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UNIVERSO TÉLMICO. 36

23-04-2016 19:56

«33 Poemas de Herberto Helder»

Maria Estela Guedes

 

Conferência na quarta sessão do ciclo As Artes da Misteriosofia. Lisboa, Livraria Barata, 21 de abril de 2016.

 

Para Anita Garibaldi,
saudando-a pela próxima entronização
como  G.'. M.'. da GLCB.'.,

 

Numa aproximação etimológica à palavra «misteriosofia», creio que por essa palavra António Telmo pretendia significar a sabedoria, o conhecimento dos mistérios. Como, para um discípulo de Álvaro Ribeiro, que Telmo era, os problemas são humanos, os segredos são naturais e os mistérios são divinos, teremos então uma teologia, uma teosofia ou uma teodiceia. A questão, porém, é a de se saber se esse conhecimento é possível, porque aqui lembro-me de um título de Telmo: Só Deus escreve sobre DeusPedro Martins, em email.

Em todos os grandes poetas há uma parte de obscuridade,
que é a que provém do mais legítimo inconsciente.

 Thomas Mann, citado em email por Nicolau Saião

 

Diferentemente da maior parte dos livros de Herberto Helder, Letra aberta (1) exibe um visual, é uma peça de arquitetura motivada pela presença de manuscritos com correções. O autor passou pelas experiências da poesia visual e tem obras publicadas nesse âmbito. Porém, os antecedentes diretos de Letra aberta nasceram quando o poeta ofereceu exemplares de Cobra (2) com correções manuscritas, nem sempre iguais, de amigo para amigo. A caligrafia é uma arte, daí dizermos que há quem tenha letra feia e letra bonita. Lembremos o Islamismo, aliás referido no livro com outra intenção, cujos motivos decorativos são a geometria e escrita, e a própria palavra “caligrafia”, que significa “bela grafia”. A caligrafia de Herberto neste livro é trémula, o que prova, se fosse necessário prová-lo, que foi escrito nos últimos anos, mas ainda é muito clara.

Temos então uma obra de arte dupla, literatura e artes plásticas, executada com técnicas mistas, que apresenta alguns poemas com os seus duplos, as versões manuscritas deles. São 7 os manuscritos, porém só 6 os poemas, visto que um deles ocupa duas páginas. Se aos 6 poemas caligráficos acrescentarmos os 33 tipográficos, o resultado dá 39, o que mantém o valor simbólico do 3 e do 33, enfim, do triângulo ou do ternário.

No final do livro aparece-nos um grupo de 4 notas de um hipotético descodificador da caligrafia que em 4 momentos sentiu dificuldade em perceber o texto. Salvo a 1ª, sem alternativa explícita, os casos 2º, 3º e 4º apresentam duas hipóteses de transcrição. O intérprete, anónimo, obscuro ou misterioso, como se prefira, escolheu sempre a 2ª, ou seja, o número 2. O número 2, presumo que por coincidência, é normalmente o da Mulher, quando lidamos com a série dos 3 primeiros algarismos numa dinâmica simbólica; ora é bem verdade, ninguém o pode negar, que o feminino aparece logo no rosto do livro, com a informação de que Olga Lima, viúva do poeta, é responsável pela seleção dos poemas. Quer isto dizer que foram reservados muitos poemas para próximos livros.

No campo da arquitetura interna, também é importante assinalar que o livro se desenvolve a partir da coincidência dos contrários e de mais algarismos, muitos, mas mesmo muitos números, e de palavras repetidas, 2 e mesmo 3 vezes, o que claramente é um convite ao leitor para que preste atenção, de um lado à música, de outro à numerologia, para não dizer matemática, ou inversamente. Um só exemplo, na página 53, em que ouvimos o enunciador chamar 3 vezes por certo corpo celeste: «mais acima da cabeça que ele toca se o sono é tocado pelo sonho, / para ser semeado à volta delas todas, / e grita do cimo dessas torres: -- estrela! estrela! estrela!» e logo a seguir o poema fala da terra e de um material de construção indissoluvelmente ligado aos números 3 e 33; para que dúvidas não restem na mente do leitor avisado, depois das 3 estrelas o material de construção é designado por 3 vezes, bem como por 3 vezes se repete a palavra “nome”:

[…] «e grita do cimo dessas torres: -- estrela! estrela! estrela!

nome a nome a nomeação da terra com suas pedras sôltas,

a cada pedra onde ela pedra é tão assim tocada»

 

Falei de coincidência dos opostos, a tão misteriosa coincidentia oppositorum própria da experiência do sagrado, que anula as polaridades na unidade. A principal verifica-se entre os contrários letra aberta e letra fechada, mas também reaparece a ideia do canhoto do último livro (3), espelhada ainda na simbologia da mão esquerda e da mão direita. Duas vias, a via do Mal e a via do Bem, a que outros acrescentam a terceira via, conhecida por “caminho do meio”. Por outras palavras, o poeta anula as diferenças entre Deus e o Demónio. Herberto Helder chama-lhe Canhoto, donde o último livro se pode atribuir ao Mafarrico, cujos nomes são muitos e variados: Azango, Belzebu, Careca, Maneta, Manguito, Mefistófeles, Tição Negro, Porco Sujo, etc., como enumera Ana Paula Guimarães, especialista nas coisas do Diabo (4).

Não é possível ignorar que antes do caminho, em expressões como “mão esquerda” e “mão direita”, está a palavra “mão”, a operária e canteira mão que pode ser esquerdina. Essa mão, possuída pelo Demónio, cujos dedos servem para contar pedras e estrelas, mas também para desfiar contas, de tassbi ou de rosário. Mão que pode ser pisada por um pé, cito «-- o pé em cima da mão verídica com a chaga e com o beijo» (p. 53), a mão do poeta, mão que escreve, e aqui repetiria o que disse Pedro Martins de António Telmo, que só Deus escreve sobre Deus, pois o poeta está em sofrimento crístico, sente-se abandonado pelo Pai, apesar de reconhecer, mais uma vez, que não foi abandonado.

Passemos à letra aberta e à letra fechada. Pelo título entendemos o discurso linear, profano, e pela segunda a presença do mistério, ou pelo menos do segredo. Resolvendo já o problema, a palavra aberta e a palavra fechada equivalem-se, e aqui recordo algo que Ernesto de Sousa várias vezes me ensinou, quando eu falava de arte sacra, como se existissem duas, essa e a profana. Então ele corrigia, procedendo à conjunção dos contrários como bom alquimista que foi: «Toda a arte é sacra».

Se quisermos trazer à baila a palavra francesa, teremos a dupla lettre ouverte e lettre fermée. No caso francês, a palavra lettre também significa carta e então fica mais claro para todos que o poeta obscuro, não só neste livro como nos dois ou três anteriores, resolveu manifestar-se também como poeta claro. Porém, quando apresenta a máscara de claridade, não é sem consequências: quanto mais aberta a letra, mais próxima fica do discurso que fixa o real, facto que tem sido mal entendido por quantos não aceitam o abandono da luxuriante árvore das metáforas de poemas como O amor em visita (5) ou Cobra. E antes de me perguntarem se tenho gostado dos últimos livros de Herberto Helder, direi que sim, apesar de se apresentarem quase no pólo oposto dos seus livros de juventude. Nos mais recentes, a metáfora cedeu o lugar a estruturas no âmbito da repetição, portanto ao que ressoa ao ouvido e pode ser listado. De uma entrevista a Umberto Eco acerca do poder das listas, transcrevo um fragmento (6):

“Umberto Eco - A lista é a origem da cultura. Ela faz parte da história da arte e da literatura. O que a cultura quer? Tornar a infinitude compreensível. Ela também quer criar ordem - nem sempre, mas com frequência. E como, enquanto seres humanos, lidamos com a infinitude? Como é possível entender o incompreensível? Através de listas, através de catálogos, através de coleções em museus e através de enciclopédias e dicionários.”

As listas são enumerações, isto é, sequências discursivas numeradas ou que podem ser contadas. Na base disto mora a ciência, no caso, a matemática. Haverá nada mais claro do que uma lista de números, sobretudo quando chegamos ao fim do mês e verificamos que a fornecida pelo multibanco mostra que o saldo se aproxima vertiginosamente de zero?

Claridade, quer o poeta obscuro; o discurso digital que nos suporta a comunicação quando nos sentamos diante do computador, apesar de o não sabermos ler nem escrever, é um prodígio de clareza em que só existem dois sinais, 0 e 1. Nada de comparável às 22 letras do grego que originaram a palavra alfabeto, e refiro este número mágico por constituir um dos poemas listados por Herberto Helder, um poema em que aparecem a “equação do universo” e 2 vezes a palavra “alma”, tudo isto a evocar a necessidade de compreensão do infinito e do incompreensível que Umberto Eco atribui à lista. Aliás, os poemas são em geral sequências de frases sem princípio nem fim, o que lhes confere uma dimensão de infinitude. Vejamos o final, na pág. 18:

[…] dela, alma, e tudo acaba

e muito depressa, como aliás nestas

vinte e duas linhas, de facto

por fora limpas e rápidas

(e nem isso é bem verdade)

 

Alcançado com este discurso dos números o cúmulo da claridade, parece que não sobra espaço para grande retórica.  Porém, maior prodígio ainda do que este farol é o operado pelo poeta quando faz coincidirem o discurso analógico e o discurso digital, isto é, quando consegue tirar dos algarismos tanto ou mais valor semântico do que da bela metáfora. É isso o que tenho vindo a mostrar: este livro é muito mais profundo e complexo do que O amor em visita, apesar de pobre em retórica, e de usar da retórica a parte mais indesejada, caso da aliteração e da redundância, patente, por exemplo, em “pensar pensamentos”. Faço notar entretanto que a redundância é um recurso da comunicação para eliminar ambiguidade e incerteza.

Extraordinária esta arquitetura, repito, pensada página a página, que nada deixou ao acaso, exceto, naturalmente, a fala do inconsciente, que também anda por aqui. Vejamos um caso surpreendente: diz o poeta que, quando escreve o poema, só a primeira letra é que custa, que essa  letra é uma ferida que sangra, e, cito os dois últimos versos, importantes porque neles aparece o título do livro:

“parece, diz alguém, que a própria carne está rôta,

aí, na letra aberta dentro da boca funda”

 

“Letra aberta”, está escrito. E onde, em que página? Pois, essa expressão-título surge no poema da página 33. Não tinha a certeza se o fenómeno se devia ao acaso se à premeditação, mas olhei para o lado, para a página anterior, e achei nela um sinal de redundância, por consequência um dispositivo para eliminar ambiguidades e incertezas, na menção aos 3 dedos com que o poeta escreve, isto entre outros números.

