadas de uma incontida e inequívoca ironia, quando declara, por exemplo:

“Querido amigo, dê-me notícias suas ou apareça; aparecer é melhor, porque, no fundo, detesto a epístola.”

É muito interessante o “no fundo”, que remete para uma prática oposta ao que se afirma: Nesta obra, constituída por epístolas, e na vida, em que as cartas foram uma actividade, quase diríamos se não receássemos o excesso da avaliação, compulsiva.

Presente, a razão através de um quase incontornável raciocínio, ainda que, ao pensamento comum, possa parecer radical. Daí, em parte, o fascínio.

Também o Amor é alvo de análise e raciocínio e uma espécie de medida para a qualidade do ser. Através de uma complexa análise semântica a partir do conceito de tolerância. No desenrolar do pensamento, a palavra vai sendo associada, como em contas de rosário, a desdém, desprezo, indiferença, numa imbatível argumentação com que vai progressivamente desvelando e denunciando o conceito naquilo que aquele encerra de aparência e de preconceito. Acaba por hierarquizar os conceitos situando o Amor acima de Apolo e da Filosofia, quando esta se posiciona em relação ao mundo numa base de tolerância.

Voltando aonde estávamos, pelo meio, diaboliza a tolerância colocando-a abaixo da perseguição, reabilita a discussão, elogia a ignorância dos que não estudaram filosofia ou nem sequer sabem ler:

“mesmo quem não vale nada vale muito”,

na condição de ser amável.

Ficamos a saber que tolerar é não ser amável, logo, é não ser habitado pelo amor:

“Eles são amáveis, podem ser amados, você, porém, é estreito, e não os ama. Depois disto, como se fizesse uma grande concessão, declara que os tolera.”

Afirma, em coerência, na sétima carta:

“No seu ponto mais alto, Filosofia é uma criação perfeitamente similar à criação artística ou religiosa ou amorosa;”

É o amor sempre, mais uma vez, associado a uma ética superior independentemente dos saberes e, mais uma vez, numa total incompatibilidade com a tolerância. Num desenrolar de pensamentos a que nega a vertente argumentativa:

“Você julga que jamais alguém foi convencido por argumentos? O próprio verbo convencer se devia banir da linguagem corrente: as pessoas aderem, não são convencidas. E às suas ideias, por exemplo, hão-de aderir menos pelo que você pensar do que por aquilo que você for.”

O que entra em aparente contradição com o conteúdo das cartas, plenas de raciocínios muito próximos da argumentação, a menos que: as cartas se dirijam a si próprio e/ou tenha uma fé profunda na pessoa que é, para além da argumentação que desenvolve.

A razão e o imenso mistério que é a vida, já que é do insondável mistério humano (porque é no humano, não no divino, que o mistério habita) é do que aqui se trata.

De filósofo para filósofo. Ou de filósofo para aprendiz. Ou de um Deus criador, desafiador e insolente para um aspirante a filósofo.

O título destas cartas, meramente descritivo, a ter uma natureza interpretativa, poderia ser “Nosce te ipsum”, porque se trata, quase claramente, tão claramente quanto o encriptado pode ser claro, de um monólogo de autoconhecimento em forma de diálogo. Pela análise e pela argumentação consigo mesmo. Agostinho compulsivo professor que quando não tem alunos se usa a si para receptor da análise argumentativa sobre um pensamento ético recheado de metáforas e subtil sorriso. Às vezes, a tocar a afronta.

E como é irrequieto, por vezes está de um lado, por vezes de outro. É uma espécie de heterónimo instável, saltitante e imprevisível como ar. A partir de certa altura, previsível na sua imprevisibilidade. Ou um desdobrado pseudónimo que se reparte para melhor se encontrar. Ou conhecer. Como Deus.

Talvez a citação que se segue ajude a confirmar o que acabo de afirmar:

“O criador é uma espécie de monstro em que há o homem e o outro; quem desanima, quem se abate, quem chora é o homem: o outro, se é grande, até os desesperos utiliza.”

É isso que tenta fazer José Navarro: transformar o homem no outro. Luís é, por enquanto, o homem. Será ele José, o outro? Não temos dúvidas de que ambos são o monstro, ou, segundo ACF, o colosso.

Não é possível afirmar que cada carta tenha um tema, porque se assim parece no início de algumas, não se confirma. Há como que uma introdução através da qual, de raciocínio em raciocínio, acaba por ir parar ao tema ou temas que pretende, e que podem passar de uma carta para outra, com diferentes tons e cambiantes. Em cada carta, os temas enrolam-se, emaranham-se como cerejas.  Por vezes o tema é apenas um pretexto para tratar do seguinte ao qual o primeiro permite, retoricamente, aceder.

São estes a criação, a felicidade, o amor, a filosofia, a literatura, a coragem, a vida. Numa base ética.

A escrita está perpassada de aforismos, como em Agustina. O aforismo é filho da ausência de medo. Do medo de errar. Do risco que sempre existe em tão peremptória afirmação. Agustina tinha uma mãe que repetia provérbios, talvez lhe viesse daí uma parte da propensão para os aforismos. Que roçam, por vezes, a boutade. Não sabemos se a mãe de Agostinho repetia provérbios, mas os aforismos estão-lhe no sangue da escrita e convivem pacificamente com a complexidade.

Também ele, por vezes, entre o aforismo e a boutade. Profusamente, Agostinho é florestal, abundante. O que, num trabalho deste tipo, não facilita as coisas.

Tive de conter em mim a tentação de tudo comentar, analisar e interpretar, por duas razões: porque a filosofia não é a minha área de conforto e porque foi com o propósito do olhar literário que me propus reler estas cartas. Assim, muita tentação terei de afastar durante o caminho. Mas não todas, porque algumas estão em ligação íntima com o que pretendo observar.

Mas Agostinho e seu texto, na generosidade de sempre, oferecem-me, abundantemente, o que procuro, apenas tenho de colher. Depois de escolher. Logo na primeira carta, onde voltei ou talvez ainda me encontre, proporciona-me outro encontro, a tentação, esta já não minha, mas dos artistas em geral a que os poetas muito pouco escaparam, a começar por alguns filósofos, também não tão afastados da arte e da arte literária, nomeadamente os da Filosofia Portuguesa: expressar o que é, para eles, a arte. Aquilo a que se costuma chamar arte poética que é, afinal, uma teoria da arte, muito concretamente, como verão, uma ética da arte:

“Se um artista tem uma obra dentro de si, deve sacrificar os outros ou a obra? Nenhum artista, é claro, hesitaria na resposta: a obra nunca se sacrifica. Os artistas, querido amigo, são uma espécie de lobisomens: obedecem a um fadário, não podem deixar de sacrificar os outros em vez da obra; o que não é, nos melhores, pequeno elemento para que sofram.

[…] Se o seu caminho é o de dar, o que é lógico é que faça a dádiva mais alta: a de si próprio, a da sua obra. Se o não fizer, você toma a outra atitude, a de receber, que é sempre a do artista, considerado como criador; é evidente que, realizada a obra, ele passa a ser o que mais dá. Mas como criador é egoísta; sempre egoísta, o mais possível egoísta; talvez, de resto, o egoísmo seja aparente; talvez o artista, em vez de dar a um, se esteja reservando para dar a milhões. […] se você sacrificar a sua obra é porque não a tinha: havia apenas o desejo da obra, e nada mais. Porque se ela existisse! Você passaria por cima de tudo, esmagando tudo, sem piedade, com horror, mas sem piedade […] Quem tem uma obra, a obra o tem; quem traz mensagem a há-de ler perante o rei; arqueja, mas lê, sufoca, mas lê, e depois de ler cairá por terra, mas já a leu. É a posse mais terrível de todas, a escravatura mais completa, aquela que uma obra exerce sobre o seu criador.”

É aqui, nesta bela expressão poética da sua ética da criação, que se desenha o que é para si o real e o literário, a vida e o fingimento. Muito próximo da visão do, para si, futuro Pessoa:

“Não é quando se está em transe de amor, o único momento em que verdadeiramente se ama, que se escreve ou se compõe ou se pinta: é depois, quando o amor se abateu, quando reina o artista, quando é só em todo o campo e há do amor apenas a lembrança, […]”

Pessoa diria o mesmo de outra maneira:

“É como que um terraço sobre outra coisa ainda. Essa coisa é que é linda. “

 Daqui, desta teoria sobre a criação, passa rápida e magistralmente para uma teoria do amor: “O verdadeiro Amor é talvez impessoal” e “ao verdadeiro Amor corresponde o silêncio”, acrescentando uma das passagens, arrisco a dizer, mais belas, da sua obra, arrisco ainda mais: uma das mais belas passagens que eu já alguma vez terei lido:

“não se diz nada à rosa”

Pelo condensado, pela síntese, pela sabedoria, força e beleza, a receita integral alquímica presente nesta frase. E ainda o impessoal do sujeito, o feminino impessoal do objecto, a negação “não” e “nada” ladeando a expressão ”diz” e a associação inesperada entre o verbo e o objecto. A este nível, talvez só o verso de Silesius, “A rosa é sem porquê”, e mesmo assim tenho dúvidas.

Ao lermos a biografia de Agostinho feita por ACF, o que ressalta, e concordo, é a obra do autor. Lá está o homem, o colossal escritor, o colossal indivíduo, mas, acima de tudo, sempre, a colossal obra. Que acompanha a vida como dois carris de comboio se acompanham. Mesmo na acentuada curva que foi o pós-prisão, a chegada ao Brasil, as linhas fazem, uma um percurso mais largo que a outra, mas acompanham-se sempre.

Como, aliás, antecipa ou justifica a visão de ACF, do colosso:

“Mas você é puro sangue: tem de saltar e tem de correr; tem de dar tudo o que puder e, se eu tiver alguma espécie de influência, há-de dar mais do que puder. Há-de-se inventar você próprio a você: criar um outro Luís, melhor do que esse que possui e obriga-lo a criar, a esgotar-se todo na divina tarefa de criar.”

E avisa-se a si próprio ou continua a fazê-lo, por causa das tentações:

“Pois bem, querido Amigo, por mim, pode você estar seguro: nunca lhe permitirei que faça, do que é, uma profissão, que gele no que pareceu interessante a você e aos outros, que seja uma atitude em lugar de uma pessoa, a figura de cera de um museu, sempre o mesmo, e catalogado.”

Não sei se foram estas cartas lhe valeram podermos vê-lo hoje como

“o que é realmente vivo parte todas as molduras e regressa à liberdade da selva”,

mas não duvido que foi ele quem se valeu a si mesmo.

Houve uma moldura mais difícil de partir, a moldura da televisão, talvez nessa permaneça, ainda hoje, para alguns em parte aprisionado.

Talvez ele a tenha, misteriosamente, antecipado, como se soubesse, como em tragédia:

“Há em mim um certo gosto pela improvisação de circo: o clown nem sempre é muito lógico, mas às vezes faz perguntas embaraçosas e lança o remoque que vai ferir no mais fundo da alma o espectador inocente, o que entrou para se rir.”

Sendo ele aqui o clown e o que entrou para se rir.

Talvez precise, contra todas as suas expectativas, ainda hoje, de nós. Ou, mais uma vez, de si mesmo, através de nós. Lendo-o. Dando-o a ler. Profundamente. Pondo fim aos limitados e limitadores aforismos e citações repetidos ad nauseam. O aforismo mil vezes repetido e superficialmente interpretado pode ser o seu pior inimigo.

Sendo o seu maior amigo a obra lida, estudada, partilhada, transmitida, discutida. Acesamente, como ele gostaria. Com o respeito que é a ausência de reverência. Vejamos o que diz, numa espécie de auto-retrato, ou pelo menos assim o leio:

“Deixe firmar-se a primavera também em si, uma primavera temperada de uns arrepios de ironia, com a acidez de Março em lugar das molezas perturbadoras de Maio.”

Não deixa dúvidas, não teria gostado deste culto superficial das citações mastigadas, digeridas, cheias da moleza do prêt-à-porter, de um Espírito Santo de pacotilha que não celebra a santidade do Espírito na santidade do corpo, de meia dúzia de expressões memorizadas e mecanicamente expandidas até à auto-extinção pela fuga da alma.

Tenhamos a esperança que ele nos deixa, de que este veneno da simplificação, este macaqueio obsceno a que corajosamente se expôs não nos faça mal e não o mate. Na vida, como na morte:

 “Na minha vida, o que foi bom em si veio a ter muitas vezes consequências nada benéficas; e o contrário.”

Quem fala? Agostinho ou José Navarro? Atrevo-me a responder por ele: “José Navarro c’est moi”.

O auto-retrato, a auto-biografia, a auto-análise, implícita ou explícita, são uma quase constante. Frequentemente debate consigo, coisa a que não conseguia resistir. Faltando-lhe com quem debater, podia sempre recorrer a si mesmo. Por isso se mostra, tantas vezes, contraditório:

“no momento em que haja eternidade, nada foi útil ou prejudicial; tudo foi, simplesmente, e ninguém julgará, e ninguém será condenado.

Dirá você que, se tudo isto é assim, não haverá objectivo a atingir: seremos como a macieira que daria maçãs, mesmo que ninguém lhas comesse; que a última razão dos nossos actos não deve ser a de um alvo, mas a de uma existência, que mesmo aqui devemos abolir as causas finais. Simplesmente, querido Amigo, o espírito é finalista, tem ideias; abre-se aqui um conflito, senão entre a estrutura, pelo menos entre o aspecto do espírito e o aspecto do real;”

Talvez tenha sido esta prática de debater com ele mesmo, o laboratório onde se criou o colosso, aquele que desde muito cedo não deixava ninguém sem resposta e que muitas vezes deixava os interlocutores sem palavras.

O uso da analogia é frequente e surge no próximo exemplo a propósito do sofrimento na vida como forma de pagar o bilhete da viagem. Aqui se percebe como muitas vezes a herança estoica, que partilha com Ricardo Reis, aparece como uma máscara ou disfarce do judaísmo. É o caso da interessante metáfora do pão da vergonha que embora não apareça assim designada, é uma réplica perfeita da imagem judaica para todo o bem que se recebeu e que não se fez nada para merecer. Que começa com a criação. Explico, antes de voltar a Agostinho: perante a sua condição de ser criado à imagem perfeita do criador, a criatura sente o desconforto do desmerecimento. Ora, concordando o pai sempre com o filho e não pretendendo que a bênção se transforme em condenação, assim responde à criatura: Pois meu filho, seja como tu queres. Esta poderia ser uma narrativa da queda contada às crianças que existem em nós. Agostinho apresenta a versão para adultos:

“como queria você viver sem um tormento? Estar de graça no Teatro da vida? Não teria boa consciência, não é verdade? Pague o seu bilhete. E o bilhete é sempre sofrer.”

Aqui temos a visão judaica da queda, sem tirar nem pôr. O ganhar o pão com o suor do rosto, por sua própria vontade. O conquistar aquilo que já se é, para se merecer a si mesmo. Mas não se fica por aqui, estamos em plena doutrina da reintegração dos seres:

“aqui poderíamos dizer que a dor o levará ao que há de mais profundo e de mais nobre no ser humano”,

temperada de estoicismo.

Modera esta visão muitas vezes crua da vida, a beleza do inspirado estilo:

“chove sobre o justo e o injusto”,

neste caso, a metáfora em taça de antítese.

