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VOZ PASSIVA. 134
29-08-2023 09:30António Telmo e a História Secreta do Figurado de Estremoz
Mara Rosa
Imagem: Amor é cego, de Afonso Ginja. Colecção particular. Foto tirada daqui.
Gramática Secreta da Língua Portuguesa foi o primeiro livro de António Telmo de que tive notícia, cujo título bastaria para percebermos, na sua escrita, a qualidade de unir numa simbiose perfeita os predicados Razão e Mistério.
De então para cá, uma década de permeio paulatinamente desvela aos meus olhos um ser raro, dotado de uma prodigiosa arte poética que alia a uma imaginação criativa. A sua narrativa é simultaneamente clara e profunda, transversalmente plural e universal.
Assim como as tradicionais narrativas míticas, os contos de A. Telmo de certa forma reproduzem o nascimento do cosmos, na medida em que transformam “o tempo, o espaço e o mundo”. Ainda a par com o mito, as suas histórias, plenas de signos muitas vezes associados a realidades arquetípicas, têm sempre um fundamento moral, no sentido heterodoxo da palavra, que induz à reflexão.
Por fim, Telmo cristaliza na sua escrita as paisagens afins, físicas e mentais. Penso em Almeida, a fortificada paisagem raiana aberta a planaltos a perder de vista, berço que o recebeu à nascença, ou Sesimbra que lhe semeou na alma o génio de uma filosofia atlântica... Mas penso sobretudo em Estremoz, terra em que o visionário assentou arraiais, terra da Rainha do culto do Espírito Santo, edificada com o gélido mármore arrancado ao solo, terra de pequenas nascentes e de barrocais, cavados à enxada pelas “bonequeiras”, mulheres sem profissão reconhecida que deram à luz os Bonecos de Estremoz.
E aqui me detenho. Não nas figuras religiosas que no séc. XVI, pelas mãos de plebeias mulheres de parcos recursos, inauguraram a condecorada tradição artesanal estremocense. Detenho-me nas figuras profanas (ou carnavalescas) dos Bonecos de Estremoz, surgidas já no séc. XVIII: O Amor é Cego, o púcaro ornamentado e A Primavera (para a temática do figurado de Estremoz, ver estudos de Azinhal Abelho, Joaquim Vermelho, Hernâni Matos, Hugo Guerreiro).
Detém-me esta tríade plena de carga simbólica, como me deteve quando, em 2019, folheei o livro História Secreta de Portugal (A. Telmo, ed. Zéfiro, 2013). Neste livro, onde o seu autor alude ao hermetismo simbólico do Mosteiro dos Jerónimos e à sua relação iniciática com a figura de Nicolau Coelho, encontrei múltiplas relações com estas três imagens do figurado português, onde facilmente caberia incluir, num trabalho com outra amplitude que não esta pequena evocação, os elementos simbólicos da figura cerâmica da Rainha Isabel de Aragão.
Nas páginas desta História Secreta de Portugal encontramos os nós manuelinos modelados nas botas de O Amor é Cego, o coração ferido por 3 lanças ( p. 53 do livro) e a cornucópia de flores, ambos os elementos seguros nos braços do Amor, junto ao peito; nas páginas deste livro vislumbramos ainda a mais badalada das figuras da barrística de Estremoz, sempre representada de venda nos olhos, na seguinte passagem: “o busto de um homem, visto de frente, com os olhos atados por fios (...)” (p. 66).
Nesta obra, que tanta informação condensa em escassas páginas, também os escudos dos Jerónimos esculpidos em pedra, contendo as cinco chagas de Cristo (p. 53), remetem ao figurado, nomeadamente à Primavera, com a sua semicircunferência em arame, contendo comumente sete ou nove escudos feitos em barro, embora os mais recentes aparentem representar uma flor, são circulares, e têm 5 pontos no interior que podem ser pétalas ou chagas.
Por fim, no púcaro ornamentado com flores e uma espécie de avental, temos o ônfalo do mundo, referido pelo autor em passagem sobre a iniciação, mas nele também temos, simbolicamente, uma fonte (p. 66).
Fica assim evidente, a partir das pistas já abordadas que António Telmo deixou na sua História Secreta de Portugal, uma forte ligação entre os elementos do figurado de Estremoz acima expostos e os vários estágios da iniciação de um cripto-judeu — apresentados na obra consultada.
25 de Agosto de 2023
EDITORIAL. 30
21-08-2023 00:02Évora, o destino e o sentido
Passam hoje treze anos sobre a morte de António Telmo.
Foi em Évora que o filósofo partiu para a grande viagem.
Em 1 de Maio de 1964, em entrevista a’O Benfica Ilustrado, após frisar que a sua simpatia futebolística pelo Lusitano de Évora vinha logo após o benfiquismo que então era o seu, afirmou encontrar-se ligado a Évora pelo destino: – ali fora soldado, ali casara, ali era professor. Não poderia, porém, supor que o fado o vinculava de modo tão radicalmente existencial à capital alentejana.
Facto é que ao longo das décadas, beneficiando da proximidade a que as suas sucessivas moradas de Redondo, Borba ou Estremoz o deixavam da cidade, sempre Telmo regressou a Évora, ali cultivando muitas e boas amizades.
O Projecto António Telmo. Vida e Obra comemora dez anos de existência no próximo dia 20 de Novembro. Uma década de dedicação ao legado do filósofo da razão poética que pretendemos assinalar com um conjunto de iniciativas. A primeira será justamente em Évora, em 7 de Outubro. “António Telmo em Évora” se denomina a sessão que, para além de mais uma apresentação, a cargo de António Cândido Franco, de A Glória da Invenção – Uma aproximação ao pensamento iniciático de António Telmo, de Pedro Martins e Risoleta C. Pinto Pedro – livro editado pela Zéfiro e já nas livrarias em todo o país –, se realizará uma mesa-redonda com amigos eborenses de Telmo, moderada por Rui Arimateia e para a qual estão já confirmadas as participações de António Cândido Franco, Francisco Soares, Maria Sarmento e Manuel Calado. A iniciativa, que terá lugar no Convento dos Remédios – uma palavra de especial agradecimento sendo devida a Rui Arimateia –, nasce de uma parceria entre a Câmara Municipal de Évora e o nosso Projecto e constituirá, por certo, uma bela e justa homenagem a Telmo da parte de quantos com ele conviveram na bela cidade transtagana.
Foi Évora destino e continua a sê-lo. Mas hoje é também sentido.
VOZ PASSIVA. 133
21-08-2023 00:01
Para António Telmo
Risoleta C. Pinto Pedro
Da história à tradição a voz ecoa
No distante intervalo em que soa
O Anjo do Bem: no direito lado
A letra começa, tem seu cabo e fado.
Transmite-lhe o pai precioso dom
Preceito que o guerreiro do pensar
Ignorar não pode, nem mudar o tom:
“Nunca ideia oposta deves degradar”.
Doutrina tão nobre aprende o delfim:
despoja o vazio e o verbo oficial.
Ignora, sabendo, espírito do mal.
A única coisa que importa, por fim
É deixar à porta ouro e enxoval,
Vestir-se de pobre e buscar o Graal.
Almoinha, 21 de Agosto de 2023
VOZ PASSIVA. 132
21-08-2023 00:00Quem pode dizer que conheceu, verdadeiramente, António Telmo?
Maria Sarmento
Conheci o António Telmo pelo que se mostrava de enigma e, simultaneamente, de natural humanidade. Quem pode dizer que conheceu, verdadeiramente, António Telmo? Encontrámo-nos e convivemos várias vezes em circunstâncias ligadas ao pensamento e ao debate de ideias, na companhia de amigos comuns, em tertúlias e encontros de amigos de Évora, de Vila Viçosa e de Estremoz; em visitas a nossa casa, em Évora, para falar com o António sobre as suas pinturas e a leitura simbólica que António Telmo fazia de alguns dos trabalhos do António (Couvinha). Estivemos juntos em conferências e lançamentos de livros, em eventos académicos, maioritariamente ligados à Poesia e à Filosofia dos autores da sua e da nossa preferência, de que cito e destaco: Teixeira de Pascoaes, Álvaro Ribeiro e Agostinho da Silva.