Penso eu que estamos a decifrar elementos de significação do discurso digital, aquele sobre o qual maior domínio não teríamos, nem o poeta nem eu, do que contar literalmente pelos dedos. Apreciemos o poema da pág. 29, com uma contagem decrescente, e repetição de palavras em número de 3:

tinha cinco minutos diários de paz terrena

depois quatro,

depois três,

depois dois,

depois um,

depois não nunca nada,

depois era: dêem-me um tiro na cabeça

para nunca nunca nunca um só número,

todos os números,

qualquer número

 

O mistério espreita nesta contagem, ou pelo menos o segredo. Como? Precisamente, uma vez que o poema é um segmento de discurso sem princípio nem fim, uma frase gramaticalmente incompleta, ficamos suspensos da revelação de algo. O quê? Que se oculta por detrás dos números? É Deus ou o Canhoto quem se ergue no horizonte da contagem decrescente dos minutos de paz terrena?

Recordando o Velho Testamento, Letra aberta também podia intitular-se Livro dos Números. Não se tratando de recensear, como na Bíblia, a verdade é que Herberto Helder faz desfilar diante dos nossos olhos um exército de bárbaros. Talvez tivesse valido a pena contá-los, para sabermos se são mais ou menos 33. Só no poema da página 21 contei 11, em 20 linhas apenas.

É pertinente esboçar um inventário dos algarismos e situações lexicais que implicam lista, contagem, enumeração, matemática e geometria. A lista é tão importante neste livro de Herberto Helder que figura logo no início, primeiro poema, no manuscrito, de versos numerados de 1 a 15 e devidamente assinalados alguns com três asteriscos abertos mais duas estrelas obscuras, isto é, riscadas. Aliás o total não é cinco, adivinha-se um astrozito minúsculo no final do quinto verso, por isso aventaria eu que são mais ou menos seis asteriscos. Podíamos pensar que servem para dividir estrofes, mas os poemas são contínuos, esses sinais de pontuação só existem no manuscrito.

 

Por falar em poemas contínuos, há questões obsessivas em Herberto Helder: uma é o poema contínuo, os livros todos quer o poeta que sejam entendidos como uma só unidade; outro assunto obsessivo é o do poeta obscuro, que aparece dos modos mais variados na obra e em diversas situações. Por isso respondo aos que me atribuem a invenção do “poeta obscuro” (7) dizendo que não, não o inventei, ele é que me pode ter inventado a mim. Quando eu apareci em cena, no final dos anos setenta, com o meu Poeta obscuro (8), já Herberto Helder cá andava desde os anos cinquenta e já tinha publicado Os passos em volta, com um conto intitulado “Poeta obscuro”. Vejamos a primeira parte do poema da página 23, em que mais uma vez o nosso interlocutor declara o poema único e se assinala como obscuro:

eu cá acho que sim,

acho que apesar de tudo escrevi um poema aceitável,

um poema que amadurou em mim ao longo de oitenta anos,

bem sei que tanto tempo merecia a qualidade que Deus pede,

mas tendo em conta que sou ateu tenho direito a que me tolerem a baixa

difícil virtude dos nomes rasos,

não sou dado a impropérios e impaciências,

oh, aceitem lá a pequenez geral da minha vida

e do meu nome obscuro,

o quão honesto sou odiando tudo isso,

 

Voltemos à lição de tabuada. Estará Herberto Helder a brincar connosco? Entre o sim e o não optemos pelo quase sim, pois há realmente apelos ao jogo neste livro, ainda que seja um jogo de cena tão dramático como a Paixão. Diria que se trata de interatividade, uso que o poeta faz da simbólica maçónica para comunicar com maçons e familiares. Porquê? Eu respondo: porque, entre a crítica que debate se ele é ou não um poeta obscuro, prefere a crítica que o integra no mundo sagrado, ainda que ele se afirme ateu. Portanto este livro, com o seu publicitário 33, é uma declaração de pertença ao nosso mundo, o obscuro e misteriosófico universo dos símbolos.

Retomemos o primeiro poema. Insisto em que é realmente extraordinário levar a poesia a produzir cascatas de sentido a partir de elementos tão minimais como algarismos e sinais de pontuação. E que diz ele então, o poema primeiro? Diz o contrário da lista, diz que o poeta é incapaz de obedecer a leis e de formular regras na criação do poema, a que chama “coisa inúmera”, depois de a ter numerado de 1 a 15, no manuscrito. De um lado a lista, sinal do numerável, de outro a incomensurabilidade. Temos então um casamento de contrários, o número e o inúmero, a ordem e a desordem da criação e, se quisermos o simbólico ovo em que masculino e feminino casam realizando assim o mistério da vida, temo-lo neste mesmo primeiro poema, que remata com um par de palavras que funcionam como anagrama e capicua: “serias sobretudo / como um voo ou como um ovo”.

À beira de terminar, começo agora pelo princípio, e no princípio aconteceu esse facto insólito de ter recebido a notícia da próxima saída do livro num artigo intitulado “33 poemas de Herberto Helder”. E já vimos como o título herbertiano, “Letra aberta”, aparece no corpo de um poema, o da página 33, o que leva a perguntar quem e porquê. “33 poemas de Herberto Helder”, rezava a notícia. Jamais me lembraria de ir ao índice para os contar, nem decerto daria aos números a atenção que hoje lhes concedi, se não tivesse sido alertada.

Letra aberta é uma obra de arquitetura, cujos materiais de construção evocam os do pedreiro, do escultor ou do canteiro. Tomemos o exemplo da estela, que começa por ser uma pedra com inscrições: “escrevi umas poucas linhas como estela e como exemplo”, lê-se, na pág. 40. A estela é um monumento funerário a assinalar o modo como o poeta se vê desaparecer: por enterramento. O abismo do inconsciente de que nasce a Poesia é a fonte onde o autor bebe a matéria com que elabora os símbolos. Os que aparecem em Letra aberta, com bastante força, são o ovo, matriz da criação num ab initio; e o enterramento, que acaba por ser homólogo do embrião no ovo, ambos um abscôndito regresso à Terra Mater, ou germinação no interior do seu útero. Morrer, em termos simbólicos, neste livro, é o mesmo que ser semeado, enterrado para renascer. Esse era o maior dos desejos do poeta, e estava a realizar-se nos últimos livros, para seu próprio deslumbramento: o seu Renascimento, nítido no estilo novo e na reincidente referência aos clássicos. Servidões (9), se nos lembrarmos, abria com dois versos decassilábicos de estilo renascentista, o que me levou a estudar nesse livro alguns pontos de contacto com a obra camoniana (10).

Para terminar, peço perdão por ter contado mais pelos dedos do que falado de mistérios, mas deixo aberta a porta para mais um punhado deles no poema da página 39, carregadíssimo de matéria sacral, noturno, tenebroso, sem outra luz além daquela que anuncia o Verbo em certo pão, um pão secreto e profundo, encarnado, poético pão que salva e ressuscita:

um nome que me digas ou me não digas duas vezes

em dois abismos de sono, esse nome

faz-se carne no mais âmago de mim mesmo,

esse nome trabalha-me,

é igual ao segredo: pão,

eu cômo-o no mais escuro do mundo

cortado a água e mais nada,

quase como quando se morre mais devagar

se é noite que entra: pão profundo mastigado

acaso na maior das noites seguidas umas às outras

 

 

 

NOTAS

 

(1)     Herberto Helder, Letra aberta. Lisboa, Porto Editora, 2016.

 

(2)     Herberto Helder, Cobra. Lisboa, Editora &Etc., 1976.

 

(3)    Herberto Helder. Poemas canhotos.  Lisboa, Porto Editora, 2015.

 

(4)     Ana Paula Guimarães, B.I. do Zarapelho (O Diabo). Lisboa, Apenas Livros, 2004.

 

(5)     Herberto Helder, O amor em visita. Lisboa, Contraponto, 1958. 1ª ed.

 

(6)     Umberto Eco, «O poder das listas». Entrevista de Patrícia Reis. In: https://vaocombate.blogs.sapo.pt/161932.html . Consultado a 18 de abril de 2016.

 

(7)    Joana Emídio Marques, “Pode o poeta perder a aura?”. Observador, 10 de abril de 2016. Consultado em abril em: https://observador.pt/especiais/herberto-helder-poeta-perdeu-aura/

 

(8)    Maria Estela Guedes, Herberto Helder, poeta obscuro. Lisboa, Moraes Editores, 1979.

 

(9)    Herberto Helder, Servidões. Lisboa, Assírio & Alvim, 1914.

 

(10)           Maria Estela Guedes, “O rio camoniano”. Conferência plenária ao Colloque international "Herberto Helder. Absurdité du centre, continuité du temps". Sorbonne Nouvelle /Fond. Calouste Gulbenkian, Paris, 14-15 novembro 2013. Em linha no Triplov, em:  https://www.triplov.com/novaserie.revista/numero_51/ .

 

 

Stella Carbono, M.’.M.’.C.’.

21.04.2016

DOCUMENTA. 06

23-04-2016 19:36

É um dado novo, ou pelo menos nunca até hoje atendido, na biografia de António Telmo. A saída a lume, em Fevereiro de 1953, em A Bem da Língua Portuguesa - Boletim Mensal da Sociedade de Língua Portuguesa, do artigo "Ensino do Português e ensino do Francês", assinado pelo futuro autor de Arte Poética, motivou, logo no mês seguinte, a publicação de uma carta de um leitor, Mário Martins, na secção "Tribuna Livre" daquele boletim. Eminententemente crítica de parte das afirmações do jovem Telmo, a missiva ficou sem resposta.

____________

Ensino do Português e ensino do Francês[1]

por Mário Martins

 

Ex.mo Sr. Director:

 

Publicou o Boletim do mês transacto, que V. Ex.ª dirige com a competência e brilho já sobejamente demonstrados, um artigo subscrito pelo Sr. António Telmo, cuja essência é um preclaro ataque à obrigatoriedade atribuída ao ensino da língua francesa nos nossos cursos secundários, concluindo o autor, depois de alguns considerandos acerca da influência dela na formação intelectual dos nossos escritores modernos, sem que para tal se reporte, como seria óbvio, num tema desta natureza, às múltiplas evoluções por que tem passado o mundo civilizado, sem lhe ter visivelmente ocorrido que outra língua já tenha exercido, e outras venham possivelmente exercer, a aludida influência, que a prioridade concedida ao francês, em detrimento de outros idiomas, não obedece a um critério definido e concreto, por razões que explana num limitado horizonte, através dum prisma pessoal, consubstanciadas em argumentos insubsistentes.

Observa o articulista, em defesa da sua tese, não se perceber que motivos levaram o pedagogista a preferir esta língua às restantes.

Não é razão de facilidade didáctica, porque mais próximo do português está o espanhol, falado por milhões de indivíduos. Não é razão de utilidade nas relações comerciais e industriais, porque nesse caso seria escolhido o inglês. Não é razão de importância científica, porque então optar-se-ia pelo alemão. E confessa que não é capaz de compreender porque é que aos estudantes dos liceus e escolas técnicas se impõe como condição indispensável de estudo a aprendizagem da língua francesa.

O tema despertou a minha atenção, porquanto o estudo de línguas estrangeiras tem sido a minha paixão dominante, e muito principalmente por discordar quase em absoluto das afirmações produzidas pelo nosso consócio, no artigo em questão.