E, profusamente, a ironia, que constrói variadamente: ou pelo conteúdo, como qualquer página, ao acaso, poderá demonstrar:

“ao quarto argumento, todo você freme, mal se contendo: no entanto, lembra-se do estoicismo e ainda aguenta; mas ao quinto argumento, você insulta-os.”

Ou a ironia pode vir também da arquitectura frásica e da própria construção da palavra, o neologismo:

“E o mesmo com o kantismo e o pessimismo e o positivismo e tudo o restismo.”

A comparação, a analogia, a metáfora, a alegoria e a ironia são alguns dos tijolos de construção da escrita, material orgânico que não se sente como forma, tal a íntima ligação ao sentido. Formam dois grupos, a comparação estando na base das três que se seguem, e fugindo a ironia a qualquer norma.

No universo da comparação, de que nos apropriamos agora, e em termos da concepção da filosofia encontramo-lo de acordo com Álvaro Ribeiro quanto à necessidade de algum rigor no respeito pela tradição, definição e propriedade conceptual:

“Procure compreender os sistemas dos outros antes de criar um seu.” Ou: “ A filosofia que se não apoia num perfeito encadear de raciocínios e numa informação que tem de ser a mais sólida e a mais ampla, é apenas […] da pior literatura.”

Vejamos Álvaro Ribeiro n’O Problema da Filosofia Portuguesa:

“A pureza da linguagem só pode ser garantida pela escola(1); a actividade da razão só é despertada pelo ensino acroamático; a iniciação na filosofia só pode ser feita dentro de uma sociedade tradicional.[…] de nada valem as irreflectidas opiniões dos vulgarizadores de qualquer época, seita ou actividade.”

Agostinho aprovaria esta posição, que o teria defendido da actividade assassina dos vulgarizadores. E como “assassina” se aproxima de “asinina”... Agostinho, que preconiza estudo feroz para a criação de músculos, porque a relação com a filosofia terá de ser para ele, uma relação de amor. E o amor, sem a força, não o é:

“só quem é forte se apaixona” ou “sempre há força na raiz do amor”.

É muito curioso este encadear da filosofia com o amor através da sabedoria e da força. Dito de outro modo; a força como condição do amor sabedoria.

E o Amor como o supremo valor:

“que idealismo é o meu em que não entrem os materialistas?” ou

“Dirá você que uma concepção dessas, em que todos os contrários se harmonizam, só é possível em Deus. Vamos então nós desistir de chegar a Deus?”

E ainda:

“do amor sempre, porque, se é verdadeiro, ele supera a ciência e a arte, a filosofia e a política.”

“Se uma luz da caridade não brilha em si, para que lhe serve viver? Um filósofo mais?”

Mais uma vez, e sempre, uma ética de pensamento vivo. Corporizada na figura de Jesus, esse judeu-cristão:

“ou você vem a casar a filosofia com Jesus, ou então pode retirar-se, porque o mundo dispensa-o.”

 É curioso que a metáfora do casamento se materialize em Jesus, esse corpo vivo e humano de judeu. O casamento do que não é adverso ou, como diria Telmo, a “síntese superior”.

Ainda na esfera das figuras ou tropos, concretamente da metáfora, encontramos, com frequência, as da navegação, de que já vimos exemplo, mas a um pensamento e temperamento como o de Agostinho não poderiam faltar as metáforas do ar:

“Que aviõezinhos são estes que não aguentam trovoadas…”

“Você tem que ir à frente do bando, mas não muito à frente para que não percam a luz.”

 Uma excelente síntese deste ser que detestava a “altivez”, o “desprezo”, as “vaidades absurdas”.

Quanto aos finais, a estética defendida é a do “unhappy end”, a via da tragédia, que estende ao voto endereçado como remate:

“Querido amigo Luís, oxalá você falhe. […] que tudo acabe para você em desilusão e amargura;”.

Depois da maldição, o antídoto:

 “mas sempre a coragem, sempre a certeza, para o espectador, de que você a recomeçar jogava o mesmo jogo[…]. Sofrer não importa, só lhe poderá fazer bem: o que é essencial é que você nunca decline o sofrimento […] chore e lance clamores, mas renunciar, nunca.[…] Haja o que houver, suporte; quando não puder ir de pé, vá de joelhos, depois arraste-se, mas avance sempre enquanto possa e nunca largue o tesouro.”

Aqui, o tesouro é o sofrimento. Ele, a voz que liberta do conforto do sucesso, essa demoníaca tentação. Aviso a si mesmo?, repergunto-me.

Com uma admirável capacidade argumentativa digna de um pregador ou um tribuno, com um fundamento fortemente especulativo e mais ainda, falacioso, mas cujo resultado é de um brilhantismo a que é difícil ficar indiferente:

“parece que há sempre na vida um fundo de dor e a alguém terá de caber; uma renúncia, naturalmente não é mais do que uma transferência: com que direito passaria você a outro o fardo esmagador? E julga que se poderia consolar de o ter feito?”

Agostinho não mostra muita preocupação com o rigor do milímetro, o seu foco é o brilho do pensamento, o fulgor da ideia. Como ele sabe muito bem e afirma, à laia de ameaça: “literariamente sou feroz.”

De resto, a última carta pode ser, de algum modo, a chave para os três dons com que abemaldiçoa o amigo:

Que falhe,

que tenha uma vida dura

e que se sinta só.

Numa espécie de ética da amizade que define assim:

“Só maltrato os amigos”.

E eu pergunto-me: Será ele o seu melhor amigo? Quem é aqui amigo de quem? Talvez como na canção brasileira: Agostinho amigo de José, José amigo de Luís, e Luís que ainda é muito novo para ser amigo seja de quem for e muito menos de si próprio…

Que leva um autor a escrever um livro de tão duros conselhos? Talvez o medo de… amolecer?

Vejamos:

“Estou a exigir muito de si? Quem lhe há-de exigir muito senão os seus amigos? Eles receberam o encargo de o não deixar amolecer e, pela minha parte, tenha você a certeza de que o hei-de cumprir. “

Não cabe mais nada neste já longo texto, mas não poderei deixar de assinalar, do esquema biográfico de José Navarro, onde muitos elementos se cruzam com a biografia do próprio Agostinho, a informação com que se remata num gesto de auto-redenção:

“Falhou: mas para nós, que tão bem o conhecemos, que descobrimos, sob as aparências, a bondade, a ternura, a humanidade de José Kertchy, a sua figura será sempre uma inspiração e a sua lembrança um motivo de comovida saudade.”

Também para mim, em particular a sua literária ferocidade.

 

  1. Para Álvaro Ribeiro “escola” e “escol” são aqui termos equivalentes.

 

Raio de Luz, Sampaio, Sesimbra, 31 de Outubro de 2015

VOZ PASSIVA. 66

06-11-2015 00:22

Completam-se nesta data cem anos sobre o dia da partida de José Pereira Sampaio (Bruno), a quem Álvaro Ribeiro considerou como o fundador da Filosofia Portuguesa. Na passada quarta-feira, no Palácio da Independência, em Lisboa, iniciou-se o Congresso "A Obra e o Pensamento de Sampaio Bruno", que por ontem e por hoje se prolonga, desta feita na cidade do Porto, berço do filósofo. "Sampaio Bruno e António Telmo" foi o título da comunicação apresentada ao Congresso por Pedro Martins, no dia da abertura dos trabalhos. Na mesma mesa, um outro membro do Projecto António Telmo. Vida e Obra, Rui Lopo, falou sobre "O Oriente, o Orientalismo e as religiões asiáticas na obra de Sampaio Bruno".

Do primeiro, publicamos agora o texto integral da sua comunicação. 

Sampaio Bruno e António Telmo

Pedro Martins

 

 

Foi-me proposto falar sobre Sampaio Bruno e António Telmo. Sob a aparente dualidade, há, porém, um terceiro termo. Um termo médio, implícito e unitivo. Refiro-me a Álvaro Ribeiro, nome incómodo e frequentemente silenciado, que tinha António Telmo na conta do seu melhor amigo, como numa carta, ainda em vida de José Marinho, nos deixou escrito.

Durante a década do seu período formativo, entre 1952, ano da publicação do primeiro artigo, “Lusismo e obscurantismo dos estudos clássicos”, e 1963, ano da edição do livro de estreia, Arte Poética, Telmo publica vinte e seis dispersos na imprensa periódica, abarcando matérias como a linguística, a filologia e a filosofia. Uma quinta parte é especificamente dedicada a Sampaio Bruno.

São eles:

 

Em 1955: “Problemas do estilo em Sampaio Bruno”, no Diário de Notícias.

 

E em 1957:

- Uma breve nota sobre “O Centenário de Sampaio Bruno”, no 57.

- “No centenário do nascimento de Sampaio Bruno”, no Diário de Notícias.

- “Sampaio Bruno, crítico literário”, no 57.

- “Sampaio Bruno”, no Diário Ilustrado.

 

Encontramos ainda outros escritos cujos títulos nos revelam nomes de autores: recensões no 57 sobre A Razão Animada, de Álvaro Ribeiro, e sobre Estética e Enigmática dos Painéis, de Afonso Botelho, além das “Notas sobre Teixeira Rego” (que, bom será lembrar, é um discípulo de Bruno) e do artigo “Como traduzir Henrique Bergson”, ambos no Diário de Notícias

Perante tal quadro, é inquestionável e significativo o predomínio da atenção prestada a Bruno na formação do pensamento de Telmo. Note-se que não há qualquer artigo especialmente dedicado a Leonardo Coimbra. Apenas algumas referências lhe são feitas nos escritos deste período.

É fora de dúvida a influência de Álvaro Ribeiro. António Telmo esteve sempre mais próximo do autor de Escola Formal do que de José Marinho, no plano da afeição como no do pensamento. Poderia invocar os testemunhos do próprio Telmo, aliás corroborados pela correspondência dirigida ao mestre. Irei, porém, considerar apenas o segundo aspecto, o teorético, para aqui enfatizar o denominador comum que os unia: o judaísmo ou, se se preferir, o cripto-judaísmo. Dizendo isto, estamos já a escrever a palavra kabbalah.

Entre os aspectos relevados nos primeiros escritos bruninos de Telmo conta-se o do estilo. Refutando a pretensa ilegibilidade de Sampaio Bruno, não deixa, todavia, de lhe reconhecer «um obscuro, raro e estranho estilo», aliás, «enigmático», pois que mostre, «na verdade, uma forma de escrever invulgar e singular». Mas nem por isso o considera difícil, «na medida em que se oferece numa linguagem comum, embora clássica». «Dialogado, intimista, erradio e errante», este estilo «conta-nos anedotas; narra, com minúcia, episódios autobiográficos; intercala, na discussão dos temas mais difíceis, expressões vulgares.» Bruno, diz-nos Telmo, «havendo estudado a prosa portuguesa, soube que há um processo português de filosofar, diferente dos processos utilizados por outros povos» e que, acrescentarei eu em síntese, privilegiando o paradigma barroco em detrimento do paradigma clássico segundo a lição de Eugénio d’Ors, se opõe às estruturas lineares e geométricas do racionalismo, helénico ou iluminista.

Se, como Telmo faz notar, já José Marinho, contrapondo o estilo de Leonardo ao de Bruno, a este último o incluíra no «grupo de pensadores que vivem na constante exigência, mais ou menos dolorosa, de expressar uma ideia remota e obscura, sempre fugitiva», Álvaro Ribeiro, citado pelo discípulo, n’A Arte de Filosofar irá, por seu turno, observar:

 

…se para muitos pensadores é certo que na obra escrita não exprimem algo do muito que queriam dizer, para Sampaio Bruno o aparentemente descosido da sua exposição significava, pelo contrário, a perseguição oculta das suas intuições essenciais.

 

 

A metáfora constitui-se então como pedra de toque de um estilo, como o de Bruno, propositalmente obscuro. No mesmo livro, que Telmo volta a citar, escreve ainda Álvaro Ribeiro:

 

A relacionação metafórica de imagens, perfeitamente admissível num pensador que atribuiu à revelação o processo único de aproximação da verdade, mas de difícil seguimento para os pensadores que desejam que o estilo filosófico represente literariamente os processos lógicos da indução e da dedução, igualmente prosaicos, dá causa a que se diga ser a obra de Sampaio Bruno quase completamente ilegível. 

 

Conclui Telmo:

 

Estamos aqui já muito além da opinião geral. Podemos agora atribuir uma significação à obscuridade do estilo de Sampaio Bruno. Muito longe de representar deficiência de expressão, exprime um processo metafórico de transcensão para o ignoto.


Quem quiser encontrar os fundamentos da razão poética de António Telmo, não deve deixar de os procurar aqui, no âmago da razão metafórica de Sampaio Bruno, precursora da razão animada de Álvaro Ribeiro e afinal tão tributária da conversação que o autor de O Encoberto cedo entabulou com Junqueiro, um e outro inscritos no centro do hexagrama segundo o qual, na visão télmica, se define a sizígia da filosofia portuguesa, pelo diálogo incessante da poesia com a filosofia.     

O que acaba de ser dito do estilo brunino coloca-nos o problema da hermenêutica, ali onde nos remete para o plano interior do esoterismo, de cujo estudo na tradição portuguesa Sampaio Bruno se irá aliás ocupar n’Os Cavaleiros do Amor – e aqui, uma vez mais, não será difícil entrever na obra pioneira do portuense o prelúdio da genial desocultação simbólica e filológica depois operada por António Telmo. Como escreve Miguel Real:

 

«Dito de um modo muito claro: o lugar de António Telmo na cultura portuguesa releva-se por ter sido o grande pensador da segunda metade do século XX, na esteira de Sampaio Bruno e Fernando Pessoa, a teorizar o esoterismo, atribuindo-lhe um estatuto de testemunho e prova tão positivo quanto a prova factual mais concreta, furtando estes estudos à parafernália de seitas e grupúsculos marginais ao saber instituído.»

 

E que a filosofia de Sampaio Bruno se constitua ela própria como a expressão exotérica de um esoterismo, que é o da kabbalah, eis um ponto que, como veremos, o crivo decifrador do autor da História Secreta de Portugal não deixou passar em claro. 

Se, na visão télmica, o estrangeirismo sintáctico e lexical de muitos intelectuais portugueses sugere a suposta ilegibilidade de Bruno, resultante do seu estilo peculiar, idênticos preconceitos regem a dificuldade de pensamento acusada nos seus livros. No entanto, logo em 1957, diz-nos Telmo:

 

Quanto ao pensamento de Sampaio Bruno, a todos é acessível. Julgamos ser lícito utilizar análoga argumentação à de que nos servimos para com o estilo. Emerge esse pensamento das profundidades da sabedoria popular, mas o filósofo vê-se obrigado a fazê-lo defrontar as filosofias estrangeiras que, no seu tempo, se tornaram seguidas entre nós. Se a nossa educação filosófica partisse dum fundamento popular e nacional, com vinte e oito anos qualquer de nós se encontraria apto a compreender o pensamento de Sampaio Bruno em toda a sua profundidade, pois aparecer-nos-ia como um prolongamento natural da nossa mais funda sabedoria. Infelizmente somos educados para reflectir as filosofias estrangeiras e, esquecidos de que a estas é aplicável análoga relação para com as origens, vemo-nos limitados a conhecer apenas o que nelas é susceptível de versão internacionalista. Na verdade, como se torna fácil o aristotelismo, o hegelismo, o bergsonismo, uma vez desligados da essencial relação com as origens, e como é difícil Sampaio Bruno, se o queremos moldar a uma visão internacionalista!       

