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VERDES ANOS. 20

03-09-2016 14:43

O SOM E O SONO NA PSICOLOGIA DE HENRIQUE BERGSON[1]

 

Entre os erros, já denunciados, do nosso ensino humanista, o da filologia, do curso de românicas das Faculdades de Letras, constitui, para quem saiba ver, um dos maiores que o positivismo produziu. Distinguindo as ciências pelo objecto, o positivismo não admite o principio axiológico de unidade dinâmica, segundo o qual o estudo de cada ciência implica o conhecimento virtual de todas as outras. Assim, a filologia aparece como um especialismo, propriamente como linguística, à qual a sociologia empresta depois uma falsa e fictícia aparência de unidade com as ciências restantes. Não obstante, esses desgraçados que ignoram a filosofia são capazes de se sentirem indignados quando ouvirem alguém afirmar que a filologia não progride sem o estudo das várias modalidades do sono e dos vários graus de cada uma dessas modalidades, de tal maneira que a biologia, a psicologia e a pneumatologia se integram no sistema de conhecimento especial que designamos por filológico. Tal é, no entanto, como procuraremos mostrar, a natureza do ensino bergsonista da filosofia.

Torna-se, porém, necessário fazer um pouco de história, como infelizmente é indispensável neste país nosso de historiadores. A persistência em negar, combater, ou esquecer a filologia autêntica, da parte de quantos a ignoram ou dela têm evasivos sinais, acelera o processo de degenerescência mental que se acentuou entre nós quando o positivismo contaminou os meios cultos que desde os Descobrimentos se esforçavam por encontrar a palavra perdida. Muito bem se explica que aqueles que não foram convencidos nem dominados pelo positivismo se apoiassem, desde então, na autoridade de filósofos estrangeiros, o que deu à expressão do nosso pensamento uma aparência de servilismo, atraso e falta de originalidade, com gáudio dos medíocres que assim puderam conquistar todos os lugares nos jornais, nas cátedras e nos diversos serviços públicos, pela exibição, nos vários ramos exteriores do conhecimento, orientado pela disciplina positivista, de um aparato erudito, conseguido à custa, muitas vezes, do próprio envilecimento. Todavia, aqueles portugueses ainda movidos pela esperança, em breve, se desgostam dos filósofos europeus, para os quais foram atraídos por alguns vestígios, indícios ou resíduos da filosofia autêntica que Pascoal Martins emprestou à Europa.

Tem causado algum escândalo a defesa por Álvaro Ribeiro duma filosofia portuguesa superior à dos outros povos europeus. Viciados polo método positivista de comparação de quantidades, os nossos historiadores, quer sejam poetas, críticos ou ensaístas, são de uma sincera e honesta inconsciência, quando, perante a lista europeia de tantos nomes ilustres, consideram megalomania o que é, dentro dum critério de comparação menos positivista e, por conseguinte, mais qualitativo, simples enunciado de uma verdade evidente. Sem dúvida, a filosofia europeia é inferior à filosofia portuguesa, não só porque representa, do século XVIII em diante, no seu melhor aspecto, uma degenerescência desta filosofia, tal como se exprime no ensino de Pascoal Martins, como, considerada na sua linha cartesiana, que é a  que conta essencialmente para os menos[2] intelectuais, mostra uma pobreza de princípios lógicos tão grande que os próprios franceses, depois de Bergson apenas por motivos patrióticos de internacionalismo político-cultural, por vezes até contrários às directrizes fundamentais do seu espírito, dificilmente mantêm Descartes no ensino oficial de filosofia.

Queremos dizer que, se em vez de compararmos nomes, figuras e números, investigarmos os princípios fundamentais da filosofia europeia, paralelamente com os princípios fundamentais da filosofia portuguesa, não podemos deixar de reconhecer a superior qualificação espiritual do povo que une o Ocidente ao Oriente. Um destes princípios é o da tríplice constituição do homem. A razão porque o indicámos não se esconde a quem souber que da antropologia, até na visão teocêntrica, dependem o valor, a amplitude e a profundidade do todo filosófico. O homem resume o universo, mas pensá-lo implica dissolver a sua imagem sensível para conceber o arquétipo primordial ou espírito vivente.

No pensamento de Bergson, o filósofo que melhor traduziu para o seu país Pascoal Martins, este princípio tende a parecer dissolvido no dualismo da «matéria e memória», da «alma e corpo», da «consciência e vida». Estas dualidades que, aliás, se encadeiam, constituem, porém, pontos de partida, – os pontos de partida da mentalidade comum e corrente, formada pela divulgação do cartesianismo. Porquanto, se retomamos as relações da palavra com o sono, verificamos que Bergson considera essas relações nas suas três modalidades correspondentes aos elementos constitutivos do ser humano: – o sono natural, o sono magnético, e o sono supranormal.

O primeiro, no qual o homem cai, por uma espécie de simpatia física com os ciclos naturais do dia e da noite, pode ser explicado por uma teoria geral da queda, com base na existência do corpo.

