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DOS LIVROS. 46
01-03-2016 10:55111 ANOS DEPOIS: ÁLVARO RIBEIRO, SEMPRE!
Ciências Ocultas
A kabbalah não é uma ciência oculta, é a arte da palavra, – a filosofia. Isto dentro, evidentemente, do pensamento de Álvaro Ribeiro. Ela constitui o centro de convergência das nove “ciências ocultas” que os antigos referiam às Musas. Na árvore do conhecimento o seu lugar é o de Tiphereth, a Beleza.
Num breve escrito amável que abre o livro de Conceição Silva sobre os Painéis de Nuno Gonçalves, Álvaro Ribeiro caracteriza, por estas palavras, o seu pensamento:
Só as ciências ocultas estabelecem a relação do natural com o sobrenatural. Isto é, a filosofia…
Como se vê identifica ciências ocultas e filosofia. O prefácio foi escrito num dos últimos anos da sua vida. Por esta época e a partir de Uma Coisa que Pensa declarava aos amigos que era positivista. E, de facto, podemos seguir no segundo estudo daquele livro e nas Memórias de um Letrado o crescente entusiasmo pela filosofia de Augusto Comte, que culminou na tradução de um livro Reorganizar a Sociedade e no estudo, claramente positivista, que o antecede[1]. Esta aceitação final do positivismo é comparável, pelo efeito[?], à conversão religiosa de Leonardo Coimbra. Houve quem suspeitasse da sinceridade da conversão num homem que toda a vida afirmou a autonomia, a independência e a auto-suficiência da filosofia, só ela capaz de ligar o homem ao sobrenatural, dispensando a intermediação sacerdotal, dada em muitas páginas como o maior obstáculo a essa ligação. Contudo, porque era difícil manter essa dúvida sobre o procedimento dum homem tão franco, leal, corajoso e desassombrado, a maioria dos discípulos e dos amigos viveram com profunda decepção a falta de fidelidade ao pensamento em que se nutriram. Foi semelhante a reacção dos admiradores de Álvaro Ribeiro. Todo o movimento da filosofia portuguesa se fez a partir da crítica aos positivistas, todos quantos seguiram o filósofo podiam ter tomado vias divergentes mas mantiveram sempre de comum a negação incondicional do positivismo. Esta hostilidade parecia-lhes caracterizar a filosofia portuguesa. É por isso de pensar que a aparente catástrofe do pensamento de Álvaro Ribeiro tem, pelo menos, a virtude de nos fazer procurar a verdadeira razão de ser da nossa filosofia, não numa negação, mas em qualquer coisa de afirmativo e que se aplicasse a toda a nossa literatura de pensamento.
Não será mais inteligente pensar que, se Leonardo Coimbra se converteu ao catolicismo e Álvaro Ribeiro se transferiu para o positivismo, é porque, num e noutro caso, catolicismo e positivismo podiam ser interpretados e transubstanciados à luz das próprias filosofias? Não é de crer que um filósofo abandone tudo quanto pensou, é antes de ver no movimento criacionista do pensamento uma actividade sempre presente e vivente que descoisifica para formar novos movimentos. A catástrofe pode ser interpretada como uma anástrofe de que beneficiam os dois termos da relação.
Sendo o entusiasmo pelo positivismo contemporâneo daquela afirmação posta no prefácio ao livro de Conceição Silva, é de conjecturar que a filosofia de Augusto Comte seja um movimento exotérico. O que é que Álvaro Ribeiro tornou visível nos breves escritos que ao tema dedicou? A noção comteana, antes saint-simonina, do Grande-Ser, da Humanidade entendida na sua relação com a décima Inteligência.
Num famoso ocultista, já aqui citado, – Fabre d’ Olivet – lê-se o seguinte:
O fluido magnético é o próprio homem universal, posto em movimento por uma das suas emanações. Quanto mais forte é esta emanação, pura, brilhante, mais força, pureza e esplendor tem a emoção. Reflecti seriamente no seguinte. Os homens são reflexos mais ou menos vivos, mais ou menos elevados, do homem universal, em cujo espírito se movem. (La Vraie Maçonnerie 113)
Se ligarmos a noção comtista do Grande-Ser a esta doutrina compreende-se que Bruno fale, a propósito, de uma «mescla de misticismo e d’esoterismo»[2]. Anteriormente, na página 65, transcreve estas linhas de um seguidor de Augusto Comte:
Em resumo, a humanidade é um ser bem real, cuja natureza composta fez por longo tempo que se lhe não desse fé da existência, hoje em dia cientificamente estabelecida: é o único verdadeiro Grande-Ser, o único verdadeiro Ente-Supremo!, imenso, pois que cobre o mundo; eterno, pois que abarca ao mesmo tempo o passado, o presente e o futuro; todo-poderoso, porque acção inteligente alguma se pode comparar à sua. É da humanidade sobretudo que dependem os nossos destinos; é ela que nos protege contra as fatalidades exteriores ou interiores, que nos defende contra o mal físico, que nos fortifica contra o mal moral. É ela que diminui para nós o peso das imperfeições naturais e que lhes adoça o amargor; é ela cuja acção tutelar, providência única da nossa terra, nos elevou gradualmente das misérias da animalidade aos encantos e à grandiosidade da vida social. Em ela está o nosso apoio, em ela está a nossa força, nela a nossa consolação, nossa esperança e nossa dignidade! Ela é a razão do nosso dever, a condição da nossa felicidade e a salvação do mundo depende do seu advento imediato”. (Q. Rel. p. 65)
No segundo estudo dos três que compõem Uma Coisa que Pensa, Álvaro Ribeiro parece aderir a esta doutrina:
Curioso é… observar o espírito de negação que se nota na obra de Augusto Comte contra a importância do indivíduo, cuja existência efémera no espaço e no tempo nos preocupa e atormenta, para subordinar o homem singular ao homem plural cujo comunismo se projecta e realiza na religião da humanidade. O pensamento individual é, pois, para o político Augusto Comte somente explicável pelas condições e determinações da sociedade, a que o homem obedece consciente ou inconscientemente.
Publicou estas linhas em 1975. Dois anos depois, no prefácio que escreveu para o livro de Comte Reorganizar a Sociedade, a adesão é clara e insofismável:
Se o progresso natural e cultural do homem se afirma cada vez mais no sentido da socialização, aliás exigida pelas condições cooperativas do trabalho diferenciado mas coordenado, explicável é o movimento socialista, não só porque submete o indivíduo à sociedade, mas porque confere ao ente colectivo e totalitário um predicado religioso.
Certo é que a civilização nos torna cada vez mais dependentes da sociedade, e a gradual intelecção de que vivemos por ela nos impele à volição de que vivamos para ela. A moral de Augusto Comte, substituindo o egoísmo pelo altruísmo, é a expressão sociológica de uma verdade religiosa.
Não agradava a Augusto Comte a palavra Deus. Consequentemente, levou o seu desdém por toda a teologia escrita ou falada, ao ponto de denominar teológico o estado mitológico, contradizendo o primado do monoteísmo bíblico. Filósofo autêntico, nem podia pensar sem relação ao ente supremo, que ora designou por Grand-Être, ora confundiu com a Humanidade. A filosofia de Augusto Comte nunca poderá ser classificada de materialista, mecanista ou ateísta, por quem for sensível à palpitação da vida, amor e espírito que sobem das entrelinhas para as linhas do genial escritor inspirado. (p. 22)
O Grande-Ser ou a Humanidade, de cujo advento depende a salvação, é, nas doutrinas emanatistas neoplatónicas e muçulmanas apenas a Décima Inteligência, que se teria dispersado em parte por múltiplas parcelas de luz na matéria indefinida e obscura.
Um dos temas polémicos da filosofia medieval era o de saber se a reintegração das parcelas trazia consigo a anulação de cada uma delas no todo ou se a mónada se intensificava pelo seu regresso à grande luz primordial.
Toda a obra de Álvaro Ribeiro nos diz a conversação evolutiva das mónadas, pensadas como imperecíveis pelo seu mestre Leonardo Coimbra. Mas esta doutrina deve ser associada àquela que vê na evolução da humanidade o caminho para um estado social em que cada homem é sacerdote, sacerdote de rito familiar secreto e intransmissível. A humanidade constituirá então uma imensa sinagoga no estudo infindável da palavra de Deus.
É certo que a décima inteligência é o reflexo ou o lugar onde mora, pelo movimento “de escala ou de cabala”, a primeira Inteligência. O mal é, porém, uma realidade que se anulará não pelo regresso, mas pelo progresso, que operará a perfeita sinagogia das mónadas. Neste ponto, como noutros, Álvaro Ribeiro segue o ensino de Leonardo Coimbra.
Fica sempre de pé que nós, homens, nos movemos no Grande-Ser, identificado pelos filósofos árabes com o Arcanjo São Gabriel ou Espírito Santo. Diferimos dos insectos, – das formigas ou das abelhas – porque a mónada que cada um de nós é anima de sentido original e irrepetível as vinte e duas letras de que todos somos formados. As combinações são múltiplas mas só têm sentido aquelas que reflectem o logos, que adquirem a dignidade da palavra. A frase e o silogismo nascerão do amor que concita o verbo na relação fraternal com os outros, para que a República dos Homens se concilie com o Reino de Deus.
Assim, o aperfeiçoamento da razão natural para a razão social não é o egoísmo. Aperfeiçoemos o nosso indivíduo por tal forma que o movimento da humanidade para o logos necessite inteiramente dele. O descuido é um pecado imperdoável, talvez aquele a que misteriosamente alude Cristo quando fala do pecado contra o Espírito Santo.
Aqui se põe o problema das relações da filosofia com a política. Em clara oposição a José Marinho e a todo o pensamento acentuadamente místico, Álvaro Ribeiro defendeu que a filosofia se deve exercer entre a contemplação e a acção, de modo nenhum entre a contemplação e o ser. O efeito do pensamento sobre a sociedade dos homens é inegável quando associações como uma das três internacionais movimentam, ao serviço de uma doutrina que lhes convém, todo o jornalismo, isto é, os meios cotidianos de ensino (televisão, imprensa, universidades). O confronto tem como resultado a propagação real do que nas três, em dado momento, é comum. O ensino, por exemplo, se descartarmos as diferenças superficiais de catecismo, será, nas suas linhas essenciais, o mesmo, seja qualquer das três a dominar os poderes do Estado. É que esse comum actuante não depende mais dos indivíduos e das colectividades. Ele alterar-se-á, transportando a humanidade para outros destinos. Neste sentido, o pensamento individual dum filósofo parece completamente ineficaz. Veja-se o exemplo de Álvaro Ribeiro. Expôs em vários livros um sistema completo de ensino, que, a ser aplicado, alteraria de todo em todo a educação do povo português e o levaria a níveis superiores de saber, de inteligência e até de ser. Só que nunca será aplicado por deliberação consciente de um ministro. Se, por ventura, isso acontecesse seria demitido no dia seguinte. Tentou-o Leonardo Coimbra, quando foi ministro da educação, para a sua filosofia do ensino e viu-se quanto tempo permaneceu naquele cargo.
É, pois, inútil estudar, pensar, escrever? Esse movimento da contemplação para a acção é um voo no vazio?
No termo da Dedicatória d’A Literatura de José Régio lemos estas palavras misteriosas:
Vai o livro percorrer mundo, e actuar como outros em profundas zonas incognoscíveis.
Que zonas incognoscíveis são estas?