E assim, pondo de parte a forma como funciona, na Faculdade de Letras, o curso de filologia românica, contra o qual o autor se insurge, faceta do artigo que não discuto, por visar unicamente a organização do ensino do Português e do Francês entre si, que em nenhum aspecto pode justificar aquele ataque nítido à obrigatoriedade citada, inconcebível para o autor, do ensino da língua francesa nos nossos cursos secundários, de preferência à espanhola, inglesa ou alemã, propus-me demonstrar que a estrutura do artigo, por não se apoiar em bases sólidas, se converte num verdadeiro rosário de conceitos pessoais facilmente refutáveis.

Pois haverá porventura algum pedagogista, da velha ou da nova geração, que se permita pôr em equação a universalidade das línguas francesa e espanhola?

Acaso alguém ignora que antes da deflagração da 2.ª Grande Guerra o francês era a língua internacionalmente adoptada em congressos de relevo, acompanhando de perto a inglesa no campo comercial e industrial, a alemã no domínio científico, e suplantando qualquer delas do ponto de vista intelectual?

Acerca da universalidade das línguas espanhola e francesa, pronunciou-se há pouco nos seguintes termos uma revista filatélica do país vizinho, de larga expansão na Europa e nos países Sul-Americanos:

 

Con alguna frecuencia se reciben cartas en nuestra redacción, mejor o peor intencionadas, en las que se «extrañan» de que editemos nuestra revista en castellano, dando solamente algunas notas interesantes en francés o inglés.

 

E depois de uma série de explicações absolutamente lógicas, em abono da universalidade da língua espanhola, cuja transcrição julgo desnecessária, conclui por dizer:

 

Conscientes de esta importancia, de esta universalidad, no dudamos en considerar al castellano como nuestra lengua oficial, si bien, en nuestro cariño a todas las lenguas del mundo, utilicemos con la frecuencia que nos es posible todas las demás, AUNQUE DEMOS ALGUNA PREFERENCIA AL FRANCÉS, POR CREER JUSTAMENTE ES MÁS CONOCIDO DE NUESTROS ASOCIADOS.

 

Em publicações deste género, os editores americanos, alemães e ingleses procedem de igual modo...

E porquê?

Por que motivo os editores de todo o mundo introduzem sempre o francês, quer se trate duma banalíssima publicação filatélica, quer seja uma obra de vulto literária ou científica?

O motivo determinante do comércio livreiro, a que alude o Sr. António Telmo, é exactamente a universalidade desta língua, originada nas conhecidas causas da expansão, do domínio, da difusão linguística, etc.

Sem dúvida, o espanhol seria mais acessível do que o francês, por facilidade de assimilação, dado que é positivamente, de entre as línguas neo-latinas, a que o aluno aprenderia com maior rapidez, mais abreviadamente, com muito menos dispêndio de esforço intelectual; isto é uma verdade irrefutável, como inegável é também que no tocante a utilidade – «sob qualquer aspecto» – não há paralelo possível entre elas...

Nada justificaria portanto que por «facilidade didáctica» se fizesse a substituição do ensino da segunda pela primeira...

À minha mente, nem sempre traiçoeira, ocorre-me neste instante a categórica afirmação que em 1951 me fez uma consagrada figura da ciência médica, conversando acerca da necessidade do conhecimento de línguas estrangeiras. Dizia-me ele: «Hoje, um médico que queira acompanhar a evolução da ciência tem de saber inglês. A última guerra, como todas aliás, revolucionou grandemente a técnica cirúrgica e a medicina em geral... Reconheço e admiro o valor dos alemães no campo científico, em que ocupavam posição de relevo, mas não ignoro outrossim que as derrotas nas guerras trazem, como consequência natural, um ascendente do vencedor sobre o vencido, motivo por que a Alemanha estagnou, enquanto a América progrediu.»

É certo que não só a medicina é ciência... mas se nos dermos ao cuidado de ouvir os cientistas de outros ramos, creio que não discordarão muito do parecer deste ilustre catedrático.

Seria portanto absolutamente ilógico que no momento presente se substituísse o ensino da língua inglesa pela alemã por razão de importância científica...

Resta-nos a vantagem comercial. Esta, sim, é verdadeira; o inglês é, sem dúvida, a língua comercial por excelência, e o incremento que tomou nos últimos anos é de tal forma considerável que a tornou quase imprescindível ao regular funcionamento das relações comerciais. Disfruta hoje de uma posição claramente vantajosa, sem que todavia os ainda numerosos importadores e exportadores portugueses vissem as suas transacções prejudicadas pelo facto de continuarem a redigir em francês a correspondência trocada com a Inglaterra, a América do Norte e outros países onde o inglês predomina.

Em suma: não é difícil apercebermo-nos, através de manifestações artísticas e literárias, que o francês domina o mundo civilizado no campo intelectual, como também facilmente observamos que o inglês o leva hoje de vencida do ponto de vista comercial e científico.

Quem poderá por consequência duvidar de que são estas as línguas estrangeiras fundamentais, as que inicialmente mais interessa aprender, as de mais vasta utilidade e as de mais rasgadas vantagens, por serem irrefutavelmente as de maior projecção no domínio literário, científico e comercial?

Se alguma preferência houvesse a atribuir-se à aprendizagem de línguas estrangeiras, seria talvez, e unicamente, proceder-se de modo inverso ao actualmente vigente isto é, iniciar o ensino delas começando pelo inglês e seguidamente o francês; mas preferir o francês a favor do espanhol ou o inglês em proveito do alemão – estou eu certo de que bem poucos pedagogistas perfilharão tal ideia...

 



[1] A Bem da Língua Portuguesa, ano IV, n.º 2, Lisboa, Mar. 1953, pp. 133-135.
 

 

DOS LIVROS. 47

17-04-2016 00:58

Rafael, o grande solitário

 

O grande escritor francês Léon Bloy, que a si mesmo se designava por o Pobre, por este modo fazendo a imitação de Cristo, estava um dia no meio de mendigos, à saída da missa em Notre-Dame, estendendo como eles a mão à caridade. Passou um poderoso, o ministro das finanças ou coisa no género, que o reconheceu no preciso momento em que lhe ia entregar uma mísera moeda. Ficou espantado de ver tão ilustre personagem a pedir esmola:

– Você, Léon Bloy, aqui?

– Preciso de comer.

– Mas há instituições de caridade...

– Só acredito nas instituições de caridade quando elas forem dirigidas por pobres. Vá! Passe para cá o dinheiro!

Esta cena poderia ter-se passado com o Rafael Monteiro, à saída da missa no Chiado. A sua altivez perante os reverendos, isto é, a sua irreverência, juntamente com o seu inexcedível talento de produzir choques de frases que fazem ver, estão bem patentes nesta história que ele próprio me contou.

O famigerado escritor marxista José Cardoso Pires, por ter ouvido falar do solitário no Castelo de Sesimbra, talvez ao Agostinho da Silva, bateu-lhe um dia à porta. Não chegou, porém, a entrar, em consequência do seguinte diálogo:

– Sou o Cardoso Pires... O escritor.

– Sim... Deixe ver se me lembro. O senhor não escreveu um autobiografia?

– Não, nunca escrevi nenhuma autobiografia.

– Ora essa! Então não foi o senhor que escreveu Eu, Burro de Pé?

Este, como outros confrontos, criaram-lhe muitos inimigos. O francês Léon Bloy também os teve em grande quantidade. Ambos católicos, tinham de comum também a sua irreverência em relação à Igreja. Eis algumas frases bem expressivas disso, tiradas de um “depoimento” inédito, agora publicado em livro:

“Fui criado no «seio da Igreja» como soe dizer-se. E na catequese, com um lapitos, riscava a palavra «Romana» na frase do catecismo: «Católica, Apostólica, Romana». Entendia no meu senso ingénuo que deveria lá estar «Portuguesa», pois em Portugal eu nascera e não em Roma. Mal sabia, então, como era importante a verdade revelada pela minha infantilidade.”

“Na frequência do templo e no convívio com os sacerdotes, aprendi o pecado, e bem cedo me tornei pecador, aos olhos da Igreja. Na alma radiquei imenso medo de Deus. «Não faças isso, que Deus te castiga», «Deus não te perdoa se fizeres assim», e estas e outras intimativas (pavorosas para a minha alma ingénua) destruíram o que em mim era pureza, amor e esperança em Deus. Mas ensinaram-me que pela confissão o sacerdote me absolvia dos pecados cometidos. E eu vi no sacerdote um ente maior e melhor do que Deus.”

É um depoimento admirável que ele sim deveria figurar à cabeça deste livro como apresentação do autor. Quando, adiante, o leitor o percorrer com os olhos do espírito, verá como é nobre e elevado o homem que o escreveu. Ali se mostra, porém, apenas um aspecto dos muitos que constituíam a sua natureza. Um aspecto importantíssimo, pois, ao dar-se nesse depoimento como um pobre e um louco (“sou pobre, eufemismo com que os meus amigos, piedosamente, ocultam a verdade da miséria em que vivo”) e, ao mesmo tempo que pobre e louco, e por isso mesmo «um milionário de Deus», considera-se um escolhido. Recordo-me bem do entusiasmo com que me falava do «pobre» que, no famoso quadro de Gregório Lopes, da Misericórdia de Sesimbra, se recolhe num manto de Nossa Senhora. Era como se visse nele a si próprio entre os grandes deste mundo, mas superior a todos porque o interpretava como um «iniciado» em qualquer Maçonaria do século XVI, coisa da qual lhe parecia sinal certo o joelho descoberto da personagem.

O quadro de Nossa Senhora da Misericórdia era uma das suas grandes paixões. Tanto assim que um dia me pediu para irmos ambos a Lisboa convidar o Almada Negreiros a falar sobre ele na Biblioteca Municipal, de que eu, então, era director. O «consagrado» pintor recebeu-nos cordialmente, embora dizendo que não, ao que pedíamos, por se encontrar velho e doente. Morreu pouco tempo depois. Se não fosse sentir-se impedido fisicamente, não deixaria de aceitar o convite, porque amava muito Sesimbra, onde tinha estado muitas vezes vinte anos atrás. E quando o Rafael Monteiro lhe observou que, se ali fosse agora, a iria encontrar muito mudada porque o turismo a vinha continuamente estragando, fitou nele os seus grandes olhos negros e proferiu estas palavras memoráveis:

– A beleza de Sesimbra, meu Amigo, nem uma bomba atómica seria capaz de a destruir. 

A resposta veio imediata:

– Que venha a bomba atómica! Que rebente com o turismo para que se veja melhor a beleza.

O Rafael Monteiro comparava o turismo àquela praga dos gafanhotos que assolou o Egipto dos tempos bíblicos. Via-os vir encosta abaixo camioneta após camioneta, carro após carro, aos sábados, aos domingos, em todos os dias da semana; via-os cobrirem campos e praia, alongarem-se em longas filas à porta dos restaurantes, devorarem tudo por onde passavam. Era como se lhe invadissem a casa, a sua querida Sesimbra, onde tinha nascido, crescido, e haveria de morrer. Retirava-se para o Castelo. Lia, escrevia, pensava, recebia os que eram capazes de o compreender e, excepcionalmente, de o ensinar.