 

Não esclarece Telmo as profundidades da sabedoria popular e nacional de que emerge o pensamento brunino. Mas é provável que pressuponha a tradição portuguesa tal como, dois anos antes, Álvaro Ribeiro a definira n’A Arte de Filosofar, pela confluência, entre nós, das três tradições abraâmicas, e, ainda aqui, poderíamos nós dizer: pela kabbalah. Uma kabbalah onde a influência islâmica se mostra diminuta. Como em Apologia e Filosofia se afirma:

 

A luta contra o islamismo não representa só um feito da história política: do facto nos cumpre considerar a causa e os efeitos. A repugnância pelo extremo monoteísmo islâmico e pela interpretação árabe do aristotelismo configuram-se nos documentos verídicos do pensamento português. Nem a razão se aliena dos processos gnósicos, sóficos e písticos, nem a fé deixa de persistir na variação dos graus da fenomenologia religiosa.

 

O desapreço em que Bruno tem o credo islâmico afere-se n’A Ideia de Deus: «O espaço que medeia entre o rude fetichismo naturalista do selvagem e o monoteísmo grosseiro dos maometanos resulta, comparado, relativamente pequeno.» 

Que, no Diário Ilustrado, António Telmo se afoite a considerar Bruno um «notável pensador hebraico», explica-se, a meu ver, pelo consciência cúmplice de uma comum filiação, adquirida na leitura meditada do portuense ilustre e mediada pelo ensino acroamático de Álvaro Ribeiro, que em 1969, n’A Literatura de José Régio, enfim assume com razoável clareza o pendor hebraizante do seu pensamento:

 

A nossa tese, recebida da filosofia da história que entre nós foi escrita por Sampaio Bruno, é a de que a principal causa da decadência dos povos peninsulares está maravilhosamente descrita no livro O Encoberto (1904). É portanto uma interpretação religiosa, referida ao primeiro sistema de filosofia da história, seja o providencialismo messiânico da Bíblia. A Península Ibérica decaiu por consequência da expulsão dos Judeus.

A influência cultural deste povo de monoteísmo transcendente, que não reconhece representação nem representante de Deus na Terra, povo de doutores fiéis a uma Doutrina que não impõem por métodos de proselitismo, mas, que defendem pelo sacrifício da própria vida, povo para o qual são pecados mortais só o homicídio, o adultério e a idolatria, povo que considera a aliança como padrão da vida religiosa, que antecede de um ritual belo, sério e santo o próprio acto conjugal, que santifica o sábado como dia de festa da família, que pratica a oração com simplicidade, modéstia e alegria, que espera pela era messiânica de redenção da humanidade, a influência de tal povo, repetimos, ainda não foi assaz reconhecida por etnógrafos e historiadores. Este povo que vive, respeita e pratica um admirável preceito, segundo o qual «o pai que não manda ensinar um ofício ao seu filho faz dele um pedinte ou um ladrão», trabalhando destituído de instituições políticas e fixado na vida civil ou privada, foi o educador filosófico e religioso de outros povos migrantes, exerceu uma influência civilizadora que permaneceu latente e oculta depois de ser expulso da Península Ibérica. Este factor é muito mais importante do que aquele que aparece sublinhado pelo materialismo histórico, ou seja, a falta de tais homens no comércio, na indústria e na agricultura, ocupações que poderiam ser igualmente distribuídas pelas várias camadas da população católica.

 

Dois anos decorridos, em carta para Álvaro Ribeiro, escrita de Sesimbra e datada de 28 de Abril de 1971, revela António Telmo:

 

Meu caro sr. Dr. Álvaro Ribeiro

 

Com o título Sampaio Bruno e a Tradição Hebraica Portuguesa, envio-lhe o que escrevi nestes dias a partir do que por cá tinha. Parece que o escrito tem unidade e configuração para livro. Fiquei com uma cópia. Agradeço que lhe dê o destino combinado. Não referi todas as citações aos livros, porque não disponho de todos estes e porque suponho que se pode fazer em trabalho sobre as provas. Se achar que convém fazê-lo já, agradecia que mo mandasse dizer.

Assino o livro com “António Carvalho”, por razões que o sr. Dr. Álvaro Ribeiro conhece…

(...)

 

Relembro que o destinatário da missiva se chamava Álvaro de Carvalho de Sousa Ribeiro, e por isso me dispenso de aclarar o alcance das palavras do seu remetente, António Telmo Carvalho Vitorino.

Por uma outra carta, de Valle de Figueiredo para António Telmo, de 9 de Junho de 1978, ficamos a saber que Álvaro Ribeiro, significativamente, lhe indicara o nome do discípulo dilecto para a escrita do prefácio à reedição de O Encoberto, de Bruno, que as Edições do Templo tencionavam então concretizar. A reedição gorou-se, mas o prefácio ficou. Veio a lume em 2005.

Este escrito constitui, da parte de Telmo, o primeiro grande tentâmen hermenêutico do pensamento de Bruno, que, segundo o autor de A Aventura Maçónica, no seu livro de 1904

 

(…) parece querer dizer-nos (…) que o movimento sebastianista, organizado em torno das profecias de Gonçalo Eanes Bandarra, foi uma criação judaica, de fundo messiânico, lançada contra a Inquisição. Chega mesmo a sugerir, nas últimas páginas do livro, que as profecias não se refeririam a D. Sebastião, como mais tarde um D. João de Castro e um Padre António Vieira viriam dizer, mas aludiam à acção de David Reubeni, misterioso judeu alemão, que terá estado em Portugal no reinado de D. João III, era protegido pelo papa Clemente VII, dizia-se vindo do Oriente, de onde o enviara o Preste João, e tentara converter ao judaísmo o próprio imperador Carlos V através do seu discípulo Salomão Malcho, o português Diogo Pires.

   

A par daquele que o põe ao serviço da ideia católica de domínio universal, o sebastianismo, na leitura télmica de Bruno, ganha um outro sentido, em que é já a ideia judaica de fraternidade universal que o sustenta. Este segundo sentido, na visão que Telmo projecta sobre O Encoberto,

 

terá sido animado e movimentado por uma organização secreta, depois conhecida cá fora por Maçonaria, tornada activa em Portugal, segundo o mesmo Bruno, no tempo de D. João III, por intervenção do referido David Reubeni, que já ostentava um avental com os sacros símbolos da Ordem.

 

No plano do culto, o propósito de Reubeni, segundo Telmo lê em Bruno, seria o de, pela kabbalah, a Igreja se ligar à Maçonaria. E o socialismo, que O Encoberto patenteia, seria já uma projecção política desta realidade no plano da civilização. Vale a pena citar António Telmo, por mais que as suas palavras contrariem quantos, à esquerda e à direita da cruz, por desencontradas razões, porfiam em assinar à filosofia portuguesa um fundamento reacionário:

 

Podemos discordar de Sampaio Bruno, mostrando como o socialismo constitui uma degenerescência da Maçonaria. Aqueles que, de um ponto de vista esotérico ou simplesmente religioso, formam uma imagem minorativa da Maçonaria porque o socialismo ateu ou igualitário dela derive ou nela se fundamente, deveriam pensar que, também para os católicos, os caminhos sinuosos do clero não alteram a perpétua verdade da Igreja fundada por Pedro. Todavia, Sampaio Bruno vê no socialismo democrático subordinado à ideia suprema de República a aplicação ao progresso da humanidade dos princípios sóficos da Maçonaria. Assim como Leonardo Coimbra dizia ser a “mecânica” o socorro de Deus enviado ao Nada, quererá talvez significar Sampaio Bruno que o socialismo constitui o socorro que o todo homogéneo dos seres integrados envia ao nada dos seres decaídos. O fim da Maçonaria no plano político será assim a participação dos membros dispersos e dilacerados da humanidade numa grande e luminosa unidade interior. Nem um só homem poderá ficar fora do processo universal de realização da Bondade. Todos os homens, pela democracia, serão chamados a cooperar activamente na política, assumindo-se cada um como uma parcela luminosa do universo, pois, enquanto emanação superior, conquanto esquecida de si, possui a potencial dignidade de um “sacerdote-rei” maçon, de um arquitecto. Há então que correr o risco que consiste na subversão dos elementos superiores pelos elementos inferiores. Mais do que o risco, há que viver essa subversão sem a cobardia do egoísmo, a não ser que se aceite a ideia pessimista de que para sempre haverá divisão entre os que sabem e os que não sabem, entre os que podem e os que não podem.



A asserção télmica de que «o socialismo, em baixo, abrangerá tanto camitas como semitas no mesmo movimento de aperfeiçoamento moral», e bem assim a referência ao judeu português Pascoal Martins, por mor da formulação da tríade Liberdade, Igualdade e Fraternidade pelo seu discípulo Saint-Martin, preludiam já, neste escrito de 1978, algumas das coordenadas que, uma década depois, irão nortear o artigo “Sampaio Bruno, «o Encoberto», marco miliário da ideação télmica, aliás contemporâneo da axial Filosofia e Kabbalah.

Dada a ressurgência do ancestral conflito étnico entre camitas e semitas que o pavor inquisitorial revelara a Bruno, António Telmo vê nos conversos um veículo do recalcamento, debatendo em agonia os arquétipos contraditórios do velho e do novo credo, aquele relegado para o subconsciente. Esboçando uma tipologia marrana próxima daquela que já encetara no ensaio sobre “As Tradições Heterodoxas da Filosofia Portuguesa”, e que só com o prefácio ao livro de Alexandre Teixeira Mendes sobre Barros Basto, de 2007, se dirá perfeita, Telmo considera várias espécies de cristãos-novos, dos fanáticos que realizam «o mais fundo recalcamento da religião que receberam dos seus pais» aos dissimulados que continuam às ocultas a praticar a religião antiga, sem esquecer «a hipocrisia que leva a uma prática automática, sem crença, dos novos ritos e que degenerou, na sucessão das gerações, em materialismo ateu».

Há ainda uma quarta espécie, aquela a que propriamente responde O Encoberto. A dos marranos que, pela harmonização gnósica dos dois credos, alcançam uma doutrina superior. É nesse veio oculto que deveremos inscrever o cabalista David Reubeni e o seu discípulo português Diogo Pires, e por isso Bruno, nas páginas finais de O Encoberto, se demora a relatar o episódio em que estes

 

tentaram convencer o Papa a abolir a Inquisição e convencê-lo com a ideia de se trabalhar para uma síntese, verdadeiramente católica, das duas religiões. É também nessas páginas que rememora o ensino em França do judeu português Pascoal Martins, que profundamente influenciou o católico ultramontano Joseph de Maistre.

 

Do primeiro lembrará Telmo, no livro cripto-maçónico de 2006, ser sua a intenção de, também pela Cabala, ligar a tradição judaica à tradição cristã. E n’“As Tradições Heterodoxas da Filosofia Portuguesa” anotara já com incisão o surpreendente, por imprevisto, maçonismo do autor dos Serões de São Petersburgo.

Se a compatibilidade da cabala martinista com a filosofia de Bruno, que Telmo tanto frisa, por consabida não carece aqui de desenvolvimentos; e se a leitura d’A Ideia de Deus à luz da kabbalah de Isaac Lúria, já sugerida n’“As Tradições Heterodoxas…”, e plenamente demonstrada no prefácio que o filósofo redige para a reedição, em 1998, d’O Brasil Mental de Bruno, constitui mais uma façanha da sua argúcia sagaz, o que a este propósito importa firmar é o modo como, na visão télmica, a teodiceia e a filosofia da história de Sampaio Bruno oferecem expressão exotérica ao esoterismo da kabbalah.

Em livro inédito sobre a gnose judaica de Álvaro Ribeiro, prestes a sair a lume no IV Volume das suas Obras Completas, António Telmo vê no aristotelismo do mestre a expressão exotérica do esoterismo que a síntese judeo-cristã da kabbalah portuguesa representa. Significativamente, o jovem Telmo, escrevendo em 1957, refere-se por este modo a Sampaio Bruno:

 

(…) criticando o pitagorismo, que parte da noção do nada, subordinando à teologia as outras ciências que, com ela, constituem a filosofia, estruturando a física pelo estudo do movimento a partir da queda, relacionando a forma da natureza com a palavra da alma, concebendo a causa final como primeira das causas, cria uma filosofia caracterizadamente aristotélica. Discute-se muito, em certos meios, as características do nosso pensamento. Quem ler os livros do Estagirita, não só através dos comentários cristãos e islâmicos, mas também hebraicos, logo descobrirá o fio que permite seguir aristotelicamente o pensamento de Bruno, ou seguir bruninamente o pensamento de Aristóteles. Tanto é certo que somos aristotélicos sempre que lemos, traduzimos e interpretamos o notável pensador hebraico pelas verdadeiras categorias da língua portuguesa.

  

Uma última nota sobre “Sampaio Bruno, «o Encoberto» e a leitura que nele se faz d’A Ideia de Deus. O que ali mais importa reter é a caracterização da kabbalah por oposição à gnose, ou ao gnosticismo, considerado este como uma tendência para a desumanização, palavra que deve ser entendida «em relação ao homem e à mulher e ao filho de ambos». Está aqui bem patente, pela recusa do corpo, do sexo, da criação e da vida, a oposição à matriz judaica de santificação do corpo que enforma a kabbalah, entendida esta, na senda de Bruno, pelo prisma da vivificação e do des-envolvimento da matéria que, não sendo eterna, antes nos aparece impregnada, animada e purificada pelas emanações espirituais que, no palco terrenal do mundo e da história, a subtilizam e redimem. Assim se recusa o decisivo predomínio da elevação da alma que, em fuga ao mundo, segundo André Benzimra, caracteriza funcionalmente o cristianismo, e que o radicalismo gnóstico leva às últimas consequências. Daí que o filósofo da razão poética tome partido por Álvaro Ribeiro em detrimento de José Marinho, para valorizar a política como a primeira das ciências, asserção que o autor da Teoria do Ser e da Verdade, caracterizado como um céptico e um místico no juízo alvarino, não estaria em condições de aceitar. A filosofia alvarina define-se, desde o início, como um pensamento que se realiza entre a contemplação e a acção, e não entre a contemplação e o Ser. Outro tanto se poderá dizer de Sampaio Bruno e António Telmo. 

UNIVERSO TÉLMICO. 30

05-11-2015 23:23

Quem tem medo de Sampaio Bruno?

Pedro Martins

Provavelmente, este artigo de António Valdemar, dado à estampa no Público no passado dia 2, fez mais, junto do povo português, pela divulgação da vida e da obra de Sampaio Bruno, de quem por estes dias se comemora o centenário da morte, do que qualquer outra acção ou iniciativa de que há memória nas últimas décadas. Quantos, por qualquer forma, se reclamam do movimento da Filosofia Portuguesa, devem por isso estar-lhe gratos, com humildade e sem sectarismo.

Com humildade. Como convém, sempre que de um homem como Sampaio Bruno se fala. Isto o sabem quantos verdadeiramente passaram pelas mãos de um mestre. Ou pelas mãos de um verdadeiro mestre. No caso pessoal do compilador socialista-anarquista de O Brasil Mental, que de si mesmo confessa, n'A Ideia de Deus, nada mais ser do que um jacobino, nem sequer lhe foi necessário passar em loja pelas mãos dos mestres da Ordem Maçónica, cuja doutrina, de evidente origem judaica, demoradamente exalta nas páginas de O Encoberto, para saber que quem se humilha será exaltado e quem se exalta será humilhado.