Se a Humanidade é um ser, um ser em acção, ela, dando a imagem sobre a qual é feita cada uma das suas emanações, possui um subconsciente e um supraconsciente, sob e sobre a mutável consciência política que é a organização da sociedade num dado momento histórico. Leibniz disse algures que os anjos também estudam e investigam, também interrogam o mistério. Os nossos pensamentos não são em vão e às vezes bem terrível é a responsabilidade do escritor, se vai movimentar em zonas incognoscíveis acções de repercussão incalculável. Mas esta possibilidade é, ao mesmo tempo, a garantia da nossa esperança, porque se tudo se passasse, como se vê passar, só no mundo dos sólidos em que se fixam as mónadas nada mais nos restaria do que a submissão e a servidão.
A obra de Álvaro Ribeiro deve ser encarada como uma unidade e o positivismo aristotélico dos últimos anos assume a suprema expressão nesse maravilhoso livro de memórias que fecha com doze chaves um pensamento verdadeiramente secreto. Ele constitui a sua obra prima literária, é o resultado de uma longa prática da arte de escrever. Raramente a relação dos acontecimentos com o pensamento atingiu tão lúcida e bela realização. É único entre nós. A posteridade não se cansará de admirar a serena cadência dos parágrafos, onde cada período, cada frase, cada palavra testemunham como o pensamento, sem o mínimo desvio da enteléquia filosófica, forma e desenvolve a verdadeira vida religiosa, com o mais atento rigor e a mais positiva liberdade.
António Telmo
(Publicado em Filosofia e Kabbalah seguida de Àlvaro Ribeiro e a Gnose Judaica e outros estudos, 2015)
[1] N. do O. – Trata-se do prefácio, intitulado “Pretexto” – cfr. Augusto Comte, Reorganizar a Sociedade, Lisboa: Guimarães, 1977, pp. 9-30.
[2] N. do O. – António Telmo cita Bruno a partir de A Questão Religiosa, Porto: Lello, 1907, p. 67.
VOZ PASSIVA. 67
01-03-2016 10:43António Telmo[1]
Helena Maria Briosa e Mota
Perdi o último dos meus Mestres ainda vivo. A notícia impessoal, em letra de forma, dói. Dói e gela por dentro, não obstante a ardência deste mês de Agosto. Por mais que Pascoaes tenha avisado: «Alerta, alerta, que a morte é certa e a hora incerta!», por mais certo que seja o inevitável, nada é bastante para atenuar a brutalidade da perda. Tenho de falar com a Maria Antónia e a Anahi. Mas não pode ser hoje pois o discurso, para além de errático, sairia certamente molhado e, mais que nunca, agora elas devem ser preservadas.
Lembro-me do dia em que o vi pela primeira vez. Acompanhando a sua jovem filha, mais que visitar o Amigo, nesse dia ele ia visitar o compadre. O convite foi para que eu ficasse, mas os afectos sobrepunham-se à curiosidade e ao empolgamento da estranha que, por mais desejosa que estivesse de fruir da presença e da conversa daquele grupo de eleição, nada mais podia fazer que deixá-los no gozo total do encontro fraterno. A mocinha, mais que todos, mostrava-se desejosa de estar com o Padrinho.
Cheguei a casa e fui reler a História Secreta. Desta feita, já com diferente cuidado. E ordenei, mentalmente, as questões que colocaria ao Autor se alguma vez voltasse à fala com ele.
Tal só aconteceu mais de uma década volvida. Já Agostinho da Silva nos havia deixado quando fui bater à porta de António Telmo, na senda de informação sobre memórias de experiências que ambos teriam partilhado, na busca de documentação que ajudasse a reconstituir a vida daquele que era objecto do meu interesse e estudo. E foi no decurso de múltiplos encontros ao longo de cerca de quinze anos que descobri que, se até então elegera um Mestre, outro se perfilava perante mim: no meu informante identifiquei marcas e características que assim o enquadravam e a que eu dava especial relevo. Acima de tudo, a coerência entre o que fala e escreve e aquilo que, na realidade, fui verificando ser a essência do seu ser.
Mais que a douta palavra e o conhecimento sobre áreas que o comum dos mortais desconhece, a beleza da palavra certa, o raciocínio rápido ou a genialidade da argumentação, António Telmo é um homem que ama o convívio e os seus con-viventes. Adora conversar e fá-lo com a mesma naturalidade com quem encontra no café, na rua ou nos campos.
António Telmo está, em regra, disponível para o outro. Quem quer que seja, todos lhe interessam. Cristãmente, de forma amorosa e desprendida, sem nunca demonstrar pinta de enfado ou pressa, sem dar-se ares de superioridade intelectual. Ele olha e descobre no interlocutor qualquer resquício, remoto que seja, de excelência escondida. Igual a Leonardo, sabe olhar e descobrir, sob a pedra bruta, a beleza que lá se esconde.
António Telmo conversa com as pessoas, mas também o faz quando em comunhão com os animais e com a Natureza. Conversa com os seus cães se vai à caça, com os pássaros, com o sol e com a lua. Adora andar pelos campos, assistir ao nascer da alva, sentir o calor do sol bafejar-lhe o corpo e as entranhas, aspirar os odores húmidos ou cálidos e os aromas que se desprendem da terra, das árvores e das flores. Delira ao descobrir o que na Natureza existe de oculto.
Imagino que é lá que recupera forças e volta a ser menino de calções e fisga no bolso. Porque se há algo que o caracteriza, que sempre nele verei, é o António Telmo-menino, traquinas e gozão, que se diverte a ser, a qualquer momento, criança. Basta olhar para a sua face, de sorriso maroto e riso aberto. Mesmo perante os cenários mais improváveis, António Telmo sorri. E, igual a Agostinho, vê «o outro lado da coisa». Desdramatiza e ameniza. Olha o revés, o lado de trás do lado, e intui ou distingue não só o que de positivo poderá existir no adverso como a excelência que seguramente poderá encontrar no invisível. Sim, porque em Telmo temos sempre de ver a três dimensões.
Se há algo que nunca esquecerei é o seu olhar: o olhar de menino espantado perante as maravilhas do mundo que, em êxtase, compartilha com quem lhe faz companhia; mas também nele se descortina o da criança trocista, que planeia uma qualquer travessura e se desmancha em riso quando nos apanha de surpresa. O olhar mais belo, aquele que mais me enternecia, era o que se incendiava sempre que os seus amores assomavam. Nele e nelas se via espelhada a mansidão do amor, sua razão de ser, pois dele irradiava aquela chama única, criadora da atmosfera luminosa que retrata a unidade familiar.
A si, meu Mestre agora ausente, devo a prática recomendada pela máxima «conhece-te a ti mesmo». Foi por sua instigação, lembra-se?, que aprendi e iniciei os exercícios espirituais segu(i)ndo a filosofia antiga. Comecei a olhar para dentro de mim, a descobrir e a desenredar-me das «teias de aranha» que me apontou. A si devo a arte de fruir o momento presente, de dar valor à beleza do instante e de estar atenta aos pequenos milagres dos pormenores, que assim se tornam pormaiores. Seja o sabor de uma palavra revestida de novo significado, o zumbido de uma abelha que quebra o silêncio, o equilíbrio artístico de um pardalito no frágil ramo, ou as tentativas de caminhada pelo universo do quarto do menino titubeante que nele se aventura.
Foi consigo e pela sua mão que recebi a graça de começar a olhar e a ver para além do óbvio e das rotinas, a ousar calcorrear caminhos nunca percorridos, na ânsia de melhorar como pessoa. Porque era essa a finalidade de quantos integravam o grupo com afinidades electivas…
Sinto a sua falta, Professor: de um momento para o outro, vi-me órfã. A sua chama viva esfumou-se, só pode sentir-se nos corações de quantos tocou e em quem deixou marca. O sopro da sua voz não mais formula palavras. Mas é no seu legado que continuaremos a descobrir a luz que nos ilumina e será sobre a pedra em que lançou alicerces que prosseguiremos a construção do Futuro. Por nós e por Portugal, que acaba de perder um dos seus lídimos cavaleiros.
Diário, Agosto de 2010
UNIVERSO TÉLMICO. 34
18-02-2016 16:29Agostinho da Silva, o marrano do Divino
Pedro Martins
Agradeço à organização deste colóquio o convite que me foi dirigido e saúdo o propósito de se repensar Agostinho da Silva e o seu legado crítica e criativamente. Faço votos de que este desígnio se cumpra. Infelizmente, isso nem sempre tem sucedido nos últimos anos. Quem, pela voz de José Kertchy Navarro, previne que são seus discípulos, se alguns tem, os que estão contra si, prefere, por certo, arrostar a discordância do seu interlocutor a presenciar o espectáculo, lúgubre e ridículo, para o qual, lucidamente, nos adverte António Cândido Franco na biografia que dele escreveu, e que sempre se repete quando topamos «um agostinhozinho, a papaguear de alto a lição do mestre».
A esta luz, pode ser entendido o devocionismo totémico, ainda amplamente vigente, que sobre Agostinho recai. A fixidez sincrónica de uma imagem moldada pela anciania, com o esquecimento da velha máxima de Goethe de que não se anda só para chegar, mas para viver o caminho; a tendência nefasta, daquela tão tributária, ao endeusamento do santarrão oracular, patenteada nas frases soltas, desgarradas, descontextualizadas, a esmo desfiadas, para o pasmo insofrido dos fãs, pela praga cibernética, na razão inversa da presença de Agostinho nas livrarias, agora que parece confinado às feiras de fins de edição e às páginas de uma ou outra selecta; enfim a sugestão de uma autarcia ilimitada, com omissiva abstracção, na formação de um pensamento que, radicado na Escola Portuense, atravessou com fulgor o século XX português – eis factores que contribuíram para desfigurar, desvirtuar, desvirilizar a saga proposta. Agostinho merece mais. Merece, sobretudo, melhor.
O tema que vos trago é “Agostinho da Silva, o Marrano do Divino”. Ao desenvolvê-lo, retomo tópicos do ensaio homónimo com que abri o livro Um António Telmo: Marranismo, Kabbalah e Maçonaria, e acrescento dados novos, lançados na sessão comemorativa do 110.º aniversário do pensador, que o projecto António Telmo. Vida e Obra promoveu no sábado passado, dia da efeméride, na Biblioteca Municipal José Saramago, no Feijó.
Marrano, para abreviarmos razões, é aquele que se converte a outra religião. É o cristão-novo, fruto de uma conversão forçada, como entre nós o foram as do início do século XVI, num estado de terror que perdurou até ao século XVIII, se bem que ainda hoje assistamos, incrédulos mas vigilantes, a tíbias manifestações saudosas dos tempos “gloriosos” do Senhor D. João III e do Cardeal D. Henrique, talvez mesmo entre aqueles que se reclamam do movimento da Filosofia Portuguesa. O anacronismo encerra uma vantagem: é sinal seguro de que esta realidade, felizmente extinta no plano político com o Marquês de Pombal, deixou fundas sequelas nas consciências feridas por séculos de recalcamento, repercutindo-se no curso das gerações até aos nossos dias.
Assim se deverá entender a tese de António Telmo, primeiramente aludida em 1987 em “As Tradições Heterodoxas da Filosofia Portuguesa” e expressamente enunciada, duas décadas depois, no prefácio ao livro Barros Basto – A Miragem Marrana, de Alexandre Teixeira Mendes, onde assume o seu marranismo e nos apresenta Agostinho da Silva como um marrano de estirpe superior, entre outros que fizeram a glória da Escola Portuense.