Sempre que amigos comuns se encontravam em Évora, uns porque aqui viviam, outros que aqui se deslocavam para um ou outro evento, nomeio aqui o nosso querido António Cândido Franco, o amigo e na época meu Professor, Francisco Soares, o saudoso José Manuel Capêlo, o Manuel Calado, o António Couvinha, a Paula Costa e o Carlos Dutra, entre outros. Sempre que havia esses encontros, dizia, a presença de António Telmo era uma agradável constante. Muitas vezes, sem querer, porque era mesmo assim a sua força catalisadora, a nossa admiração e afecto centrava-se na sua misteriosa pessoa com uma curiosidade muito atenta.
Posso dizer que “conheci” António Telmo mais pelos seus silêncios do que pelas suas falas. Fazia-se muitas vezes acompanhar de homens que lhe eram dedicados e por ele nutriam admiração profunda. Homem de silêncios prolongados pelo sorriso desafiador, por vezes provocador de controvérsias, com que parecia deleitar-se. Esse silêncio era um questionamento mudo. Tornava-se, em cada um de nós, voz interior e, tantas vezes, um misto de profunda admiração e perturbação, em alguns casos. Eu, nem tanto assim, que à época tinha (e ainda guardo) aquela postura de menina caeiriana a quem era “permitido” pregar partidas e desafiar os sábios. Estar com o António Telmo era nunca esperar pelo que podia acontecer depois desse silêncio e dessas escassas palavras, quase sempre interrogativas ou espaçadamente sentenciosas. O Silêncio que se seguia à interrogação, era diálogo interior, vontade de acertar e, confesso por mim e arrisco pelos outros, desejo de sermos acolhidos pelo seu espírito.
Foram vários os episódios que se passaram directamente comigo e de que guardo grato e misterioso eco e lembrança. Vou relatar apenas dois deles, para não tornar o texto muito extenso. Estávamos numa situação de escolha de uma fotografia minha para a capa do meu livro “O Silêncio e as Vozes”. Sentados à mesa de um café com esplanada, em Évora, estava o José Manuel Capêlo, editor da Árion que iria editar o meu livro, o António Telmo o António Couvinha e eu, Maria Sarmento. Eu tinha pedido ao amigo, galardoado com o ‘Prémio Pessoa’, o fotógrafo José Manuel Rodrigues, que me tirasse uma foto para a badana do livro. Fizemos, na casa dele, uma sessão que, na verdade, resultou numa série de retratos muito sóbrios, a lembrar Florbela Espanca dos quais trouxe os negativos para a escolha da foto que melhor se adequava ao efeito. Mostrei ao editor os negativos e este mostrou-os ao António Telmo. Qual não é o nosso espanto quando este sentenciou, muito sério: “Esta não és tu.” Silêncio. Tudo bem. Tinha razão! Todos concordámos. Mas como dizer ao fotógrafo que não escolhemos nenhum dos negativos e que seria necessário fazer outra sessão? Salvou-nos um pouco do embaraço a amizade de longa data entre nós e o fotógrafo e lá tirámos outras fotos, completamente distintas, num cenário mais natural e descontraído e com uma expressão minha, outra. Pois mandou o destino ou alguém por ele que nos encontrássemos na mesma mesa do café umas semanas depois com outros negativos. O mesmo procedimento. Quando António Telmo os viu. Acenou e sorriu. Soubemos, então, que aquela era eu. Dei-lhe toda a razão e lá escolhemos um dos negativos, o que saiu na badana do livro, editado em 1999.
A outra história sucedeu num evento académico de homenagem a Teixeira de Pascoaes, organizado por António Cândido Franco, Professor na Universidade de Évora, cujo reitor era, à época, outro amigo de António Telmo, o Professor Ferreira Patrício. Cândido Franco tinha-nos convidado, a mim e à Margarida Morgado, como já tinha sucedido em outras iniciativas, para lermos textos do “Verbo Escuro”, creio. Encontrámo-nos, eu e a Margarida, para escolhermos os textos e quem ia ler o quê. Eu escolho um longuíssimo texto que era um elogio ao mar, uma elegia que, lembro, dizia “Ó mar à luz da lua …” Assim que o li, escolhi o tom em que o deveria dizer e não saí dele, tornando-o uma imitação sonora do marulhar do mar, numa nota bem funda, como convinha ao texto. O texto era enorme, a leitura foi monocórdica, a meu ver, e o silêncio na sala foi absolutamente total. Se dormiam todos, nunca o soube bem, mas que seguiam embalados por aquele longo e fundo som, isso pude observar nos olhos de António Telmo e do grupo que o acompanhava. Terminada a função, em conversa com o Telmo, perguntei: «Gostou da leitura?» – Segredou-me ao ouvido: «Cantaste muito bem». Pensando que o meu ilustre amigo não tinha percebido a pergunta, voltei a perguntar, insegura: “Mas li bem?” Obtive a mesma resposta. Compreendi que António Telmo tinha percebido desde sempre o tom menor que eu tinha escolhido para o texto. Fiquei impressionada e encantada. Sempre foi assim, entre mim e António Telmo: uma admiração profunda. Só muito mais tarde, comecei a espreitar e a abrir o véu de alguns dos seus textos.
15-08-2023
DISPERSOS. 20
21-08-2023 00:00À semelhança de “A esfera armilar”, que os leitores de António Telmo bem conhecem das páginas de Filosofia e Kabbalah, “O segredo de Os Lusíadas” surgiu no primeiro número de Escola Formal, revista de que, sob a direcção de Afonso Botelho e Orlando Vitorino, se publicaram seis números, de Junho de 1977 a Junho de 1978, e na qual Telmo publicou ainda diversos outros escritos marcantes, como “Gramática Secreta da Língua Portuguesa”, “O best”, “Mãos e palavras” (depois reintitulado com o seu primitivo subtítulo, “Como a perversão na linguagem leva à demência na sociedade”) ou, então sob o título “Da teologia para a filosofia”, o notável conjunto de aforismos definitivamente conhecido por “Louvor da matéria”.
Com excepção do artigo camonino, todos os textos referidos foram reunidos no já acima mencionado livro de 1989. Note-se, a propósito, que “O segredo de Os Lusíadas” não deve ser confundido com o texto que serviu de base à conferência homónima que Telmo proferiu em 20 de Junho de 1980, no Palácio Foz, em Lisboa, a convite de Afonso Botelho, no âmbito das comemorações do quarto centenário de Luís de Camões, e que figura em Filosofia e Kabbalah. Tal como “A esfera armilar” surge nas páginas de Escola Formal sem estar assinado (um e outro tendo estado omissos, até agora, na bibliografia activa do filósofo), mas a sua atribuição a António Telmo será, por certo, inquestionável. Trata-se apenas de um breve apontamento, porém sinalizando o superior interesse do seu autor por uma temática – o esoterismo de Camões – que praticamente o obsidiará até ao final da vida.
O segredo de Os Lusíadas[1]
Aqui, minha Calíope, te invoco
Neste trabalho extremo por que em pago
Me tornes do que escrevo, e em vão pretendo,
O gosto de escrever, que vou perdendo.
Despertai já do sono do ócio ignavo,
Que o ânimo de livre faz escravo…
Pondo na cobiça um freio duro,
E na ambição também…
e no torpe e escuro
Vicio da tirania infame e urgente…
E dai na paz as leis iguais, constantes,
Que aos grandes não dêem o dos pequenos,
e numerados
Sereis entre os heróis esclarecidos,
E nesta Ilha de Vénus recebidos!
De longe a Ilha viram, fresca e bela.
Dá Veloso, espantado, um grande grito:
«Mais descobrimos do que humano esprito
Desejou nunca; e bem se manifesta
Que são grandes as cousas e excelentes,
Que o mundo encobre aos homens imprudentes.»
Depois que a corporal necessidade
Se satisfez do mantimento nobre,
Tethys, de graça ornada e gravidade,
Pera o felice Gama assim dizia:
«Faz-te mercê, barão, a Sapiência
Suprema de, com os olhos corporais,
Veres o que não pode a vã ciência
Dos errados e míseros mortais.
Segue-me firme e forte, e com prudência».
Não andam muito que no erguido cume
Se acharam, onde um campo se esmaltava
De esmeraldas, rubis, tais que presume
A vista que divino chão pisava.
Aqui um globo vem no ar, que o lume
Claríssimo por ele penetrava
De modo que o seu centro está evidente
Como a sua superfície, claramente.
Uniforme, perfeito, em si sustido,
Qual, enfim, o Arquétipo que o criou.