Tinha uma vintena de gatos. Ele mesmo tinha o temperamento de um felino. A alma bem encaixada no corpo, serena e firme, simultaneamente distraída e atenta, sempre pronta a formar o salto com a rapidez do raio, quando de súbito alguém lhe invadia o território da sua independência.

Mas, ó coisa espantosa!, este homem que não se preocupava com o dia de amanhã, com o que pudesse comer no dia seguinte, teve uma fase da vida em que lhe caiu do céu muito dinheiro. Foi pelo acaso de uma conversa ouvida no café, de mesa para mesa. Por ela soube de um terreno imenso que estava à venda por tuta e meia. Não tinha tuta e meia. Associou-se com quem a tinha, o seu grande amigo Ernâni Roque. Compraram-no e depois venderam-no a peso de oiro. Couberam-lhe mil e tantos contos, que eram na época muito dinheiro. Os amigos, entre os quais este que escreve estas linhas, exultaram de alegria por o verem liberto da miséria. Aconselharam-no a aplicar o dinheiro, a tirar dele um rendimento mensal, de modo a não se preocupar mais com os aspectos materiais da vida. Como se enganavam e como eram pouco inteligentes! Assim com o dinheiro é que ele se preocuparia com os aspectos materiais da vida. Só sabia ser pobre. Só sendo pobre era livre. Só sendo livre era «um milionário de Deus».

Os mil e tal contos foram gastos, na sua maior parte, em obras na casa do Castelo, onde vivia. Fê-lo em memória da mãe, já falecida. Disse-me que queria que ela tivesse uma linda casa. Acreditava ou sabia que ela continuava a viver ali com ele.

Parece que Marcelo Caetano, segundo sabemos pelo que escreveu António Reis Marques em “O Sesimbrense”, terá ficado deveras impressionado ao ler uns textos do Rafael Monteiro que lhe vieram parar à mão. Fez com que o trouxessem até ele em Lisboa e disse-lhe mais ou menos o seguinte: “Apreciei muito os seus escritos! Você já é alguém, mas eu gostava que fosse alguém ainda maior pois tem qualidades para isso. Terei muito prazer em tê-lo como meu aluno na Faculdade de Direito. Estou pronto a ajudá-lo.”

Quando ouviu o Rafael dizer que tinha apenas a 4ª classe da instrução primária e, só com isso, não tinha acesso à Universidade, não pôde esconder a sua estupefacção.”

Compreende-se a estupefacção de Marcelo Caetano. É a de quem julga que só a Universidade dá autoridade, isto é, confere o direito de ser autor. O Rafael Monteiro, com a sua instrução primária, teve mais sorte do que o Fernando Pessoa, nem sequer se lhe pôs o problema de ter que desaprender tudo quanto lhe haveriam de ensinar na Universidade. 

 

António Telmo

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)

VERDES ANOS. 19

17-04-2016 00:43

Positivismo e filologia[1]

 

Data da formação do Curso Superior de Letras um período de desenvolvimento dos estudos linguísticos em Portugal. A iniciativa de D. Pedro V, cujos altos intentos ainda não foram compreendidos, em breve foi deturpada por quem desviou aquela instituição, abrindo-lhe as portas aos vencedores de concursos de provas públicas e dando uma finalidade utilitária à preparação dos escolares. Este desvio deve-se, primeiro, ao predomínio social da mentalidade iluminista e, depois, com a entrada de Teófilo Braga para o corpo docente daquela escola, à instauração definitiva do positivismo. Mais ou menos positivistas foram os filólogos ilustres que ensinaram linguística e literatura naquela escola superior que D. Pedro V havia fundado com intenções mais elevadas.

Hoje, apesar de todas as vicissitudes da história cultural, a orientação dos estudos linguísticos e filológicos continua a obedecer aos mesmos princípios fundamentais. Propomo-nos neste artigo caracterizar o positivismo implícito ou explícito nas obras dos escritores e professores, aliás meritórios e ilustres, pelos profundos conhecimentos que revelam e pela honestidade dos processos didácticos e científicos, fazendo apelo às nossas convicções religiosas e filosóficas.

Fazer da linguística pura ciência, sem relação com a filosofia e a teologia, parece-nos um erro de que uma das menores consequências será a incompreensão da poesia e em geral da literatura. O positivismo vinha, porém, firmado no propósito de exterminar a filosofia do campo da cultura nacional e humana.

Ao introduzir na linguística a lei dos três estados, afastava do ensino público a verdadeira teoria da génese das línguas, que, assim, passavam a ser estudadas como derivando-se, na linha recta do progresso humano, de uma hipotética origem empírica, marcada pelo encontro do homem com os outros homens e com a natureza circundante. Servindo-se do darwinismo, pôde fixar o momento daquele encontro, quando no antropóide acordavam, em forma emocional, os primeiros prenúncios da razão. Gritos desarticulados seriam, naturalmente, a primeira forma de expressão humana. Daqui deriva o primado da glotologia, nos estudos linguísticos, pois aquela ciência dá as leis hipotéticas das transformações dos fonemas, com os seus conhecidos fenómenos de aliteração, abrandamento, metátese, síncope, assimilação, de desassimilação, etc. As obras provenientes do «Circulo Linguístico de Praga», de eminentes filólogos, tais como Trubetzkoy, Jakobsen, Martinet, são um elucidativo exemplo exemplo do que a linguística pode produzir no campo da glotologia. Os ensinamentos que contêm são seguidos, com as necessárias adaptações locais, nas Universidades europeias.

Outra consequência da mencionada hipótese da origem empírica das línguas é a nova doutrina ortográfica, se a qual se eliminam, para simplificar, aquelas letras que não têm valor fonético, do ponto de vista da glotologia, tornando-se irreconhecível para as pessoas não eruditas a origem etimológica das palavras. Entre nós, esta doutrina foi defendida por Gonçalves Viana e combatida por Sampaio Bruno.

Outra consequência ainda é a consideração da literatura pelo seu lado fonético, estudo este que é completado pelo da sintaxe e do léxico, incluída neste a semântica. Ninguém ignora, para citar o exemplo mais flagrante, em que consistem os estudos dantescos. Naquilo consistem e, sem mais, em inferências históricas e explicações alegóricas, mais ou menos morais, mais ou menos políticas, que falseiam o significado mais elevado da Divina Comédia. Entre nós, é, sobretudo, elucidativo o caso dos Lusíadas, pelos quais a gramática é ensinada no ensino secundário. Encerrar, assim, em limites tão estreitos as obras literárias mais dignas de admiração seria apenas ridículo se não revelasse intencional esquecimento do pensamento que as origina. Fique, embora, por saber o que o poeta ou o prosador realmente pensaram no plano de cruzamento com a realidade mais profunda, o que importa a esta linguística é verificar os sons e formular as leis que prendem o poeta ou o prosador a um suposto fundo primitivo, o que importa ainda é medir, de um certo ponto de vista, a distância que falta percorrer para reduzir a prosa e a poesia mais belas e significativas ao mecanismo da razão separada e impotente. Pois que, sempre, sempre, os estudos linguísticos em causa irradiam do ponto de referência do homem, em cada momento histórico, a dois extremos: ao primitivo antropóide e ao perfeito antropos.

Filólogos alemães, após a descoberta do sânscrito, introduziram na linguística o estudo comparativo das línguas, procurando reconstituir o famoso indo-europeu, idioma primitivo, de há muito desaparecido, do qual derivariam aquelas línguas que apresentam semelhança irrecusável. Esta hipótese, de inegável fecundidade e que poderia, na verdade, promover a autêntica filologia, foi, porém, interpretada pelos linguistas em modo estritamente histórico e prestou-se, aliás excelentemente, para explicar as anomalias aparentes que, em cada língua, representavam um obstáculo ao desenvolvimento da linguística, orientada pela directriz positivista. Algo, é certo, não se deixa nunca explicar, para o que se introduziu a «explicação por analogia». Como é de ver, as leis de transformação fonética são utilizadas para a reconstituição do indo-europeu, o qual será, assim, resultado da exclusão de todas as diferenças que caracterizam os diversos idiomas aparentados, quando o que aparece como evidente é que essa suponível língua, se língua originária das derivadas suas, tem de as conter concretamente em si, e, por isso, a ser reconstituível, deve sê-lo por um método eminentemente integrativo, método, portanto, que de nenhum modo elimine aquilo que em cada língua é essencial, enquanto significativo. Os caracteres adoptados para o indo-europeu são, porém, convencionais e baseados nos caracteres latinos. Os diferentes caracteres das línguas do mesmo ramo, como os gregos, não são tomados em atenção. Resulta isto, como se sabe, da suposição, feita por mediação historiográfica, de que a linguagem escrita é posterior à linguagem oral, de que o fonema é anterior à letra. O que, porém, é curioso notar, fundamentadamente no que dissemos, é que a linguística vê no indo-europeu aquela língua rudimentar a que atribui uma origem empírica. Não deixa de ter relação com tudo isto o realce que os linguistas dão ao facto de a Bíblia estar, na sua maior parte, tecida com proposições coordenadas, o que mostra, segundo eles, um atraso do pensamento em relação ao actual, muito comprovativo da superioridade da razão.

Referiríamos tudo o que se explica na mesma linha que vimos tentando descobrir na selva espessa e miúda das múltiplas projecções dos estudos linguísticos. Queremos falar em estudos da língua em relação à geografia, à sociedade, à economia, à política, etc. O leitor que consulte a obra de Leite de Vasconcelos terá ocasião de colher informações, fundamentar juízos e tirar conclusões, quanto ao valor destes estudos em Portugal. E sem dúvida que, perante obra de tão vasta informação e inteligência, não deixará de pronunciar-se afirmativamente. Os linguistas, porém, ao cometerem o erro de colocar no início o que só se encontra no fim, na fase saturnina das civilizações dissolutas, tiveram de sofrer as consequências da sua irreflexão. Uma das menores é, como dissemos de início e explicámos ao meio, a incompreensão da poesia e em geral da literatura.

Ao esboçarmos esta crítica, sem pretensões de originalidade, crítica já corrente em meios mais esclarecidos do que o nosso e de que nos dão notícia, aliás, alguns professores mais bem informados, estamos convictos de que ela há-de, pouco a pouco, ser compreendida pelas mais novas gerações e vir a transformar radicalmente a estrutura do ensino da linguística em Portugal.

 

António Telmo



[1] A Bem da Língua Portuguesa, ano IV, n.º 6, Lisboa, jun. 1953, pp. 248-249 e 260. Assinado por António Telmo Carvalho Vitorino.