Vários escritos de Telmo permitem reconstituir uma tipologia do marranismo. Em síntese, falaremos dos que degeneraram no fanatismo, caso dos materialistas católicos cujo recalcamento se transmuta em ódio à religião antiga. Importa lembrar que muitos inquisidores eram de origem judaica. Temos depois os materialistas ateus, como resultado de um esquecimento, de uma prática automática, sem crença, dos novos ritos. E aqui importa lembrar o quadro bíblico do Bezerro de Ouro e a propensão genética do judaísmo à materialidade. Temos ainda a hipocrisia dos judeus secretos, preservando às ocultas, com astúcia, dissimulação e diplomacia, a prática do rito antigo. E se, na visão de Telmo, mais e diversos resultados são possíveis, o caso de Agostinho da Silva, cristalizado no culto popular do Divino Espírito Santo, aí está para o confirmar.
Há o problema da sua ascendência judaica, ainda por averiguar. Mas também uma evidência: o judaísmo é uma realidade cultual, cultural e civilizacional. Não é uma realidade étnica. O que é um judeu? É o aderente ou o praticante da religião do Antigo Testamento. Mas a seguir ao culto, como ensina Álvaro Ribeiro, vem a cultura. E o que, na lição de Moisés Espírito Santo, caracteriza a cultura judaica é o sentido da liberdade, uma forte autonomia individual, a criatividade e a inovação teológica, filosófica, científica e económica (lembremos Moisés, Jesus, Adam Smith, Marx, Freud, Einstein, as muitas dezenas de prémios Nobel). Somarei a errância do andarilho e o gosto do trabalho. Por muito que nos diga que o homem não nasceu para trabalhar, foi Agostinho da Silva um infatigável obreiro, arguindo a debilidade prática de Pessoa e do seu grupinho e transmutando sabiamente o trabalho em jogo, pela mediação da arte. Com Amos Oz e Fania Oz-Salzberger, acrescentarei a loquacidade, a confiança, o humor, a irreverência e a fortaleza.
Mas onde Agostinho, o judeu, se nos desenha melhor, é na literatura sapiencial do Antigo Testamento, onde se lê: “Prossegue a tua vocação”. Esse mesmo Agostinho para quem o principal dever que cada um tem para consigo próprio é o de ser aquilo que é. Bem pode ele, ao debruçar-se sobre Álvaro de Campos – e é bom que nos habituemos aos recalcamentos de Agostinho –, duvidar da ascendência judaica do heterónimo, como se lhe fosse lícito saber mais das criaturas do que o próprio criador; mas é no algarvio de Tavira que, como num espelho, reconhece a decisiva importância daquele preceito, cuja observância merecera a caução de Mestre Caeiro.
De um rascunho de carta de António Telmo para Agostinho da Silva, datada de Granada, 26 de Agosto de 1968, que não sabemos se chegou a seguir para a 59.ª Avenida de Nova Iorque, mas cujo teor vale por si, passo a ler o seguinte:
Meu caro Amigo
Recebi a sua carta. Muito obrigado por ter enviado o primeiro dinheiro. E por tudo o resto.
O Moura também escreveu e diz, entre outras coisas de somenos importância, que o Santiago vai deixar o Centro e transitar para Letras e acrescenta: “Temos de defender o Conceição Silva!” Longe como estou e com notícias dispersas, apercebo-me por conjecturas do que se vai passando nos bastidores. Pelo que a mim diz respeito, naquilo em que posso ser vítima do ódio viperino desses nossos amigos brasileiros, não estou para me incomodar muito com isso. Se, como diz, o Santiago, a Fundação morre à nascença, lá me arranjarei por Portugal. Como, não sei. Mas soube-o eu alguma vez em análogas circunstâncias da minha vida? Agora o seu caso é diferente. Você está no covil dos lobos e ouve ranger os dentes da inveja, o que é bem pior do que escutar muito longe o uivo faminto. Daqui, até se tem pena dos lobos esfomeados de glória e de dinheiro… e de viagens. Parece que o Moura também ouviu uns zunszuns sobre a sua partida para Portugal da boca da hiena, a mulher do lobo. O melhor seria pegar na nossa costela judaica e usá-la como uma picareta para cavar qualquer loja, de vinhos ou de fazendas ou de coisa que o valha, na W3 e deitar um pouco de veneno no copo dos fregueses que a gente sabe. A elas vender-se-ia nylon bem transparente para se rebolarem pelas “calles” de Brasília.
António Telmo sabe mais do que revela, quando afirma o marranismo do compadre. Poderemos, todavia, esquecer o que ele nos diz nesta carta incómoda e procurar mostrar, a partir do que Agostinho deixou escrito, como, na sua obra, se processa o recalcamento. Em Um António Telmo, propus uma sintomatologia, pela qual distingo:
- o recalcamento omissivo: quando a realidade judaica não está presente no discurso, não sendo por isso objecto de representação e de nomeação, bem que logicamente o devesse ser;
- o recalcamento permutativo: quando essa realidade está presente no discurso, e é por isso objecto de representação, embora com outra designação; e
- o recalcamento activo: quando está presente no discurso e é reconhecida – isto é, designada – como tal, para ser contestada.
Telmo vê em Agostinho o marrano superior, capaz de realizar a síntese entre dois credos antagónicos: o judaísmo e o cristianismo. E se para o primeiro a kabbalah e a Maçonaria são vias conciliatórias, quanto ao segundo é no culto do Divino que devemos procurar o segredo da harmonia.
Do francês André Benzimra, provavelmente o maior pensador maçónico vivo, adoptamos a caracterização arquetípica dos credos abraâmicos segundo um princípio electivo. Se as três tradições são completas, cada uma delas privilegia, no culto que presta, um aspecto diferente do mundo divino.
No caso do judaísmo, é Elohim, o aspecto criador da Divindade, o atributo a que preferencialmente se endereça o rito. Melhor dizendo, os Elohim, que nos primeiros versículos do Génesis proclamam a bondade da Criação. No caso do cristianismo, o atributo privilegiado é El Elyon, o Altíssimo, aspecto da Divindade hostil à criação, assumindo características de destruição. Por isso, o Anjo da Morte é o seu valete.
O judaísmo é a religião da manifestação, da produção, da multiplicação. Religião da Terra, a sua principal tarefa é a santificação do corpo, por contraste com o cristianismo, religião do Céu, cuja missão primeira é a da elevação da alma. Ao Islão, culto do Ein Sof, do Deus abscôndito, caberá despertar o espírito.
Assim se compreende que a vida seja para o judeu o maior dos bens, o mais sagrado; e que a única felicidade concebível seja aquela que se pode construir neste mundo. Por isso, a redenção lhe surge como um facto histórico a cumprir-se na Terra, devendo as obras prevalecer sobre a fé.
No período que antecede a partida de Agostinho para o Brasil encontramos n’A Vida de Moisés, de 1938, uma curiosa marcação. Ali nos esclarece, logo no começo, o motivo da inveja que se abatia sobre os judeus, que «eram, de facto, mais inteligentes e activos do que os egípcios».
Inteligência e inquietação, lembrava António Telmo, constituíam os dois indícios de judaísmo sondados pelo faro inquisitorial. Reafirmados até à exaustão em Glossas ou Considerações, inteligência e vontade – e sem esta não se quebra a quietude – serão os pilares da ideação agostiniana na fase seareira.
Nunca como nestes anos esteve Agostinho tão próximo do judaísmo. Ainda que de um modo subconsciente. “Quanto a Deus”, das Considerações, faz ecoar a dualidade cabalística das sephiroth Geburah, o Rigor, e Hesed, a Misericórdia; e “Sobre o êxtase”, do Diário de Alcestes, é um hino à vida terrena e à divina criação, onde o culto dos Elohim claramente repele El Elyon. Mas é em O Cristianismo, de 1942, que esta aproximação mais se pronuncia.
Ali se frisa, na leitura crítica historicista que, por rigorosa, permanece actual, a prevalência da imanência sobre a transcendência; ali se proclamam a bondade da criação e a santidade do corpo. «Jesus acha – escreve Agostinho – que o homem não tem ao seu dispor outra «linguagem de Deus» que não seja a do mundo». E noutro passo: «não há nos Evangelhos um único preceito de ascetismo que envolva violência do espírito sobre o corpo».
Ali se afirma a prevalência das obras sobre a fé, e por isso mesmo se acentua a historicidade da redenção. Faltou a Agostinho concluir – ou, pelo menos, declarar – que, após o desastre de Jerusalém, só com a transferência da ideia do Reino da Terra para os Céus, só com a afirmação, pelos apóstolos, de uma ida ao Reino, e não já de uma vinda do Reino, é que verdadeiramente se cria uma nova religião. Até lá, até esse outro desastre de Jerusalém que ele não levou em conta, e que foi o da repressão de Roma sobre a revolta judaica de 66-70, conduzindo à destruição do segundo Templo e ao fim da primitiva comunidade judeo-cristã reunida em torno de Tiago, Pedro e João, o que há é um ramo, uma tendência ou uma seita do judaísmo, que não se afasta da Sinagoga e que com Paulo, esse sim o verdadeiro criador do cristianismo, irá manter divergências em torno de questões bem mais significativas do que possam parecer aos nossos olhos já muito cristianizados. Como ensina Benzimra:
A ideia cristã de uma circuncisão do coração que poderia substituir com vantagem a da carne é incompreensível e escandalosa para o judeu. A aliança com Deus de nada vale se não for gravada no corpo, no lugar de maior prazer carnal, no lugar anunciado onde se anuncia a multiplicação das criaturas terrestres.
O quartel brasileiro de Agostinho, agora um católico romano, é marcado pelo recalcamento activo. O capítulo V de Reflexão é breviário de antijudaísmo teológico. O pensador mostra conhecer a fundo a polémica contra o judaísmo na Idade Média e faz trincheira com os teólogos cristãos, com seus tratados, diálogos e testimonia, dossiers temáticos compostos de citações do Antigo Testamento, destinadas a mostrar que as diferentes fases da vida de Jesus, a vinda do Messias que por ele se teria cumprido e os dogmas essenciais da fé cristã estavam anunciados na Bíblia hebraica.
Custa ver o Agostinho desta fase contrapondo ipsis verbis «portugueses» a «judeus» e «mouros». O nosso pensador irá ainda escrever, em 1964, em “Ecúmena”, que todas as religiões são aceitáveis, mas só o cristianismo é verdadeiro, por ser o único «que põe o Espírito como Deus», proposição insustentável face ao depurado culto judaico ou ao extremo monoteísmo maometano.
Não se interroga Agostinho, e pena foi, sobre o que verifica na Reflexão: o facto de os judeus não levantarem oposição alguma a assistir reverentemente ao Culto do Espírito Santo. Na sua derradeira entrevista de imprensa, que em Agosto de 1993 me concedeu, e que ainda este ano será publicada em livro, na íntegra, com as partes inéditas, no âmbito do Gabinete de Estudos Agostinho da Silva, recentemente criado pelo Projecto António Telmo. Vida e Obra em parceria com o Centro Cultural Raio de Luz, observa Agostinho que «não há propriamente, nem no que se vê no Brasil, nem na Califórnia, nem na documentação portuguesa, o culto de Deus na festa do Espírito Santo; há o culto do Divino, o culto da obra de Deus».
Eis Agostinho de novo às portas do judaísmo. Após os estudos irrefutados de Moisés Espírito Santo sobre o cripto-judaísmo do culto do Divino, só no plano da recriação mítica, que é onde, bem ao gosto de Pessoa, deveremos, afinal, situar a mensagem profética de Agostinho, se poderá aceitar a redução com que afeiçoa a história aos seus desígnios. O culto é anterior a Dinis e Isabel, e só tardiamente, em âmbito geográfico circunscrito, será a criança nele coroada. Sabemos, por António Quadros, como as coroas utilizadas nas festas do Penedo, em Sintra, se mostravam grandes demais, em meados do século passado, para os meninos Imperadores… Fica ainda por saber se esta criança não será uma insinuação cripto-judaica de Metraton, o Anjo da face da mística judaica, o pequeno Jeová, irmão gémeo da Shekinah, nome hebraico do Espírito Santo, que é frequentemente apresentado sob os traços de um adolescente, para assim se significar um Deus ainda na infância.