Vendo o Gama este globo, comovido
De espanto e de desejo ali ficou.
Diz-lhe a Deusa: «O transunto, reduzido
Em pequeno volume, aqui te dou
Do mundo aos olhos teus, pera que vejas
Por onde vás e irás e o que desejas».
O carácter epopeico e patriótico de Os Lusíadas tem iludido historiadores e professores da nossa literatura, que lhe dão a interpretação mais imediata: Os Lusíadas não seriam mais do que a poetização da história pátria e, simbolizado na viagem do Gama, o destino ou a missão dos portugueses estaria todo, como se diz (ou dizia) nas escolas, na descoberta do caminho marítimo para a Índia. Já ironicamente um poeta observou que, descoberta a Índia, os portugueses ficaram sem emprego embora, na conservação do império, ainda tivessem do que, como povo, irem vivendo, ainda tivessem razão para serem povo. Agora, porém, o Império desfez-se, e terá então deixado deter sentido a existência deste povo.
Acontece, todavia, que o vaticínio de Os Lusíadas vai bem mais longe do que «os feitos valerosos» de alguns heróis para «da lei da morte se irem libertando». Não se limitam eles a poetar a história já vivida de um povo, mas vaticinam aquele fim onde reside sua «verdade, condição e destino». A simbólica viagem do Gama não se esgota, não termina, na descoberta da Índia. Alcançada ela, logo o herói a deixa para, já não guiado por deliberação ou prudência humana, chegar onde se diz que «mais descobrimos do que humano espírito desejou nunca? Os versos, extraídos dos cantos IX e X, aí estão para «os que sabem ler».
António Telmo
CORRESPONDÊNCIA. 62
20-08-2023 14:42Carta de Max Hölzer para António Telmo, de 19 de Junho de 1977
Lisboa, le 19-06-77
Cher António Telmo,
Ici les poèmes français.
Je suis content. – malgré tout – d’avoir été chez vous, je vous remercie de toute votre attention et vous prie de dire à votre femme aussi mes remerciements cordiaux.
N’attendez pas trop longtemps pour fixer la prochaine réunion.
Une prière : je voudrais savoir tous les noms des participants (et leur âge, sommairement, sans blancs de discrétion), et l’adresse avec ?, numéro de tél.
Je pars demain, mais j’espère de pouvoir revenir dans un délai pas trop long.
Tous mes vœux, pour vous et votre travail – amicalement
M. H.
VOZ PASSIVA. 131
15-08-2023 10:50António Quadros e António Telmo: um diálogo entre livres-pensadores[1]
Pedro Martins
1. «Lá para Outubro, vou-me embora. Não deixe que me convertam». Estas são palavras de Álvaro Ribeiro para Francisco Sottomayor, a quem as ouviu António Telmo. Foi deste que as escutei e não podem deixar de evocar a tentativa de confissão, por um sacerdote, de um Sampaio Bruno às portas da morte, prontamente repelida pelo portuense ilustre. A conversão aventada refere-se ao catolicismo e só quem estiver desatento ou pensar com a vontade poderá persistir na ideia de que Álvaro tenha observado qualquer ortodoxia, mormente a da Igreja de Roma, ele que, em A Literatura de José Régio, confessa aos seus leitores que «em vão formulou novo pedido de aliança ou de casamento» por, entre as razões apresentadas para as recusas recebidas, se deparar com esta: «ainda não se convertera à religião da maioria». Vale a pena a demora numa página memorial daquele livro:
«Fascinado efectivamente pelo patriotismo eloquente e apostólico de Leonardo Coimbra, hesitava eu todavia em segui-lo, intimidado perante a leitura de seus livros incomparáveis, onde se efectuava a polémica mais notável contra todas as doutrinas que erroneamente assentam na falsa hipótese de que no princípio era o cáos. Acontecia, porém, que a minha alma sempre preocupada com a vida religiosa, que sobrepunha à cultura filosófica e à curiosidade literária, estava então incapaz de compreender a historificação positivista da teologia francesa em três capítulos, três estados e três factos correspondentes à tríade Deus, Cristo, Igreja. Cansado de ouvir ou ler, nas orações homiléticas e nos artigos jornalísticos, as frases contundentes de que a Igreja proíbe, a Igreja reprova, a Igreja condena, perguntava-me perplexo se tal ignorância era professada por homens católicos e por mulheres católicas, consultava e estudava a documentação eclesiástica, recorria a livros estrangeiros, e no fim verificava que as ciências proibidas não iam contra a vontade da Igreja, a doutrina de Cristo, a ideia de Deus.
A heresia, significando etimologicamente procura de outra fé, deixou de me intimidar, quanto mais o exemplo de Leonardo Coimbra nos assegurava confiança no melhor caminho, já que o filósofo, relacionando sempre a liberdade com o amor, nos dava uma interpretação do cristianismo que transcendia os limites da dogmática católica.»
Só na aparência me afastei do tema proposto, que abordarei do prisma do livre-pensamento religioso. António Quadros e António Telmo, de quem Álvaro Ribeiro foi o primeiro mestre, souberam-no cultivar.
2. A conversão de Leonardo abalou alguns espíritos. Pela inoportunidade do momento político em que ocorreu, Pascoaes viu nela a obra do diabo. E, sem jamais pôr em causa a sinceridade do mestre, Álvaro Ribeiro, passados já dez anos sobre a morte daquele, podia afirmar:
«Quanto a mim, confesso que divergências profundas, especialmente em teologia, me impedem de estudar a obra de Leonardo com aquela sincera adesão que me levou a receber e a admirar o seu magistério filosófico.»
Na geração seguinte, Telmo sugere que o regresso de Leonardo à religião da infância, se interpretado pela parábola do Filho Pródigo, haveria, possivelmente, de se traduzir num enriquecimento do cristianismo exotérico patenteado na ortodoxia católica, pela vivência experiencial do martinismo que o filósofo re-velara nalgumas obras da sua fase criacionista, mormente em A Alegria, a Dor e a Graça.
A hipótese é plausível. Álvaro Ribeiro lembra que «a conversão é sempre integrativa e integrante». E é significativo que o faça num escrito de imprensa em que afirma ter sido Bruno «o nosso primeiro filósofo, ou seja, o nosso primeiro-livre pensador», para, em seguida, demonstrar que livre-pensador, verdadeiramente, só o poderá ser o pensador religioso.
Definindo a liberdade como a «coexistência pacífica dos diferentes», Álvaro afirma também que «o livre-pensador, ao contrário do positivista, avança por um domínio delimitado pelos escolásticos, mas acelera a evolução espiritual da Humanidade».
A derradeira frase consente versão para a teurgia martinista. E é ainda, uma vez mais, com Álvaro Ribeiro, agora em Apologia e Filosofia, que a hipótese de Telmo se robustece. Pois não será o itinerário espiritual vislumbrado no trajecto de Leonardo uma modelar realização operativa da escala triádica em que, pela mediação do pensamento sófico, o pensador ascende do plano gnósico ao plano pístico? É que sem essa mediação, no caso leonardino assegurada pela experiência martinista, a tentativa de relacionar directamente a razão com a fé nunca desenvolveria as virtudes nem suscitaria as graças que os crentes esperam da apologética religiosa, como Álvaro observou. E por isso o livre-pensador vai para além da escolástica: avança no terreno que esta delimita, mas acelera a evolução espiritual da humanidade, como da lição alvarina se poderá ainda retirar.
3. «O António Quadros foi o único e creio que eu também um pouco que viu serem inseparáveis a Igreja de Pedro e a Igreja de João.» Assim escreve Telmo ao amigo em carta de 2 de Junho de 1986. Logo no ano seguinte, a 22 de Janeiro, afirma-lhe noutra missiva: «O António Quadros é dos que restam, o único que não «repele» a minha Teima ocultista, que não a teme, que a inclui numa das direcções da sua vida espiritual». E em Março de 1990, em novo lance epistolar: «De facto, há entre nós dois uma fidelidade ao ensino que recebemos que tem muito de comum: daí o sermos, sobretudo, hermeneutas.»