Sem sectarismo. Podemos, aqui e ali, concordar com António Valdemar ou dele discordar. Mas não lhe devemos negar o talento vivo e telúrico de uma prosa ágil, sã e sábia. António Valdemar não se confunde com o cinzentismo servil do modo funcionário de viver.

Tem inteira razão António Valdemar ao reclamar ambiciosamente comemorações nacionais para Sampaio Bruno. Comemorações para o povo, com o povo, e que ao povo devolvam Bruno. O povo que, em cada momento, encarna o fluir da nação no chão da pátria. Pensará, por certo, Valdemar no envolvimento das estruturas administrativas, das principais instituições culturais do país, da comunicação social. E todos temos de reconhecer que a realidade presente se encontra ainda muito longe do que seria desejável.

Já este ano, a Biblioteca Nacional, instância de reconhecimento que representa a República, deu um importante contributo para as comemorações deste centenário brunino, com a realização de uma exposição bibliográfica e documental. Mas não poderemos exigir demasiado a uma instituição que, apesar das dificuldades com que se debate, continua a prestar aos seus leitores – hoje mesmo, ali trabalhando na investigação biográfica de António Telmo, o pude comprovar – um serviço de excelência. Nela se encontra sempre uma porta aberta às sinergias da boa vontade. Assim tem sido, por exemplo, com os Congressos que integram o triénio pascoalino; ou com as comemorações dos 250 anos do nascimento de Bocage, que por ali têm passado, exemplarmente promovidas pelo Centro de Estudos Bocageanos – e aqui será justo realçar o inexcedível entusiasmo de um fraterno amigo: Daniel Pires – e pela Câmara Municipal de Setúbal. A par das conferências e das exposições que, quer em Lisboa, quer em Setúbal, quer por esse mundo fora, começaram a ter lugar, importa salientar um impressionante esforço editorial, de parceria com a Imprensa Nacional – Casa da Moeda.

Na verdade, a melhor forma de comemorar um autor é editá-lo, ou reeditá-lo. Sem isso, de pouco valerá estudá-lo e debatê-lo apressadamente em areópagos mais ou menos cerrados. Pessoalmente, tenho pena de que Sampaio Bruno e Álvaro Ribeiro não tenham tido, nos últimos anos, fortuna editorial idêntica à que Leonardo Coimbra e José Marinho conheceram. É óptimo que estes mereçam a edição de obras completas, é de lamentar que aqueles continuem parentes pobres. Tanto mais que Sampaio Bruno há muito caiu no domínio público e alguns dos seus títulos – casos de A Questão Religiosa ou Portugal e a Guerra das Nações – nunca foram reeditados desde o seu surgimento, há mais de cem anos! Não fora a acção patriótica de um Paulo Samuel ou de um Joaquim Domingues, e o panorama encontrado seria ainda bem pior.

Claro que não estranhamos o sacer esto que sobre Álvaro Ribeiro há muito se abateu, mormente na Universidade. E, no entanto, nenhum outro filósofo português melhor estudou, interpretou e difundiu o pensamento brunino, nenhum outro filósofo português tão fielmente o restituiu à sua verdadeira matriz: a da herança judaica da cultura portuguesa. Por Sampaio Bruno, Álvaro Ribeiro e António Telmo passa a catena aurea da kabbalah e do aristotelismo, ali onde esoterismo e exoterismo formam as partes do todo da filosofia portuguesa.

Está certa, nos tempos que correm, a preocupação de António Valdemar. Preocupação tanto mais razoável quanto as comemorações dos vinte anos da morte de um outro pensador português, Agostinho da Silva, este dotado de bem maior notoriedade junto do povo, só conheceram um princípio de expressão nacional, em 26 de Novembro de 2014, graças à actuação conjugada do Projecto António Telmo. Vida e Obra, do Centro de Estudos Bocageanos e da Biblioteca Nacional de Portugal.

No seu belo escrito da passada segunda-feira, lembra António Valdemar que por longo tempo se viu Sampaio Bruno, o único homem que, em Portugal, segundo Fernando Pessoa, mostrava compreender, impedido de ingressar na Academia das Ciências, ainda que esta, mais tarde, reparasse o erro, antes de abrir indiscriminadamente a porta a carreiristas intelectuais e oportunistas políticos. E isto por uma só razão: a falta de habilitações que só um curso universitário lhe proporcionaria.

Há muito que, no Porto, nos nossos dias, um homem vem trabalhando com denodo, rigor e paixão no inventário e na recolha dos dispersos de Sampaio Bruno. São milhares e milhares de páginas que morosa, pacientemente, por ele vêm sendo resgatadas. Tal como Bruno, não o credita um título académico. Tal como Bruno, não se põe em bicos de pés. Está destinado à glória humilde dos que se não confundem com os carreiristas intelectuais e os oportunistas políticos. Chama-se este homem simples, digno e generoso José Cardoso Marques e dá ao Projecto António Telmo. Vida e Obra a honra de o integrar. Estará connosco em Sesimbra, no próximo dia 28, na sala onde António Telmo fez a sua derradeira conferência. Connosco e com Bruno. Sempre.

VERDES ANOS. 17

29-10-2015 11:10

Durante o seu período formativo, que culminou com a edição de Arte Poética, António Telmo dedicou cinco escritos de imprensa a Sampaio Bruno, quatro dos quais foram já publicados nesta página. São eles "Problemas do estilo em Sampaio Bruno", "No centenário do nascimento de Sampaio Bruno", "Sampaio Bruno, crítico literário" e "Sampaio Bruno", este último comentado por Paulo Samuel, que será um dos oradores do Congresso A Obra e o Pensamento de Sampaio Bruno, a realizar-se, em Lisboa e no Porto, já na próxima semana, entre 4 e 6 de Novembro. Entre os participantes contam-se ainda outros membros do Projecto António Telmo. Vida e Obra: Manuel Ferreira Patrício, Rui Lopo, Samuel Dimas e Pedro Martins, que falará sobre "Sampaio Bruno e António Telmo". 

Completando hoje a publicação dos escritos télmicos da juventude sobre Sampaio Bruno, aqui deixamos o escrito de António Telmo no primeiro número do 57 sobre "O Centenário de Sampaio Bruno". 

    

 

O Centenário de Sampaio Bruno[1]

 

Através de excertos de livros, ensaios e artigos publicados recentemente em Portugal e no estrangeiro, «57» oferece aos seus leitores um panorama da actualidade cultural, chamando a atenção para obras que merecem ser lidas e meditadas, para problemas que se inserem entre as maiores preocupações da espiritualidade moderna, enfim, para aspectos valorativos da cultura portuguesa segundo o critério da sua originalidade, da sua afirmação e do seu progresso. Saibamos ler as obras estrangeiras, não como figuras dogmáticas a seguir obedientemente, mas como contributos para a afirmação do nosso próprio carácter. Saibamos distinguir, na produção cultural portuguesa, o que é meramente importado do que constitui afirmação pessoal e nacional.    

 

O centenário do nascimento de Sampaio Bruno para o qual chamou pela primeira vez a atenção a Gazeta Literária do Porto, foi até agora comemorado por alguns diários citadinos, e algumas revistas, como o Diário Popular, o Diário de Notícias e a Brotéria, sendo, porém, justo destacar o Comércio do Porto, por ter dedicado ao fundador da filosofia portuguesa uma página inteira. Infelizmente, porém, a generalidade dos escritores que subscreveram os vários artigos desse número, por motivos óbvios a qualquer inteligência medianamente informada sobre a nossa vida cultural na sua relação com os sentimentos negativos, preferiu encarar Sampaio Bruno apenas como o primeiro doutrinador da República Portuguesa a meditar a sua obra e a sua filosofia. É certo que o autor da Ideia de Deus é um pensador que se torna difícil para os espíritos formados, directa ou indirectamente, em escolas de filosofia estrangeira. O racionalismo escolástico dum Agostinho Veloso ou o universitarismo anedótico dum Vieira de Almeida ou o enciclopedismo francês de um Joel Serrão ou o filosofismo pseudo-moderno dum Eduardo Lourenço ou o intelectualismo universitário dum Delfim Santos constituem fortíssimo obstáculo à apreensão dum pensamento radicado em categorias nacionais. Em plena decadência do positivismo tal incompreensão só pode ter duas significações: ou é má vontade ou gosto de persistir em formas inactuais.

Perante este quadro, os admiradores do filósofo foram suficientemente compensados pelo artigo de José Marinho, também incluído no Comércio do Porto, artigo que é o produto duma meditação séria, digna e incomparável, apenas atenta ao germinar fundo do pensamento e dessa atenção sabendo extrair uma exegese que, por vezes, penetra no domínio da hermenêutica. «57» transcreve, por isso, um excerto dessa admirável página de filosofia portuguesa. – A. T.

 

António Telmo    


[1] 57, ano I, n.º 1, Lisboa, Maio de 1957, p. 12.

 

UNIVERSO TÉLMICO. 29

27-10-2015 11:11

De Rui Arimateia, membro do Projecto António Telmo. Vida e Obra, publicamos hoje o ensaio que serviu de base à sua comunicação sobre "Fernando Pessoa e a Maçonaria" na Tarde Télmica do passado sábado, dia 24, na Biblioteca Municipal de Sesimbra, no âmbito do Colóquio "No Centenário do Orpheu", que contou ainda com a participação de Miguel Real, Elísio Gala e António Carlos Carvalho. 

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Fernando Pessoa e a Maçonaria

Rui Arimateia

 

Sê plural como o Universo! – Fernando Pessoa

 

Atrevendo-me a abordar a complexa temática sobre este grande Senhor da Língua e da Cultura Portuguesas, constato que algumas questões ainda se encontram teimosamente por clarificar nos nossos espíritos indagadores:

Foi Fernando Pessoa iniciado maçon? Se sim onde recebeu a iniciação? Quem, ou que Ordem Maçónica e Iniciática lhe conferiu a iniciação? Terá recebido a iniciação por comunicação directa? Foi iniciado em Portugal? Qual a ideia de Maçonaria que transparece na obra do Poeta?

Só o Poeta poderia cabalmente responder. Não o fez claramente em vida. Deixou adivinhar algumas afinidades publicamente e deixou um imenso espólio com fragmentos de documentos muito importantes mas que, embora clarificadores pelos conteúdos, muitos deles não se encontravam datados nem contextualizados. As leituras que se fizerem dos mesmos serão sempre hipotéticas. Contudo na base de toda a Ciência encontram-se um ou vários sistemas de hipóteses que vão ao longo do tempo e do caminho, construindo, transformando e clarificando a Obra.

São dezenas e dezenas os fragmentos documentais sobre Maçonaria, Iniciação e Ocultismo existentes no espólio de Fernando Pessoa e que têm sido trabalhados por inúmeros ilustres investigadores portugueses e estrangeiros. É uma imensa manta de retalhos onde os simbolismos se entrecruzam e se “contaminam” uns aos outros, enriquecendo e complexificando a obra pessoana.

Os excertos e os fragmentos pessoanos agora por mim trabalhados e apresentados foram tão só alguns daqueles que me tocaram mais profundamente sobre as matérias em questão – maçonaria e iniciação. É esta uma das muitas abordagens possíveis à problemática e as linguagens que privilegiei são mais poéticas e ritualísticas do que descritivas e explicativas. Desculpem-me o atrevimento!

Cristianismo, Judaísmo, Kabbalah, Maçonaria, Ocultismo, Paganismo, Astrologia, Rosa-Crucismo, Templarismo, Teosofia... Todos estes sistemas de Conhecimento-Sabedoria enformaram a(s) personalidade(s) e a descomunal obra literária, filosófica e poética, de Fernando Pessoa.

Assim, segundo se depreende dos seus escritos, Fernando Pessoa foi Maçon, foi Rosa Cruz, foi Templário, foi Teósofo, foi Ocultista, foi Astrólogo… – uma vez que todos estes sistemas de sabedoria o tocaram profundamente e “formataram” o seu pensamento, a sua sensibilidade e a sua personalidade.

Independentemente de qualquer sistema filosófico, sem dúvida que Fernando Pessoa terá sido um Iniciado nos Mistérios da Vida e da Morte, no grande sentido destas palavras... os seus escritos, a sua obra, a sua Poesia principalmente, assim nos levam a concluir.

Intuímos igualmente que Fernando Pessoa terá sido um ser extremamente introvertido, ensimesmado, um “novelo enrolado para dentro”, tal como o via Álvaro de Campos. Mas, simultaneamente, Pessoa era um ser pleno de autenticidade e de coragem. Lembremo-nos de todo o problemático processo inicial da revista Orpheu em 1915 e das posturas frontais e decisivas assumidas pelo Poeta e pelo seu heterónimo Álvaro de Campos. Fernando Pessoa foi, de facto, um assumido livre-pensador durante toda a sua relativamente curta vida.

Pelos inúmeros fragmentos sobre Maçonaria que se encontram no espólio pessoano, poderemos aferir que: a obediência ritualística acontecia no seu íntimo, o ritual vivia-o em si próprio, a Iniciação aconteceu em si, pois como ele próprio referiu, “quando o discípulo está pronto o mestre está pronto também”

[Subsolo– Fragmentos alinhavados por Fernando Pessoa, in Centeno – FERNANDO PESSOA E A FILOSOFIA HERMÉTICA, 1985, p.40].

 

Era fundamental para Fernando Pessoa a constatação de que:

– Tudo está ligado a tudo... ou, tal como é expresso nas palavras inspiradas de Hermes Trismegistos: “O que está embaixo é como o que está em cima, e o que está em cima é igual ao que está embaixo, para realizar os milagres de uma única coisa…”

 

– A Unidade da Vida é uma realidade sempre presente para a evolução natural e harmoniosa de todos os Seres Vivos e do próprio Planeta;

 

Não há Religião superior à Verdade, encarando todas as manifestações do génio humano – religiosas, sociológicas, antropológicas, filosóficas e científicas…– numa perspectiva Teosófica; como ele o afirmou através da sua poesia – “Tudo é verdade e caminho”!

 

A morte é a curva da estrada,

Morrer é só não ser visto.

Se escuto, eu te oiço a passada

Existir como eu existo.

 

A terra é feita de céu.

A mentira não tem ninho.

Nunca ninguém se perdeu.

Tudo é verdade e caminho.

 

[Fernando Pessoa - 23. 5.1932]

 

Por outro lado, considero essenciais – para mim são-no – as utilizações de três ferramentas metodológicas para a desocultação dos significados mais profundos do Espírito Religioso do Poeta e que ele próprio utilizou com mestria:

 

1.      A Poesia – pois esta permite falar a língua dos Deuses;

2.      A Imaginação Criadora – permite ouvir e entender a voz dos Deuses;

3.      A Analogia – permite compreender a intenção mais profunda nas diversas manifestações dos Deuses.

 

A Palavra, para Fernando Pessoa, é uma criação superiormente inspirada – do Espírito, do Logos, de Deus, da Natureza, da Vida Una… – que anima interiormente o homem e a mulher e se manifesta para a realização e compreensão de autênticas maravilhas.