Não me deterei na inversão simbólica em que Agostinho recai ao divinizar a criança. Apresso-me a deixar-vos algumas notas sobre a sintomatologia marrana na sua obra, após o regresso a Portugal.
Impressiona o recalcamento omissivo a que, desde Educação de Portugal, de 1970, iremos assistir. Por mais que neste livro o seu ecumenismo se revele já sem peias, no que aliás acompanha o firme propósito enunciado, um ano antes, por Álvaro Ribeiro no final desse seu livro secretamente judaico que é A Literatura de José Régio, nas passagens – e não são poucas – em que Agostinho assenta a sua prospectiva ecuménica no messianismo da religião portuguesa do Espírito, o judaísmo é quase sempre esquecido. Tal a regra, comprovável em passos das páginas 26, 27, 31 e 59 da edição (a 3.ª, de 1996) que utilizei. A excepção aparece na página 50. E o caso torna-se mais notório quando, noutros lugares do livro, a tradição mosaica é trazida à colação, tanto de um prisma histórico como em termos de pura actualidade.
Textos relevantes dos anos subsequentes, como Goa: Cadernos Teológicos e Nota a Cinco Fascículos, ambos de 1971, e Proposição, de 1974, mostram Agostinho reincidente na omissão do judaísmo, mesmo quando abre a porta ao taoísmo, ao xintoísmo, ao animismo, ao ateísmo e ao marxismo.
Porventura por esses anos, em Pensamento à Solta, irá escrever:
Um dia serás do Espírito Santo e continuarás cristão como sendo cristão continuaste a ser pagão: divino e humano te vejo e quero.
É óbvio que tem aqui em mente a teoria das Três Idades de Joaquim de Flora. No entanto, onde se esperaria que escrevesse judeu – por referência à Idade do Pai e ao Antigo Testamento – vamos encontrar a palavra pagão. Uma vez mais, Agostinho recalca – por permutação. O recalcamento é análogo ao que Teixeira de Pascoaes revelou no Marános e que, décadas depois, já tardiamente, continua a revelar no Santo Agostinho, quando ali escreve por este modo: «Sim, a Mitologia é que é o Velho Testamento, pois o corpo está para a alma como está Moisés para o Apóstolo, e o: Crescei e multiplicai-vos para o: Sede perfeitos como o vosso Pai Celeste.» Sublinho a similar caracterização, arquetípica e funcional, dos dois credos, o judaico e o cristão, em Teixeira de Pascoaes e em André Benzimra…
Por expressa, a permutação torna-se evidente para Pascoaes, e por isso o recalcamento se desvanece. A consciência faz enfim valer os seus direitos. Não assim no caso de Agostinho. A prova real de que a religião mosaica ali permanece em falta está em “Superação do Protestantismo”, onde se caracteriza a Idade Antiga, a do catolicismo mosaico, «sob o ponto de vista religioso e moral pelos hebreus» e «sob o ponto de vista cívico e prático pelos romanos».
Tocamos o ponto nevrálgico. Na condição de se libertar o que foi represado pelo recalcamento e, por conseguinte, de se ler judeu onde Agostinho escreve pagão, o aspecto mais vincadamente marrano deste pensamento está onde se afirma: sendo cristão continuaste a ser pagão.
Segundo António Telmo, o marrano superior sente como verdadeiras as duas religiões em que se debate numa tensão dialéctica. Ora, só se pode continuar a ser pagão – isto é, judeu – se continuarmos a sentir o judaísmo como verdadeiro. Como só se poderá continuar a ser cristão, apesar da conversão final à religião do Espírito Santo, se se tiver também continuado a sentir o cristianismo como uma parte da verdade religiosa, aquela que corresponde ao aspecto ou nome divino que os cristãos cultuam electivamente. Agostinho sente o drama e dá-lhe expressão. Drama tremendo este, que mora no íntimo recôndito e por vezes lhe aflora as palavras. Aqui, por via de um movimento silogístico, de que Telmo também nos fala, parece superada a tensão dialética, pela emergência da síntese paraclética que resolve a oposição entre a tese, judaica, e a antítese, cristã. A resolução é provisória, por pouco firme, ou até insegura; mas vislumbra-se que terá sido alcançada. Noutra reflexão de Pensamento à Solta, Agostinho escreverá:
Com todo o respeito pela corajosa persistência judaica e toda a vergonha que a humanidade lhes fez, toda a tragédia vem de que, traindo-se ao melhor de si próprios, se não converteram a Cristo; desprezando o Filho a seu Pai ofenderam; espero que se convertam agora ao Espírito Santo. Joaquim de Flora me acompanha nos votos.
Só na aparência reencontramos aqui o escritor de Reflexão. À margem do que nele persiste da polémica medieval cristã contra os judeus, Agostinho faz votos de que estes tomem assento à mesa do banquete ecuménico. Mas já não requer que renunciem à sua identidade original, isto é, que deixem de ser o que são. Parece agora conceder-lhes paridade com os demais credos, isentando-os, assim, de passarem pela fase intermédia de conversão ao cristianismo.
Termino com um terceiro pensamento à solta. Não é aquele em que o filósofo nos diz: «Não sou do ortodoxo nem do heterodoxo; cada um deles só exprime metade da vida; sou do paradoxo que a contém no total.» Esse, que para o caso até caberia, podereis encontrá-lo, repetido ad nauseam, na Internet. Antes proporei o seguinte, onde, judaicamente, reencontro o primado da vida. E se em nada do que vos disse estou seguro de que por inteiro tenha acertado, resta-me a convicta consolação de ter procurado satisfazer o desejo de Agostinho, quando afirma: «Na realidade não estou interessado em coisa alguma; sim, porém, em viver».
UNIVERSO TÉLMICO. 33
18-02-2016 09:19"O fingimento poético em Agostinho da Silva” (Máscara, ficção, verosimilhança)
Risoleta C. Pinto Pedro
Abordarei o tema do modo como tenho feito em relação a restantes partes da sua obra: do ponto de vista literário, mas não, exclusivamente, do ponto de vista da forma, porque nele, como nos melhores, a poética é essência e a ideia também dá forma.
Andarei entre literatura, pensamento e símbolo.
Entre o fingimento dramático, o fingimento poético e o fingimento biográfico.
Centrei-me, para não me dispersar, num livro publicado em 1943, as Sete Cartas a um Jovem Filósofo, seguidas de outros documentos para o estudo de José Kertchy Navarro: Quem é José Kertchy Navarro? O autor destes textos? Veremos.
Às sete Cartas seguem-se “Os Poemas em Prosa”, um “Esquema Biográfico” e uma “Nota Final”.
A reflexão que apresento é uma síntese inspirada por alguns estudos para dois ciclos do PAT.VO sobre Agostinho.
Este é um livro privilegiado para revelar a presença da máscara da verosimilhança na vida ou na personalidade (nas Cartas), a alma que se mostra (n’Os Poemas) e a ficção que escondendo revela (no Esquema biográfico).
Esta conversa que são as Cartas, parece-me ser, afinal, um processo literário de ocultamento do monólogo interior. Porque está à vista. Apesar de alguma cosmética literária no sentido da verosimilhança, em partes que permitem entrever os pretensos bastidores, como alusões a conversas entre cartas, alusões a contextos conversáveis fora do universo de observação do leitor, que nos deixam com curiosidade e vontade de preenchê-las nos pressupostos contextos do extra texto, como:
“A menos que você prefira vir por cá para que palremos” ou ainda “A nossa última conversa foi tão rápida e em lugar tão pouco propício”,
Outras alusões, porém, aparecem como muito pouco verosímeis. Tal é o caso, quando escreve:
“Você tem razão num reparo que me fez:”, e “como já teve ocasião de me dizer, não possuo muito o talento da construção lógica”. Ora este é atrevimento pouco plausível num jovem discípulo aspirante a filósofo. A menos que se chame… Agostinho da Silva. Assim sendo, se não é alguém fora dele que lho diz, não é difícil tirar as conclusões, assim ficando justificado, para o leitor, o que anuncia:
“esta conversa de hoje tem fatalmente de seguir um pouco o curso errante de outras nossas conversas”.
O que há mais próximo deste “curso errante” que o monólogo interior?
Assim, como afirmei anteriormente, ele escolhe aquele de quem fala. E escolhe, daquele de quem fala, os aspectos espelho em que se revê. Nas Cartas, desdobra-se em si e si próprio, dá-se um nome, José, coloca-se, enquanto Luís, como discípulo de si mesmo e discorre. E temos, parodiando Flaubert com a sua Bovary: “Je suis moi” ou “c’est moi lui”, ou melhor ainda: “C’est moi Luís”, para finalmente: “Luís c’est moi”.
Vejamos como se denuncia:
“você, querido Amigo, estava em transe, em plena crise de faquirismo, e tanto lhe fazia que eu o ouvisse como não; ou falava como uma torrente que rompe o dique e rola sem nenhuma possibilidade de se conter, ou, como me parece que às vezes acontece consigo, falava para se ouvir a si próprio: é o grande perigo das pessoas que falam bem: […] Note que não o censuro nada: você faz o que pode; mas há aí um lado inferior da sua personalidade; ou talvez seja o defeito de uma qualidade.”
Agostinho alerta Agostinho. E continua:
“Você tenciona, pelo que depreendo da sua carta, ser um filósofo. Não no sentido de que exporá doutrinas alheias ou construirá uma sua doutrina e se dará satisfeito com tudo isso, mas no sentido de que tentará pôr a sua vida de acordo com a sua filosofia”.
Como sabemos que Agostinho fez, no máximo que é possível, a alguém, consegui-lo.
Mas continuemos a observar este jogo de espelhos:
“Você, às vezes, dá-me a impressão de que, não tendo coragem para jogar a vida, se entretém em pequenos jogos dentro da vida, é fraco em tudo. Espero vê-lo um dia descer do vigésimo à cautela; a cautela convém-lhe porque é barata e sórdida.”
Seria demasiado chocante este aparente jogo de acusação, humilhação a roçar o insulto, se não estivéssemos num jogo de espelhos de José… Agostinho consigo mesmo. Só isso explica esta frequente incoerência entre o tratamento quase insolente que é dado ao destinatário da carta e a quase suplicante ternura com que se despede de quem acabou de insultar. É de uma escandalosa inverosimilhança:
“E passe por aqui quando puder. Sempre muito amigo.”
E novamente, o inquestionável diálogo consigo, o auto-conselho:
“Digo-lhe tudo isto porque você tem grandes tendências para a saúde absoluta e para forçar;”
Como sabemos ser o caso do nosso colosso( e se tivéssemos dúvidas, a biografia que ACF dele fez tirar-no-las-ia…).
A já conhecida e referida alternância de contrárias convicções, as aparentes contradições, fruto de um processo de espelhamento, são, muitas vezes, temperadas de uma incontida e inequívoca ironia, quando declara, por exemplo:
“Querido amigo, dê-me notícias suas ou apareça; aparecer é melhor, porque, no fundo, detesto a epístola.”
É muito interessante o “no fundo”, que remete para uma prática oposta ao que afirma: Nesta obra, constituída por epístolas, e na vida, em que as cartas foram uma actividade, quase diríamos se não receássemos o excesso da avaliação, compulsiva.
Paralelamente, neste exercício de auto-negação ou véu, uma outra passagem, o desenrolar de pensamentos a que nega a vertente argumentativa:
“Você julga que jamais alguém foi convencido por argumentos? O próprio verbo convencer se devia banir da linguagem corrente: as pessoas aderem, não são convencidas. E às suas ideias, por exemplo, hão-de aderir menos pelo que você pensar do que por aquilo que você for.”