A biologia vem explicar o adormecimento ascendente das resistências físicas, pois o cérebro é o último órgão a manter-se desperto. O sonho, porém, oferece-se como um enigma só decifrável pela psicologia profunda. Bergson estuda então o sono magnético, que apresenta maiores analogias com o sono adâmico em que se elabora a criação de Eva. O processo pelo qual se opera esta segunda espécie de sono é inverso do processo segundo o qual se dá o sono natural. A acção dos ritmos, artisticamente dirigidos, do gesto, do sopro e da voz, sugere ao filósofo uma inédita explicação da arte. Pelos olhos se transmite o fascínio das figuras plásticas, pelos ouvidos o encantamento das formas rítmicas. O ritmo essencial é o binário, que encanta, adormece e torna a alma passiva à emanação das imagens do sonho, – ao mito versificado pelo poeta. O modernismo, ao combater o estudo da prosódia, não pode nunca ser confundido com o bergsonismo.

O sono supranormal corresponderá a uma operação do espírito que Bergson designa por intuição. Diz assim um texto conhecido: «Faz por sair de Ti mesmo, como acontece aos que dormem e sonham, mas Tu sem dormir!» Falar aqui de sono só é possível porque antes de passar pelo sono ninguém desperta para a vida supranormal do espírito. Trata-se de fazer a viagem ao contrário, pela absorpção, no centro superior do ser de todos os elementos psíquicos. Mas uma barreira, simbolizada pela queda, impede a passagem para os planos superiores da consciência, e, por isso, o exercício da razão, no sentido bergsonista de inteligência, não nos liberta das condições limitativas do espaço. Ao filósofo importaria ver como Bergson relaciona com uma teoria dos tropos o processo de transmutação interior, desencadeado pela intuição.

Tudo quanto ouvimos e lemos nos contos fantásticos da idade em que ainda não sabemos falar, as metamorfoses dos homens em animais, o aparecimento súbito e espantoso de palácios, a descida aos subterrâneos com árvores de pedras preciosas, é aquilo que a filosofia de Bergson fala transformando em processos lógicos o que o positivismo só pode ver como esquemas pré-lógicos, ao descrever como história a gradual revelação do espírito. Não é apenas, porém, um erro de perspectiva que aqui comete o positivismo. Ao negar realidade à imaginação no plano gnósico, esta doutrina para homens que não esperam nascer segunda vez fica incapaz de, perante os poucos fenómenos que admite, dar a sua articulação em leis com autêntico carácter de ciência. De modo que o positivismo é a menos científica das explicações da natureza e da vida humana, aquela que menos adequa o pensamento à realidade. A natureza é a metamorfose, inexplicável mecanicamente e na humanidade não há nada, absolutamente nada, que se represente por um movimento que não implique a operação secreta de agentes activos.

«Todos os seres, todos os fenómenos da natureza, estão ligados, como se entre eles houvesse fios invisíveis, pelas leis misteriosas da analogia». Relacionando esta bela e sábia frase de Bergson com o quanto nos diz sobre a simpatia e a antipatia dos seres, estamos no limiar duma poética em que os movimentos da palavra não se dissociam de repercussões psíquicas e até físicas. A analogia, como a praticam os cientistas, reduz-se a esquemas mecânicos, constituídos pelas abstracções mentais que elaboramos sobre as formas viventes. Pode então ser formulada uma regra de três em que o termo desconhecido substitui e ilude a causa oculta e activa. A analogia, para Bergson é a evolução criadora do pensamento.

Daqui deriva o interesse do estudo da filosofia, com o fim de encontrar os instrumentos lógicos, os órgãos, o organon do pensamento. Bergson atribui grande importância ao som, na sua modalidade humana. Quem ler, com o ouvido atento, uma página dum livro seu, verifica que os sons das palavras se articulam segundo significações, que não são as dadas pelo arranjo sintático dos termos do discurso. Isto, que à primeira vista, parece um jogo sem consequências na ordem filosófica, à segunda vista, surge como um processo de persuasão de quem sabe que a acção sobre o inconsciente do leitor, sendo embora mais lenta nos efeitos de repercussão remota, é muito mais subtil, profunda e transformadora. À terceira vista, implica uma concepção da palavra e das suas relações com o pensamento, segundo a qual essas relações não se estabelecem pela inteligência dos esquemas visuais, mas pela intuição dos elementos primitivos do som primordial, donde emerge, segundo o Génesis, a primordial luz.