 

 

CORRESPONDÊNCIA. 31

09-04-2016 17:13

CARTAS DE ANTÓNIO TELMO PARA ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO. 12

Estremoz

11-2-89

 

Meu caro António Cândido Franco

 

Pouco tempo depois de nos termos conhecido em Vila Viçosa, pediu-me o envio de um escrito sobre Pascoais para uma revista que tencionava editar com uns amigos. Hoje sou eu que venho pedir-lhe o envio de um escrito sobre Pascoais para uma revista que vou editar com uns amigos. Chama-se Princípio e vai ser desfraldada no alto castelo alentejano que é a planície reconquistada para o Espírito[1]. Como vê, esta frase reflecte a leitura do Panfleto Contra Portugal[2], que por três vezes ponderei e por tal modo considerei que, não houvessem as suas cartas e as duas breves conversas que tivemos, bastaria ele para lhe fazer agora este pedido. Se quiser juntar um ou dois poemas inéditos muito melhor. Não quererá também o António Cândido Franco, em quem tenho fundas razões para ver um homem da reconquista, colaborar na organização da revista?

Quando me responder, envie-me o endereço da Fiama que não consigo encontrar entre os meus papéis. Escrevi já uma apresentação em grande parte decorrente, com a indispensável adaptação, do Panfleto. Que belo título!

Será que se dispõe a passar um dia por Estremoz? Gostaria de lhe apresentar o Tomé Natanel[3], sábio cabalista, com loja aberta de Antiguidades em Estremoz.

Um grande abraço

António Telmo

 



[1] Nota do editor – Este projecto não se concretizou.

[2] Nota do editor – Opúsculo publicado por António Cândido Franco no início desse ano de 1989. Edição de Arauto/Jorge Cabrita.

[3] Nota do editor – Tomé Natanael, ou Thomé Nathanael, alter ego de António Telmo cujo nome reproduz de modo anagramático, surge pela primeira vez no conto “No Hades”, publicado em Filosofia e Kabbalah, livro que sairá a lume nesse mesmo ano de 1989.

 

VERDES ANOS. 18

09-04-2016 16:20

Retomamos hoje a publicação dos escritos com que, em 1953, António Telmo colaborou em A Bem da Língua Portuguesa, o Boletim Mensal da Sociedade de Língua Portuguesa, numa fase em que Álvaro Ribeiro integrava a Direcção desta associação, então a conhecer momentos de grande vitalidade. Para além de nomes como Francisco Torrinha, que fora professor da Faculdade de Letras do Porto no glorioso período leonardino da instituição, e de José Pedro Machado, entre outros, o boletim abre então as portas aos vultos da Filosofia Portuguesa. No primeiro semestre de 1953, além de Telmo, Álvaro Ribeiro, José Marinho e Orlando Vitorino assinam colaboração nas suas páginas. O facto é, aliás, saudado num artigo de Gaspar Machado, de Julho desse mesmo ano. O artigo de António Telmo que agora recuperamos, saído a lume em Fevereiro, não passou despercebido aos leitores...  

Ensino do Português e ensino do Francês[1]

 

Reconhecida uma vez a necessidade de proteger a língua pátria, ameaçada de completa descaracterização, têm vindo os linguistas combatendo o estrangeirismo, dos idiomas, sem dúvida, o elemento mais profundamente descaracterizante. Desviadamente têm procedido, porém, quando, preocupados com dirimir o estrangeirismo, entre nós, sobretudo, galicismo lexical, não atentam no, evidentemente, muito mais pernicioso e minaz galicismo estilístico. Mais próximas do «espírito da língua» não se hesita em pensar que são as suas formas estilísticas do que os seus elementos materiais.

A menor análise denuncia, nos modernos escritores de língua portuguesa, a obediência repetida ao paradigma da sintaxe francesa. Com relativa facilidade, dependente de uma fácil informação, adquirida ou não adquirida escolarmente, evita o escritor o uso de galicismos vocabulares. O que lhe é ou seria difícil é libertar-se dos esquemas sintáticos que a sua mente aderiu, por um processo mecânico do próprio pensamento. Como factor deste processo está, sem dúvida, a leitura uniforme e repetida de livros escritos em língua francesa, leitura a que, em grande parte, se viu forçado pelas condições próprias do comércio livreiro. Não nos propomos discutir as razões determinantes deste comércio; de qualquer modo, teve anteriores raízes, sem as quais não se explicaria, a passividade do leitor perante o livro. De facto, o conhecimento dos segredos próprios e intransmissíveis dum idioma dá a quem o possui a faculdade de conviver, sem perigo de compromisso, com os outros idiomas, como também a de escrever ou falar nativamente.

Quem considerar a falta, entre nós, de um autêntico ensino que proporcione a livre existência da língua portuguesa, não estranhará, nos modernos escritores, a dificuldade que porventura tenham em evitar, sem arbitrária alteração da ordem dos vocábulos, os esquemas sintáticos importados a que as suas mentes aderiram.

Com efeito, no ensino liceal e técnico a língua predominante é a francesa. Não se percebe que motivos levaram o pedagogista a preferir esta língua às restantes. Não é razão de facilidade didáctica, porque mais próximo do português está o espanhol, falado por milhões de indivíduos. Não é razão de utilidade, nas relações comerciais e industriais, porque nesse caso seria escolhido o inglês. Não é razão de importância científica, porque então optar-se-ia pelo alemão. Confessamos que não somos capazes de compreender porque é que aos estudantes dos liceus e escolas técnicas se impõe como condição indispensável de estudo a aprendizagem da língua francesa.

Compreendemos, sim, que, para recrutar tantos professores de francês, seja indispensável haver, nas Faculdades de Letras, os cursos de filologia românica, porque, para preparar professores de língua portuguesa, existem os cursos de filologia clássica. Contraditoriamente ao sentido do vocábulo que o adjectiva, o curso de filologia românica é, por sua mesma estrutura, o que menos condições oferece de melhoramento do idioma nacional. Senão, veja-se: nele, o ensino do francês tem vincada preponderância sobre o ensino do português. Assim, não se compreende que, sendo um curso de filologia românica e funcionando em país de língua românica, dedique três anos ao ensino prático do francês e nenhum ao ensino prático do português. Não é uma disciplina de filologia portuguesa, pouco menos do que reduzida à fonética, nem uma disciplina de literatura portuguesa, predominantemente historicista, que podem sequer contrabalançar, como se de contrabalançar se tratasse, a acção absorvente que exercem as disciplinas de língua e literatura francesas. Repare-se, além disso, que para o aluno os dois anos desta última são muito mais absorventes do que os respectivos anos de literatura portuguesa. Isto porque, coexistindo uma cadeira de francês prático, o aluno esforça-se por, através das obras literárias, desenvolver os seus conhecimentos de língua francesa. Quem alguma vez aprendeu uma língua avalia bem quanto esta afirmação tem de verdade.

Esta incongruência, verificada pela comparação exterior dos dois ensinos, é, quanto a nós, muito mais assinalável do que a que resulta da comparação do ensino do francês com os ensinos das restantes também línguas românicas, reduzidas a cursos semestrais. É muito mais assinalável, porque não se compreende que um curso de filologia românica, em Portugal, não se organize relativamente ao ensino do português. Nem também se compreende que, em terra portuguesa e para portugueses, um curso funcione ao exclusivo serviço de uma cultura estranha.

O povo francês realiza, no seu apogeu, a cultura mediterrânea. Desta cultura, também chamada «europeia», a francesa representa a perfeição, a fase terminal. Não surpreende, por isso, que a língua que melhor a exprime seja uma língua acabada, facetada, paradigmática. Pelo contrário, a língua portuguesa é uma língua atlântica. A indefinida superfície das águas desperta na alma do nosso povo a esperança numa inefável ilha remota. Connosco um outro mundo desperta. Por isso, dos descobrimentos a interpretação no sentido da cultura europeia é constantemente desmentida pelo mito do Encoberto.

Fácil é depreender agora quanto inibe a nossa língua o seu compromisso com a francesa, se não bastasse já o realce da autonomia idiomática. Seria este momento o oportuno para denunciar o verdadeiro motivo por que, de toda as culturas estrangeiras, a francesa tenha sido a que, no domínio da extensão, mais poderoso influxo exercesse sobre nós, se não nos preocupássemos, sobretudo, em mostrar que o ensino liceal e técnico não está bem confiado aos licenciados em filologia românica, o que, aliás, antes de ter lido estas linhas, o leitor certamente tinha visto já.

 

António Telmo



[1] A Bem da Língua Portuguesa, ano IV, n.º 2, Lisboa, Fev. 1953, pp. 75-76.

 

 

INÉDITOS. 59

02-04-2016 01:19

Darwin[1]

Comprei a Autobiografia de Carlos Darwin em tradução portuguesa, cuja capa é totalmente coberta pela reprodução de um retrato do autobiografado. Observei, elucidado, que as arcadas supraciliares do retratado, poderiam ter-lhe sugerido ao espelho as do seu “antropopiteco” original, antepassado, segundo ele, de todos nós, incluindo a linda cara da minha mulher, hoje como nos seus anos jovens. Formam uma plataforma por sobre os olhos.

Fui bisbilhotar numa Enciclopédia. Aí aparecia de frente com dois olhos vivos muito pertos um ao outro, proximidade que veio confirmar as minhas suspeitas.

O livro veio abrir caminho a outra possibilidade, a de que a ideia de atribuir ao homem a vergonhosa origem animaloide lhe tenha vindo, não por via científica (isso veio depois a documentar), mas por causa de lhe ser insuportável outra ideia, a de ter relações sexuais com a própria mãe, a quem adorava tanto que ao falar da mulher com quem casou só vê nela o facto de ser mãe!

“Todos vós conheceis bem a vossa Mãe” (escreve para os filhos), e sabem como ela foi, uma santa.”

E porque teria nascido nele essa ideia insuportável? Porque terá sido a mãe e decerto também o pai, que admirava como o mais elevado dos homens, a fazê-lo praticar a leitura da Bíblia, certamente por ocasião do aparecimento da puberdade, isto é, do desejo sexual, e não antes conforme era tradição nas famílias judaicas.

Génesis e o Cantar dos Cantares de Salomão são os trechos bíblicos que mais atraem os púberes e os adolescentes.

Carlos Darwin era, como tudo indica, muito inteligente. Ao verificar que, para haver continuidade de Adão e Eva para diante na sucessão das gerações, era inevitável o incesto, eram inevitáveis as relações sexuais entre a mãe e o filho, entre o pai e a filha ou simplesmente entre irmãos e irmãs.

A ideia do antropopiteco foi como uma iluminação. Se o homem proviesse do macaco por transformação da espécie, Darwin libertava-se ao mesmo tempo de ter como uma possibilidade a relação sexual com a mãe. Enviava para o subconsciente esta possibilidade, tapando-a no consciente com a sua famosa conjectura.

Veio, logo de seguida, outro judeu, tão genial como Darwin, que nos ensinou a ver o mundo da alma como um jogo às escondidas entre o subconsciente e o inconsciente. Só ele deu azo a que me tivesse aparecido esta explicação da teoria de Darwin sobre a origem do homem, o que me permitiu trazer para o meu livro de Contos um decerto muito apreciado pelo António Cândido Franco a quem o dediquei.