Constituem estas últimas palavras uma resposta à pergunta que Quadros, dias antes, em carta de 27 de Fevereiro, lhe dirigira:
«Sei que você andou muito por baixo, e creia que pensei muito em si. Afinal de contas, mesmo pesando todas as diferenças, não seremos nós dois, os mais afins de entre os discípulos de A. [Álvaro Ribeiro] e M. [José Marinho], da primeira geração? De certo, eu sou mais “ortodoxo” (talvez por falta de ousadia intelectual interior), decerto, você foi sempre mais fundo do que eu, em todas as vias por que enveredou. Você tem a capacidade de ir ao âmago dos problemas e de estabelecer sínteses fulgurantes, em palavras concisas. Será de fogo, o seu signo? Se não é parece. O meu é claramente aquático, o caranguejo: derrama demasiada literatura, embora, como as ondas do mar, bata sempre as mesmas praias, com certa monotonia. Você atinge verdadeiramente um conhecimento hermético, ajudado pela cabala e pela associação, singular entre nós (rara alhures) entre o esoterismo e a filosofia. Eu permaneço nos arredores, fascinado do lado de fora, sem contudo atravessar o umbral da porta. Você conseguiu concentrar-se, meditar a sério (tudo isto são afinal observações sugeridas por Filosofia e Kabala), enquanto eu navego como posso em águas de uma média cultura, de uma pequena capacidade de filosofar e (o que me vale) de uma certa intuição e encarniçamento relevando mais do dever do que da arte de pensar.
Apesar destas diferenças, em ambos há o interesse pela poesia e pela simbólica artística, pelo oculto e pela filosofia em todas as suas formas (mas sobretudo por uma filosofia do Espírito), sendo também de notar que, ao contrário da maioria dos nossos companheiros, reconhecemos os mesmos mestres, Leonardo e Bruno, Pascoaes e Pessoa, Álvaro e Marinho, integrando-os, com as suas antinomias, na nossa vivencialidade gnósica.»
Importa recordar que Quadros, ao contrário de Telmo, não era um iniciado. Mas a iniciação parecia sobre ele exercer um fascínio que, não raro, o levava a colocar-se na posição do esoterista. Ao amigo, em carta de 29 de Janeiro de 1997, dirá: «Não tenho pois nenhuma vocação para esotérico, embora tenha uma grande inclinação para todas as formas de esoterismo, que não só constituem um desafio, como prometem um saber outro do que o daqui, só daqui».
Para melhor se compreender o posicionamento de Quadros, importa considerar que, na mesma carta, se irá definir como «um católico liberal». Estamos, na verdade, diante de um livre-pensador religioso:
«Não me sinto no mínimo inibido, em minha liberdade espiritual. Nem clericalista nem anti-clericalista. Faço hoje uma vida de sacramentos, embora o meu espírito flutue muito e se dirija para paragens aventurosas, faço-o fundamentalmente porque os sinto como constituindo laços vivos, concretos, tradicionais com o sagrado, com Deus, exigindo da nossa parte reverência e humildade, uma aproximação do povo, dos simples que só por aí acedem a uma vida de espírito superior à dos interesses quotidianos. Como o pão que Cristo partilhou com os apóstolos e sinto-me sentado à sua mesa. Ajuda-me a vencer o egocentrismo e a sujeição aos interesses próprios.»
Linhas depois, em passagem do maior significado, afirmará:
«Concebo um Deus-Espírito, muito superior às nossas pequenas contabilidades e prejuízos terrenos. Muito superior às nossas estreitas ortodoxias, que aliás já foram heterodoxias e heresias para outros, ou são-no.»
É justamente aqui que a sua atitude de aproximação ao esoterismo melhor se define, por admitir um Deus que transcende as diversas religiões. Não fora outro, de resto, o desígnio do Império segundo Avis, como no Livro II de Portugal, Razão e Mistério se pode verificar. Tal
«era o projecto político da sinarquia templária, herdada pela Ordem de Cristo, o Império (do Espírito Santo) acima dos Reinos e dos vários Cultos de origem bíblica monoteísta e até dos pagãos. Mas tal projecto só seria verdadeiramente viável através de uma teoria laicista, qual a preconizada por um Dante, que sob o domínio carismático de um Imperador directamente ungido e coroado por Deus-Espírito, pudesse esbater o poder radicalista das ortodoxias religiosas. Se todo o domínio espiritual fosse destas, o diálogo tornar-se-ia impossível devido ao rigorismo teológico dos eclesiásticos. Mas se, mesmo com o predomínio religioso do Cristianismo, o acento recaísse sobre o Espírito Santo, sobre a Terceira Pessoa, sobre o Quinto Evangelho ou sobre o Evangelho Eterno, quiçá fosse possível aceder à concepção de um Deus / Homem de outro Deus maior, no verso de Pessoa, de um Deus-Espírito no qual coubessem o Deus trinitário do Cristianismo e ainda Jeová e Alah, e mesmo o Deus Desconhecido ou aqueles Deuses únicos e recônditos cujo Mistério subjaz a todos os Politeísmos.»
A carta de Janeiro de 1987 reflecte em vários aspectos a passagem agora transcrita. O que não surpreende. Quadros concluíra já o segundo volume da sua obra-prima, e daí que naquela deixasse transparecer o entusiasmo com a próxima aparição desta. Pela conjugação de ambas se comprova que o desígnio ecuménico do filósofo firma raízes no esoterismo templário da Ordem de Cristo.
É ainda naquela missiva que anuncia a Telmo:
«Você verá talvez melhor a minha posição no vol. II de “Portugal…”, onde defendo um trinitarismo de predominância paraclética, mas… sem heresia, como penso que foi o de Dinis e Isabel, dos franciscanos espirituais e da Ordem de Cristo. Coincido pois com o que você diz sobre os templários e sobre a aproximação do catolicismo e do ocultismo – pelo menos do ocultismo de sinal cristão, isto é, não oriental –, embora eu penda pessoalmente mais para um criacionismo cristão-liberal.»
É de crer que Quadros se encontre a meio caminho entre o profetismo místico e ecuménico do Agostinho da Silva de Educação de Portugal, e o desígnio unitário revelado nos derradeiros parágrafos de A Literatura de José Régio, em que a angelologia judeo-cristã de Álvaro Ribeiro encontra cabal expressão, ou no fundo espiritualismo maçónico que viria a culminar, como corolário, a obra de António Telmo.
4. Em 1998, a iniciação de Telmo no Rito Escocês Rectificado foi, pela própria natureza deste rito, um acto de coerência de quem, na senda de Bruno e de Álvaro, exaltara o martinismo. Deste prisma, será muito significativo que, na já citada carta de 22 de Janeiro de 1987, tivesse escrito:
«Não que não me toque de profunda emoção religiosa o supremo Esplendor da Igreja de Cristo em que todos nós fomos criados, mas em cuja doutrina, dogmas, sacramentos, ritos não vejo incompatibilidade com a «cabala» martinista pensada pelo nosso primeiro Mestre. Se não fosse assim, a obra de Joseph de Maistre, um dos chefes ocultos da maçonaria martinista, onde usava o nome, veja o António, de Josephus a Floribus, teria sido uma impossibilidade.
Não vejo ninguém, a não ser o António Quadros, capaz de acompanhar Álvaro Ribeiro e de comigo o seguir neste ponto crucial. Ocultismo sem catolicismo, como talvez o entendesse F. Pessoa, não está dentro dos planos da «Ordem Templária», a que ele dizia pertencer. O prestígio que se fez à sua volta e o silêncio tumular que sempre se faz à volta de Álvaro Ribeiro explicam-se, talvez, assim. Afigura-se-me impossível separar dois relativos: a ortodoxia e a heterodoxia.»
Reconhece-se a doutrina alvarina. Mas será mesmo assim? Não haverá incompatibilidade entre a doutrina católica e a «cabala» martinista pensada por Álvaro Ribeiro? A resposta, de extrema dificuldade, dependerá do modo de entender o exoterismo da enunciação dogmática…
Não obstante, farei notar que o Tratado da Reintegração dos Seres, de Pascoal Martins, principal fonte do martinismo, acolhe essencialmente a cristo-angelologia ebionita do Verus Propheta, conforme a lição de Robert Amadou. Nenhum papel desempenha ali, ainda, o dogma da Encarnação, absolutamente impensável para o cristianismo originário da comunidade de Jerusalém, anterior às enxertias helénicas e romanas, e portanto goim, de Paulo e de Constantino.