Vejamos agora, porque tem oportunidade, como Bergson via a linguística, propriamente, dentro da mesma ordem de ideias. Ele admitia que os mesmos princípios que explicam o homem singular explicam também a humanidade e o universo. Assim, a sociedade igualmente dorme um sono magnético, no qual as imagens lhe são sugeridas por agentes externos, sobre cuja natureza no Riso se pronuncia mais claramente. Daqui, a importância dos estudos linguísticos, de modo a situar, classificar e caracterizar as correntes mentais dominantes no espaço e no tempo. Quanto diverge este ponto de vista do da sociologia positivista escusado é dizê-lo. As linguagens, na medida em que fixam preconceitos e imagens, são índices exactos do modo como se organizam as influências errantes, errantes porque sem relação com princípios superiores. O princípio de organização é a inteligência, palavra que Bergson usa mal para designar a faculdade de perceber, conceber e realizar um espaço sem qualidades. A noção dum meio homogéneo constitui a base de fabricação de máquinas, dos vários artifícios empregados para captar e dirigir as forças naturais. Analogamente, a língua funciona como um mecanismo utilizável na apreensão das forças subtis e muito mais poderosas da imaginação.

Julgamos chegado o momento de terminar estes apontamentos, mas não queremos fazê-lo sem apresentar as nossas humildes objecções. A poética de Bergson é muito mais uma poética do estilo do que uma poética do símbolo, a não ser que não tivéssemos sabido ler bem. O mundo invisível, a que os filósofos chamam o espírito invisível, pode, com efeito, ser concebido directamente, sem a intermediação de imagens, porque é próprio do espírito conhecer-se; mas a poesia, sendo inferior à filosofia, exprime-se por símbolos que condensam, ou sinalam, ou traduzem as universais significações concretas.

Esta minoração da arte como simbólica coincide, em Bergson, com a confusão dos géneros literários, que não identifica às substâncias, aliás como lhe acontece perante os géneros biológicos. Há, no seu pensamento, a tendência para um monismo místico, muito semelhante ao de Sampaio Bruno, com a sua teoria do homogéneo inicial. A divisão atómica, agenciada pela matéria, há-de corresponder, inversamente no espírito, à permanência dos diferentes, porque só o diferente, concebido como Leibnitz concebe a mónada, assegura o princípio da unidade transcendente. É sempre, porém, difícil tomar posição perante um pensador que só se exprime por cifras.

 

António Telmo



[1] 57, ano II, n.º 5, Setembro de 1958, p. 11.

[2] Nota do editor – É provável que se trate de gralha tipográfica, e que António Telmo tenha escrito, no original, “meios”.

 

VOZ PASSIVA. 70

03-09-2016 14:30

Em 20 de Junho de 1980, António Telmo proferiu, na Sala dos Espelhos do Palácio Foz, a célebre conferência “O Segredo d’Os Lusíadas”. Integrada nas comemorações oficiais do IV Centenário da morte de Camões, resultou de um convite de Afonso Botelho, seu amigo e condiscípulo no magistério de Álvaro Ribeiro e José Marinho. Botelho era então o Director de Serviços Literários da Direcção-Geral da Divulgação, numa época em que António Braz Teixeira era Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros. A título de curiosidade, refira-se que Telmo recebeu, de honorários, 6.000 escudos pela realização da conferência, que viria primeiramente a ser publicada no livro Retrato de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas, editado pela Secretaria de Estado da Comunicação Social. Mais tarde seria recolhida em Filosofia e Kabbalah, de 1989, constando hoje, também, de Luís de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas, III Volume das Obras Completas de António Telmo, que foi lançado em 20 de Junho de 2015, em Estremoz, trinta e cinco depois da realização da conferência camonina de Lisboa.

A apresentação do conferencista coube a Afonso Botelho. Dela nos ficou o respectivo texto, igualmente foi dado à estampa em Retrato de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas. 

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Apresentação do Sr. Dr. António Telmo pelo Sr. Dr. Afonso Botelho, Director de Serviços Literários[1]

Afonso Botelho

 

Na modesta proporção que um brevíssimo espaço de tempo nos consentiu, juntámos nesta exposição em torno de um mesmo tema, alguns géneros artísticos, vários gostos e épocas, diversas culturas nacionais.

Quem quiser pode, com esta matéria, fazer diferentes leituras do retrato de Camões, desde que não rejeite o estímulo que ela constitui para a imaginação. Porque, conforme o sentido da legenda de uma estampa, ali exposta, a imagem dá-nos apenas o que teria sido o corpo do poeta, enquanto a sua nobilíssima obra o revela à imaginação. O que se torna visível na diversidade destes retratos, mais não é do que uma ajuda para que encontremos, o que em todos, e em nós próprios, está como invisível.

Não foi, assim, nosso propósito acentuar a multiplicidade e consequente indefinição das imagens plásticas, mas, pelo contrário, apresentar, na sua variação e diferença, degraus de um conhecimento ascendente para o uno. E confirmámos esse intento, acompanhando a exposição iconográfica com outras interpretações, ordenadas no mesmo sentido – do visível para o invisível. Eis porque, nas duas primeiras conferências, se foi configurando o poeta, por intermédio dos sinais concretos que deixou nas letras e na admiração de homens ilustres, tanto como nos indícios que os inventários familiares registavam, nos períodos essenciais da história, em que a aristocracia do sangue tende a identificar-se com a aristocracia do espírito. Eis porque, também hoje, vos proporcionámos a aproximação de uma leitura de Camões que nos inicie no que até agora, mais do que invisível, se tenha guardado secreto.