O que entra em aparente contradição com o conteúdo das cartas, plenas de raciocínios muito próximos da argumentação, a menos que nas cartas se dirija a si próprio.
São cartas de filósofo para filósofo. Ou de filósofo para aprendiz. Ou de um Deus criador, desafiador, condescendente e insolente, para um aspirante a filósofo não menos insolente, às vezes, que o pretenso mestre.
O título das Cartas, meramente descritivo, a ter uma natureza interpretativa, poderia ser “Nosce te ipsum”, porque se trata, quase claramente, tão claramente quanto o encriptado pode ser claro, de um monólogo de autoconhecimento em forma de diálogo. Pela análise e pela argumentação consigo. Às vezes, a tocar a habilidosa afronta.
Como é irrequieto, por vezes está de um lado, por vezes de outro. É uma espécie de heterónimo instável, saltitante e imprevisível como ar. A partir de certa altura, previsível na sua imprevisibilidade. Ou um desdobrado pseudónimo que se reparte para melhor se encontrar ou conhecer. Como Deus está para a sua criação.
Talvez a citação que se segue ajude a confirmar o que acabo de afirmar:
“O criador é uma espécie de monstro em que há o homem e o outro; quem desanima, quem se abate, quem chora é o homem: o outro, se é grande, até os desesperos utiliza.”
É isso que tenta fazer José Navarro: transformar o homem no outro. Luís é, arrisco, o homem. Será ele José, o outro? Não temos dúvidas de que ambos são o monstro, ou, segundo ACF, o colosso.
É aqui, nesta bela expressão poética da sua ética da criação, que se desenha o que é para ele o real e o literário, a vida e o fingimento. Muito próximo da visão do, para si, futuro Pessoa:
“Não é quando se está em transe de amor, o único momento em que verdadeiramente se ama, que se escreve ou se compõe ou se pinta: é depois, quando o amor se abateu, quando reina o artista, quando é só em todo o campo e há do amor apenas a lembrança, […]”
Pessoa diz o mesmo de outra maneira:
“É como que um terraço sobre outra coisa ainda. Essa coisa é que é linda. “
Noutra passagem quase de auto-retrato, antecipa ou justifica a visão de ACF, do “colosso”:
“Mas você é puro sangue: tem de saltar e tem de correr; tem de dar tudo o que puder e, se eu tiver alguma espécie de influência, há-de dar mais do que puder. Há-de-se inventar você próprio a você: criar um outro Luís, melhor do que esse que possui e obrigá-lo a criar, a esgotar-se todo na divina tarefa de criar.”
E avisa-se a si mesmo ou continua a fazê-lo, por causa das tentações:
“Pois bem, querido Amigo, por mim, pode você estar seguro: nunca lhe permitirei que faça, do que é, uma profissão, que gele no que pareceu interessante a você e aos outros, que seja uma atitude em lugar de uma pessoa, a figura de cera de um museu, sempre o mesmo, e catalogado.”
Não sei se foram estas cartas que lhe ou nos valeram podermos vê-lo hoje como
“o que é realmente vivo parte todas as molduras e regressa à liberdade da selva”,
mas não duvido que foi ele quem se valeu a si mesmo.
Houve uma moldura mais difícil de partir, a moldura da televisão, talvez nessa permaneça, ainda hoje, por e para alguns em parte aprisionado.
Talvez ele a tenha, misteriosamente, antecipado neste texto, como se soubesse, como em tragédia:
“Há em mim um certo gosto pela improvisação de circo: o clown nem sempre é muito lógico, mas às vezes faz perguntas embaraçosas e lança o remoque que vai ferir no mais fundo da alma o espectador inocente, o que entrou para se rir.”
Sendo ele o clown e o que entrou para se rir.
Talvez precise, contra todas as suas expectativas, ainda hoje, de nós. Ou, mais uma vez, de si mesmo, através de nós. Lendo-o. Dando-o a ler. Profundamente. Pondo fim às limitadas e limitadoras citações mecânica e vaziamente repetidas. O aforismo, genial, se mil vezes desfilado e ostentado, descontextualizado e superficialmente interpretado, pode ser o seu pior inimigo.
Sendo o seu maior amigo a obra lida, estudada, partilhada, publicada, transmitida, discutida. Acesamente, como ele gostaria. Com o respeito que é a ausência de reverência. Vejamos o que diz, numa espécie de auto-retrato, ou pelo menos assim o leio:
“ Deixe firmar-se a primavera também em si, uma primavera temperada de uns arrepios de ironia, com a acidez de Março em lugar das molezas perturbadoras de Maio.”
Não deixa dúvidas, não teria gostado de um culto superficial a que às vezes se assiste, das citações mastigadas, digeridas, cheias da moleza do prêt-à-porter, de um Espírito Santo liofilizado que não celebra a santidade do Espírito na santidade do corpo, de meia dúzia de expressões memorizadas e mecanicamente expandidas até à auto- extinção, pela fuga da alma.
Tenhamos a esperança que ele nos deixa, de que este veneno da simplificação, este macaqueio obsceno a que corajosamente se expôs não nos faça mal e não o mate. Na vida, como na morte:
“Na minha vida, o que foi bom em si veio a ter muitas vezes consequências nada benéficas; e o contrário.”
Quem fala? Agostinho ou José Navarro? Atrevo-me a responder flaubertianamente por ele: “José Navarro c’est moi”.
O auto-retrato, a auto-biografia, a auto-análise, implícita ou explícita, são uma quase constante. Frequentemente debate consigo, coisa a que não conseguia resistirTalvez tenha sido esta prática de debater com ele mesmo, o laboratório onde se criou o colosso, aquele que desde muito cedo não deixava ninguém sem resposta e que muitas vezes deixava os interlocutores sem palavras.
O uso da analogia é frequente e surge no próximo exemplo a propósito do sofrimento na vida como forma de pagar o bilhete da viagem. Aqui se percebe como muitas vezes a herança estoica, que partilha, ainda sem o saber, com Ricardo Reis, aparece como uma máscara ou disfarce do judaísmo. É o caso da interessante metáfora do pão da vergonha que embora não apareça assim designada, é uma réplica perfeita da imagem judaica para todo o bem que se recebeu e que não se fez nada para merecer. Que começa com a criação.
Explico, antes de voltar a Agostinho: perante a sua condição de ser criado à imagem perfeita do criador, a criatura sente o desconforto do desmerecimento. Ora, não pretendendo o Pai que a bênção se transforme em condenação, assim responde à criatura: Pois meu filho, seja como tu quiseres.
Esta poderia ser uma narrativa da queda contada às crianças que existem em nós. Agostinho apresenta a versão para adultos:
“como queria você viver sem um tormento? Estar de graça no Teatro da vida? Não teria boa consciência, não é verdade? Pague o seu bilhete. E o bilhete é sempre sofrer.”
Aqui temos, para além da confissão teatral com que vê a existência, a visão judaica da queda. O ganhar o pão com o suor do rosto, por sua própria vontade. O conquistar aquilo que já se é, para se merecer o que já se tem. Mas não se fica por aqui, estamos em plena doutrina da reintegração dos seres temperada de estoicismo:
“aqui poderíamos dizer que a dor o levará ao que há de mais profundo e de mais nobre no ser humano”,
Modera esta visão muitas vezes crua da vida, a beleza do inspirado estilo:
“chove sobre o justo e o injusto”,
neste caso, a metáfora em taça de antítese.
A última carta pode ser, de algum modo, a chave para os três dons com que abemaldiçoa o jovem filósofo, que talvez seja ele mesmo:
Que falhe,
que tenha uma vida dura
e que se sinta só.
Numa espécie de ética da amizade que define assim:
“Só maltrato os amigos”.
E eu pergunto-me: Será ele o seu melhor amigo? Quem é aqui amigo de quem? Talvez como na canção brasileira: Agostinho amigo de José, que é amigo de Luís, e Luís que ainda é muito novo para ser amigo seja de quem for e muito menos de si próprio…
Que leva um autor a escrever um livro de tão duros conselhos? Talvez o medo de… amolecer?
Vejamos:
“Estou a exigir muito de si? Quem lhe há-de exigir muito senão os seus amigos? Eles receberam o encargo de o não deixar amolecer e, pela minha parte, tenha você a certeza de que o hei-de cumprir. “
Promessa que cumpriu. Pelo menos, em relação a si mesmo.
No Esquema biográfico e Notas, que não poderei desenvolver aqui, por causa do escorrer dos minutos, encontramos o fingimento biográfico.
Mas posso adiantar que, segundo a semi-forjada biografia, José Kertchy Navarro vai ser filho de actriz. Esse actor que, como muito bem afirma Rui Lopo, se adapta aos públicos para quem fala, só poderia ter uma mãe actriz, através da qual vai descansar. Esse incansável trabalhador criará para si uma mãe que consegue “estar horas deitada num divã, perfeitamente imóvel, em silêncio.” Impensável para o filho!
No primeiro texto, as Cartas, o estilo oscila e às vezes concentra o coloquial e o poético.
O segundo, Os Poemas em Prosa, são poesia em estado puro.
No terceiro, a biografia, o estilo, sendo cuidado, não se eleva ao poético, tende mais para o corrente.
Num tão pequeno livro, três climas literários perfeitamente identificáveis. O saudável fingimento, a estética e poética pose, o disfarçado auto-retrato.
Mas recuemos um pouco, à parte incrustada: “Os Poemas em Prosa”, as joias da coroa, entre as Cartas e o Esquema Biográfico, entre a Filosofia e a Biografia a fingir-se de verdadeira, sabendo que ninguém acredita… no que não é de acreditar. Uma espécie de manobra de diversão para desviar a atenção daquilo que verdadeiramente importa:
Que é o que quase se esconde no meio, o tesoiro escondido para quem o souber encontrar. Ou necessitar. Ou merecer.
O título desta parte, “Os Poemas em Prosa” e ao contrário da gralha que poderia parecer mas não é, contém em si o definido “Os”. Não são “Poemas”. São “Os Poemas”. Este é um indiciador, uma espécie de bula onde podemos ler no definido “Os”: a eleição, a escolha, a elevação, a distinção. Como se George Agostinho não se concedesse o risco?, a ousadia?, de tal lirismo, de total ausência de ironia, crítica ou cinismo. Como se se despisse daquele que é, muitas vezes, injustamente considerado o seu estilo.
Aqui, Agostinho rende-se à poética sem porquê. Daqui, toda a clássica argumentação se retirou. Mais música, mais sem máscara. A única, que existe, é a da lírica, o fingimento poético. Afinal… o maior de todos.
Nas Cartas, o fingimento dramático, aqui n’Os Poemas, o fingimento lírico, menos pose, menos maquilhagem, menos luzes, menos cenário. A paisagem é interna e menos racional. Mais difícil de destrinçar…
O aquário transforma-se em harpa, e com máscara de ar, de si em si mesmo disfarçado, com a verdade não se engana:
“Tudo em mim vem e tudo ao mundo eu torno a dar”, “aos outros me entreguei e neles penso, por eles vivo, sem que um momento prenda em mim as harmonias”.
Estamos perante azulejos de um poético painel autobiográfico à frente do qual se esconde, ou revelando oculta aquilo que mais quer que não se saiba, mas não suporta, sempre, não dizer. Por isso o canta. Por isso é harpa e a Éolos pede a voz para que não se saiba, como sendo seu, o que é preciso, ao menos uma vez, dizer:
“Porque em mim sei do que não vibra, do que foi morto desde início,”.