Claro que me é impossível admitir como é que um insecto, o meu Tejo e a minha linda mulher tenham resultado da mutação incessante das espécies, gerando-se por transformação umas às outras, a partir dum plasma original contraído numa célula, explodindo depois em mil seres, como o ponto no infinito explodindo em mil estrelas. É belo, assim dito. Mas pense o leitor na osga e na individualidade inconfundível e irredutível do planeta Marte.

Os sábios que escreveram o Zohar, o livro do Esplendor, livro certamente não ignorado de Darwin, como não o era de Freud, já indicaram no século XIII o caminho que seguiu Darwin:

 

“Foi somente no momento em que Adão se uniu face a face com Eva que o desejo sentido um pelo outro imprimiu aos seus corpos as formas actuais que distinguem a masculina da feminina. Eis a razão por que a Escritura diz: “E Adão conheceu Eva a sua mulher, a qual concebeu e pariu Caim.” O corpo que ela tinha nas suas entranhas começou a tomar a forma do macaco (depois da queda). Mas assim que nasce Abel, o demónio que se esforçou por fazer crescer a degradação do corpo, perdeu força. O corpo purificou-se então duma grande parte da porquidão aderente. Seth já tinha a forma dos homens actuais.” (Vol. 14, p. 115)         

_ . _

 

            Como se sabe, foi durante a viagem de cinco anos à volta do mundo que o espírito de Darwin encontrou a luz que o fez ver nas trevas do passado biológico do homem. O barco tinha o nome de Beagle, o nome de um cão, de um sabujo. O comandante, Fitzroy, “discípulo ardente de Lavater”, o famoso frenólogo amigo de Goethe, viu na forma do nariz de Charles Darwin a indicação de que o seu possuidor “não tivesse energia e determinação suficientes para a viagem”. Mas tudo se arranjou depois. A forma de um nariz, impedindo a viagem, impedindo a descoberta, se as coisas não se têm arranjado, estaríamos ainda hoje convencidos de que éramos homens e não macacos. Das mulheres não se fala, porque pertencem por direito divino a outro mundo.

Para a viagem, a autobiografia de Darwin informa-nos também que ele levou consigo um único livro: o Paraíso Perdido de Milton.

Entusiasmado com os poetas na primeira metade da sua vida, conquanto ainda acreditasse no mito bíblico da nossa origem, enfadava-se, então, a ouvir os biólogos, os matemáticos e os físicos. Depois, com a energia da descrença na Bíblia, tudo se inverteu. Os Wodsworth, os Shelley, os Shakespeare aborreciam-no até à morte. Só a ciência o entusiasmava. A própria majestade das paisagens naturais que criavam nele um sentimento religioso de espanto foi perdendo poder sobre o seu espírito. De tudo isto, poetas e paisagem, restou apenas o Milton, não o Milton dos livros que instigaram as revoluções mundiais, mas o do Paraíso Perdido. Porquê?

Vale a pena, desligando ligando, ligando desligando, tentar responder à pergunta.

Um século antes de Darwin, um grande poeta, William Blake, viera mostrar que o herói do poema não era o Arcanjo São Miguel, mas Satan, que representaria o reino[?] da liberdade contra a tirania de Deus, isto é, da religião.

O problema do mal inquietava estes espíritos, o de Milton, o de William Blake, o de Darwin.

Cada um a seu modo, como mais tarde Freud, acreditou que estava nas mãos do homem eliminar o mal na Terra, se não no Universo. Por isso, afirmaram que o Deus das religiões era o verdadeiro culpado, por aparecer nessas religiões a criar um mundo onde a lei escravizava os instintos, até os mais puros.

A filosofia portuguesa, igualmente perturbada pela existência do mal, não acusou Deus. Viu na existência do mal o resultado de um mistério. E o homem não se insurgiu, associou-se a Deus, por intermédio dos anjos, para libertar a natureza do mal e assim restituir a Deus a omnipotência perdida. Mas isto é outra filosofia. Devemos ler Sampaio Bruno.

 

António Telmo



[1] N. do O. – No espólio de António Telmo encontra-se uma outra versão, parcial, dactilografa, deste escrito inédito, que corresponde ao seu início. Os três brevíssimos parágrafos finais, dados entre parêntesis rectos, são, ao que tudo indica, notas auxiliares da composição, que aqui reproduzimos:


«Comprei a Autobiografia de Charles Darwin em tradução portuguesa, num só volume cuja capa é totalmente coberta pela reprodução de um retrato do biografado. Observei, elucidando-me, que as arcadas supraciliares do retratado poderiam muito bem ter-lhe sugerido ao espelho as do seu “antropopiteco” original, antepassado segundo ele e os seus numerosos seguidores, de todos nós mesmo tendo em conta, pelo que a mim diz respeito, o lindo rosto da minha mulher, como ainda hoje se vê, nos seus anos jovens. Tais arcadas formam uma plataforma por sobre os olhos.

Fui à procura numa enciclopédia. Aí aparecia de frente com dois olhos vivos muito chegados um ao outro, proximidade que veio confirmar as minhas suspeitas. Alguém verificou tal similitude antes de mim, porquanto fez aparecer na internet um gorila cuja cabeça é a de Charles Darwin.

O livro com a sua autobiografia veio abrir caminho a outra possibilidade, a de que a ideia de atribuir ao homem, ser meio divino, a vergonhosa origem animaloide lhe tenha vindo, não por via científica (isso viria depois a documentar), mas por causa de lhe ser insuportável outra ideia, a de se imaginar a ter relações sexuais com a própria mãe, a quem adorava tanto que, ao falar da mulher com quem casou, depois só vê nela o facto de ser mãe; e lembrando-o constantemente aos próprios filhos que o admiravam tanto como ele tinha sempre admirado o próprio pai.

Por que terá nascido nele essa insuportável ideia? Porque terá sido a mãe (e decerto também o pai) a fazê-lo praticar a leitura da Bíblia, por volta dos treze anos, conforme era tradição nas famílias judaicas. O Génesis e o Cantar dos Cantares, o nascimento do homem e da mulher que o origina, são os textos bíblicos que mais atraem os púberes e os adolescentes.

Carlos Darwin era, como tudo indica, muito inteligente. Ao verificar que, para haver continuidade de Adão e Eva para diante na sequência das gerações, tinha sido inevitável o incesto, tinham sido inevitáveis as relações sexuais entre a mãe e o filho, entre o pai e a filha, ou simplesmente entre irmãos e irmãs, a ideia do antropopiteco foi como uma iluminação. Se o homem proviesse do macaco por transformação da espécie, Darwin expurgava a ideia que o atormentava. Substituía-se Adão e Eva pelo macaco e pela macaca e a ideia de geração pela de transformação e evolução e a ideia do incesto perdia grande parte do seu poder. Assim o jovem Darwin enviava para o subconsciente esta possibilidade, tapando-a no consciente com a sua famosa conjectura.»  

 

[Dá-se-lhe o nome de símio porque o macaco imita o homem.

Aristóteles: “A arte é a imitação da natureza”.

O macaco não é artista, não imita a natureza do homem, mas apenas aquilo que no homem se desvia da natureza.]



 

 

EDITORIAL. 06

02-04-2016 00:39

A importância de se chamar GEORGE

Amanhã estaremos em Sampaio, Sesimbra, uma das capitais agostinianas, no Auditório do Centro Cultural Raio de Luz, no âmbito do GEAS – Gabinete de Estudos Agostinho da Silva, para evocar Agostinho na véspera de mais um aniversário – o 22.º – da sua partida. Será o momento para se apresentar ao público presente a nova página GEORGE, cuja publicação se iniciou na edição do mês passado do jornal Raio de Luz, a quem Agostinho concedeu a sua derradeira entrevista de imprensa, que será lançada em livro, a 2 de Julho, naquele auditório, com apresentação de Fernando Dacosta. Com prefácio de António Cândido Franco e posfácio de João Ferreira, decano da Filosofia Portuguesa e nome histórico do universo agostiniano, que em 19 de Dezembro último honrou a criação do GEAS com a sua presença e a sua palavra, sábia e fraterna. 
A GEORGE, para nossa surpresa, provocou reacções desencontradas. Se muitos a festejaram e elogiaram, a alguns, porém, o seu surgimento parece ter causado engulhos. É bom lembrar que Agostinho da Silva, o seu legado, o seu nome, o seu exemplo não são propriedade de ninguém. É bom lembrar que o espírito de proprietário é, como um desmentido, a maior traição que pode ser feita ao seu ideário. Seria bom que a sua posteridade não viesse a ficar ensombrada pela menoridade mesquinha das vicissitudes que, por vezes, incidentam os processos institucionais. 
De Agostinho, seu mestre, escreveu António Telmo em “Agostinho da Silva e os Titãs”:

«Ele tinha um nome por assim dizer secreto. Chamava-se também George, mas este nome só era usado entre os mais íntimos. Era o nome próprio, o nome inalienável.

George (do grego Gêourgos) é quem trabalha a Terra, é o grande agricultor do mundo humano. Todavia, não nos deixemos enganar. Agostinho da Silva só valorizava uma espécie de trabalho, aquele que é um paradoxo de si mesmo, em que trabalhar tem por fim libertar do trabalho superando-o infinitamente pela criatividade. É o sentido do que diz em entrevista no Jornal de Notícias (17-11-87): “Foram Portugal e Espanha – sobretudo Portugal – a darem ao mundo o conhecimento de si mesmo. Agora lhes conviria e lhes caberia o papel de dar o conhecimento daquilo que é fundamental nesse Mundo. Toda a gente pode ter aquilo a que chamo de “vida poética”, no sentido de criadora, em qualquer dos domínios: artes, ciência, filosofia, mística. Isso é possível e deveria fazer-se”»

Na GEORGE, somos todos, pois, íntimos do filósofo. Os que nela colaboram, os que a recebem. Quantos (re)descobrem Agostinho naquela intimidade autêntica que só a leitura meditada consente. O mais é espuma.

 

UNIVERSO TÉLMICO. 35

29-03-2016 12:13

Agostinho da Silva, fundador da Universidade de Brasília*

João Ferreira

O  pôster/outdoor com a imagem de Mestre Agostinho da Silva que compunha, digamos assim, a "galeria ao ar livre" dos principais fundadores da  Universidade de Brasília e cujos retratos foram selecionados e colocados no local como tais em 2012, na comemoração dos 50 anos de fundação da Universidade de Brasília (1962-2012), está hoje lamentavelmente destruído, conforme mostram as imagens feitas no dia 1 de fevereiro de 2016 pela universitária Amanda Ehrhardt. A galeria era  composta pelos retratos/outdoor dos quatro fundadores: Darcy Ribeiro, autor da ideia da fundação da Universidade de Brasília, em novos moldes, fora da concepção tradicional de Universidade e primeiro Reitor; Anísio Teixeira, autor do projeto pedagógico da
Universidade; Agostinho da Silva, assessor de Jânio Quadros para assuntos africanos, figura internacional,  fundador e coordenador do Centro Brasileiro de Estudos Portugueses da Universidade, representante de Portugal para assuntos de colaboração bilateral entre Portugal e Brasil e Teodoro Freire,  representante e figura atuante da cultura popular na Universidade. 