Ainda no sentido da legenda a que aludimos, nos anima o desejo de conhecer o maior segredo de Camões, que não é certamente uma mensagem transmitida de emissor a receptor, na modalidade mecanicista que hoje se adopta para ensinar a língua pátria, mas a que estará velada na «nobilíssima obra». Por isso pedimos ao autor da História Secreta de Portugal que nos dissesse qual o segredo d’Os Lusíadas.

Seria impertinente este pedido, se António Telmo não se tivesse proposto realizar uma história secreta de Portugal e se não a tivesse realizado como a realizou, lendo o interior do exterior do ser, segundo «rigorosa aplicação da lei da analogia».

Um dos capítulos desta obra crucial (do calvário da Pátria Portuguesa) abre-nos o caminho para o saber esotérico d’Os Lusíadas.

A ruptura entre este saber e aquele que converge nas instituições de ensino, nas igrejas do culto e do oculto, e nas forças organizadas da cultura, obrigar-nos-á a um arriscado salto de qualidade, mas o conferencista de hoje, à claridade íntima de iniciado, associa os dons do magistério, em que é, aliás, exímio. Diríamos noutra linguagem, que ele se ilumina na tradição do pensamento português, que aflorou, nos começos do século, no movimento da Renascença Portuguesa, que foi ensinado na Faculdade de Letras do Porto, por Leonardo, e, que de discipulato em discipulato, não mais deixará de criar escolas de filosofia.

Até no pequeno percurso, que esta exposição iconográfica nos oferece, é fácil reconhecer a degradação dos princípios e o afastamento dos arquétipos, na sucessão dos retratos de Camões.

Enquanto o desenho das estampas mais antigas preserva ainda, não direi a riqueza mas, pelo menos, o rigor da simbólica e, nas composições românticas, se eleva de novo a realidade à altura dos grandes ideais, as obras em que se firma o realismo valem tão-só pela factura artística. Caso extremo desta pobreza de símbolos é, sem dúvida, a aguarela assinalada por el-rei D. Carlos, que figura o Príncipe dos Poetas como um velho reformado da corte, suporte de cores de um grande aguarelista, manequim de vestuário da época. A realeza estava já distante do segredo d’Os Lusíadas, como a cultura dos seus detractores o estava também. A realeza havia perdido os fundamentos primordiais do real, os homens cultos de então mal sabiam o que haviam de fazer com ele.

Veja-se o que se passa com os dois Bordalo Pinheiro, talentosos artistas que dominam uma geração. Em face d’Os Lusíadas, ainda é o caricaturista, de arte menor, que melhor exprime a grandeza e qualidade espiritual do Poema – coloca o Zé-Povinho inclinando-se para a superioridade d’Os Lusíadas, apesar dos esforços dos gnomos políticos do tempo para que ele opte pela maior valia da Carta Constitucional. O povo não lera o Poema mas era e é capaz de jurar sobre ele, como jura sobre a Bíblia, mesmo que não a tenha lido na imagem dada por Lopes Ribeiro ao introduzir aqui o filme Camões. Em contrapartida, o grande Columbano, nas alegorias inspiradas na épica camoniana, contradiz-se esteticamente, porque o símbolo não procura o simbolizado e o real das figuras vicia o irreal. São mulheres, em vez de seres mitológicos o que Columbano pinta, são modelos de «atelier», mas não modelos da História de um Povo.

Culturalmente, será já este século um recomeçar, sob o signo dos mais transcendentes poetas que Portugal teve, depois de Camões. Ou, com a lucidez dos filósofos, poderá também ser a visão serena da própria ruptura.

Tudo indica, porém, que o corpo da Pátria sofrerá ainda, por longa espera, os efeitos das doutrinas que lhe ocuparam a alma.

Enquanto o idealismo crítico subjugar o modo de ser colectivo, invertendo o sentido do real, obrigando-nos a pensar por equivocidade, como se fosse por analogia, quem poderá ler os sinais do outro Portugal que somos, dos outros Lusíadas que são?! Quem poderá imaginar o outro retrato de Camões, o outro dos múltiplos que é possível juntar e expor?!

Vamos ouvindo com toda a atenção quem nos possa segredar algo sobre o que mais nos importa. Tenhamos, contudo, a certeza que esse alguém será, como António Telmo é, discípulo e mestre numa escola secreta de pensamento português.



[1] Publicado em Retrato de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas, Lisboa, Secretaria de Estado da Comunicação Social – Direcção-Geral da Divulgação, pp. 61-65.

 

DOS LIVROS. 48

29-08-2016 11:26

Afonso Botelho, o filósofo da saudade

 

Esta homenagem a Afonso Botelho é prestada em saudade.