A entificação do Absoluto, como demonstrou Henry Corbin, é pura impossibilidade lógica. Não será outra a doutrina d’A Literatura de José Régio. Álvaro não aceita a divindade de Jesus, de quem, com significativa insistência, afirma ser um profeta religioso, ou sagrado, para o comparar a Moisés e a Maomé:
«Enviado de Deus, profeta, comparável a Moisés, Cristo usufrui de um atributo mais dignificante. Toda a messiologia se nos afigura como campo deficientemente cultivado pela responsabilidade dos teólogos. Se, conforme a tradição judaica, espírito messiânico só poderá ser espírito superior, ou espírito angélico, então compreenderemos certas feições extraordinárias da figura que de Jesus nos apresentam os evangelistas, e compreenderemos que Cristo haja sido, nos momentos altamente religiosos da sua vida na Terra, perfeitamente assistido pelos anjos.»
Por mais de uma vez se refere ali Álvaro Ribeiro a Jesus Cristo como «o último profeta». A expressão, que evoca irresistivelmente a noção islâmica do selo da profecia, melhor esclarece qual seja o atributo mais dignificante de Cristo perante Moisés: o primeiro, sobre ser profeta, é também o Messias, mas jamais Deus encarnado. Nesta encruzilhada se define o judeo-cristão em que Álvaro, converso sefardita, se projecta.
Na senda da apologia feita por Bruno, constitui-se o martinismo como o fundo secreto da ideação alvarina, com o que porventura se desenha uma cadeia tradicional viva e actuante. Sibilinamente, lembra Álvaro Ribeiro em A Literatura de José Régio que os gnósticos ainda existem na actualidade. Não quaisquer, mas à guisa dos ebionitas, como gnósticos dessa nova gnose que n’A Ideia de Deus Bruno nos apresentara: uma gnose eminentemente judaica com uma soteriologia propriamente gnóstica, nas palavras de Corbin.
Não será de crer – e ele próprio o admitiu – que Quadros pudesse levar tão longe o seu pensamento. A ênfase paraclética do seu cristianismo é um limite intransponível de onde, porém, dada a unidade essente do Espírito – se quiserdes, do Espírito Santo –, se vislumbra já o monoteísmo puro de um Álvaro Ribeiro, ou o teomonismo de um Henry Corbin.
Em 7 de Abril de 1987, escreve-lhe Telmo: «Entre “As Tradições Heterodoxas da Filosofia Portuguesa” refiro-me ao Paracletismo de Joaquim de Flora e aí aproveitei a ocasião para lhe mandar um recado.» O recado pode ser lido em Filosofia e Kabbalah:
«Quanto a Joaquim de Flora, cremos que ao leitor inteligente não escapou o que há de significativo no facto de Joseph de Maistre ter escolhido como nome iniciático Josephus a Floribus. Tanto basta para estabelecer uma relação suficiente com tudo quanto escrevemos. Aliás, a presença do paracletismo italiano em terra portuguesa foi já largamente estudada ou reflectida por Agostinho da Silva ou António Quadros, para cujos notáveis estudos remeto o leitor interessado. Há, porém, que distinguir entre os autores que são atraídos para certas doutrinas cristãs pelo seu subconsciente hebraico e aqueles que as perfilham com inteira e clara consciência da relação.»
5. Entre estes dois espíritos de escol houve, por certo, alguns desencontros. Pouco importa.
Cristão liberal, Quadros propugna necessariamente a «coexistência pacífica dos diferentes»; e releva, por certo, de uma exemplar saúde moral e ética a condenação, em Portugal, Razão e Mistério, do «odioso Tribunal do Santo Ofício», um símbolo do «contra-reformismo estreito, fanático, racista, intolerante», próprio da «clerocracia» entre nós instalada com D. João III, e «que quase ia queimando, nos seus Autos-de-Fé e na sua psicologia inquisitorial e delatora, se é que não a devorou de forma irreparável, o espírito da nação portuguesa». É reconfortante poder citar António Quadros, nestas passagens daquela sua obra, com o antigo Palácio dos Estaus e a Igreja de São Domingos tão próximas, aqui ao lado…
E das diferenças dirá Telmo, na História Secreta de Portugal, que «sempre constituíram a base e a condição do que será, para a Ordem do Templo e de Cristo, a conversação universal dos espíritos»; e daí que alerte para o facto de estarem «sendo desfeitas pelo que aparece como o intento de produzir a homogeneização geral das matérias».
Exemplar diálogo entre livres-pensadores religiosos foi o destes espíritos de escol. Receio bem que se trate, em nossos dias, de uma conversa acabada.
[1] Comunicação apresentada, em 13 de Julho de 2023, no Palácio da Independência, em Lisboa, ao Congresso nos 100 anos de António Quadros.
VOZ PASSIVA. 130
23-06-2023 09:57António Telmo e Tomé Natanael, ou a contemplação de si
Risoleta C. Pinto Pedro
A Literatura Portuguesa está repleta de manifestações em que os poetas revelam a sua divisão interior. Atribui-se este estado de ser à perseguição feita aos judeus na Península, convertidos à força, a partir do século XVI, sacrificados nas prisões e nas fogueiras. Mas talvez tal condição seja prévia a este contexto temporal e já estivesse escrita na história, na epigenética, nas múltiplas perseguições, nas múltiplas conversões. Desde o princípio. Por alguma razão, uma das entrevistas fictícias que António Telmo escreve é à revista Princípio, que pretensamente entrevista Tomé Natanael, anagrama de António Telmo.
Ao longo de toda a linhagem da nossa escrita literária, está patente a bipartição, a cisão do eu, a dilaceração da alma de um povo, a ferida profunda na identidade, a duplicidade, mas não só: o próprio antagonismo interior, a violência da partida, o êxodo e a saudade.
No Renascimento, Bernardim Ribeiro afirma que «Entre mim mesmo e mim não sei que se alevantou que tão meu imigo sou»; ou na novela pastoril Menina e Moça, de 1554, editada em Itália por Abraão Usque, judeu emigrado: “Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe”. Mãe humana, Mãe Pátria.
Sá de Miranda canta: «Comigo me desavim,/ Sou posto em todo perigo; /Não posso viver comigo/ Nem posso fugir de mim./ Com dor da gente fugia,/ Antes que esta assi crecesse:/ Agora já fugiria/ De mim, se de mim pudesse.» Fuga provocada por inimigo externo que se interioriza num palco interno que a literatura revela. Como se resolve este drama? António Telmo perseguiu esta ideia na sua obra.
O próprio Camões se queixa: «Alma minha gentil que te partiste»; já ali tem tudo, a partida do lugar e a partida do eu.
Bocage, poeta do século XVIII, sintetiza a despersonalização do eu e os problemas de identidade em quatro palavras: «Já Bocage não sou».
Para criar a distância que permita o reconhecimento, os poetas procedem à fase inicial do trabalho alquímico, a fragmentação do todo e a análise das partes para poderem ver a imagem, e com ela a múltipla identidade.
Fernando Pessoa, no século XX, levou a fragmentação a um limite quase inimaginável do fulgor da separação, com os heterónimos em número considerado inédito.
Mário de Sá Carneiro, seu contemporâneo, afirma-o genialmente:
«Eu não sou eu nem sou o outro, / Sou qualquer coisa de intermédio»
Exemplos que são gota de água num oceano.
A diáspora é transversal aos poetas e forma um único texto em que cada autor representa uma palavra, contribuindo, através desta aparente divisão, para a superior síntese de uma identidade em movimento de espiral.
António Telmo, relativamente a esta linhagem que também é a sua, traz a novidade da proposta de cessação de uma relação agónica no eu, o fim da luta e casamento entre as partes do sentir-se judaico com o sentir-se cristão. A superação da separação sem hostilidade, através do movimento integrador espiralado. A boa vertigem.
No outro lado da Europa latina, na Roménia, pois somos os dois países de línguas latinas dos extremos, a oriente e a ocidente da Europa, Marin Sorescu escreve “Há muito suspeitava de mim mesmo/ e hoje persegui-me durante todo o dia/ a uma distância que evitasse suspeitas”. O conflito interior no seu apogeu, o perigo interiorizado, e a Roménia como espelho de nós mesmos, a fuga do país. Como nós, a impossível vida sob uma ditadura, neste caso política, no caso dos judeus, também religiosa.
António Telmo provém de ramos familiares contrários, liberalismo e conservadorismo, judaísmo e cristianismo, mas neste pensador, as religiões não se contradizem, levando o Espírito de Síntese à formulação de que um mais um não são dois, mas pela alquimia da iniciação maçónica, o marranismo ascende ao três e a partir daí ao infinito.