 

Resumindo, e utilizando as próprias palavras de Fernando Pessoa (Subsolo):

 

“(…).

Todos os symbolos e ritos dirigem-se, não á intelligencia discursiva e racional, mas á intelligenciaanalogica. Por isso não ha absurdo em se dizer que, ainda que se quisesse revelar claramente o oculto, se não poderia revelar, por não haver para elle palavras com que se diga. O symbolo é naturalmente a linguagem das verdades superiores à nossa intelligencia, sendo a palavra naturalmente a linguagem d’aquellas que a nossa intelligencia abrange, pois existe para as abranger.

(...).

O primeiro capitulo trata das iniciações e expõe as trez leis da «vida oculta» - (1) o que está em baixo é como o que está em cima, (2) quando o discípulo está prompto, o mestre estáprompto também, (3) cada coisa tem cinco sentidos.

(…).”

[in Centeno, FERNANDO PESSOA E A FILOSOFIA HERMÉTICA, 1985, pp. 37-38 e 40]

 

 

Fernando Pessoa comunicava numa linguagem superiormente inspiradora quando nos legou o poema que de seguida se transcreve e que nos permite a compreensão de uma Religião-Sabedoria Universal totalmente integrada na Natureza e nos apresenta a descrição de um Templo oriundo das mais remotas profundezas e origens do homem religioso:

 

Oscila o incensório antigo

Em fendas e ouro ornamental.

Sem atenção, absorto sigo

Os passos lentos do ritual.

 

Mas são os braços invisíveis

E são os cantos que não são

E os incensórios de outros níveis

Que vê e ouve o coração.

 

Ah, sempre que o ritual acerta

Seus passos e seus ritmos bem,

O ritual que não há desperta

E a alma é o que é, não o que tem.

 

Oscila o incensório visto,

Ouvidos cantos estão no ar,

Mas o ritual a que eu assisto

É um ritual de relembrar.

 

No grande Templo antenatal,

Antes de vida e alma e Deus...

E o xadrez do chão ritual

É o que é hoje a terra e os céus...

 

[Fernando Pessoa - 22. 9.1932]

 

*

*    *

 

Em relação à questão sobre Fernando Pessoa e a Maçonaria Portuguesa do seu tempo, recorremos ao auxílio de António Arnaut, que assumiu as funções de Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano entre 2002 e 2005.

É certo que não existe rasto algum da sua passagem pelo Grande Oriente Lusitano, a única Obediência maçónica portuguesa (publicamente conhecida) existente durante a vida de Pessoa.

Diz-nos António Arnaut que:

“(...).

A verdade, porém, é que se Fernando Pessoa se tivesse filiado no GOL haveria, seguramente, memória histórica desse facto. Acresce que há dois obreiros da Obediência que dobraram há muito os 100 anos, (...), que não têm conhecimento dessa filiação. Refiro-me aos meus Irmãos Fernando Vale e Emídio Guerreiro, iniciados, respectivamente, em 1923 e 1924. Ambos poderiam, pois, ter convivido com o Poeta, entre Colunas, se ele tivesse conhecido a flor da acácia.”

(...).”

[Nota: Fernando Vale e Emídio Guerreiro, faleceram após este depoimento ter sido escrito, o primeiro a 26 de Novembro de 2004 e o segundo a 29 de Junho de 2005]. [Arnaut, 2005, p.6].

 

Por outro lado, Fernando Pessoa, no seu artigo em defesa da maçonaria e publicado no “Diário de Notícias” no dia 4 de Fevereiro de 1935, criticando o projecto-lei que visava ilegalizar as assim denominadas “associações secretas”, no caso concreto, o Grande Oriente Lusitano, escreveu:

“(...).

Começo por uma referência pessoal, que cuido, por necessária, não dever evitar. Não sou maçon, nem pertenço a qualquer outra Ordem semelhante ou diferente. Não sou, porém, anti-maçon, pois o que sei do assunto me leva a ter uma ideia absolutamente favorável da Ordem Maçónica. A estas duas circunstâncias, que em certo modo me habilitam, a poder ser imparcial na matéria, acresce a de que, por virtude de certos estudos meus, cuja natureza confina com a parte oculta da Maçonaria – parte que nada tem de político ou social –, fui necessariamente levado a estudar também esse assunto – assunto muito belo, mas muito difícil, sobretudo para quem o estuda de fora. Tendo eu, porém, certa preparação, cuja natureza me não proponho indicar, pude ir, embora lentamente, compreendendo o que lia e sabendo meditar o que compreendia. Posso hoje dizer, sem que use de excesso de vaidade, que pouca gente haverá fora da Maçonaria, aqui ou em qualquer outra parte, que tanto tenha conseguido entranhar-se na alma daquela vida, e portanto, e derivadamente, nos seus aspectos por assim dizer externos.

(...).”

[Quadros, Textos de Intervenção..., 1986, p.148].

 

Na Nota Biográfica, escrita pelo próprio Fernando Pessoa também de 1935, podemos ler:

“(...).   

Posição religiosa: Cristão Gnóstico, e portanto inteiramente oposto a todas as Igrejas organizadas, e sobretudo à Igreja de Roma. Fiel, por motivos que mais adiante estão implícitos, à Tradição Secreta do Cristianismo, que tem íntimas relações com a Tradição Secreta em Israel (a Santa Kabbalah) e com a essência oculta da Maçonaria.

Posição iniciática: Iniciado, por comunicação directa de Mestre a Discípulo, nos três graus menores da (aparentemente extinta) Ordem Templária de Portugal.

(...).”

[Quadros, Escritos Íntimos..., 1986, p.253].

 

Num outro importante e explícito fragmento deixado por Pessoa, lemos:

 

“(1) Uma Ordem iniciática é verdadeiramente uma Ordem só quando está em actividade — isto é, quando tem abertos os seus templos, ou o seu templo único, e realiza sessões e iniciações em ritual vivido [?]. Quando em dormência, ou vida latente e simplesmente transmissa, não é propriamente uma Ordem, mas tão-somente um sistema de iniciação, avanço e completamento. São os três termos que competem à conferição, por exemplo, dos três Graus Menores da Ordem Templária de Portugal.

(2) Por isso eu disse, legitimamente, que não pertencia a Ordem nenhuma. Não podia legitimamente dizer que não tinha nenhuma iniciação. Antes, para quem pudesse entender, insinuei que a tinha, quando falei de «uma preparação especial, cuja natureza me não proponho indicar.» Essa frase escapou, e ainda mais o seu sentido possível, aos iledores anti-maçónicos. Só posso pois dizer que pertenço à Ordem Templária de Portugal. Posso dizer, e digo, que sou templário português. Digo-o devidamente autorizado. E, dito, fica dito.

Ora é à luz dos conhecimentos que recebi pelos três Graus Menores da Ordem Templária que pude ler com entendimento livros e rituais maçónicos. Ausentes esses conhecimentos, estaria lendo às escuras.

A iniciação maçónica — que é uma iniciação do primeiro nível — é dada através dos rituais e dos símbolos; os discursos que acompanham o ritual nada conferem. Uns são propositadamente simples e triviais, para que o candidato, se é apto e digno, se vire d’eles para a parte vital do grau; outros são propositadamente confusos e contraditórios, para que obriguem o candidato, se nele há alma iniciática, a meditar, escolher, e, por fim, achar; (...).

 Segue de aqui que a leitura, por profanos, de rituais maçónicos, impressos ou manuscritos, os deixa no fim da leitura no mesmo estado de trevas em que estavam no princípio. Falta-lhes a luz com que dissipem essas sombras propositadas; o fio com que, espalhado no solo quando entram no labirinto, de novo os reconduza à entrada.

 O entendimento dos símbolos e dos rituais maçónicos não pode ser obtido senão por iniciação directa, ou, excepcionalmente, por qualquer preparação espiritualmente equivalente que permita ao simples leitor de rituais visionar emotivamente as cerimónias, sentir no coração aquela vida própria com que os símbolos são almas. Fora d’isso há só uma noite sem madrugada.

s. d.

[in Teresa Rita Lopes, Pessoa Inédito, 1993, p.196].

 

Ainda no artigo no «Diário de Notícias», afirma o Poeta:

“(...). Deixe o Sr. José Cabral a Maçonaria aos mações e aos que, embora o não sejam, viram, ainda que noutro Templo, a mesma Luz. (...).”

 

[in Quadros, Textos de Intervenção..., 1986, p.155].

 

Constatamos ainda que a epígrafe do poema «Eros e Psique», datado de 1934, foi retirada do “Ritual do Grau de Mestre do Átrio na Ordem Templária de Portugal”:

«... E assim vedes meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.».

            Finalmente, auxilio-me do trabalho de George Rudolf Lind, que no seu livro Estudos sobre Fernando Pessoa [1981, p. 285], cita um extraordinário e pouco conhecido trecho do ritual de um dos primeiros graus da Ordem Templária, e que se encontra no espólio pessoano da Biblioteca Nacional de Lisboa:

 

“Recebestes a luz da Ordem em que éreis cego. Ides receber agora a sua Veste de que éreis nu. Agora que recebestes a Luz e a Veste da Ordem, estareis lembrado de que vos falta a Guarida da Ordem. A luz não vos deu mais que luz; mas a luz passa e vem a noite e vós não a tendes. A Veste não vos deu mais que a Veste; por baixo dela sois nu como éreis. A Guarida porém vos dará o onde tenhais luz ainda que falte luz de fora, o onde tenhais veste, pois tendes abrigo, ainda que na guarida estejais nu... Cego, nu e pobre entrastes na vida. Cego, nu e pobre entrareis na morte. Não há, porém, vida nem morte: Não há, Neófito, senão vida. O que vos sucedeu ao nascer, vos sucederá ao morrer: entrareis na vida. Isto é a verdade: o entendimento é convosco, assim como o regrar-vos por ela como deveis.”

 

*

*   *

 

 

E é o próprio Fernando Pessoa, o Poeta, que nos traduz o anterior texto ritualístico através da sua extraordinária linguagem poética:

 

Iniciação

 

Não dormes sob os ciprestes,

Pois não há sono no mundo,

....................................................

O corpo é a sombra das vestes

Que encobrem teu ser profundo.

Vem a noite, que é a morte,

E a sombra acabou sem ser.

Vais na noite só recorte,

Igual a ti sem querer.

Mas na Estalagem do Assombro

Tiram-te os anjos a capa.

Segues sem capa no ombro,

Com o pouco que te tapa.

Então Arcanjos da Estrada

Despem-te e deixam-te nu.

Não tens vestes, não tens nada:

Tens só teu corpo, que és tu.

Por fim, na funda caverna,

Os Deuses despem-te mais.

Teu corpo cessa, alma externa,

Mas vês que são teus iguais.

....................................................

A sombra das tuas vestes

Ficou entre nós na Sorte.

Não ‘stás morto, entre ciprestes.

.....................................................

Neófito, não há morte.

 

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ANTÓNIO TELMO, FERNANDO PESSOA E A MAÇONARIA

 

Sobre Fernando Pessoa e a Maçonaria, deixou-nos António Telmo um importante depoimento na sua História Secreta de Portugal:

“(…).

Fernando Pessoa foi o nosso primeiro poeta maçónico e toda a sua obra poética pode e deve ser interpretada como a expressão da viagem iniciática da alma num adepto que não se limita a cumprir os ritos e a estudar o dogma, mas desse cumprimento e desse estudo tira todas as consequências nos vários planos de vivência do ser. Assim, os heterónimos podem ser vistos como uma aplicação do «dom das línguas» ou um exercício destinado a produzir esse dom; a maioria dos poemas constituem o desenvolvimento de ensinamentos maçónicos e, por vezes, o próprio Fernando Pessoa não deixa de o assinalar por meio de epígrafes (caso do Eros e Psichee de No Túmulo de Christian Rosencreutz); outros ainda, como por exemplo A Múmia, são a transposição poética da experiência de determinado ritual.

(…).

A obra de Fernando Pessoa vale não só por si, mas também por marcar um comportamento maçónico excepcional no seu tempo. Através dele, a Maçonaria regressa à sua origem ou, pelo menos, aparece como a legítima continuadora da Ordem do templo. (…).

Pela Mensagem, Fernando Pessoa rectifica, à luz de princípios maçónicos recuperados, a história de Portugal. (…).”

[in Telmo, 1977, pp.116-118].

 

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A importância da iniciação, do mistério, do segredo e do silêncio em Maçonaria, segundo António Telmo

 

Refere-nos ainda António Telmo, na mesma obra, que estamos “num mundo onde a presença do mistério impõe que nada se possa realmente saber fora dos termos desse mistério. Assim, os mais lúcidos e imprudentes não desistiam de procurar a palavra perdida da Sabedoria.”

Que, acrescento, será coincidente com a palavra perdida dos maçons, cujo objectivo último de cada um será o seu reencontro com essa Palavra Perdida....a Palavra Divina, segundo Fernando Pessoa. Atentemos à profunda máxima Socrática: “Homem, conhece-te a ti próprio! E, conhecendo-te, conhecerás o Universo e os próprios Deuses!”.

Num outro texto de António Telmo, poderemos ler:

 

“(...) É espantoso como foi possível conservar, ao longo dos séculos, inalteráveis, no que lhes é essencial, ritos e símbolos maçónicos, quando enormes forças, cá dentro como lá fora, tudo têm feito para os adulterar e corromper! (...).”

[in Telmo, A Terra Prometida, 2014, pág.108]

 

(…). Ensinou Aristóteles, na sua Arte Poética, que, nos mistérios de Elêusis, o neófito nada aprendia, mas recebia uma impressão. O ritmo interior que comanda o rito (não me refiro ao cerimonial, que pode ou não acompanhá-lo) envolve o neófito, durante a iniciação, no profundo e inefável mistério que por ele se exprime, envolve-o como uma onda, donde sai atordoado, mas limpo, prende-o numa [a Egrégora] cadeia magnética de que não se libertará jamais, a não ser por cima, se assim o quiser o Grande Arquitecto do Universo. É por isso que se diz que um Mação nunca deixará de o ser, mesmo que abandone a Ordem. (…).”

[in Telmo, 2014, A Terra Prometida, p.110]

 

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António Telmo, como era seu costume com todas as filosofias que abordava, enquanto Maçon foi autocrítico em relação à práxis maçónica. Interessante este Diálogo entre Frei Anselmo e Noviço, que ele nos deixou e que foi recentemente publicado na “Aventura Maçónica”:

 

“(...).

Lês, escreves e isso está bem. No resto do tempo que te fica, procedes como toda a gente, como um autómato. Deixas-te emporcalhar pelos jornais e pela televisão. É um “deixa andar” continuado. De nada serviu termos-te conduzido para uma agremiação de neopitagóricos, onde simbolicamente desceste ao reino das trevas e daí te ergueste para a luz.

Falas com as pessoas como se elas não tivessem rosto; se atentasses, como é devido, na forma do rosto daquele ou daquela com quem conversas, se chegasses a ver nele a expressão de um mistério e de uma luz que, por dentro, ilumina esse mistério, não darias tanta importância ao que não és, àquilo em que és igual a todos os outros.

(...).”

[in Telmo, 2011, A Aventura Maçónica, p. 27]

 

 

Tanto António Telmo como Fernando Pessoa tinham semelhante opinião acerca da Iniciação: uma vez maçon, sempre maçon; uma vez Iniciado, para sempre Iniciado.