Com uma ou outra possível excepção, todos quantos o homenagearam antes de mim o conheceram pessoalmente ou foram, à distância, seus amigos. Temos saudades do Afonso Botelho e não de Afonso Botelho, do Afonso Botelho vivo. A morte tornou impossível vê-lo onde ele está agora.

A saudade é sempre do que é vivo e existente, por isso o recurso ao espiritismo é uma anormalidade, uma violência contra a saudade.

Nesta terra onde todos vivem para a perpetuação da carne, comendo e procreando, o sangue, esse fluido vivente, circula pelos corpos voraz e insaciável, mas animando de vida a tessitura dos músculos, dos nervos e dos ossos. Terrível contradição, a que a morte vem pôr fim quando se detém a corrente sanguínea. E então, se nos é lícito imaginar qualquer forma de sobrevivência, o que fica é o fantasma, uma pálida imagem sem diafragma e sem vontade, uma espécie de massa protoplásmica que a nossa recordação gostaria que se revestisse da melhor das formas.

O horror aos fantasmas, ao esoterismo mal entendido vem daqui. Os gregos, como lemos, por exemplo, em Homero, viam o Hades (o Inferno que neles não tinha o mesmo sentido do catolicismo) povoado de pálidas e inanes imagens que vogavam sem consciência no outro mundo. Por isso, eles amavam a vida e o sol que nela brilha.

Ulisses, ao descer aos Infernos, se quis consultar os manes, teve que dar-lhes a beber o sangue de um animal sacrificado. Só assim lhes restituiu a memória e a palavra perdidas, podendo ouvir os sons oraculares.

Esta dependência do sangue que nos faz beber, comer e procrear está aqui transferida para o outro mundo. O mesmo horror habita a nossa terra e a terra dos mortos, só que, aqui, os mortos julgam estar vivos na ilusão de uma consciência automatizada, que o mundo moderno acentua progressivamente.

Mas nós vemos o Afonso Botelho em saudade. Vemo-lo neste ou naquele lugar onde estivemos com ele. Era um homem que, para além da sua condição de mortal nascido da carne, amava e pensava pelo espírito, progenitor da sua alma, segundo o evangelho.

É que os heróis, se recordamos os de Carlyle, não são somente aqueles que se distinguiram pela guerra das armas ou pela audácia das navegações marítimas. Estes merecem o nome de heróis quando a guerra e a navegação foram feitas para manifestar a glória de Deus. Por isso a literatura, quando o escritor pensou heroicamente, é igualmente uma guerra e uma navegação. Foi o caso do Afonso Botelho.

Os gregos não punham os heróis no Hades entre as pálidas imagens dos mortos. Imaginavam-nos morando nas Ilhas Bemaventuradas e, o que é extraordinário, envolvidos de um corpo sensível como o nosso, com a consciência e a vontade inalteráveis, mas sobrenaturalizadas. No corpo de luz que habitavam e que lhes servia de carro conservava-se o diafragma com tudo o que a etimologia desta palavra implica.

Falei em corpo de carne e agora falo em corpo de luz. Exconjurei os fantasmas, erguendo a minha espada, a minha e espero que também a das vossas inteligências.

É que o corpo de carne, formado pelo ininterrupto solve et coagula do sangue, movimento de vida constante­mente ameaçado de morte, aparece-nos, depois da queda, como uma degradação do corpo de glória de Adão, o senhor do Paraíso.

Entre um e outro há apenas uma diferença de grau. Como sabeis, as plantas absorvem a energia solar que as torna ascendentes e fototrópicas, compondo a forma surpreendente da flor; os herbívoros vão buscar às plantas essa mesma energia; os carnívoros devoram os herbívoros apoderando-se dela ou devoram-se entre si arrastados pelo sonho turvo da vida. Mas a energia solar é uma metáfora da energia transcendente do espírito. Esta, essa, aquela capta-se pelo pensamento articulado em orações. É a energia espiritual, que não devemos conceber fantasmaticamente, mas como a própria luz que é o Logos, de que nos fala São João no Evangelho.

É uma luz que, pela imaginação, é possível projectar na própria corrente sanguínea e subtilizá-la, aquela luz invocada por Guerra Junqueiro na Oração e que, não obstante a sombra do monismo a que dá abrigo, a vemos progredir da treva para o pensamento.

Para o Afonso Botelho, que amou, pensou e saudou lealmente o Rei Supremo, escrevi este epitáfio, que publiquei no Setubalense:

 

“Partiu mais um.

Como é próprio da fase outonal do ciclo, vão-se, uma a uma, desprendendo as folhas da Árvore que está plantada no centro de Portugal e que é, simultaneamente, a Árvore da Vida e a Árvore do Conhecimento.

Ei-la, despida mas não morta, tal choupo na margem da corrente do mundo político-económico, com duas ou três folhas ainda presas, lembrando a Primavera que nunca foi. Reverdescerá um dia, transmutada em árvore de folha perpétua, como o “verde pinheiro” de D. Dinis.