De formação literária e académica clássicas, cria uma obra profundamente filosófica, na senda de filósofos da chamada filosofia portuguesa e de poetas com ela empáticos, integrando na sua escrita o ensaio e a ficção: dissertação, reflexão, conto, drama, diálogo e poesia. O ensaio é poético, a ficção é filosófica.
A sua personagem Tomé Natanael é motivo de poema, conto, reflexão, diálogo e entrevista. Criado a partir de anagrama do nome de António Telmo, desdobra-se em Tomé, o cristão, e Nathan, o judeu. Para além de emergirem do self de Telmo, é de recordar que Nathan era profeta de David e Salomão, e Tomé um dos doze apóstolos de Jesus. Para além de formar com Nathan uma polaridade, ele próprio é palco de sentimentos extremos: a dúvida receosa e a determinação amorosa, como um fractal que como parte contém em si o todo, pois ele próprio é judeu e ainda que nutrindo um profundo amor por Jesus, duvida da sua ressurreição. Os extremos criados por Telmo não estão exactamente equilibrados, há um desequilíbrio para o lado judaico, e tal como ele próprio afirma noutro lugar, há que buscar a irregularidade da obra, pois é ela que indicia aquilo que é importante do ponto de vista do conhecimento. Um sinal, um indício, um apontar. E talvez seja este o segredo do marrano: a sua imperfeição. E a sua grande e dilaceradora dor. Aquela que lhe permite manter-se vivo e lúcido. Porque tudo o que pode ser sentido pode ser curado: transcendido e integrado.
Esta personagem Tomé Natanael, o antiquário de Estremoz, ou o seu desdobramento em Tomé e Nathan, espraia-se pela obra do filósofo. Se António Telmo e Tomé Natanael já são duplos um do outro, criador e criatura, por sua vez Tomé Natanael também se reparte no judeu e no cristão, cujos diálogos são, ao contrário do que poderia acontecer, de uma elevação profunda e inspiradora, revelando uma cumplicidade gentil entre Tomé e Nathan. Existe ainda um outro nome anagramático, Nathan de Natanael, que assina as pranchas maçónicas e que parece mais um reflexo em espelho de Tomé Natanael. Ou de António Telmo. São tantos os textos onde estas personagens surgem unidas ou desdobradas, que terei de me ater a um conto e ainda assim não haverá tempo, nesta comunicação, para o aprofundar. Um estudo maior se seguirá e prolongado se prevê que venha a ser.
No conto das polaridades ou em busca da harmonia perdida “No Hades ou o Antiquário de Estremoz”, de alguma forma Platão e Aristóteles representam a unidade criada a partir dos aparentes opostos/polaridades.
Toda a sequência narrativa é exactamente erigida como um rigorosíssimo puzzle cujas peças se mantêm viradas para baixo até que estejamos preparados para as ver.
As personagens principais são o autor, que se assume também como narrador e personagem, e Tomé Natanael, antiquário de Estremoz. O centro de tensão e atenção do conto é uma reprodução do célebre afresco de Rafael, A Escola de Atenas. O lugar, a loja do antiquário que Telmo/personagem vai visitar.
A obra é conhecida. Por entre outros filósofos, destacam-se, ao centro, Platão e Aristóteles, um apontando o céu, outro mostrando os dedos virados para a terra. Afirma André Benzimra, que “o olhar do judaísmo é o culto de Elohim, o Ser criador. Distinto de El Elyon, que «olha» para o alto, em direcção ao Ein-Soph, o olhar de Elohim volta-se para baixo, para o que se afasta do Princípio supremo, para aquilo que vai ser criado”. A atitude judaica. Mas a dupla e oposta orientação tem sido apontada como representando ideias antagónicas. Por uma sequência muito bem encadeada de pares de polaridades, Telmo vai desenvolver uma outra e superior ideia:
«O que ali me aparecia era o símbolo do perfeito entendimento entre os dois filósofos. Eles conduziam e projectavam na nossa direcção a mesma energia urânica […]»
O narrador diz que «não ouvíamos o que diziam» não porque «nada diziam», mas porque «nada diziam que se ouvisse cá em baixo», o que pressupõe que algo diziam que fora do quadro não era possível escutar. É também quando o quadro já não se encontra presente na loja do antiquário, que se revela: «Durante um instante, a Imagem acendeu-se cheia de cor e de luz diante de mim», o que mostra, ou antecipa, o que pretendemos mostrar.
Num outro texto deste autor, intitulado “Platão e Aristóteles ou o Mesmo e o Outro”, Telmo declara que «a oposição que se diz existir expressa nos textos de Aristóteles não é entre os dois filósofos, mas entre platónicos e aristotélicos», os discípulos. Na essência, não há separação: «Ambos dizem o mesmo. Aristóteles tem em vista o homem natural. Platão o homem sobrenatural ou nascido segunda vez». O iniciado. Para Telmo, a chave é a iniciação.
Voltando ao conto objecto do nosso estudo, “No Hades”, Tomé Natanael, personagem do conto, é apresentado como «um dos discípulos actuais de Hermes». Se ele é um discípulo de Hermes, haverá uma loja oculta aos profanos. Oculta, e como tal não referida, mas com um lado visível: a loja “aberta”, como ali se diz. Nomeada e visitada.
Tal como o fresco de Rafael, “A Escola de Atenas”, apenas reflecte o mundo onde pensamos a três dimensões ou assim o percebemos: «A sensação de que têm três dimensões e não duas se deve a estares tu também reflectido nele».
Assim, Platão e Aristóteles da reprodução do fresco de Rafael só aparentemente pertencem a um mundo a duas dimensões, isso decorre de os vermos de fora. Logo, tudo é o mesmo. Ou um. Jogo de luz e sombra, de aparência e realidade.
O diálogo neste conto entre o autor/narrador/Telmo com a “personagem” Tomé Natanael é o diálogo de Tomé Natanael consigo mesmo, isto é: de Telmo com Telmo. O autor/narrador/ escritor/António Telmo (porque todos se confundem), procura Tomé Natanael na sua “loja aberta” encontrando-o a polir uma lente, objecto não casual nem inocente, pois o que se pretende mostrar é que é tudo uma questão de ponto de vista ou de incidência e de refracção da luz.
Tomé Natanael encoraja o visitante a olhar a cena do quadro sem focar. Até ver a realidade como um tapete persa. Ou de Arraiolos. A estrutura profunda.
O conto é um finíssimo, hábil e notável jogo de realidade e sonho, visão e ilusão, mundo a duas e a três dimensões, luz e sombra, visão ao perto e ao longe, presença e ausência, eu e eu/outro… Cruzamento e intersecção de mundos onde é possível «Platão nos entregar o seu Timeu ou Aristóteles as suas Categorias. Estou-me a ver a levá-los para casa, a folheá-los na minha secretária.» Categorias sobre as quais dirá Tomé Natanael, o antiquário:
“Como se trata de um filósofo grego, a ninguém ocorre interpretá-las pela kabbalah que é, como se sabe, a tradição sófica hebraica». No entanto, numa dimensão oculta, essa correspondência é perfeita, como no conto eloquentemente se explica.
As correspondências são praticamente a estrutura deste conto e da sua obra, ponte entre o visível e o invisível. Uma Misteriosofia. Platão representa o compasso ou o céu, Aristóteles o esquadro e a terra. Símbolos iniciáticos. Não se opõem, complementam-se.
Aquilo que pode ser visto como divergência entre as duas religiões, as coisas do céu e as coisas da terra, é, ao invés, “o perfeito entendimento entre os dois filósofos” pelo dedo de Platão que em ponta para cima recebe, e passa o que recebe, à mão com a palma para baixo de Aristóteles, como duas antenas ligadas, aquilo que Telmo refere em vários escritos como a síntese superior das religiões, o que a filosofia portuguesa procura resolver através, também na sua expressão, da razão poética. Na correspondência entre a orientação das duas mãos com «a relação ritual do esquadro e do compasso», temos a superior boda oferecida pela Maçonaria, onde as divergências entre os credos não só se atenuam, mas elevam.