Infelizmente, apesar de existir uma Reitoria com vários serviços de informação e proteção ao patrimônio, uma prefeitura no Campus da Universidade, uma cátedra Agostinho da Silva, e vários adeptos de Agostinho, o tempo se adiantou na corrupção e destruição do frágil monumento e parece que agora  disporemos para o futuro apenas de uma dupla lembrança: a alegria do triunfo de uma ideia (Agostinho da Silva entre os maiores da instituição) e a tristeza do apagamento de uma imagem viva e significativa outrora patente aos olhos carnais dos transeuntes que passavam pelo corredor da galeria indo ou vindo da Biblioteca Central.

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* Título da responsabilidade do editor.

VOZ PASSIVA. 68

15-03-2016 17:18

Publicamos hoje o texto da palestra proferida por Maria Helena Carvalho dos Santos na sessão inaugural do ciclo As Artes da Misteriosofia, que teve lugar no passado dia 21 de Janeiro na Livraria Barata, em Lisboa.

Encontro com António Telmo na Maçonaria?

Trata-se de uma interrogação…

Maria Helena Carvalho dos Santos

 

AGRADECIMENTOS

Era uma vez …. Dois primos que nunca se conheceram pessoalmente. Um era o António Telmo. O outro era eu!

Mas se foi assim, e agora estou a tentar descobri-lo, quando ele já passou ao Oriente Eterno, só me resta ouvir os seus e meus amigos e ler os seus livros.

Especialmente o Pedro Martins ofereceu-me uns quantos volumes e fui adquirindo o que está disponível, lendo, estudando, como se faz  com um Dante ou um Camões , ficando por aprofundar o que já não pode ser lido, dito ou replicado ou contestado ou perguntado….

Por exemplo, conheço melhor o Agostinho da Silva, porque o li ainda na escola primária (isto é mesmo verdade!) e o conheci em Lisboa e ajudei a tratar-lhe do Bilhete de Identidade quando ele só tinha o passaporte brasileiro…

Com o António Telmo está a ser diferente, mais apaixonante e mais difícil porque devo chegar a ele depressa, quase em obsessão, lendo e relendo… para o conhecer, para saber o que ele pensava das coisas do mundo da Filosofia e da Maçonaria. Ainda ontem passei a tarde toda à volta das 4 estrelas que o Dante descreveu e que o António Telmo interpretou…  (in Aventura Maçónica,p.35), mas as quatro estrelas da Carta do Achamento do Brasil, são de 1500 – como é que o Dante fala delas e o Telmo lá chegou? Será uma LIBERDADE de poeta escrever:

                   “Ó região do Norte, tu que não podes contemplar os

astros resplandecentes do Cruzeiro do Sul, como eu te

lamento na tua viuvez!” (Na tradução de Telmo)

E no meu papel de estudiosa habituada à pesquisa rigorosa da História, devo pensar apenas que na Maçonaria tudo é símbolo? Então se Dante falou de quatro estrelas porque é que Telmo as reconverte no Cruzeiro do Sul? – se ele, logo a seguir explica que há três princípios fundamentais – o fogo, a água e a terra – mas pretende acrescentar-lhe o quarto, isto é, o ar – como não podia deixar de ser porque é “ele mesmo que situa”, é a verdadeira origem ou “o verdadeiro Oriente”.

 

Então porquê o Cruzeiro do Sul? – É que Telmo vai sempre mais atrás, para ver mais longe – como ele escreve na página seguinte (pag.40) :” Em ciência sagrada, sempre que deparamos com uma evidente contradição, evidente ou aparente, julgo dever pensar que há uma coisa importante e muito decisiva que se esconde à nossa compreensão e que, uma vez apreendida, traz ao nosso espírito uma luz inesperada. A ciência sagrada (isto é, a Maçonaria) não pode enganar-se a si mesma.“ E quem lhe explicou isso, a ele, a Telmo? – simplesmente “o que se representa no lado sul do claustro dos Jerónimos”. Porque a luz vem do Oriente! – Que luz, que Oriente? Esse constante perguntar é o que conduz Dante, para lá das aparências sensíveis. O ar não é apenas o que dá a vida e o Oriente não é apenas o que se desenha nos mapas.

Mas os maçons ou os arquitetos de quinhentos já sabiam outras coisas. É por isso que eles constroem monumentos, porque nos devem re-ensinar o que aprendemos mal, ou, dito de outra forma, nos ensinam a ler uma nova /outra linguagem.

Ou os povos, enquanto não tiveram escrita, não sabiam olhar as estrelas, entendê-las? E não sabiam quando fazer as sementeiras? E os canteiros e os arquitectos – como sabiam que a ogiva não ia cair? Todos nós, os portugueses, aprendemos a velha história do arquitecto construtor do monumento da Batalha – e, sozinho, dormiu lá na primeira noite… E isso, porque não se copiavam… Todas as grandes construções, CASTELOS, MOSTEIROS, IGREJAS, Almeida (com o Livro da Fortalezas de Duarte d’ARMAS de 1500), Alcobaça, Tomar, os Jerónimos todos marcam uma intenção, uma necessidade e uma evolução nas artes dos maçons – isto é, o mundo não tinha parado e a Arte da Construção não podia ser igual para os tempos vindouros. E tanto que construíam entre os segredos da Arte e a interpretação do mundo que queriam fixar, cada um deixou um exemplar diferente e raro, como início de um tempo. Permitam um parêntesis: Na Gramática de Telmo não me lembro de encontrar TEMPO e TEMPLO com a mesma raiz – e hoje não lhe podemos perguntar!

Mas podemos ler, por exemplo, que a porta de entrada da Igreja do Convento de Cristo em Tomar é a única que está virada para Sul, sendo que a norma seria estar virada para Ocidente (de onde nasce o Sol). E nos Jerónimos, embora se entre num átrio aberto, o grande portal está virado também a Sul. O estilo chamado manuelino podia ser novo só pela decoração das fantásticas colunas?... ou também nos fundamentos e simbólica? O mar “descia” para Sul… esse era o caminho… e o segredo… Na verdade não há nenhum estilo columbiano! Procurava-se outro Sol no Sul extremo – de onde se haviam de ver outras estrelas? Seria?

Há já muitos anos tive por guia aos Jerónimos Mestre Lagoa Henriques que depois me fez uma aula para ao meus alunos… Como também foi com o Mestre António Carlos Carvalho, meu velhíssimo amigo, que re-descobri o Mosteiro de Alcobaça. É preciso ouvir os mestres, como Aristóteles ouvia Platão e nós os podemos recriar – talvez sobre o grande quadro de Rafael – que todos conhecemos como a Escola de Atenas

 


A obra talvez possa resumir as filosofias de Platão e Aristóteles. Platão aponta para cima, para o mundo inteligível que considera ser o real; Aristóteles aponta para baixo, para o mundo sensível que considera ser o único que existe.

Para Platão, só o mundo inteligível é real enquanto que o sensível é transitório e ilusório

Aristóteles (384-322 a.C.) discípulo de Platão, nunca aceitou essa ideia de dois mundos distintos. Para Aristóteles só havia um mundo: este em que nos encontramos. Se o homem não consegue conhecer algo mais do que os seus sentidos lhe mostram, então é porque esse algo não existe ou, na melhor das hipóteses, não vale a pena ser conhecido e por isso não é nada para nós.

Platão propõe uma ética transcendente, dado que o fundamento de sua proposta ética não é a realidade empírica do mundo, nem mesmo as condutas humanas ou as relações humanas, mas sim o mundo inteligível. O filósofo centra as suas indagações na Ideia perfeita, boa e justa que organiza a sociedade e dirige a conduta humana. As Ideias formam a realidade platónica e são os modelos segundo os quais os homens têm os seus valores, leis, moral. Conforme o conhecimento das ideias, das essências, o homem obtém os princípios éticos que governam o mundo social.

A ética aristotélica, em oposição à ética de seu mestre, é imanente, tendo as suas bases na realidade empírica do mundo, no questionamento acerca das condutas humanas e na organização social. As exigências com relação à vida na polis e a realidade do homem formam o conteúdo das ideias, e são ambas as responsáveis pela escolha dos valores, pela moralidade e pelas leis, pela definição das condutas dos homens. A sua teoria ética era realista, empirista em contrapartida à visão idealista e racionalista de Platão.

A ética aristotélica inicia-se com o estabelecimento da noção de felicidade.

 

Há uns meses, num grupo que se apelidou dos “Amigos de Platão”, e que se reúne num banquete de dois em dois meses, resolvi colocar a nossa actualíssima questão da educação, da cultura, da violência e da INDISCIPLINA. Repesquei alguns “bonecos” da internet, mas depois de ter confrontado os dois filósofos, terminei, colocando uma imaginária fala de Platão:

Platão, de pés descalços, como o imaginou RAFAEL, diz:

Tu podes descobrir mais sobre uma pessoa numa hora de brincadeira do que num ano de conversa…Não deveríamos educar os educadores?

Faz uma pausa e continua:

- Tenho tudo preparado para o nosso Banquete. Queria introduzir algumas ideias sobre JUSTIÇA ….

      … e sobre indisciplina. Estou preocupado com as crianças….

 

Pelo meu lado, a minha preocupação era “entrar” para a Maçonaria. Era um sonho de juventude – porque é que só os Homens tinham essa prerrogativa? Era como o Banquete dos Gregos? Pensava que devia ser… o simbolismo devia ser isso…E quando foi possível eu própria fui passando de Aprendiz a Mestre.

Mais tarde ouvi uma única conferência a mestre Lima de Freitas sobre os Lusíadas. Na altura, foi há muitos anos, em Tomar, ele falava uma linguagem difícil. Isto é, ele via as coisas de outra maneira, indutiva e dedutiva ao mesmo tempo, porque ele já tinha encontrado o segredo… Se entendi as alturas do seu pensamento, o que mais me perturbou foi o ponto de chegada – ou talvez o ponto de partida, re-escrevo, porque é na primeira pergunta que se inicia o caminho.

Agora chegou a vez de falar da Maçonaria Feminina em Portugal. Estava-se em 1983-84. Apesar de aceite, pedi entretanto para entrar apenas em 1985 – porque depois dos primeiros contactos com II:. francesas, fui para o governo e achei que não devia entrar nessas circunstâncias. Não sei se hoje tomaria essa atitude, mas na altura pareceu-me o mais correcto. Pensei que era assim que devia ser: independente em todos os sentidos…

Era um sonho velho, velhíssimo, porque o meu Pai, os meus tios, o meu Avô e os seus amigos que eu fui conhecendo eram da Maçonaria. Isso eu sabia, porque sabia – e toda a gente sabia, a pesar de todos os perigos que isso podia constituir e constituiu para muitos… mas eles faziam, entre outras reuniões secretas de que dava conta, o almoço do 5 de Outubro em Santa Cruz, Torres Vedras que depois de meu pai morrer, passou a ser jantar em Alenquer… até hoje. E vi o primeiro avental de Grão-Mestre na foto de Norton de Matos ao tempo da sua candidatura à presidência da República… Eu andava no 3º ano do Liceu e tive que levar um grupo de colegas, rapazes e raparigas, à Biblioteca da Escola Secundária de Torres Vedras para que um dicionário não os deixasse duvidar do que eu não sabia explicar… Afinal, a Maçonaria “era” uma organização filantrópica… e muito antiga… Era o que dizia o dicionário nas primeiras linhas – suficientes para toda a gente deixar de falar de coisas esquisitas relativamente ao avental.