Entretanto, junto à corrente, choramos como as irmãs de Faéton, nela precipitado por não ter sabido conduzir, jovem e louco, o carro de seu Pai. “Menina e Moça me levaram para longe da casa de meus pais”. Portugal é o país do verdadeiro exílio, porque é quando estamos nele que dele temos saudades. Estranho paradoxo! Pensemos nisto.

Partiu mais um. Este chamava-se na terra Afonso Botelho. Quem o conheceu e viu não pode esquecer as linhas da sua nobre figura que o assemelhava a uma “bouteille”, direita e hierática como a do oráculo de Rabelais, ou a D. Duarte sobre a sela do cavalo olhando os longes da filosofia. Uma garrafa que os nautas do mar desconhecido lançaram à água encerrando preciosos manuscritos é tanto como a figura de um rei montado no seu cavalo magnificamente respeitável. Quem há, porém, aí capaz de decifrar essa carta de marear que é a Teoria do Amor e da Morte?

Direitos e sérios, meditativos e saudosos como ele, contemplemos demoradamente o epitáfio:

“Aqui jaz Afonso Botelho, filósofo insigne. Porque havia destino cumpriu o destino; porque há o espírito, foi livre. Paz à sua alma!”

 

António Telmo

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)

INÉDITOS. 63

21-08-2016 00:04

ANTÓNIO TELMO, SEMPRE!

Faz hoje seis anos que nos deixou, mas está sempre presente. No aniversário da partida de António Telmo, um poema inédito que integrará o sexto volume das suas Obras Completas, a sair, no próximo mês de Dezembro, com a proverbial chancela da Zéfiro: Viagem a Granada seguida de Poesia. Paulo Samuel prefacia e Risoleta C. Pinto Pedro assina o posfácio, especialmente dedicado à publicação integral da poesia de Telmo, por cuja edição literária será a responsável.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[Fazer versos naturais]

 

Fazer versos naturais

Que se possam conversar

Mas que escondam lá por dentro

O que não é p’ra contar.

 

Com doce cadência certa

Que fascine o pensamento

E dê som ao insonoro

E me adormeça por fora

E me desperte por dentro.

 

Cada palavra um sentido

Duas um casamento

Donde nasça o imprevisto

Como trazido num vento.

Donde nasça o nunca ouvido

Donde nasça o nunca visto.

 

E, porém, tão natural

Que, ao vê-lo, se ouça dizer

Que é coisa de trazer

Nesta vida tal e qual

Como se já se soubesse

Como se fosse o que havia

Dentro de aquele que lê

E se antes não o sabia

Acorda do que o adormece

E vê. 

 

António Telmo

 

UNIVERSO TÉLMICO. 39

14-06-2016 12:27


A Bíblia na Maçonaria
Risoleta C. Pinto Pedro

 

Para a Estela,

estrela “entre as flores”

(in Os Lusíadas)

 

Celebro multiplamente este dia.

Pelo aniversário da Estela, por eu poder estar presente, pela beleza do lugar de tolerância e alquimia que é o convento de Dominicanas onde nos encontramos, pelo colo que este dia é, assinalado por vários símbolos:

A cruz na parede exterior da capela, uma cruz côncava, a lembrar um colo, um útero ou um berço, a única cruz capaz de me fazer reconciliar com tudo o que de doloroso a cruz me evoca. Já aqui estivera há uns anos, esta cruz já aqui estava, mas os meus olhos encontravam-se, ainda, despreparados para a ver além do olhar. A cruz antecipava já esta assembleia aqui colocada em semi-círculo, como um colo, um berço ou um útero.

Por isso, por ser dia de Natal de uma Estrela, aqui trago uma passagem de um texto de António Telmo, um iniciado ainda antes de o ser, o filósofo do futuro, aquele que sempre desejou e perseguiu aquilo que ele designava como a síntese superior: a conciliação harmónica e amorosa entre o cristianismo e o judaísmo, na sua mais alta expressão.

É ele um dos que melhor pensaram e escreveram sobre a palavra enquanto lugar simbólico e sagrado. E o conceito de Misteriosofia.

E cito:

“[…] uma Loja não pode nem deve funcionar como um liceu ou uma universidade, onde um professor ou professores transmitem um saber previamente conhecido, ao alcance de qualquer profano dotado de um mínimo de inteligência e suficientemente aplicado. Na Loja estamos perante um mistério, mais do que isso fazemos parte desse mistério. Emprego a palavra mistério no seu sentido original e não na acepção que popularmente recebeu de insólito e contrário ao curso natural dos fenómenos. No seu sentido original a palavra deve ser referida à sua raiz um, comum a outras palavras como Mudo, murmúrio, mito e místico. Ao pronunciarmos o fonema m fechamos os lábios. Fechamos a entrada da caverna bucal, que é o lugar do Verbo. Escrevo na véspera de Natal, por isso, por isso, ao dizer o que digo, logo me ocorre a gruta onde nasceu o Menino Deus.