Eis o segredo tão difícil de dizer que só cantado, que só soprado se tolera. Mais fácil é à harpa dedilhar com dedos de vento “o silêncio fatal em que o mundo, para além da minha força, virá a descobrir a fraqueza, que, impiedosa, me condena.”
Aqui está o segredo por detrás da máscara.
“Este homem tinha uma imensa máscara e poucas vezes se desnudou. Era tão bela que se desculpa, que não fazia mal usá-la.
N’Os Poemas podem encontrá-lo travestido de Anjo, de Jacob, de Água e de Harpa... Exorto quem ainda não o fez, a que vá lê-lo e a dizer-lhe que lhe perdoa toda a fraqueza e “tudo o que foi morto desde início”. Que não tem importância. Porque não tem. Porque Agostinho tem o dom da ressuscitação.
Talvez este dom entre o poético e o profético que aqui encontro explique o afã de Agostinho no falar. Era preciso que os ruídos falsos das estátuas mortas não o distraíssem da escuta dos mundos a que ele tinha acesso e onde ouvia as harpas, as gotas de água e a fala dos Anjos e os silêncios de Deus.
“Os Poemas em Prosa”, poesia heroico-lírica, exaltam poética e dramaticamente, numa clássica tragicomédia auto-biográfica em três actos, a sagrada fraqueza. Com compasso, ritmo e melodia, pelas vozes do Anjo, da Água e da Harpa. Teatro de sombras com um único actor vestido de escuro, como um demiurgo, manipulando a luz, por detrás do mundo.
16 de Fevereiro de 2016, FLUL
UNIVERSO TÉLMICO. 32
15-02-2016 10:06De Paulo Samuel, membro fundador do Projecto António Telmo. Vida e Obra, publicamos hoje o texto integral da apresentação do livro António Quadros e António Telmo - Epistolário e Estudos Complementares, lido na sessão que teve lugar no passado dia 29 de Janeiro, no Porto. Co-editado pela Labirinto de Letras e pela Fundação António Quadros com o apoio institucional e científico do nosso Projecto, esta obra foi coordenada por Mafalda Ferro, Pedro Martins e Rui Lopo, que, com João Ferreira, anotaram também o epistolário. O prefácio é de António Carlos Carvalho e o posfácio de João Ferreira.
António Quadros e António Telmo
Paulo Samuel
O livro António Quadros e António Telmo - Epistolário e Estudos complementares apresenta-se como um livro fora do comum. Do ponto de vista editorial e gráfico não evidencia essa singularidade, que só o acto de folhear o volume permitirá apreender. A subsequente leitura, confirmará essa distinção.
Coordenado por Mafalda Ferro (da Fundação António Quadros), por Pedro Martins (do Projecto António Telmo - vida e obra) em colaboração com Rui Lopo, este livro surge a público pelo Labirinto de Letras Editores (isto é, pelo acolhimento que lhe deu o Dr. José António Barreiros), em parceria com a Fundação António Quadros. A fotografia da capa é de Carlos Aurélio e a concepção gráfica de Ricardo Campos. Na contracapa, inscrevem-se duas passagens epistolares que justificam a edição: a importância que cada um dos destinatários atribui às cartas que recebe, nas quais está ausente a banalidade do quotidiano, a confissão de transvios pessoais ou alheios, muito menos a maledicência centrada nos “outros”, de que a epistolografia, mesmo a dos intelectuais, não é isenta.
A singularidade que encontramos nesta obra desenha-se na sua estrutura e densidade. É incomum reunir num só livro – a excepção só se verifica num repositório antológico ou num dicionário de autores – tantas colaborações e referências de ordem biobibliográfica, contextualizando um núcleo central. Este é constituído pelas cartas que trocaram, ao longo de décadas, mas com maior ritmo de frequência na década de 80 do século passado, duas figuras centrais do pensamento português, referenciais no círculo que, com legitimidade, se pode dizer identitário da “Filosofia Portuguesa” – António Quadros e António Telmo.
Após as primeiras páginas que identificam a natureza do livro, oferece-se ao leitor um “prefácio”, assinado por António Carlos Carvalho, que se detém com incidência memorialista no trajecto filosófico e vivencial de ambos os epistológrafos. Um separador marca a passagem para o corpo central do livro, constituído pela transcrição das cartas, tarefa realizada por Pedro Martins e Afonso Cautela a partir dos originais autógrafos que integram os espólios dos dois pensadores. Trata-se de um conjunto de trinta e três missivas, umas mais extensas do que outras, todas importantes, embora algumas de maior relevância, escritas entre 1959 e 1991. Tivesse o livro sido publicado apenas com estes cadernos iniciais e teria a Editora Labirinto de Letras, com o apoio dos organizadores envolvidos, prestado um inestimável serviço e tributo à Cultura portuguesa, em particular junto daqueles que se interessam ou identificam com o legado filosófico da “Escola Portuense”. Porém, a edição idealizada pelos promotores revestiu-se de outra ambição e estrutura, correndo o risco, é certo, de uma configuração labiríntica, que podia, no limite, trair o essencial e responsabilizar o editor, que não poderia arguir com a atenuante da sua marca identificadora.
Objectivando com maior clareza, o que queremos dizer é que a inclusão neste livro de tão grande aparato de notas – a que acrescem estudos complementares, sínteses biográficas dos que firmaram as cartas e de outros chamados à colação, apreciações críticas cruzadas de Quadros e Telmo sobre a produção literária e filosófica de ambos, textos alheios (António Quadros Ferro e Rui Lopo), prefácio (de António Carlos Carvalho) e posfácio (do Professor João Ferreira) – obriga a um certo ritmo de leitura e separação de conteúdos. Todavia, ultrapassado o primeiro instante de estranhamento, se não intimidação, resultante da densidade dos textos, abre-se uma perspectiva ampla no reconhecimento de um manancial informativo, ensaístico e epistemológico que valoriza não apenas o quadro referencial objecto do livro, mas serve de guia para o conhecimento, aprofundado, do mapa heurístico e simbólico que identifica as duas vias que vem trilhando a “Filosofia Portuguesa” e os que lhe estão próximos, alguns na qualidade de propositores de ideias e até de teses.
Isto significa, numa leitura estritamente pessoal, que nos parece apropriado um exercício de releitura deste epistolário: numa primeira fase, seguindo, eventualmente, a sequência interna do volume, ou, em alternativa, optando por se saltar esta ou aquela parte, que não as cartas e respectivas notas; a segunda fase, ou momento, implica que após a leitura integral da obra, se retorne unicamente às cartas, relendo o seu conteúdo na sequência cronológica e alternada com que foram remetidas por cada um dos dois subscritores. É um plano semântico diferente, é uma transfiguração inesperada que ressalta dessas páginas e parágrafos, porque passam a ser lidos, ou melhor, entendidos, à luz de uma quase “gramática secreta” que deixa compreender esse “movimento do homem” que define, na condição portuguesa, o pensar autónomo, numa matriz heterodoxa. É o que permite esta inter e intratextualidade formada pelos contributos aqui presentes, que chega a induzir uma alteridade no corpus do próprio epistolário, facultada pelo registo historiográfico, documental, biográfico, ensaístico e especulativo que serve a avolumar 300 páginas que incluem, ainda, um caderno ilustrativo, com reprodução de fotografias de tertúlias filosóficas (animadas por discípulos de Leonardo Coimbra em Lisboa), de capas da revista Leonardo e facsímiles de duas cartas e de duas dedicatórias, em livro, de António Quadros e António Telmo, obtidos a partir dos originais.
Retome-se, neste ponto, a estrutura da obra. As XXXIII cartas (apresentadas sob numeração romana), dispostas num alinhamento cronológico e cruzado – o que permite o acompanhamento do diálogo epistolar travado entre ambos –, ocupam as páginas 27 a 184. Todas têm anotações, com maior ou menor extensão, de Mafalda Ferro, Pedro Martins, Rui Lopo e João Ferreira. No geral, as notas servem a explicitar determinadas passagens ou comentários que podem ser estranhos ao leitor, identificam situações, iniciativas, locais e vivências, esclarecem relações familiares ou conviviais, revelam causas determinantes ou resultados e efeitos decorrentes da acção dos dois interlocutores, propiciam sínteses biográficas, bastante completas e actualizadas, daqueles que são invocados ou acessoriamente referidos no decurso do carteio, enfim, registam pormenores e informes de inegável interesse e importância. Segue-se um “anexo” que corresponde a um texto inédito de António Telmo, encontrado no seu espólio, intitulado “O estilo de Leonardo Coimbra”, cuja hermenêutica aponta para fase madura do seu pensamento. Há uma tensão latente nessa dezena de parágrafos, própria de quem se abeira de indizível descoberta, através dos quais António Telmo procura revelar o pneuma, interpretar o “movimento do estilo” leonardino, já que na obra deste filósofo “o pensamento é a respiração do espírito”. Leonardo é o filósofo da razão poética, tal como também se quis António Telmo. Daí que o autor de Filosofia e Kabbalah questione, ou rebata, José Marinho, por este ter afirmado que se pode “conceber” pela imagem. Na verdade, é errôneo pretender que uma imagem vale mil palavras, já que para lá do subjectivismo que a percepção visual sempre implica, que a grandeza lexical vai ainda atomizar, não se pode conferir à imagem a garantia, o fundamento e imutabilidade que só o étimo legitima na palavra enquanto signo.
Uma parte ou rubrica intitulada “depoimentos” reedita texto de António Quadros titulado “António Telmo, filósofo da razão estética”. Por sua vez, a presença “crítica” de Telmo traduz-se no texto “António Quadros, a Lua e a Primavera”, versão impressa do testemunho oral que o autor prestara aquando da homenagem a Quadros, realizada enquanto Sabatina no dia 29 de Outubro de 1993, na Sociedade de Língua Portuguesa, em Lisboa. Os “estudos complementares”, que a capa e o frontispício do livro publicitam, incluem três escritos de diferente autoria e propósito: a) no primeiro, de António Quadros Ferro (neto de António Quadros), sob o título “Em memória de uma amizade”, o leitor acompanha as fases de relacionamento de António Quadros com António Telmo, os momentos da criação de revistas literárias, os projectos editoriais e a recepção dos seus livros junto dos amigos; b) o segundo constitui um levantamento, entrosado de comentário ensaístico, feito por Rui Lopo, acerca da presença de António Quadros no “debate cultural português”, no qual se descrevem os contornos de algumas das polémicas em que se envolveu o filho de António Ferro com outros intelectuais do seu tempo, de Artur Portela (Filho) a José Augusto Seabra; c) o terceiro estudo complementar corresponde a um breve mas penetrante depoimento de Pedro Martins, sob a epígrafe “Os privilégios são difíceis”, no qual o autor partilha a corrente de afecto e amizade que o liga, principalmente, a António Telmo, com o qual conviveu em tertúlia ou num relacionamento pessoal mais próximo, em Sesimbra.
As notas biográficas sobre António Quadros e António Telmo correm por conta de Mafalda Ferro e Pedro Martins aduzindo a presidente da Fundação António Quadros, numa reiterada evocação e tributo a seu pai, numerosos e diversos detalhes de ordem biográfica, sobre a vida social e familiar de António Quadros. Pedro Martins regista o essencial de António Telmo, num alinhamento biobibliográfico.
Encerra o volume, a preceder o índice geral, o “posfácio” de João Ferreira, coetâneo e comum amigo de Quadros e Telmo, professor titular da Universidade de Brasília. Para o estudioso da problemática da «Filosofia Portuguesa», este epistolário é a “expressão do diálogo de dois pensadores-filósofos com forte presença no pensamento português e na filosofia da história de Portugal contemporâneo”. João Ferreira remonta às origens da singularidade do pensamento português, realçando os contributos originados na transição de Oitocentos, em particular de Sampaio (Bruno), Cunha Seixas, Junqueiro ou Pascoaes, e chama a atenção para a importância que teve o movimento da «Renascença Portuguesa», ainda hoje pouco estudado.