Por isso, quando o narrador afirma que Tomé Natanael tem “loja aberta” não poderemos passar pela expressão sem um especial olhar. Mais tarde, o autor também personagem da diegese, encontrará “a loja fechada”. As lojas simbólicas encerram depois dos trabalhos, à meia-noite como ritualmente é pronunciado, e o trabalho deste aprendiz, pelo menos uma parte dele, que fora a meditação sobre a correspondência entre as Categorias e a árvore da Kabbalah, já estava concluído.
As correspondências, forma perfeita de velar, revelar e desvelar, de descobrir cobrindo e encobrindo, constituem o mais desenvolvido talento sefardita, o disfarce, que ao mesmo tempo, neste processo de espelho que é a correspondência, melhor se reconhece na profunda essência. É o valioso privilégio que o marrano ou sefardita paga, preço bem caro, pois é na separação dos seus eus que melhor pode vir a conhecê-los e uni-los, na já referida síntese superior.
Talvez por essa razão, António Telmo vá usar, para interrogar Tomé Natanael sobre os dois “filósofos altíssimos” e “a prisão das figuras em que os imaginou Rafael”, o modo dórico. A prisão é a visão antagónica de ambos, o mundo plano. Mas na Grécia Antiga, a doutrina do Ethos (ou afectos) assentava na capacidade dos sons de influenciar e modificar a natureza moral do homem, por uma estreita relação com a alma, e os nomes com as coisas. Ora o modo dórico expressa o espírito intermédio, a circunspecção, o que permite superar a ilusão do antagonismo, e é precisamente nessa linha que a resposta lhe vai ser dada, encorajando-o a subir os quatro degraus que conduzem aos dois filósofos para transcender a ilusão do 2 e do 3 e a fixidez das imagens, e poder aceder à vida, ao movimento, às vozes e aos pensamentos inacessíveis.
O número simbólico da Loja Maçónica no seu primeiro grau é o três, que ele é encorajado a transcender subindo os quatro degraus para aceder à quinta dimensão, ou para entrar num mundo paralelo que é aquele em que se encontram as figuras de Rafael, sendo que é o cinco o número do 2º Grau ou do Companheiro, aquele que viaja. Trata-se do grau em que se encontra Tomé Natanael, pois numa próxima visita, o aprendiz encontra a loja fechada por o antiquário ter ido viajar por cinco dias, o número do grau do Companheiro. É após esta viagem do antiquário, o seu outro eu, que Telmo alcança entrar no mundo pintado por Rafael e, depois de subir os degraus, penetra num mundo anteriormente impossível até de almejar.
Na linha do disfarce marrano (a designação mais comum para o sefardita ibérico), onde também se encaixa o nome simbólico dos iniciados, é dito de Tomé Natanael, o antiquário, que “ali em Estremoz é conhecido” por esse nome. Interrogamo-nos acerca do seu nome verdadeiro. Ou o verdadeiro é o simbólico? É o tema central, o poder e o valor da palavra, tão caro ao Cabalista. É quando, pela primeira vez que é confrontado com o nome de António Telmo, através de um cheque que este lhe passa por uma compra de dois candelabros, esses judaicos transmissores de luz, aqueles sobre os quais repousa o Espírito de Deus, que Tomé Natanael se apercebe que os nomes são anagrama um do outro, em espelho.
A escrita de António Telmo é da natureza das obras a que pertence o afresco de Rafael. Olhamo-la dezenas de vezes sem nos apercebermos até que ponto está viva e fala. A três e a cinco dimensões. Um dia, depois de muita contemplação, entra-se nela e percebe-se, é o caso deste conto, como palpita grávido de uma história que já descortinávamos, mas que resplandece apenas quando nela, finalmente, entramos. É aí que podemos travar conhecimento com Tomé Natanael e reencontrar António Telmo. Como este desvenda no conto seguinte, “A Minha História”, ficamos a saber que a partir de um encontro com alguém real, o pintor Délio Vargas, este o informara, para sua estupefacção, pois o antiquário nascera da sua imaginação, que o conhecia, e trocara com ele longas cartas em que o antiquário dissertava sobre Cabala. Era também casado com uma professora chamada Antónia, como a esposa de Telmo.
Tudo isto poderia ter ficado no limbo do género ambíguo que em Telmo flutua entre a ficção poética, a biografia e o ensaio, se eu própria não tivesse vindo a conhecer o pintor Délio e ouvido da sua boca o testemunho sobre a existência do antiquário de Estremoz estudioso da Cabala e companheiro de entrada em mundos. Seu nome: Rafael! O meu cérebro racional calcula que Tomé Natanael e António Telmo não sejam os únicos a conseguir entrar em outras dimensões. Também Délio Vargas, o talentoso artista, o consegue. Em vós, caros companheiros deste momento, sei que ficará uma dúvida: se não serei eu própria cúmplice desta trama misteriosa, inventando a existência do pintor. Acontece que tenho ao meu lado quem tenha assistido e ouvido o testemunho. Para além disso, poderão em qualquer altura dirigir-se a Lisboa e provocar um encontro com o pintor Délio e quem sabe?, cá organizar um congresso? Em Estremoz debalde procurarão pelo antiquário, a não ser que tenham mais sorte do que eu. Talvez pelo processo de Telmo e Tomé Natanael, eventualmente também do próprio Délio, possam encontrar a Loja. Até lá poderão ir treinando o método ensinado a Telmo pelo antiquário. Olhar através do dedo indicador apontando o céu como o de Platão, não focando o dedo, mas para longe até verem a imagem em duplicado e olhando pelo intervalo. Ou “qualquer coisa de intermédio”, como escreve Mário de Sá Carneiro na passagem do poema que li ao início. Tal como o modo de interrogação dórico, espírito intermédio. Foi assim que Telmo finalmente entrou no cenário da Escola de Atenas num dia em que a reprodução já tinha sido retirada, e apesar de tudo ali não só a viu, como nela entrou. Recomendo, a quem não conheça, a leitura destes Contos Secretos, parte da Obra Completa do filósofo, felizmente editada. Uma deslumbrante forma de entrar no pensamento marrano de um escritor e pensador superior.
Maio de 2023
VOZ PASSIVA. 129
17-05-2023 11:31Na foto, da esquerda para a direita do leitor: Paulo Brandão, Pedro Martins, Deolinda Fernandes e José Faro, durante a sessão de lançamento de A Glória da Invenção, de Pedro Martins e Risoleta C. Pinto Pedro, no passado dia 2 de Maio, na ESMTC - Escola de Medicina Tradicional Chinesa, em Lisboa
Apresentação de A Glória da Invenção – Uma Aproximação ao Pensamento Iniciático de António Telmo, de Pedro Martins e Risoleta C. Pinto Pedro
José Faro
Boa tarde
Cumprimento os autores do livro hoje apresentado e todos os presentes.
Aos autores confesso que fiquei sensibilizado com o convite para ser o apresentador – seguramente que é do seu conhecimento a minha profunda impreparação para o efeito, o que demonstra o seu corajoso à vontade perante o paradoxo e a sua estrutural segurança perante o risco, o imprevisível e imponderável. O livro que geraram, em qualquer caso, saberá apresentar-se e defender-se a si mesmo, saberá encontrar o seu próprio caminho.
Saúdo ainda os presentes pelo elevado nível da sua noção de permanência do objeto e pelo elevado grau de inefabilidade abstrata de alguns dos seus objetos de consciência. Eu explico. Piaget falava deste género de coisas. Começámos todos, no berço, com o pânico da nossa mãe ter deixado de existir de cada vez que desaparecia, por exemplo, por ter saído da sala. Com o tempo descobrimos que ela, afinal, era permanente. Por extensão, a pouco e pouco, vimos a aceitar que todas as coisas existem persistentemente mesmo quando não as percecionamos. Muito mais tarde, parte de nós aplica esse axioma da permanência ontológica das coisas a objetos que nunca passaram pela perceção sensorial. São elementos intra-psíquicos, axiomas, crenças, intuições que nos habitam. Alguns são autênticas pedras de fecho estabilizando as cúpulas dos nossos processos interiores. Inefáveis, bem longe, lá no alto, mas tão concretos, tão sólidos, tão permanentes, muitas vezes tão indispensáveis para que a vida e o mundo nos mostrem sentido.
Fernando Pessoa escreveu algures “O mito, esse nada que é tudo”. Eu acho que filosofias que tentam verdadeiramente penetrar o desconhecido que ainda parece nada, como a de António Telmo, se enquadram entre os nadas candidatos a tudo. E, por isso, considero admirável estarmos aqui reunidos em torno de nada, um nada que sentimos como sendo ontologicamente concreto e talvez mais permanente que o resto. Na verdade, reunidos na mítica soleira de um pórtico antigo e invisível que, como se nada fosse, se abre escancaradamente para o tudo.