Tal como nos referia António Telmo:

“(...).

(...) Cada Maçon é um Templo, por isso, onde quer que esteja, está o Templo. Não devemos, portanto, reduzir ao trabalho de Loja a nossa actividade, dividindo-nos em dois comportamentos, um exterior e outro interior, como se, uma vez lá fora, já não existisse “o que mais importa”. Tal atitude, comum a muitos Maçons pouco esclarecidos, leva a acentuar a dualidade que julgávamos ter sido resolvida pela Iniciação. Eis porque me parece oportuno o seguinte conselho: na Loja, devemos subordinar o nosso interior ao que se passa exteriormente; fora da Loja, pelo contrário, subordinar o que se passa exteriormente ao nosso interior. Há um ensinamento oriental que diz o seguinte:

As aves, mesmo quando andam longe dos ovos, continuam a chocá-los.

(…).” 

[in Telmo, 2011, A Aventura Maçónica, p.83]

 

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A VIDA OCULTA NA MAÇONARIA

 

 “Não procures nem creias: tudo é oculto.” – Fernando Pessoa

 

 

Também dentro da Maçonaria o oculto impera. Por razões óbvias no que diz respeito à protecção de bens e pessoas devido a regimes totalitários. Por razões ritualísticas tendo em conta a característica iniciática da Ordem.

O Segredo Maçónico está oculto. Cabe a cada um dos Irmãos ou Irmãs desocultá-lo e transmiti-lo quando o momento chegar, compreendê-lo e manifestá-lo através da sua própria linguagem individual e da sua vivência na Loja e no Mundo.

Através dos séculos os Mestres Maçons de outrora conseguiram fazer transmitir aos Mestres Maçons de hoje os Sentidos inefáveis da Arte da Construção, imbuída de segredo maçónico! Este não foi violado, pois continua a fazer sentido através das Iniciações actuais, através de todo um trabalho ritualístico individual e colectivo. Segredo esse que consegue ser um cimento aglutinador de muitos e muitos maçons, unidos entre si e auxiliando na construção de um mundo melhor. Contudo é um segredo simples aquele que é recordado pelo Venerável Mestre em todas as sessões regulares de Loja, quando, reunida a assembleia de maçons na Cadeia de União ritual, transmite:

 

“Que o amor fraterno una todos os elos desta cadeia simbólica e seja o vínculo imperecível de todos os F\M\ no espaço e no tempo, ligando-nos indissoluvelmente pela tradição iniciática às gerações de irmãos e irmãs que nos precederam e que se prolongarão no futuro.

Estas mãos unidas simbolizam a aliança indestrutível de todos os F\M\ da Terra. (...).”

 

O assim denominado Segredo Maçónico encontra-se revelado: a recepção e a partilha do Amor Fraterno… resta aos Maçons vivê-lo e transmiti-lo!

Não posso deixar de referir a extraordinária mensagem de São João Evangelista, essência última da mensagem mais profunda da Religião Cristã: «Este é o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei. Ninguém tem maior amor do que o daquele que dá a vida pelos amigos.”

[in “Evangelho Segundo São João”, XV-12]

 

Igualmente digno de interesse o trecho que podemos ler num Ritual de Iniciação maçónico: “Não se é iniciado pelos outros; iniciamo-nos nós mesmos”.

Diga-se de passagem que, em todos os graus maçónicos é sobretudo o conhecimento de Si-Mesmo que é ensinado ao maçon em demanda. E, no mesmo Ritual, mais à frente, vamos encontrar um outro trecho que diz: “O iniciado está só ou, mais exactamente, é único, pois nenhum homem evolui em lugar de outro.”

Para procurarmos e eventualmente encontrarmos o Caminho da Verdadeira Luz, que está oculta, será necessário sabermos o que procurar – procurar “o que importa” – e sabermos o que procurar irá inevitavelmente levar-nos a uma abordagem do real na zona do Auto-Conhecimento, onde a compreensão dos problemas da vida e da morte é indispensável para que alguém se possa situar plenamente, e de facto, na Senda de uma autêntica Busca Espiritual e Maçónica.

Vida e Morte… conceitos que desde a sua Iniciação no Grau de Aprendiz não são estranhos aos Maçons... mas que se vão complexificando durante a peregrinação no Caminho maçónico.

No entanto, há que sublinhar devidamente, este Conhecimento, portador da Verdade e que confere a Libertação e a Paz ao ser humano, “comprometido” com a Sageza das Idades, é incomensurável, omni-abarcante, não limitado, mas só poderá ser percebido pelos que o querem e ousam perceber.

A Demanda começa em cada um de nós. Deus, Aquilo-que-se-quiser-chamar, o fim último da Iniciação, a Luz, o Grande Arquitecto Do Universo, tão procurado, tão aspirado, reside, de facto, em nós próprios. Como é afirmado no Chandogya Upanishad (III-14): “Este Atman que reside no coração, é menor que um grão de arroz, menor que um grão de cevada, menor que um grão de alpista; este Atman, que reside no coração, é ao mesmo tempo, maior que a Terra, maior que a atmosfera, maior que o céu, maior que todos os mundos reunidos.”

Também Paracelso o afirmou. “Trazemos em nós o centro da natureza.”

 

Assim, cada um de nós é realmente um centro que efectua a ligação do Céu à Terra através da sua própria escada mística, mais ou menos conscientemente, com mais ou menos intensidade, mas em permanente busca e em contínua evolução.

Neste centro interior e íntimo, poderá, apesar de tudo dominar a cerceadora dualidade da condição humana manifestando-se pelo sofrimento ou pela felicidade, pela paz ou pela guerra, pelo amor ou pelo ódio!... Mas também nesse centro poderemos encontrar e vivenciar a Unidade da Vida e então achamo-nos subitamente num estado onde não é possível encontrar quaisquer referências para se compararem os complementares, para se olharem as contradições, para se apontarem os conceitos antagónicos. Será, no fundo, através deste estado, que acontece uma real percepção da Totalidade, uma autêntica consciencialização da Unidade, da Vida e da Morte, verdadeiros leit-motiv de todo o labor e busca maçónicos. Lembremo-nos do poema de Fernando Pessoa “Oscila o incensório antigo…”, que nos aponta o caminho a seguir…

 A dramatização ritualística na Maçonaria é constituída por pensamento e sonho, no sentido de construção de um Arquétipo Sagrado, de uma Egrégora. No fundo trata-se de construir em nós mesmos um templo e um tempo originais, no sentido mítico e espiritual. Através do jogo da dramatização, connosco próprios e com o outro, abrimos canais psicológicos que permitirão o fluir de energias vivificadoras e transformadoras cujo resultado será a assunção do homem novo, neste caso do maçon, do construtor, do seguidor do Mestre Hiram, o vencedor da morte!

A palavra ritual, no fundo não tem forma cristalizada, antes remete para uma linguagem única e universal que cada maçon, no acto de escutar, no acto autêntico e criador da atenção ritualística, transforma em vivência e em Amor.

 

rui.arimateia@gmail.com

Sesimbra, 24 de Outubro de 2015

 

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DA SABEDORIA UNIVERSAL OU DO ENSINAR E DO APRENDER:

 

 

As Palavras Muito Antigas

 

 

As palavras muito antigas

São como as sementes

Tu as semeias antes das chuvas

A terra é ressequida pelo sol

A chuva vem molhá-la

A água da terra penetra nas sementes

As sementes transformam-se em plantas

Então, desenvolvem as espigas de milho

Assim tu, a quem acabo de dizer as Palavras Muito Antigas,

Tu és a terra

Eu planto em ti a semente da palavra,

Mas é preciso que a água da tua vida penetre na semente

Para que a germinação da palavra tenha lugar.

 

 

Ensinamento de um griot Mandinka

 

 

 

 

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BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA SOBRE FERNANDO PESSOA E A MAÇONARIA

 

1.       ARNAUT, António – FERNANDO PESSOA E A MAÇONARIA, Ed. do Grémio Lusitano, Lisboa, 2005.

 

2.       CENTENO, Yvette – FERNANDO PESSOA E A FILOSOFIA HERMÉTICA, Col. ‘Temas e Documentos’, n.º 7, Editorial Presença, Lisboa, 1985.

 

3.       CENTENO, Yvette – FERNANDO PESSOA: O AMOR, A MORTE, A INICIAÇÃO, Col. ‘Ensaios’, n.º 10, A Regra do Jogo edições, Lisboa, 1985.

 

4.       CENTENO, Yvette – FERNANDO PESSOA:OS TREZENTOS E OUTROS ENSAIOS, Col. ‘Temas e Documentos’, n.º 10, Editorial Presença, Lisboa, 1988.

 

5.       GANDRA, Manuel J. – FERNANDO PESSOA – HERMETISMO E INICIAÇÃO, Col. ‘Ventos da Tradição’, Zéfiro-Edições e Actividades Culturais, L.da, Sintra, 2015.

 

6.       GEBRA, Fernando de Moraes – O RITUAL ESOTÉRICO NO POEMA “INICIAÇÃO”, DE FERNANDO PESSOA, in “Ipotesi”, Juiz de Fora, Vol. XVI, n.º2, Jul./Dez. 2012. [OBS.: págs. 47-61].

 

7.       LIND, Georg Rudolf – ELEMENTOS OCULTISTAS NA POESIA DE FERNANDO PESSOA, in “Colóquio” – Revista de Artes e Letras, n.º 37, Lisboa, Fevereiro, 1966. [OBS.: págs. 60-63].

 

8.       LIND, Georg Rudolf – ESTUDOS SOBRE FERNANDO PESSOA, Col. ‘Estudos Portugueses’, Ed. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1981.

 

9.       LOPES, Teresa Rita (Orientação, Coordenação e Prefácio) – PESSOA INÉDITO – FERNANDO PESSOA, Ed. Livros Horizonte, Extra colecção, Lisboa, 1993. [OBS.: 2.ª Edição de 2007].

 

10.   MATOS, Jorge de – O PENSAMENTO MAÇÓNICO DE FERNANDO PESSOA, Col. ‘Biblioteca Maçónica’, n.º1, Hugin Editores, L.da, Lisboa, 1997.

 

11.   PESSOA, Fernando – A GRANDE ALMA PORTUGUESA, Col. ‘Pessoana’, Vol. II, Edições Manuel Lencastre, Lisboa, 1988. [OBS.: A carta ao Conde de keyserling e outros dois textos comentados por Pedro Teixeira da Mota].

 

12.   PESSOA, Fernando – POEMAS ESOTÉRICOS, Col. ‘Pessoa Breve’, Assírio & Alvim/Porto Editora, Porto, 2014.

 

13.   PETRUSFERNANDO PESSOA – HYRAM (Filosofia Religiosa e Ciências Ocultas), Col. ‘Tendências’, Ed. “CEP”, s/l, s/d. [OBS.: Notas e Postfácio por Petrus].

 

14.   QUADROS, António – A PROCURA DA VERDADE OCULTA – TEXTOS FILOSÓFICOS E ESOTÉRICOS, ‘Obra em Prosa de Fernando Pessoa’, Vol. VI, Col. ‘Livros de Bolso Europa América’, n.º 471, Mem Martins, 1986 [OBS.: Prefácio, organização e notas de António Quadros; ver a III Parte-‘O Estádio Gnóstico’, pp.139-232].

 

15.   QUADROS, António – ESCRITOS ÍNTIMOS, CARTAS E PÁGINAS AUTOBIOGRÁFICAS, ‘Obra em Prosa de Fernando Pessoa’, Vol. I, Col. ‘Livros de Bolso Europa América’, n.º 466, Mem Martins, 1986 [OBS.: Prefácio, organização e notas de António Quadros].

 

16.   QUADROS, António – TEXTOS DE INTERVENÇÃO SOCIAL E CULTURAL – A FICÇÃO DOS HETERÓNIMOS, ‘Obra em Prosa de Fernando Pessoa’, Vol. II, Col. ‘Livros de Bolso Europa América’, n.º 467, Mem Martins, 1986 [OBS.: Prefácio, organização e notas de António Quadros].

 

17.   SIMÕES, João Gaspar – VIDA E OBRA DE FERNANDO PESSOA (História de uma Geração), Col. ‘Figuras de Todos os Tempos’, Ed. Livraria Bertrand, 4.ª Edição, Lisboa, 1980.

 

18.   TELMO, António – A AVENTURA MAÇÓNICA – VIAGENS À VOLTA DE UM TAPETE, ‘Hyram Colecção Maçónica’, Zéfiro-Edições e Actividades Culturais, L.da, Sintra, 2011.

 

19.   TELMO, António – A TERRA PROMETIDA – MAÇONARIA, KABBALAH, MARTINISMO & QUINTO IMPÉRIO, ‘Obras Completas de António Telmo’, Volume I, Zéfiro-Edições e Actividades Culturais, L.da, Sintra, 2014.

 

20.   TELMO, António – CONGEMINAÇÕES DE UM NEOPITAGÓRICO, Ed. Al-Barzakh, Vale de Lázaro, 2006.

 

21.   TELMO, António – HISTÓRIA SECRETA DE PORTUGAL, Col. ‘Janus’ n.º 6, Editorial Vega, Lisboa, 1977.

 

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Tardes Télmicas no Centenário de Orfeu

24 de Outubro 2015 | 15:00 | Biblioteca Municipal de Sesimbra

Comemorando o centenário da revista modernista «Orpheu», as Tardes Télmicas evocam Fernando Pessoa e Almada Negreiros entre Tradição e Vanguarda, num diálogo que não poderia deixar de envolver António Telmo e o seu «O Bateleur», e o pensamento maçónico do poeta de «Mensagem». Com MIGUEL REAL, ELÍSIO GALA, ANTÓNIO CARLOS CARVALHO e RUI ARIMATEIA, numa parceria do Projecto António Telmo. Vida e Obra e da Câmara Municipal de Sesimbra.

VERDES ANOS. 16

26-10-2015 08:43

No centenário do nascimento de Sampaio Bruno[1]

 

Comemora-se este ano o centenário do nascimento dum filósofo português. Tal acontecimento reveste-se de extraordinária significação, pois trata-se de Sampaio Bruno, talvez o nosso pensador mais amplo e profundo. Já alguns jornais contribuíram com artigos, sendo justo destacar os de José Marinho, Santana Dionísio, Luís Zuzarte e Álvaro Ribeiro, no sentido de que só estes escritores consideram Sampaio Bruno no cerne ou em relação ao cerne da sua actividade mental – a filosofia. A Álvaro Ribeiro se deve o acto de recordação que lhe prestamos. Sem os seus estudos de hermenêutica, este ano não seria assinalado pela discussão do pensador.

Esta discussão deriva duma dupla dificuldade acusada nos livros de Sampaio Bruno: dificuldade de estilo e dificuldade de pensamento. Esse estilo e esse pensamento são, porém, difíceis? É ao que vamos tentar responder.

O estilo de Sampaio Bruno é fácil, na medida em que se oferece numa linguagem comum, embora clássica: por vezes tão lhana e simples, que parece que o filósofo conversa connosco à mesa do café. Não se complica nunca da terminologia cientificista, com que é hábito espantar os ignorantes. É o estilo dialogado, intimista, erradio e errante de quem encara os problemas filosóficos sem intermediação culturalista, o que não quer dizer que, em busca de soluções, não interrogue as várias respostas que a cultura foi fixando ao longo do tempo. Conta-nos anedotas; narra, com minúcia, episódios autobiográficos; intercala, na discussão dos temas mais difíceis, expressões vulgares. No entanto, muitos consideram Sampaio Bruno quase ilegível.