Depois, é o enraizamento no magistério leonardino, a experiência maiêutica da Quinta Amarela e a deslocação dos discípulos e do legado para as tertúlias de Lisboa, nas quais brilharam as inteligências de José Marinho e de Álvaro Ribeiro. João Ferreira aproveita a circunstância para tecer ainda algumas apreciações acerca do pensamento e da “vida conversada” de Agostinho da Silva, esse “estranhíssimo colosso”, na retina de António Cândido Franco, que teve no percurso vivencial e filosófico de António Telmo um papel fundamental.
Com este livro, António Quadros e António Telmo – epistolário e estudos complementares, cuja intimidade revela uma recíproca amizade, um diálogo sustentado em laços simbólicos e filosóficos, irmanando-os no legado da «Escola Portuense», também se celebra, afinal, o espírito da Cultura portuguesa, na sua livre expressão autóctone.
DOCUMENTA. 05
09-02-2016 17:34[António Cândido Franco, Afonso Botelho, António Telmo, Artur Anselmo, Francisco Soares e José Manuel Capêlo]
O Bateleur foi o sexto livro publicado por António Telmo. Editada em 1992 pela Átrio, chancela de José Manuel Capêlo, a obra pode ser considerado uma novela segundo o critério adoptado por Álvaro Ribeiro em A Razão Animada, onde o género nos surge definido como a narrativa dos modos por que os homens e os povos vão adquirindo a consciência do mal. Com efeito, a sua trama fala-nos da inveja e enreda as figuras maiores de Fernando Pessoa e Almada Negreiros. António Telmo reuniria mais tarde esta narrativa no livro Contos, de 1999, que de novo saiu a lume pela mão de Capêlo, desta feita na editora Aríon.
O lançamento de O Bateleur teve lugar na Galeria Nasoni, em Lisboa, no dia 10 de Dezembro de 1992. A apresentação da obra esteve a cargo de Afonso Botelho, amigo e condiscípulo de Telmo no magistério de Álvaro Ribeiro e José Marinho. Na mesma sessão, foram ainda lançados dois outros livros da Átrio: Estruturas Simbólicas do Imaginário na Literatura Portuguesa, de António Quadros, apresentado por Artur Anselmo, e Eleonor na Serra de Pascoaes, de António Cândido Franco, apresentado por Francisco Soares. Na assistência encontravam-se, entre outros, Natália Correia, Fernando Dacosta e Abel de Lacerda Botelho. E António Carlos Carvalho, que escreveria para o Diário de Notícias o apontamento que em seguida publicamos.
[António Telmo autografando O Bateleur. Ao seu lado, António Carlos Carvalho]
Anotações
- Autores há que vivem numa certa «marginalidade», longe das bocas do mundo e dos tops de vendas, mas cujas obras, aparentemente obscuras, escondem uma luminosidade que não devemos ignorar e que acabará certamente, um dia, por emergir das trevas em que o mercado e a ignorância a querem sufocar. Felizmente ainda há editoras que apostam nesses «marginais» – podíamos citar os casos da Assírio & Alvim, da Guimarães, da Vega e da Átrio. Falamos nesta última até porque acaba de lançar simultaneamente três títulos de três dos tais escritores à margem das modas (mas não sinais dos tempos): «Le Bateleur», de António Telmo, «Eleonor na Serra de Pascoaes», de António Cândido Franco, e «Estruturas Simbólicas do Imaginário na Literatura Portuguesa», de António Quadros. Uma aposta desta envergadura não pode passar despercebida.
- «Le Bateleur» é a primeira carta do Tarot, como se pode ver na capa do livro de António Telmo. E constitui a chave que foi dada ao autor (pelo seu «alter ego» Tomé Natanael) para decifrar o famoso retrato de Pessoa feito por Almada Negreiros. Todo o texto (apenas meia centena de páginas, mas deliciosas de ler e profundas nos conhecimentos que encerram e nos transmitem) conduz o leitor a domínios que são caros a António Telmo desde há muitos anos e que fazem dele o mais esotérico (e por isso mais interessante), discípulo de Álvaro Ribeiro, sendo assim o mais original pensador das últimas gerações da Filosofia Portuguesa (que existe e recomenda-se), como salientou Afonso Botelho na apresentação do livro. Um texto de um filósofo do espírito para despertar os que conseguiram sair do adormecimento encantatório em que foram mergulhados pelo chamado «mundo moderno».
[António Telmo autografando O Bateleur. Da esquerda para a direita: Natália Correia, Jorge Preto e Abel de Lacerda Botelho]
- António Cândido Franco chama a atenção para um outro Pascoaes, diferente do «oficializado» e que, «com um saudosismo inofensivo atrás de si, tratado sempre mais como excepção do que como criador genial, é tão ridículo como o Camões que nos deram a estudar no liceu ou como o Pessoa que nos têm dado a conhecer hoje nos jornais, nas comemorações oficiais e até na publicidade comercial. Em meu entender, é preferível um autor esquecido, mas intacto, que um autor consagrado, mas domesticado e deturpado». Subscrevemos.
Finalmente, António Quadros, abordando outra vez as obras de Antero como de Raul Brandão, Pascoaes e Pessoa como Natália Correia ou Ruben A., sublinha que «neste período de desconfiança, de juízos apressados e de falta de maturação quanto ao essencial, convém lembrar que o imaginário de cada povo é o seu Universal, exactamente na medida em que possa revelar a sua originalidade virtual e actual, e transformar as formas estruturais extintas ou arrefecidas em arquétipos dinâmicos, em sujeitos que serão criadores de civilização, não quando se fechem em si próprios e sobre o seu passado, mas quando se abram para os mais altos horizontes futuros, pensados que sejam por uma filosofia criacionista do espírito».
- Não, não são livros de Natal, sugestões de belos presentes que enchem os olhos nesta época de presentes obrigatórios: São textos que nos aquecem a alma, quando nos desgostamos da tal apagada e vil tristeza em que ainda vivemos – até quando?
António Carvalho
[No primeiro plano: Natália Correia. Na fila de trás, Fernando Dacosta e Maria Violante Vieira]
CORRESPONDÊNCIA. 30
06-02-2016 20:41CARTAS DE ANTÓNIO TELMO PARA ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO. 11
ESTREMOZ
31 de Julho de 1996
Meu estimado distinto Amigo
Infelizmente, o que tenho a dizer-lhe sobre as relações pessoais do Almada com os da filosofia portuguesa é muito pouco. Eu cheguei depois das reuniões do Palladium em que participava também o pintor que, então, publicou não me lembro em que jornal a famosa entrevista sobre a cegueira iluminada de Homero.
Claro que havia um fundo comum e uma estrela análoga para todos eles, com a fatal excepção de alguns que por ali passavam só para “abichar” (é assim que se escreve?) os condimentos necessários ao cozinhado do seu bolo literário-social. Não foi evidentemente o caso do grande pintor, tão interessado como Álvaro Ribeiro em trazer para o ensino do Estado a arte de ser português de Teixeira de Pascoaes. Para confirmá-lo basta ler o que Almada escreveu sobre Portugal.
Se eu me posso considerar um dos da filosofia portuguesa, talvez sejam de referir sobre o que me pede as minhas conversas a sós com o visionário da Nau Catrineta num dos Cafés da baixa lisboeta. Claro que, sendo então muito novo, o pintor da Nau dos Cátaros no cais de Alcântara envolvia-se para mim do prestígio de que ele gozava entre os seus pares do Café Palladium que me ensinaram a venerar Santa Catarina, patrona da filosofia, a admirar Camões que amava Catarina, a fazer da minha vida interior um Alto de Santa Catarina.
Não sei se isto lhe serve. Espero que estas águas passadas o ajudem a mover o seu moinho. As águas que passam são agora para mim as do seu livro(1) e que por três vezes fiz correr perante os meus olhos.
Não posso, no entanto, esconder-lhe que à corrente das suas ideias sobre o que poderíamos chamar de “poesia fonética” opus algumas resistências, de resto já enunciadas nas páginas que me dedica e que li com gratidão, não só pelos elogios como sobretudo por considerar discutível o que escrevi, sob certo aspecto, na minha Gramática. Resistências ou pedras que tem por fim não parar o curso das suas águas (o que é impossível e indesejável) mas desviá-las noutro sentido.
Por outras palavras: não será possível prolongar a sua visão de modo a fazer perder-se, na distancia que criasse, o valor que o António Cândido atribui aos manipuladores de "legos" (é assim que se escreve?) que, pela substituição da vogal, constitui a degradação do “logos”? Busco sempre a significação. Como muito bem diz, as palavras com referencial não significam. Designam. Anulada a sua relação com o que é referível, fica só o som e nesse som puro vê você o valor. Para mim é aí que a significação pode ou não pode surgir. Se surge é para significar o invisível puro ou o invisível que há nas coisas visíveis. Um poema como o dos índios Comanches pode, dadas certas condições, libertar energias do vasto mundo intermediário, provocando o êxtase em que o corpo participa. Mas como esse mundo tem também os seus escanos, os versos automáticos dos surrealistas captam energias bem inferiores que são as que estão implícitas em toda a fenomenologia espírita. A mais alta poesia não é, porém, a que exprime ideias (Antero de Quental) na sua forma abstracta, vestidas ou não de roupagem imagética, mas a que traduz ideias viventes (Teixeira de Pascoaes) em que o corpo delas e o que as anima são um só. Há, depois, ainda num plano mais baixo do que a poesia automática, a poesia feita a frio, literariamente calculada (Jorge de Sena) para obter efeitos no espírito daqueles que só vêem através dos livros que a cultura garante.
A poesia de Pascoaes é também poesia fonética, em que o sentido das palavras e das frases ressoam nos fonemas e, através deles, se transfigura e transubstancia. Admirável poeta é também Eugénio de Castro, que eu conheço apaixonadamente desde a minha puberdade. É um nobre e alto discípulo de Péladan.
Vou escrevendo ao correr do teclado e agora reparo que só por terem sido o resultado do seu livro as considerações que vou deixando se desculpam de um certo tom didáctico que espero não lhe seja desagradável. Falando como o Afonso Botelho, o encanto que o livro causou em mim degenerou no encantamento com que, inconscientemente, pretendo prendê-lo. Terão até sido palavras escusadas porque o António Cândido sabe bem aquilo por que divergimos e aquilo por que convergimos. Fico-lhe, como disse, muito grato pelas objecções que pôs à minha Arte Poética. Aqui em Portugal ou se elogia um escritor ou se faz o silêncio à sua volta. Livros são cartas que escrevemos. Merecem resposta franca discutindo as teses, procurando para elas novos teoremas. É o que faz nas quatro páginas que me dedica. Muito obrigado por dar existência ao que tenho pensado.
Li encantado o seu livro. Admirei a coragem das suas nobres palavras sobre os críticos literários. Fiquei radiante de o ver valorizar Eugénio de Castro e António Feliciano de Castilho, que nunca li, apesar de o Álvaro Ribeiro mo aconselhar frequentemente. Aplaudo sinceramente a sua ajuda a jovens como o Botto-Semedo, o Avelino de Sousa, o Alexandre Vargas ou o João Raposo Nunes. Ângelo de Lima tem segredos na sua loucura que talvez não estejamos em condições de conhecer. E o Raul Leal?
Um fio subtilmente luminoso separa o satanismo do paracletismo. Somos nós capazes de o discernir? Estamos, para tal, verdadeiramente interessados em vê-lo? Importa ou não distinguir um do outro?