Tendo em conta esta etimologia do mistério, não é difícil ver que o ensino aqui se faz pelo silêncio, um silêncio que se torna significativo, no que ele tem de mais profundo, pelas indicações subtis, por aquilo que há de menos discursivo nos ritos e nos símbolos. Os sinais, os toques, as letras e os nomes são talvez o que melhor exprime o que pretendo significar com o termo de «indicações subtis».[…]”

In: TELMO, António. A Aventura Maçónica, Viagens à Volta de um Tapete

Ed. Zéfiro, 2011

Assim, como introdução a esta celebração do Natal de Estela através da palavra sagrada do Livro, uma forma de silêncio, nesta gruta circular assinalada por uma cruz maternal, eu não poderia ter encontrado melhor texto nem melhor autor.

E assim entro no tema que me foi proposto.

Os textos bíblicos que aparecem nos rituais maçónicos, os quais, começo por informar, estão disponíveis em livrarias especializadas ou em secções especializadas de livrarias, ou na Internet, pelo que poderão confirmar tudo o que aqui afirmo, são, na sua maioria, os do Antigo Testamento, mas não só.

Pela sua extraordinária simbologia, a Bíblia presta-se a exercícios de reflexão e estímulo no rituais iniciáticos, como é o caso do maçónico.

Este facto vem repor ordem e verdade naquilo que por vezes se diz acerca de uma pretensa hostilidade entre a Maçonaria e Religião, que não é de todo verdade. A prová-lo, muitos homens da hierarquia da Igreja, nomeadamente bispos e cardeais que pertenceram e pertencem à Maçonaria, assim como muitos cristãos e judeus dela fazem parte. É um problema que a alguns interessa alimentar, mas que não é real.

A Maçonaria não é hostil a nenhuma religião, pelo contrário, a todas abarca, e até agnósticos e ateus aí podem, em algumas lojas, ter lugar. O que acontece com frequência. No rito francês é muito frequente encontrar maçons ateus e agnósticos em franca maioria. Juntamente com crentes. E todos se aceitam e respeitam.

Há Lojas e/ou Odediências onde, para ingressar, é preciso verbalizar uma crença em alguma entidade transcendente, seja ela qual for, independentemente de qualquer religião, mas em outras nem isso é necessário. E lá dentro é possível encontrar lado a lado, trabalhando simbolicamente em conjunto, ateus, agnósticos, cristãos, judeus e crentes de outras religiões.

Centrar-me-ei sobretudo em alguns ritos maçónicos, em particular no Escocês Antigo e Aceite.

A simbologia bíblica está presente de diversas formas:

Com: A- símbolos, desenhos, objectos: B- através da presença dos próprios textos bíblicos no ritual; C- em palavras bíblicas usadas como palavras-passe ou palavras sagradas; D- em alusões ou gestos

A-     Sob a forma de símbolos, desenhos, objectos

             1 . A presença do livro sagrado no altar.

Em muitas lojas, não em todas, a Bíblia está presente. Não está lá enquanto livro de uma, duas ou três religiões (e aqui refiro-me às designadas três religiões do Livro: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, mas enquanto símbolo do texto sagrado. Normalmente aberta no primeiro capítulo do Evangelho de S. João, nomeadamente em lojas do Rito Rectificado e no Martinismo.

Em algumas lojas maçónicas o livro pode ser a Torah, o Alcorão, os Vedas, o Tao Te King, ou vários. Outras optam pela presença de um livro branco.

É natural que aquele texto sobre a luz (como vamos ver) esteja no altar, onde também é colocada a luz (uma lamparina) a partir da qual todas as luzes do templo serão acesas.

Uma parte dos versículos da passagem que se segue (6-8) é lida no ritual de S. João de Verão, pelo Orador:

INÍCIO DO EVANGELHO DE JOÃO

(1 No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.

2 Ele estava no princípio com Deus.

3 Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez.

4 Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens.

5 E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam.

6 Houve um homem enviado de Deus, cujo nome era João.

7 Este veio para testemunho, para que testemunhasse da luz, para que todos cressem por ele.

8 Não era ele a luz, mas para que testemunhasse da luz.

9 Ali estava a luz verdadeira, que ilumina a todo o homem que vem ao mundo.

10 Estava no mundo, e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o conheceu.)

 

O quinto versículo deste poema simbólico, pois assim o leio, contém a afirmação:

“a luz resplandece nas trevas”, o que é muito próximo do que o Orador, um dos oficiais de uma Loja Maçónica e um dos  três oficiais que estão no Oriente, verbaliza no final da sessão de trabalhos na Maçonaria:

“A luz resplandece mesmo na obscuridade mais profunda”

2. À entrada do templo maçónico existem duas colunas, Jaquin e Boaz. À semelhança do templo de Salomão, na Bíblia descrito.

Há quem relacione “Jaquin” com estabilidade e “Boaz” com poder, o que faz sentido, sendo as colunas que sustentam a entrada.

A propósito, cito, do Livro dos Reis 7, e chamo a atenção para o rigor da descrição:

“1 Salomão levou treze anos a terminar a construção do seu palácio.