Voltando ao elemento terra. Ao livro. Os autores colocam uma escrita maravilhosa ao serviço duma reflexão informada, simultaneamente abrangente e do mais exigente detalhe. Dez sonetos da Risoleta Pinto Pedro mapeiam elusivamente tesouros escondidos no mundo de Telmo e desenham numa neblina esboços de seres que o habitam. São sonetos que sabem a soneto: filosoficamente densos, com finais afinados em clave conclusiva, mesmo quando rematados em acordes de espanto ou em semibreves perguntadas. Perguntamos nós se foram construídos a propósito de Telmo ou se emanaram da mesma fonte que dessedentou o filósofo.
Na distância, Aquilino Ribeiro escuta, com deleite, o ranger ritmado da pena de Pedro Martins. A riqueza do vocabulário é posta ao serviço duma semântica fina, apta a ser expressão correta dos dados resultantes da pesquisa histórico-filosófica prévia, que tece e fundamenta uma rede interativa de conceitos e significados.
Lembrei-me de que tenho grande consideração e amizade pelo casal autor deste livro, que hoje veio à luz, mas que traz luz sobre muita coisa. Tenho de ser cuidadosamente objetivo, até por se tratar de um livro que, como vimos, e de um certo ponto de vista, tem como marca de água, o nada. O tal do Fernando Pessoa.
O trabalho de recolha e revelação (como nas fotografias antigas), anos a fio, de documentos da obra de António Telmo, ou dos muitos a ele referentes é, nos factos, uma tarefa pesada como o chumbo, que ensombra os que ousam a investigação histórica rigorosa. Mas, tanto quanto se sabe, Pedro Martins e Risoleta Pedro (reparem: quase faz capicua) deitaram juntos mãos a essa obra (reparem: música! Piano a quatro mãos) e transformam esse plúmbeo e amalgamado início em reluzentes pepitas editoriais como a que hoje é lançada ao mundo. É por isso que, a propósito deles me tenho lembrado ultimamente de Nicolas e Pernelle, famoso casal de alquimistas da história da Alquimia. É que, disse-me uma vez um alquimista, no laboratório só há uma coisa melhor do que trabalhar bem sozinho: é trabalhar bem acompanhado.
A composição em dez ensaios, sobre temas distintos ainda que relacionáveis torna a leitura do livro particularmente acolhedora. Dessa pluralidade não resulta a sensação de ser basculado de supetão um tema para outro sem relação na passagem de ensaio para ensaio. Cada ensaio é completo e chega-se ao fim com o prazer de ter concluído um caminho. Mas, mal se começa a percorrer o ensaio seguinte, logo se descobre-se que é uma continuação do caminho anterior. O resultado, para mim, foi uma leitura muito absorvente. “Bem, é só mais um ensaiozinho”, e assim sucessivamente. E parar antes do fim do livro? Claro que o momento presente me esperava. Mas o facto permanece – foi duma assentada e com sublinhados.
O que é apresentado é muito interessante. Na verdade António Telmo é um ponto focal duma vasta rede de simbiose teórica entre personalidades estruturalmente cúmplices no desvendamento filosófico do mundo mas, ao mesmo tempo, com individualidades muito marcadas. Como os designar coletivamente? Filosofia Portuguesa? Filosofia Marrana? Paracletismo? Filosofia Operativa? Ignoro e os especialistas que resolvam isso. O facto é que é praticamente impossível compreender qualquer deles sem falar muito dos outros, quer nas concordâncias quer nas discordâncias, quer sejam síncronos ou assíncronos. O facto é que eles se reconheceram uns aos outros e se reconheceram melhor a si mesmos no conhecimento dos seus pares na aventura filosófica comum.
Por essa razão, ao longo dos seus ensaios, Pedro Martins faz o gesto olímpico e ancestral do mercante de feira que desdobra uma manta para mostrar o esplendor da vista de conjunto do estampado ou do bordado. Neste caso, numa visão abrangente de águia, o rendilhado incrível com que os bilros da história teceram a história dos que, por estes lados, usaram o pensamento filosófico inspirado como ferramenta para transformar o pensador, trabalharam numa síntese espiritualmente operacional dos aspetos mais relevantes, desse ponto de vista, das religiões abraâmicas, e procuraram, nos jogos de luz e sombra da história do nosso povo, os contornos duma alma nacional contendo os segredos do melhor do nosso passado e o mapa do nosso destino comum. A visão de conjunto, a pluralidade desvendada das articulações teóricas, históricas e pessoais, a fundamentação documental exaustiva levam-me, naturalmente a recomendar a sua leitura.
E agora, sendo eu alguém que, do tal ponto de vista acima apresentado, esteve a falar de nada, ou a falar do nada, é de considerar que já falei o suficiente.
Mas, a título de post scriptum: cruzei-me uma única vez com António Telmo e tudo entre nós se resumiu a uma troca de olhares. Mas que olhar tão doce, tão dirigido e tão atento. Que olhar tão de menino em alguém que, evidentemente, já era menino há tanto, tanto tempo. Ainda hoje recordo esse olhar que, há 25 anos atrás, durou um segundo, se tanto.
A minha admiração e reconhecimento para os autores, cordiais saudações para todos os presentes.
VOZ PASSIVA. 128
02-05-2023 00:00António Telmo, o sentido do Sul e um acontecimento recente em Portugal
Eduardo Aroso
No dia em que se cumpre a data de nascimento de António Telmo (2/5/1927 – 21/8/2010) e em que é apresentada a obra «A Glória da Invenção» de Pedro Martins e Risoleta C. Pinto Pedro, acabo de reler uma das mais significativas páginas de História Secreta de Portugal de António Telmo, capítulo II, publicada em 1977. «Tudo indica que, sendo o Sul, como vimos [o autor descreve nas linhas anteriores o percurso pelos 20 medalhões dos claustros dos Jerónimos, começando pelo lado ocidental e acabando no sul, justificando a sua razão de ser] o termo da «viagem» no Claustro, esse ponto cardinal constituía, para os Templários e seus continuadores, a enteléquia do movimento. O portal do Mosteiro da Batalha e o da Igreja do Convento de Cristo em Tomar estão, como o de Santa Maria de Belém, voltados para o sul. (…) Fernando Pessoa também sabe que “o Sul sidério esplende sobre as naus da iniciação”. Entre o X [1º medalhão], * que está no início, e o Sol,** que se encontra no fim [20º medalhão], há uma relação da potência ao acto. Que espécie de potência e que espécie de acto?».
Há aqui três palavras-chave, SUL, MOVIMENTO e ACTO. Tudo leva a crer que esta tríade constitua a mesma relação para algo, e na qual António Telmo se interroga. No início da obra em questão, o filósofo alude a um ponto de partida interessante, ou seja, o facto da imagem da Santa Maria de Belém estar voltada para sul, pormenor porventura simbólico, pois o Mosteiro dos Jerónimos foi erguido sobre uma velha ermida, consagrada a Santa Maria, mandada construir pelo Infante D. Henrique.
No recente 25 de Abril deu-se um acontecimento entre nós, que, quer se queira ou não, envolveu o sul (o promissor sul carregado de História que nós sabemos, falando a Língua Camões). O que todos viram também sabemos: cenários meramente políticos. O que talvez muito poucos vissem foi a oportunidade perdida desse movimento para o sul (neste caso o Brasil), pela presença do seu presidente. Qualquer presidente é uma representação mais ou menos efémera de algo maior na história das nações, não deixando de ser símbolo desse trânsito no tempo. No meio da mais rasteira política da Assembleia da República, foi a oportunidade perdida da Língua Portuguesa - «quem não vê bem uma palavra, não vê bem uma alma» (F. Pessoa) – mas quiçá também tudo o que de oculto carrega esse movimento para sul.
O entendimento do que representa a nossa tradição no caminho do sul, decerto que não aconteceu. Ou algo se vai passando de menos visível. Todavia, o movimento continua até que Portugal se cumpra e que a pátria do Cruzeiro do Sul saiba quem é na verdade.
* A letra X, primeira letra grega do nome grego de Cristo.
** Sol símbolo de Cristo.
Maio, 2023