Um grande abraço do seu muito amigo
António Telmo
Gostaria de ler o Tratado de Metrificação de A. F. de Castilho. Onde poderei obtê-lo?
____________
(1) Nota do Editor - António Telmo refere-se a Poesia oculta: estudos sobre a moderna lírica portuguesa. Lisboa: Vega, 1996.
CORRESPONDÊNCIA. 29
06-02-2016 19:45CARTAS DE ANTÓNIO TELMO PARA ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO. 10
Estremoz, 8 de Junho de 1991
Amigo
No dia 24 de Junho lá estarei, a Deus praza, penso que na esplanada perto do edifício, se ainda é o mesmo, onde trabalha ou, às 17 horas, dentro do edifício. Tenho uma boa alegria a pensar no jantar juntos.
Aquilo não tem explicação, a “Dama de Oiros”, que v. prefere escrever sem iod. Lá sabe porquê. Mas é esplêndido conversar sobre o que não tem explicação como se a tivesse.
Quanto ao 5 de Outubro, falaremos depois, entre nós. O que me atrai é o conhecer esses dois grandes espíritos, de que tenho boa notícia por intermediários. Li de um fôlego o Bruno anarquista[1]. Acho óptimo, mesmo que ele não o tivesse sido. Muito mais de acordo com o nosso Bruno do que vê-lo a resfolegar impotência sobre uma mulher. No entanto, o romance é belo, se trocarmos o protagonista ou lhe dermos a verdadeira identidade. V. deve ter inspiração: o anarquismo, se somente pensamos bem quando pensamos o contrário dos outros, como dizia o Eudoro, é a doutrina dos “santos malditos” e aspirantes, que temo bem que sejamos todos. Um grande abraço do seu
António Telmo
[1] Nota do Editor – António Telmo refere-se ao opúsculo A Ideia de Deus e o Pensamento Libertário, de António Cândido Franco, Separata do n.º 55 (Inverno de 1991) da Revista A IDEIA.
FOTOS COM HISTÓRIA(S). 07
06-02-2016 18:33O fotógrafo é Agostinho da Silva. O lugar é Sesimbra. Sesimbra, o lugar onde se não morre, segundo nos conta António Telmo o que Agostinho terá sugerido. Sesimbra, uma das capitais agostinianas, estatuto que a recente criação do Gabinete de Estudos Agostinho da Silva, numa parceria do Projecto António Telmo. Vida e Obra e do Centro de Estudos Culturais e de Acção Social Raio de Luz, veio sublinhar. Não conseguimos identificar a senhora da extrema esquerda. Ao seu lado está Maria Fernanda Farinha, que gentilmente nos cedeu a fotografia, Rafael Monteiro, um dos grandes amigos sesimbrenses de Agostinho, e Maria Violante Vieira. A imagem é do final dos anos 60, início dos anos 70: ao fundo, em Argéis, sobre a Praia da Califórnia, vê-se em construção o enorme prédio onde Maria Violante iria adquirir dois apartamentos. Num deles, terá Agostinho, até ao fim da vida, a sua segunda habitação.
DOS LIVROS. 45
26-11-2015 15:55Dois filósofos portuenses e a simbólica do Porto
O portuense Sampaio Bruno baptizou um dos seus obscuros luminosos livros com o nome de Porto Culto. Se lhe lermos em voz alta as letras, esse nome soará porto oculto. E a cidade, recentemente celebrada por Dalila Pereira da Costa num livro admirável, aparecerá a cifrar e a significar ou a esconder um Porto invisível, o Porto do espírito, episodicamente assumido como culto, cultivé. A cabala está tanto mais justificada quanto, nas páginas do livro de Bruno, obscuro filósofo e filósofo obscuro, explicitamente se compara a filosofia a uma viagem ou se refere uma peregrina viagem metafísica que tem como barco a metáfora.
«A beleza suprema da metáfora!», escreve maravilhado o pesado pensador. A dolorosa experiência do exílio político fora causa de outro livro: as Notas do Exílio. Esta palavra exílio pode interpretar-se como «fora da ilha, longe da ilha». Então, o Porto donde parte forçado para França para mais tarde a ele voltar, será a ilha. Como, pois, esta interferência, o estar um no outro o mundo da experiência terrena e da experiência sobrenatural? É uma esfera a significar outra? Ou, mais do que significação, é a dupla face do ser numa só vivência?
«Viajar para quê?», pergunta Sampaio Bruno e logo responde: «Para voltar.»
Absurda viagem, que só não é inútil porque a perpassa o mistério da reintegração. Mas, esquecidos, só o vazio de ser e de pensar invade a nossa percepção diminuída. O tédio apodera-se do viajante.
O homem é, entre os animais se é animal, entre os anjos se é, como pensa Bruno, uma parcela de luz perdida, a única inteligência que experimenta o tédio. Aborrecemo-nos. Como havemos de fazer para vencer o aborrecimento? Ou nos automatizamos na rotina do trabalho ou nos damos ao prazer excessivo, ao prazer, por exemplo, de falar incansavelmente o dia todo, ou, se os deuses o concedem e a alma não falta, encontramos na vida interior, na iniciativa do pensamento, o instante repetido em que luz, mais ou menos nítida, a nossa Ideia de Deus. Essa iniciativa é, no espanto de ser que a promove, o princípio da filosofia. Mas a filosofia é, em Bruno, uma arte poética, pois tem como organon a metáfora.
O que é a metáfora?
Só na retórica primária para colegiais a metáfora é uma figura de estilo. É útil que o seja para lhe vermos o rosto. Ela é, porém, a translação do pensamento, não uma mera rotação de atributos à volta de uma mesma substância. À inútil poética que sempre diz o mesmo e que na aparência prestigiosa do movimento das imagens conta sempre aquela história de que todos estamos cansados substitui Bruno a poética da translação do sentido, pela qual este busca o outro transcendente que instaurará uma nova história, mudando a face do mundo.
Quem leva esta poética às últimas consequências é José Marinho.
Espíritos presos ao mundo sensível, ao mundo das imagens, rompemos dificilmente por essa selva da abstracção que é a Teoria do Ser e da Verdade. A primeira impressão é, pois, de que se trata de um livro de pensamento eminentemente abstracto, em que nos falta o suporte da imagem para a ilusão do pensar. Dizemos ilusão do pensar no sentido de que o pensamento não se realiza em nós mas a sua ilusão.
Mais atentos, verificamos que tudo nele é imagem, imagem é certo, «que se cinde constantemente de si», mas que, ao cindir-se, arde e deixa um rasto de luz acendendo-se e apagando-se e é, ainda, no lento e pesado esforço do nosso pensar, o pretexto para voltar a cair no mundo sensível. Escrevemos, sem dúvida, para quem leu e, sobretudo, para quem lê a Teoria do Ser e da Verdade.
A dificuldade não está em ser um pensamento abstracto. Está no articulado e na articulação das ideias, visíveis na transparência instantânea das imagens.
Há, no entanto, nesse livro, imagens que se demoram. A mais evidente é, como Bruno, a da viagem.
A teoria, isto é, a filosofia é comparada a uma viagem. Frequentemente ocorre a comparação. É dada em termos tais que assistimos a esse cindir-se de si própria da imagem, movimento no qual José Marinho vê a condição de haver imaginação ao serviço da filosofia.
A figuração sensível da viagem é a de um movimento realizado por um viajante que se desloca de um lugar para outro. Geometricamente, é a de um ponto que se desloca numa linha ou que vai formando a linha na medida em que se desloca. Então, dir-se-ia que a filosofia, enquanto viagem, procede do conhecido para o desconhecido. Muitos imaginam assim a filosofia: temos um mundo conhecido e bem iluminado, o mundo sensível ou o mundo das noções imediatas e depois uma zona de penumbra onde começa o desconhecido.
Inverta-se, porém, o movimento e parta-se do desconhecido para o conhecido. Eis, nos termos de José Marinho, a «viagem insituada», sem ponto de partida e de chegada, sem lugar ou lampo, «viagem na qual nasce o próprio viajante».
Mas o que é aqui o desconhecido?
É logo de início o próprio mundo sensível e daí o enigma primogénio da sensação. Eis que habita em nós. Não há pontos firmes e toda a dificuldade está em movermo-nos onde não há lugar.
Desta viagem disse Bruno que o barco é a metáfora. Escreveu maravilhado: «A Beleza suprema da metáfora!» Nele, porém, a imaginação ainda não se cindiu de si. A noção de insubstancial substante, central no pensamento de José Marinho, se está presente em Bruno, ainda se não assumiu nele em toda a verdade. Por isso na «Teoria» se diz que é necessário transcender (não eliminar) a imagem do veículo ou do barco. Marinho, ao dizer isto, pensava certamente em Sampaio Bruno.
O insubstancial substante é o espírito. Eis o verdadeiro promotor da metáfora humana, cósmica e divina que ao cindir une e ao unir cinde o Todo e o Nada, da visão unívoca em que tudo é para a extrema cisão em que nada é.
Eu não posso representar-me a viagem de um ponto para outro ponto, de mim para o desconhecido de mim, porque não sou o sujeito do conhecimento. A condição da «viagem insólita» é então a de me assumir como um enigma, separando-me da ilusão do mundo exterior, no início ilusão e realidade no termo, pela descoberta da minha interioridade.
«Tu que estás aí e me lês», parece dizer José Marinho, «já alguma vez te assumiste como homem interior? Saberás então que vives envolvido na própria imaginação de ti, mas é possível que ressurjas na ideia, se se rompe a auto-suficiência da tua vida mental, de que ignoras, com o ignorar próximo de quem toca o ignorado, origem e princípio da tua interioridade. É o momento fundamental em que interrogas não já pela origem e princípio das imagens que em ti e lá fora nascem, mas do teu próprio ser.»
Quem sou eu? Quem é eu?
A este momento, a esse momento, àquele momento chama José Marinho o da descoberta da subjectividade, do encoberto.
É então o sujeito do conhecimento o espírito?
Poderá dizer-se dele que é sujeito?
Aqui há o risco de ver o pensamento do nosso filósofo, ao afastar-se de Sampaio Bruno, dissolver-se numa concepção de tipo oriental em que tudo é pelo uno e fora do uno só é em modo ilusório. Esse risco foi precisamente o que ele conseguiu superar pela noção da cisão no seio da visão unívoca. E irá encher de realidade e de verdade os extremos aparentemente mais remotos onde parece não chegar a presença do Espírito. A sensação, extremo ocidental da alma, surge como um acto real de conhecimento, agora que sabemos interrogar por quem sente.
José Marinho herda do seu Mestre Leonardo Coimbra a valorização cristã da sensação. Ama o mundo exterior e as extensões cheias de luz. Dizia-me ele uma tarde nos jardins da Gulbenkian, olhando maravilhado umas flores amarelas: «Em novo não gostava do amarelo.» O sol interior rasgava, dentro de si, o espaço exterior das formas luminosas. Sim, «na instantaneidade da sensação é dado todo o imenso mundo visível».
Esta inversão destrói a perplexidade de nos sentirmos exíguos perante o enorme mundo. O imenso mundo é, afinal, apenas um relâmpago. Um relâmpago que perdura. Basta abrir os olhos.
Todavia, vemos mas o mistério subsiste, na imobilização milagrosa da luz. Melhor, só há mistério enquanto se vê.
Quem vê? Voltamo-nos para a frente como se fôssemos um espelho do que ali se patenteia, mas é por detrás de nós que está o verdadeiro objecto. Por detrás de nós? Precisamente na nuca, onde os dois olhos de Jano – os ouvidos? – contemplam o infinito da «viagem intérmina».
António Telmo
(Publicado em Filosofia e Kabbalah, 1989)