É, na verdade, uma forma de escrever invulgar e singular; trabalhada sobre os nossos clássicos e sobre a língua do nosso povo. Como, entre nós, se escrevem línguas estrangeiras com aquele mínimo necessário de fonemas portugueses, o que é legitimamente português resulta difícil ou, então, exótico. Sampaio Bruno não tem o talento de Camilo, Fialho ou Aquilino, mas também a prosa deste último nos aborrece se inconscientemente o ritmamos por um esquema mental adquirido na leitura de escritores estrangeiros.

Quanto ao pensamento de Sampaio Bruno, a todos é acessível. Julgamos ser lícito utilizar análoga argumentação à de que nos servimos para com o estilo. Emerge esse pensamento das profundidades da sabedoria popular, mas o filósofo vê-se obrigado a fazê-lo defrontar as filosofias estrangeiras que, no seu tempo, se tornaram seguidas entre nós. Se a nossa educação filosófica partisse dum fundamento popular e nacional, com vinte e oito anos qualquer de nós se encontraria apto a compreender o pensamento de Sampaio Bruno em toda a sua profundidade, pois aparecer-nos-ia como um prolongamento natural da nossa mais funda sabedoria. Infelizmente somos educados para reflectir as filosofias estrangeiras e, esquecidos de que a estas é aplicável análoga relação para com as origens, vemo-nos limitados a conhecer apenas o que nelas é susceptível de versão internacionalista. Na verdade, como se torna fácil o aristotelismo, o hegelismo, o bergsonismo, uma vez desligados da essencial relação com as origens, e como é difícil Sampaio Bruno, se o queremos moldar a uma visão internacionalista!       

É de admitir, pois, que todo o problema de aceitação e reconhecimento compreensão e aprofundamento dos nossos filósofos é um problema de educação. Na Ideia de Deus estuda Sampaio Bruno o significado do erro e, com não admite fim para a aventura espiritual, isto é, como concebe Deus como infinito, é conduzido a combater o espiritualismo, que reduz toda a filosofia ao método, «com ponto de chegada já conhecido no ponto de partida». O mestre não aprende também; sabe já tudo o que o aluno irá saber. Este não pode seguir por outros caminhos; não pode aventurar-se errando; é obrigado a repetir a ciência feita do mestre; a submeter-se sucessivamente a provas numa infindável humilhação da consciência. Traz para a vida pública o medo obsessivo de errar e, se escolhe a literatura, será um inimigo da filosofia, isto é, da liberdade de pensar.

No centenário do nascimento de Sampaio Bruno, «um alento de esperança nos inunde». Ele é um filósofo vivo, mais do futuro que do presente e mais do presente que do passado. Seja esse o sentido do acto de recordação que hoje prestamos ao autor do Encoberto!  

 

António Telmo



[1] Diário de Notícias, ano 93, n.º 32678, Lisboa, 14 de Maio de 1957, pp. 7 e 8.

 

INÉDITOS. 58

09-10-2015 09:24

ÁLVARO RIBEIRO, SEMPRE!

Evocamos Álvaro Ribeiro no dia em que se completam 34 anos sobre a sua partida deste mundo com o escrito que o seu discípulo António Telmo, no dizer do próprio mestre "o seu melhor amigo", destinou ao fecho do livro Álvaro Ribeiro e a Gnose Judaica, parte integrante do IV Volume das Obras Completas de António Telmo, que além do prefácio de Ruy Ventura, centrado em Filosofia e Kabbalah, terá ainda um posfácio, assinado por António Carlos Carvalho, que nele se ocupa dos valiosos inéditos télmicos sobre o pensamento cripto-judaico de Álvaro Ribeiro. 

Fecho

 

Alguns dias após termos acompanhado os restos mortais de Álvaro Ribeiro não, como se diz, “à última morada”, sonhei um sonho que, se tivermos em conta a classificação antiga foi realmente um sonho divino.

Distinguem os antigos filósofos entre aqueles sonhos que recordamos, após o despertar, por sucessivas evocações, quase sempre algum tempo passado sobre o despertar, movida a memória por um estímulo que se associa com uma das imagens esquecidas e a acorda, seguindo-se depois as restantes em cadeia intermitente; e aqueles sonhos que, ao acordarmos, são como uma fotografia e como tal perduram nitidamente presentes, tão presentes que parece impróprio falar aqui de lembrança.

Nessa manhã, o sonho perdurou assim nítido durante vários minutos, até que um movimento da alma me trouxe de súbito a consciência de que estava perante um sonho.

Vi Álvaro Ribeiro sentado ao canto de uma esplanada cheia de arcadas. Aproximei-me dele, contentíssimo de o encontrar. Olhou para mim. A sua imagem era exactamente a que conheci em sua vida, mas mais nítida. Pus-me a falar das minhas cogitações íntimas, não me lembro de quais, mas sei que era qualquer coisa de metafísico, que eu reputava filosoficamente muito importante. O seu silêncio, o modo de olhar, não sei quê de bem familiar, criaram entre mim e ele uma distância, uma espécie de obstáculo invisível, como se houvesse na minha alma uma culpa que me penetrava de mal-estar.

Desviou o olhar para o quadrado da mesa, tirou do bolso a sua caneta de tinta permanente e pôs-se a traçar os movimentos de quem escreve. Sorria com bondade e alguma ironia.

Afastei-me sem me despedir, saindo para o lado de trás da esplanada onde havia uma espécie de corredor claustral. Estava ali o F. S.[1]

– O Álvaro Ribeiro enganou-nos a todos. Não era ele que ia no caixão que acompanhámos à cova. Ele não morreu. Continua entre nós bem vivo.

O meu amigo manifestando espanto e incredulidade atraí-o para um ponto de onde pudéssemos avistar o canto da esplanada. Lá estava, na mesma posição. Em frente dele, de pé, no lugar precisamente onde eu lhe falara, havia um homem de trinta e tal anos, decente num fato completo algo envelhecido. Tinha o cabelo liso penteado para trás e um rosto muito sério e atento. Era um homem simples, dir-se-ia mesmo um homem do povo, um humilde. Álvaro Ribeiro conversava com ele cheio de amizade e simpatia, mas de repente, porque sabia que o estávamos espiando, olhou para o nosso lado. Fugimos como duas crianças que temem o castigo.

Momentos depois, encontrei o E. S.[2] a quem revelei, ainda em sobressalto, que Álvaro Ribeiro não ia no seu funeral e que estava ali numa esplanada. Encolheu os ombros:   

– Só agora você sabe isso? Está todos os dias no Café Colonial.

Acaba aqui o sonho, que tratei de contar ao F. S. logo que pude encontrá-lo.

– É extraordinário! Comentou ele. O G.[3] também sonhou que Álvaro Ribeiro continua vivo e não ia no seu funeral.

 
António Telmo


[1] N. do O. – António Telmo refere-se ao seu amigo e condiscípulo Francisco Sottomayor.

[2] N. do O. – António Telmo refere-se ao seu condiscípulo Luís do Espírito Santo.

[3] N. do O. – António Telmo refere-se a Germano Teixeira, marido da afilhada de Álvaro Ribeiro, Conchita.

 

VOZ PASSIVA. 65

09-10-2015 09:10

ÁLVARO RIBEIRO, SEMPRE!

No dia em que se completam 34 anos sobre a exaltação de Álvaro Ribeiro, oferecemos aos nossos leitores, em pré-publicação, o primeiro capítulo de O Teorema de António Telmo, ensaio prefacial que Ruy Ventura escreveu para Filosofia e Kabbalah seguido de Álvaro Ribeiro e a Gnose Judaica e outros estudos, IV Volume das Obras Completas de António Telmo, a ser lançado, ainda este ano, com a chancela da Zéfiro e o apoio institucioonal e científico do nosso Projecto. É, estaremos em crer, um excerto elucidativo da profunda cumplicidade que unia o discípulo ao seu mestre.   

O teorema de António Telmo (excerto)

Ruy Ventura 

 

 

Os sábios são aquelas divinas inspirações que põem ordem nos pensamentos, ponderam as palavras, abrilhantam as obras, compõem a vida e tudo dispõem rectamente. Quem caminha juntamente com estes sábios torna-se sábio. […].”

 

Santo António de Lisboa

Sermão da festa do protomártir S. Estêvão

 

1.

 

Conta António Telmo em Filosofia e Kabbalah que Álvaro Ribeiro ensinava os seus discípulos “a converter os poemas e os filosofemas, sempre que possível, em teoremas”, explicando-lhes que tal deveria traduzir-se “numa figura geométrica visível, porque o desenho, se viesse a ser traçado segundo as regras da arquitectura, nos revelaria o desígnio do poeta ou do filósofo” [FK[1], 174].

Isto dizendo, indicava o filósofo d’ A Razão Animada pelo menos duas tríades: a primeira estabelecendo uma hierarquia de géneros (poema, filosofema e teorema) e a segunda aclarando a gradação do percurso hermenêutico (desenho, desígnio e arquitectura). Se estivermos atentos, repararemos que a segunda é o desenvolvimento do vértice superior da primeira, ou seja, do teorema – “figura geométrica visível” –, desenho instrumental que leva à revelação do “desígnio” do autor do texto poético ou filosófico, por obediência às “regras da arquitectura”. Tratar-se-á não só do projecto, propósito ou intenção do ser escrevente, mas também da vontade de um autor superno, legislador dessas “regras”, ou pelo menos do seu nome ou designação. A “figura geométrica visível” deve assim ser entendida assim pela expressão inversa, sem a qual esta não existiria, pelo seu reverso, oculto, incluso ou latente no texto analisado. Se há manifestação de uma figura, do aspecto exterior de um corpo ou de uma sua representação, é porque além do representante está o representado. Se é necessária a geometria, terrestre, é porque esconde a medida do empíreo ou do mundo inferior. Se algo se torna, assim, visível, é porque estava invisível. O verbo que a tudo preside é revelar, vocábulo dúplice que mostra e esconde no seu prefixo. E as “regras da arquitectura” assim se evidenciam porque obedecem ao arkhé, ao princípio, ao segredo e à potência, emanados daquele a que a tradição maçónica – de que Telmo e Ribeiro se reivindicavam – chama Supremo Arquitecto do Universo, ou seja, Deus, o Théos incluso no teorema e também na theoria de que aquele é expressão.

A acção hermenêutica sobre um texto poético ou filosófico deve assim visar a sua revelação, sendo ele a expressão de algo de divino, de que o filósofo ou o poeta é agente, inspirado por intermédio da imaginação. Em rigor, o que Álvaro Ribeiro propunha e António Telmo propaga era algo de muito sério e perturbante, nomeadamente para aqueles que se habituaram a surfar nas águas do relativismo estético e ético: a poesia e a filosofia só detêm veracidade se permitirem a theoria, que é muito mais do que uma teologia.

Se, para Platão, a theoria era a visão da essência, o platonismo tardio entendeu-a como ascensão da alma que deseja tornar-se semelhante a Deus (homoiosis), requerendo, na opinião de Boécio, a sua participação no Espírito Divino mediante um pensamento puro (participatio) e tendo como consequência, segundo Cassiano, uma luta intelectual em recolhimento, em quietude e contemplação (contemplatio). Trata-se de um caminho de esforço mental e de purificação da parte animada do ser, que se encontra presa no corpo (cf. Lüdemann in DM, 829). Tal actividade – dirigida ao nous – consiste numa perpétua descoberta, conduzindo da potência ao acto, segundo Aristóteles (cf. Santiago, 2013: 152).

António Telmo, ao longo de 58 anos de produção escrita (1952 – 2010), pôs em letra de forma as três modalidades (poema, filosofema e teorema), sendo sobretudo assinalável a sua actividade hermenêutica, praticando sempre aos ensinamentos daquele a quem devia “ter podido escrever quanto escrev[eu]” [FK, 7], mesmo quando tal não é manifesto. Tinha consciência de que “a filosofia é uma arte, a Arte de Bem Cavalgar Toda a Sela” [FK, 8] e por isso se expressou nos mais diversos géneros literários. No teorema procurou a theoria, submetendo-se sempre às “regras da arquitectura”. Não sendo “paleógrafo” nem “biógrafo”, podemos incluir assim o autor de Congeminações de um Neopitagórico na conta dos “arqueólogos”, definidos assim pelo seu mestre:

[…] o arqueólogo pretende comparar a cultura do seu tempo, não com a cultura do passado, mas com os princípios que a transcendem, porque esse é o seu processo de realizar obra de filosofia. Na meditação dos princípios aristotélicos o arqueólogo arquitecta, isto é, desenha de dentro para fora, o movimento gerador da alta cultura. […]” (Ribeiro, 1953: 44)

Se António Telmo aplicou às obras que analisou os princípios metodológicos expressos por Álvaro Ribeiro, creio que construiu a sua com as mesmas regras de ocultação ou velatura, embora procedendo inversamente. Escrevendo ensaios, crónicas, diálogos, peças de teatro, contos, poemas ou aforismos, submeteu-os na maior parte, se não na totalidade, a uma disciplina arcana, jogando com o leitor e exigindo-lhe um esforço adicional que o incita a passar do nível literal de entendimento aos restantes definidos por Dante, no seguimento da antiga tradição judaico-cristã. Cabalista como era, sabia que a kabbalah medieval considerava que o Éden era, por excelência, o “lugar da leitura”, ao qual se chega subindo quatro degraus. Já Orígenes e São Jerónimo, alguns séculos antes, haviam proposto três degraus que levariam a um correcto entendimento das Escrituras: um primeiro, histórico ou literal; um segundo, tropológico ou moral; e um terceiro, místico ou alegórico. A boa tradição da kabbalah foi radicar-se, contudo, em dois outros autores cristãos, Cassiano e Santo Agostinho, que vislumbraram a perfeição hermenêutica em quatro etapas: na primeira domina a letra, oferecendo um sentido histórico, ao ensinar os acontecimentos do passado (littera gesta docet); na segunda, salienta-se a alegoria, ao desvelar o conteúdo da crença (quid credas allegoria); na terceira, exibe-se o conteúdo tropológico, que apresenta o sentido moral dos textos, iluminando o modo como convém agir (moralis quid agas); no cume da escada, temos o sentido anagógico ou escatológico, que esclarece o objecto da nossa esperança (quod tendas anagogia) (cf. Mendonça, 2013: 255 – 257). Nos alvores do Renascimento, Dante Alighieri tomou como sua toda esta tradição, definindo:

[…] as escrituras [podem-se] compreender e devem explicar[-se] mormente por quatro sentidos. Um se diz literal, e é aquele que não vai além da letra das palavras fictícias, tal como são as fábulas dos poetas. Outro, alegórico, e é aquele que se esconde sob o manto destas fábulas, constituindo uma verdade oculta sob uma bela mentira […]. § O terceiro sentido chama-se moral, e é aquele que os leitores devem atentamente andar buscando nas escrituras, para sua utilidade e dos seus discentes […]. § O quarto sentido chama-se anagógico, isto é, super sentido; ocorre quando espiritualmente se expõe uma escritura, a qual, ainda que seja verdadeira também no sentido literal, pelas coisas significadas diz das coisas supernas da glória eterna […]” (Alighieri, 1992: 61 e 62).