Eu queria absolutamente entrar e quem me tinha aberto as portas fora o Prof. Oliveira Maques, trabalhando ambos na Universidade Nova de Lisboa.

Acho que ninguém era mais ignorante do que eu! Acho mesmo. Eu não tinha tido tempo, nem sentira necessidade de investigar o que quer que fosse. Sabia coisas da História, do Felizmente há Luar e do Processo de 1817, e tinha lido por dever de ofício os quatro volumes de Silva Dias que fora meu Professor em Coimbra. Mas ele também diz pouco, porque a investigação tradicional não lhe permitia mais pelos anos de 1972-75…

Quer dizer: eu não sabia verdadeiramente nada. Apesar disso entrava de coração aberto, disponível para cerimónias complicadas que fossem. Se os maçons eram aquela gente que eu conhecia, e as mulheres francesas que eu conhecera nos primeiros inquéritos profaníssimos, só me mereciam confiança!

E para me confessar depressa, direi que para lá do ano previsto de aprendiz eu fiz dois anos! Por penitência, por falta de humildade! Aguentei!

Na minha Loja havia uma certa ideia de convento à século XVIII, nada melhor para a minha rebeldia. E depois fui Companheira e Mestre e Grã-Mestre e deram-me uma medalha pelos 20 anos de Maçonaria. Depois disso tudo mudei de Grande Loja, cumprindo com as regras. O resto nunca foi nem tem rotina, nem descrença – embora por vezes o desencanto espreitasse…

E foi o António Telmo que agora, num momento de quase crise, me veio salvar dessa rotina … trouxe-me outra vez o desassossego, o interesse. Recuperei o espírito, já não a confiança nos outros, mas a obrigação de ser Mestre a tempo inteiro, ultrapassando cada dia a tragédia de matar o mestre… Porque eu tenho mau feitio…

Aqui, hoje, conto esta historinha pela primeira vez, ainda que admita que aqui possam estar alguns não-maçons, mas conto-o com o mesmo à-vontade com que o Telmo me ouviria – e certamente, me diria, deixa lá isso – isso não tem importância nenhuma… o teu coração é puro, a maçonaria só te trouxe conhecimento, e te fez pensar. Claro que era isso que ele diria. E mais: diria que “Cada Maçon é um Templo!”, (pag. 83), acrescentando: “Não devemos, portanto, reduzir ao trabalho de Loja a nossa actividade, dividindo-nos em dois comportamentos, um exterior e outro interior, como se, uma vez lá fora, já não existisse “o que mais importa”. Ele continuaria: “ Tal atitude, comum a muitos Maçons pouco esclarecidos, leva a acentuar a dualidade que julgávamos ter sido resolvida pela Iniciação” (pág. 83) . E acrescentaria: “Fora da loja devemos subordinar o que se passa exteriormente ao nosso interior”. E continua, com a sabedoria oriental: As aves, mesmo quando andam longe dos ovos, continuam a chocá-los”.

Seria assim, certamente, mas diria mais: só é capaz de ser prudente aquele que se ergueu da morte para uma vida nova, aquele que foi levantado das trevas e viu que a Loja brilhava com uma nova Luz (pag.71) e digo eu, se for um sonho, acordará com um ramo de acácia nas mãos.

Vergílio e Dante já me tinham dito que não se pode olhar para trás. O caminho é para ser feito e revejo-me nos mistérios de Eleusis. Quando lá estive imaginei uma mulher, talvez Deméter, que deitara uma semente à terra e ficara à espera que dela renascesse o milagre dos pães! Todos os anos, entre o Equinócio e o Solstício.

   Permitam-me agora que faça por minha iniciativa umas contas e uma numerologias como se aprendesse com Telmo:

 

1997 – entrou na maçon – tinha 70 anos – TELMO

Em 1997 eu tinha = 62 – ele tinha 12 anos mais do que eu

Ele era mais velho que eu – nascera em 1927 e eu em 1935 –

Tinha 12 anos mais do que eu

 

Qual será o simbolismo do número 12?

 

Tentei procurar: Diz quem sabe:


“Trata-se de um número sagrado e serve para medir os corpos celestes, assim como os doze meses do ano. Doze foram os discípulos de Jesus, 12 os frutos do Espírito Santo, 12 as tribos de Israel, 12 os filhos de Jacob, 12 vezes apareceu Jesus Cristo depois de morto”. 


O 12 considera-se passivo e é sinónimo da perfeição. Doze vezes 30 graus formam os 360 graus da circunferência. 


Os caldeus, os etruscos e os romanos dividiam a seus deuses em 12 grupos. O deus Odin escandinavo tinha 12 nomes, do mesmo modo que os rabinos sustentavam antigamente que o nome de Deus se compunha de 12 letras. Adão e Eva foram expulsos do Paraíso às 12 horas do meio dia. São 12 as pedras preciosas da Coroa da Inglaterra, 12 as portas da cidade de Jerusalém e 12 os anjos que as custodiavam, segundo o Apocalipse.

Segundo João, o Evangelista, em Jerusalém viverão 12 mil homens eleitos.

Para os etruscos o céu tinha 12 divisões pelas quais o sol passava todos os dias, e dividiam suas possessões em 12 províncias. 12 é a hora do zénite do sol e 12 é o número da esfera do relógio. Platão admitia 12 deuses na sua República. O 12 será o número do justo equilíbrio, da prudência, e da forma graciosa

 

Copio TELMO: - Pedi para ser iniciada e assim vim a pertencer a esse admirável povo maçónico.

Também eu tive a sorte de conhecer um verdadeiro Maçon: o José Manuel Anes – somos Irmãos em Lojas distintas.

Digo como Telmo escreveu: - Podemos não compreender o que de mais fundo significam ritos e símbolos, mas não há um gesto, uma palavra, um movimento que não sejam cumpridos como se obedecêssemos a uma ordem, não há gesto, palavra, movimento em que o espírito da Ordem Maçónica não esteja presente mandando tudo. Assim procede o nobre povo maçónico. A sua ignorância é a sua sabedoria, porque só quem tem consciência de ignorar pode vir a saber.

E direi mais, copiando-o, porque Telmo adivinhou a minha sensibilidade e nas suas palavras nos faz re-viver momentos permanentemente presentes. Ele deixou-nos esta expressiva síntese:

 

Gosto de estar entre o povo maçónico e de ser um deles. Sinto que o sou de pleno direito, não porque perfilhe esta ou aquela ideologia, mas porque fui iniciado e passei pelo rito que me abriu a porta do Templo. Não é com orgulho que digo isto, mas sim para expressar que o que define um Mação enquanto Mação é a passagem pelo rito. Se há um ensinamento ou uma doutrina que todos nós devemos seguir e até aplicar no nosso campo de influência social, esse ensinamento ou essa doutrina derivam do próprio rito, onde as palavras, ritualmente proferidas, os tornam suficientemente claros.

É tal a força do rito que mesmo aqueles que o têm por uma palhaçada e que, deixando-se iniciar, passaram por ele talvez indiferentes, orgulhosos do que aprenderam ao longo da vida em quaisquer livros ou em qualquer Universidade, também esses foram impressionados. Ao empregar esta palavra tomo-a no sentido que ela tem, por exemplo, em fotografia ou em tipografia; não a tomo no sentido de emocionados. O ritmo interior que comanda o rito (não me refiro ao cerimonial, que pode ou não acompanhá-lo) envolve o neófito, durante a iniciação, no profundo e inefável mistério que por ele se exprime, envolve-o como uma onda, donde sai atordoado, mas limpo, prende-o numa cadeia magnética de que não se libertará jamais, a não ser por cima, se assim o quiser o Grande Arquitecto do Universo. É por isso que se diz que um Mação nunca deixará de o ser, mesmo que abandone a Ordem.

Podeis assim ver, meus Irmãos, como eu estava errado e estão todos aqueles que julgam a Maçonaria pelos Maçons. É que não há nenhum, por mais superficial e irregular que seja a sua interpretação da nossa augusta Ordem, que não esteja marcado pelo seu sinal, que não seja um “varão assinalado”.

Imaginemos o nosso espírito como um espelho, não como um aparelho produtor de formações mentais, que é a habitual e errada representação que se faz do espírito, assim o confundindo com o aspecto cerebral da alma ou do corpo se preferirdes. Para que o espírito, assim concebido como um espelho, receba a verdade são necessárias, pelo menos, três coisas. É necessário que esteja limpo para que não receba turva e distorcida a imagem da verdade; é necessário que entre ele e a verdade não se interponha nenhum obstáculo impeditivo da reflexão; é necessário ainda que seja orientado na direcção da verdade. A iniciação no grau de Aprendiz realiza isto mesmo. A verdade é a luz que brilha no Oriente. Deixamos as joias cá fora, isto é, as nossas convicções, a fim de que elas não se interponham entre o espelho e a luz da verdade; passamos pelas três regiões elementares, onde nos libertamos das sujidades mentais pelo fogo, das sentimentais pela água, das instintivas pela terra. Por fim, o nosso espírito, tornado uma matéria límpida perfeitamente disponível, é voltado para o Oriente. Pelo compromisso feito à maneira dos Maçons, o espírito está pronto. Quando o espírito está pronto, a luz aparece.

 “A arte é longa e a vida breve.” Ars longa, vita brevis. Este lema, que os iniciadores de Goethe extraíram de uma ode de Horácio para a carta de aprendizagem do grande poeta alemão, se eu pudesse adoptá-lo fazendo-o meu, sentir-me-ia simultaneamente infeliz e feliz. Infeliz porque tenho 71 anos e a morte à minha frente; feliz porque tenho três anos e à minha frente a vida. Aos Mestres desta respeitável Loja, que me iniciaram, a devo.”


Este seria o encontro que nunca tive com António Telmo, mas nem por isso é menos real. Ele me entenderá nesse lugar de nenhures onde ele verá que caminho em torno do tapete, como deve ser.

A Justiça – onde fica?

… conduziram-no, ao cair da noite, para o Monte Moriah, onde o enterraram, assinalando a sepultura com um ramo de acácia…

 

Ainda outro tema que seria caro a António Telmo:

A nossa Avó, que eu conheço pelo nome de ANELEH, era descendente dos judeus de Pinhel. O Orlando, numa ocasião ou outra, chamava-lhe “judia” para a fazer zangar. Aneleh todos os anos mandava levar à Igreja uma quantidade de azeite de colheita própria que devia iluminar o Espírito Santo até ao próximo outono. Tenho “remorsos” de ter deixado perder essa prática marrana.

 

 

21 de Janeiro de 6016

 

 

 

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