Telmo praticou este método como legente-hermeneuta. Escreveu desafiando os seus leitores para o exercício dos mesmos procedimentos, como se desejasse a todos a chegada ao Paraíso (pardèsh). Como teorizador, conheceu e expressou sempre o valor da humildade, quantas vezes através da auto-ironia, nos diálogos em que se foi vendo ao espelho. Num deles, uma das figuras chega a afirmar que “os seus livros são a expressão de um profano que se pôs a falar do que só por ouvir dizer conhecia” [CNP, 76]. Afinal, abordamos alguém que se definiu como “um pensador errante, sem casa própria”, reivindicando o direito a errar, defendido por Fernando Pessoa e por São Karol Wojtila (que ele cita) [FK, 10], ou seja, ao engano e à errância, ou não se apresentasse ele como um peregrinus [cf. DLP, 484] e também, deduzo, como um filósofo viajante ou um cabalista nómada.

Percebendo quanto há de indeterminação na interpretação de qualquer texto que se preste a uma tradução teorética, António Telmo surge a defender um método associativo, que não entra em colisão com os quatro sentidos de um texto da antiga tradição judaico-cristã. Se a sua meta é, como se viu, a revelação da vontade superna num teorema, tem consciência da incerteza que domina as relações com o sagrado e com o divino. Constata assim ser esse o melhor meio hermenêutico, quando se confronta, por exemplo, com uma obra de arte com a altitude da Mater Omnia, de Gregório Lopes, pertencente à Santa Casa da Misericórdia de Sesimbra:

Há um processo de interpretação por associações significativas de imagens e ideias, falsamente tomado por ‘simbólico’, que podemos aplicar ao estudo do painel […]. Não se trata de pensamento simbólico porque as conclusões a que se chega não contêm um carácter de evidência ou de certeza. […] Não há certeza na interpretação mas apenas uma conjectura.” [S, 41]

Esta via reveste-se de grande contemporaneidade. Se, por um lado, aplicada aos escritos de Telmo, reduz à sua verdadeira dimensão todas as leituras que se têm apresentado como verdades ou certezas, não escondendo alguma jactância (ao recusarem o artigo indefinido que Pedro Martins apôs humildemente no título de um livro seu (cf. Martins, 2015)), por outro vem recordar-nos o que há de melhor na Filosofia Portuguesa, que, sem complexos de inferioridade ou nacionalismos serôdios, pode ombrear com as melhores conclusões de outras linhas da nossa cultura e da cultura extralusitana.

António Telmo aplicou aos seus objectos de análise o método defendido, em ensino acroamático, por Álvaro Ribeiro. Claro está que não foi, como o correspondente de José Régio, um filósofo hierático. Sem deixar de ser sagrada, a sua via foi contudo outra, talvez mais lúdica, na medida em que entendia o jogo como algo de muito sério (como se pode ler em textos como “O Best” ou “A Dama de Oiros” [FK, 28 – 35]), envolvendo um risco e um perigo que vale a pena enfrentar com coragem: “[…] bem pesados os prós e os contras, se todos estamos no grande jogo e todos vivemos alucinados pela prestigiosa irrealidade do mundo sensível, não há nada como arriscar, antes que a rotina nos torne definitivamente brutos” [FK, 31].

Parece-me assim ser a hora de submetermos os seus textos ao mesmo processo, simultaneamente associativo e arqueológico. Para descobrir o desígnio de António Telmo é, pelos vistos, importante desenhar uma figura geométrica visível onde ele se manifeste.

Um bom ponto de partida será sempre Filosofia e Kabbalah. Quem leia este livro pelo menos três vezes, como aconselhava e fazia o filósofo de Uma Coisa que Pensa, conhecendo já algo da obra restante do escrito de Almeida e Estremoz, perceberá que esse volume, editado pela primeira vez em 1989, aos 62 anos de idade, é não só o eixo de toda a sua filosofia, como também o seu cume e a sua súmula retrospectiva e prospectiva. Se alguém ler outros títulos de Telmo sem conhecer este que menciono, ficará com uma visão fragmentária e desfocada de quanto pensava. Pelo contrário, se o ler, sem se aproximar de outros, beneficiará da recepção da essência ramificada do seu pensamento, no núcleo, nos temas e, até, nos géneros pelos quais se espraiou a sua escritura.

Essa ideia de totalidade parece ter presidido, aliás, à elaboração do livro. Se tivermos em conta que o “Prolóquio” é continuado em “Caçando com cão”, teremos um volume constituído por vinte e dois textos que abarcam todos os temas fundamentais da filosofia de Telmo. Não por acaso, o vinte e dois simboliza a manifestação do ser na diversidade, um ciclo completo e a conclusão da obra do Criador, sendo o número do Universo; por isso mesmo, são vinte e duas as letras do alfabeto hebraico, vinte e dois os capítulos do Apocalipse e, até, vinte e dois os arcanos maiores do Tarot [cf. DS, 1019]. Se juntarmos porém os dois textos supracitados, dando-lhes um carácter prefacial, ficaremos apenas com vinte e um capítulos; assim se verá sublinhada a perfeição de Filosofia e Kabbalah, centrada num objecto transcendente (Théos ou nous), sendo vinte e um os atributos da Sabedoria divina (Sb 7, 21) [cf. DS, 1018 – 1019]. Este raciocínio é confirmado pelo tempo que medeia entre as únicas duas datas inscritas no livro (20/6/1972 e 20/6/1980), precisamente oito anos. À perfeição e à totalidade se vê assim associado o algarismo do equilíbrio cósmico, da mediação entre o Céu e a Terra (entre o círculo e o quadrado), da justa completude e, ainda, da transfiguração, da eternidade e da beatitude [cf. DS, 511 – 512].

 

(...)



[1] Os livros de António Telmo, bem como os dicionários, são citados através de uma sigla, seguida do número da página. Essas siglas estão indicadas na bibliografia. Na citação dos textos restantes, segue-se o uso habitual.

 

DISPERSOS. 14

04-10-2015 16:44

Filosofia e Cabala no pensamento de Álvaro Ribeiro[1]

 

«O mal é só o que os homens fazem aos outros por pensamentos, palavras e actos».

É só. Logo, para Álvaro Ribeiro, na natureza, criação divina, não há mal. É, no entanto, difícil, ou pelo menos apressado, concluir que o mal, na concepção de Álvaro, não tem origem, como ensina a Cabala, no mistério insondável de Deus. «O diabo, escreveu ele também, não é o inimigo de Deus, mas sim da natureza». E duas vezes alude a um misterioso agente intermediário que tem por fim monstruoso separar o homem da mulher.

Como quer que seja, a inveja dos homens que fazem mal por pensamentos, palavras e actos nasce do sofrimento que neles causa a felicidade dos outros no amor ou na filosofia. As melhores amizades têm sido envenenadas pelo intermediário que instiga a inveja.

Na natureza não há mal. As naturezas adoecem por acção do homem. No mundo criado a imaginação divina move o amor. A imaginação do homem pode, em certas condições, contrariar a imaginação divina pela magia que, neste caso, é propriamente aquela que se designa por negra. A medicina integral, isto é a filosofia, conforme se diz num admirável escrito de João Rêgo[2], é a que imita a imaginação divina lutando contra a doença. Enquanto integral actua contra a magia negra ali onde, como no ensino e na política, ela procede contra o amor e contra a filosofia.

Álvaro Ribeiro parece ter-se recusado a escrever sobre o problema do mal nas suas relações com o mistério insondável. Como se viu, não deixou de explicá-lo pelo seu segredo, que é a magia negra.

Tendo sido, como foi em vida, um filósofo que pôs no centro do seu pensamento a exaltação do amor entre o homem e a mulher, concitou a hostilidade dos sinistros instrumentos do mal que o agrediram com pensamentos, palavras e actos. Usou, por isso, de prudência no dizer. A palavra Cabala só quatro vezes aparece nas quatro mil páginas que escreveu para o público. Vestiu por vezes a pele do lobo para não ser devorado pelos lobos, mas a fidelidade constante à excelsa e bondosa doutrina é visível em cada proposição que pensou e escreveu.

Pinharanda Gomes classifica-o entre os «gnósticos» no seu Diccionário de Filosofia Portuguesa. Há, com efeito, em Álvaro Ribeiro o desgosto do mundo humano e a ideia de que a salvação vem pelo conhecimento. Como, porém, o conhecimento é interpretado em analogia com «O Homem conheceu a Mulher» do Génesis, o seu pensamento opõe-se a todas as correntes gnósticas que põem como condição do aperfeiçoamento humano a abstenção de relações sexuais ou a tolerância delas como um mal necessário, segundo o ensino de São Paulo. Deste ponto de vista, Álvaro Ribeiro não é um «gnóstico», é um adversário da Gnose.

Aquilo a que podemos chamar a baixa gnose e que perpetua degeneradamente o ensino de São Paulo, na impossibilidade do puro, natural, santo impulso do amor entre o homeme a mulher, procedeu à sua conspurcação pelo cinema, pela imprensa, pela televisão, pela pornografia, fingindo defendê-lo ao tornar patente e público o que só é verdadeiramente pelo segredo e e pela relação individual. A colectivização do acto sexual constitui a última e aparentemente decisiva, julgam eles, consagração da magia negra pelo socialismo. Compreende-se assim que o nome de Álvaro Ribeiro seja silenciado e odiado à esquerda e à direita.

O amor entre o homem e a mulher é, em primeiro plano, uma relação sem mácula de duas naturezas. Pela palavra, a relação natural torna-se transparente do sobrenatural. A sua socialização movimenta as palavras e as imagens obscenas que atraem o que no sobrenatural constitui o mais baixo e reles demonismo. A palavra é pelo pensamento como o acto é pela palavra. Só o pensamento, criando as palavras da imaginação amorosa faz nascer o acto que eleva e redime. O pensamento é, porém, como o filósofo diz, uma actividade invisível do espírito cujo meio próprio é o segredo e o mistério.

Assim se evidencia a íntima ligação da filosofia com o amor. Pelo pensamento poderemos viver o mistério que é o universo, o imenso universo de que o amor entre o homem e a mulher assistido por Deus é a renovação miniatural, mas infinita. O perfeito amor é o que corresponde a uma perfeita filosofia e essa é a de Deus que devemos procurar imitar.

O pensamento de Álvaro Ribeiro evolui pelo sistema das categorias fixadas por Aristóteles. Quando eu era moço, o filósofo entusiasmou-me a procurar a correspondência entre as categorias aristotélicas e o sistema hebraico das dez sefiras. Infelizmente, só alguns anos depois de nos ter deixado, encontrei a demonstração publicada em Filosofia e Kabbalah de que os dois sistemas se reflectem um no outro. Essa demonstração, que passou despercebida em Portugal, movimentou certos meios iniciáticos franceses de vasta influência que nela viram a prova provada de que se deve rever a imagem que da Grécia e da sua filosofia foi formada e propagada pela filosofia alemã. Álvaro Ribeiro conhecia essa correspondência que explica o seu aristotelismo hebraico.

Cabe, então, interpretar pela árvore das categorias aquilo que, no ensino clássico de Aristóteles, se diz ser «a imanência das ideias», em oposição ao platonismo que as teria concebido separadas. O movimento é contrário ao do êxtase.

A contemplação não tem por fim libertar a alma da prisão natural, mas de fazer descer as influências dos mundos superiores aos mundos Inferiores, tornando-as activas pela razão. Tal o sentido da crítica que o filósofo escreveu contra o misticismo e o cepticismo da Teoria do Ser e da Verdade do seu companheiro de viagem José Marinho.

Nos termos da Cabala, a contemplação tem por fim chamar Tiphereth, orando, a Malcuth, através de lesod. O processo é descrito no livro de A Santidade das Relações entre o Homem e a Mulher de Gikatila para que se cumpra em cada lar o mistério da encarnação de inteligências superiores. Álvaro Ribeiro não pôde ter conhecido este livro, traduzido do hebraico para o francês alguns anos depois da sua morte. É pela activação da inteligência  que a união das sefiras inferiores, no plano fecundante de Yesod, prolonga a união das sefiras superiores. Daqui a suprema «dignidade do cérebro» insistentemente celebrada no segundo volume das Memórias de Um Letrado. Demora-se neste volume o filósofo a estudar as relações de Keter com Binah, cifrando a sua reflexão nos termos pelos quais Henrique Bergson descreve as relações do cérebro, «órgão de escolha e de acção» com a memória infinita.

Há, pois, uma educação sexual, mas não aquela que se propõe banalizar e desdivinizar o amor, «pondo a ferros a imaginação», como dizia José Marinho. Só pelo aprendizato da filosofia portuguesa o rapaz português e a rapariga portuguesa poderão aspirar à perfeição mental, cada um no seu género, criando as condições e as qualidades indispensáveis à celebração do «mistério supremo» (ver São Paulo, Epístola aos Coríntios).

Não é pela exposição e descrição das entranhas carnais, que só podem suscitar repulsa, que se faz educação sexual. É pelo aperfeiçoamento e desenvolvimento da alma masculina e da alma feminina. A alma é que é a amante.

Tal educação faz-se sem que a alma dê por isso. Ela não pode ainda saber que o estudo da gramática, da retórica e da dialéctica, da dança, da matemática, da astronomia têm por fim o matrimónio e a acção do homem e da mulher no plano terrestre de Asiah. Descobri-lo-ão, maravilhados, mais tarde.

É um pouco o que acontece neste escrito em que o leitor pode, talvez, sentir perturbada a corrente da leitura pelos termos hebraicos que designam e significam as sefiras. Sem que a sua alma dê por isso sentir-se-á, porventura, chamada, nem que seja pela presença de uma vaga irritação, a imaginar o que ainda não sabe o que é.

Álvaro Ribeiro escreveu um volumoso livro sobre A Literatura de José Régio. Dizia ele que cada filósofo tem o seu poeta com quem dialoga. José Régio terá sido o poeta do filósofo Alvaro Ribeiro.

A verdade, porém, é que, se quisermos encontrar um poeta cuja teoria do amor seja a que o filósofo pensou e ensinou, teremos de reconhecer que, bem mais exactamente do que José Régio, foi Camões quem versejou a sublime doutrina.

Neste sentido, tem inteira razão Fiama Hasse Pais Brandão, quando defende serem Os Lusíadas a obra de um cabalista.

O leitor evocará logo a Ilha do Amor.

Menos se recordará das estrofes sobre Afonso de Albuquerque. As virtudes que exalta no herói estão, segundo ele, maculadas por um grande crime, o de ter castigado cruelmente um dos nobres que o seguiam por este se ter deixado enlear por uma beleza negra em cujo Paraíso de volúpia se deixou envolver. «O mal é só o que os homens fazem aos outros por pensamentos, palavras e actos.»

 

António Telmo



[1] Nota do editor – Publicado originalmente em Nova Renascença, vol. XIII, n.º 48, Porto, Inverno de 1993, pp. 93-96. Republicado em António Telmo, O Mistério de Portugal na História e n’Os Lusíadas, com o título “A Ilha do Amor no Pensamento de Álvaro Ribeiro”, Lisboa: Ésquilo, 2004, pp. 259-263.

[2] A Medicina em Álvaro Ribeiro, Edições Tomé Natanael.

 

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