[…]

10 Os fundamentos eram também feitos de pedras escolhidas de grande dimensão, pedras de dez e de oito côvados.

11 Por cima havia ainda pedras escolhidas, talhadas sob medida, e traves de cedro.

12 O muro, que cercava o grande pátio, tinha três ordens de pedras talhadas e uma fileira de vigas de cedro, assim como no pátio interior do templo do Senhor e no pórtico do palácio.

13 O rei Salomão mandara vir de Tiro um homem que trabalhava em bronze, Hirão,

14 filho de uma viúva da tribo de Neftali, cujo pai era de Tiro. Hirão era talentoso, cheio de inteligência e habilidade para fazer toda espécie de trabalhos em bronze. Apresentou-se ao rei Salomão e executou todos os seus trabalhos.

15 Fez duas colunas de bronze: a primeira tinha dezoito côvados de altura; a sua periferia media-se com um fio de doze côvados. Tinham quatro dedos de espessura e eram ocas. A segunda coluna era semelhante a esta.

16 Fundiu dois capitéis para pô-los no alto das colunas; ambos tinham cinco côvados de altura,

17 e eram ornados de redes de malhas e grinaldas em forma de cadeias; havia sete grinaldas para cada capitel.

18 Dispôs em círculo ao redor de cada uma das malhas duas fileiras de romãs, para ornar cada um dos capitéis que cobriam as colunas.

19 Os capitéis sobre as colunas no pórtico tinham a forma de lírios, com quatro côvados de altura.

20 Os capitéis colocados sobre as duas colunas elevavam-se acima da parte mais grossa da coluna, além da rede; em volta dos dois capitéis, havia duzentas romãs dispostas em círculo.

21 Hirão levantou as colunas no pórtico do templo; a coluna direita, que chamou Jaquin, e a esquerda, que chamou Boaz.

22 Por cima das colunas pôs um trabalho em forma de lírio. E assim foi acabada a obra das colunas.)”

Assim são, também,  as colunas do templo maçónico, em cima coroadas por lírios e romãs.

Esta extensa descrição arquitectónica pormenorizadíssima, como um engenheiro a faria, faz-nos pensar em várias possibilidades. Para que não esqueçamos como se faz um templo? Ou para termos presente que os pormenores não são detalhes? Ou então, que os detalhes não são pormenores? Ou porque tudo é símbolo, e não é igual, do ponto de vista das repercussões cósmicas, um templo ter duas colunas com dezoito côvados de altura e a sua periferia medir-se com um fio de doze côvados, ou as medidas serem outras… Que as formas, as quantidades e as medidas da matemática e da geometria não são aleatórias, mas de natureza essencial e de repercussões dramáticas ao nível do Universo?

Não é ao acaso que cada maçon ocupa um determinado lugar no Templo, consoante o seu grau e função. A Loja é um templo, e na construção dos edifícios não é indiferente o lugar onde cada pedra é colocada. Cada maçon é uma pedra sobre a qual se ergue o templo. Dos alicerces que todos representam, e da sua qualidade, depende a qualidade da estrutura, que deve honrar o seu construtor, o Grande Arquitecto.

Vejamos o rigor na descrição das medidas de um templo maçónico:

“A sala deve ser um duplo quadrado a Ocidente com um Oriente semi-circular e deve ter pelo menos dois terços a mais no sentido do comprimento do que no da largura. A extremidade do fundo está mais elevada que a restante parte do Templo: é o Oriente, para o qual se sobe transpondo-o com três passos ou degraus. Entra-se no Templo pelo ocidente. “

B-    A presença de textos no ritual

. Lendas simbólicas

Como é o caso da lenda de Hiram, o construtor do templo de Salomão, acima referido:

O nome Hiram Abiff, figura altamente simbólica no ritual maçónico, não consta na Bíblia, mas existem referências a pessoas chamadas Hiram, que são:

Hiram, rei de Tiro, referido em II Samuel 5:11 e em I Reis 5:15-32 por ter enviado material de construção e um homem para a construção do templo original de Jerusalém.

Em I Reis 7:13–14, Hiram é descrito como um homem de Tiro que trabalhava em bronze, filho de uma viúva da tribo de Neftali .

Quanto à lenda de Hiram Abiff , o nome é de origem hebraica, embora os dois Hiram referidos na Bíblia proviessem do Líbano. Temos Hiram ou Hirão rei de Tiro e Hiram Abiff, o artífice que esse Rei enviara a Salomão para o embelezamento do Grande Templo.

Como vimos, o relato bíblico tece louvores à habilidade profissional de Hiram: “era talentoso, cheio de inteligência e habilidade para fazer toda espécie de trabalhos em bronze.”

Contudo, por ocasião da consagração do Templo, não é mencionado.

Talvez por isso, devido ao apagamento em torno dessa personagem, se tenha criado, no universo maçónico, a Lenda de Hiram Abiff, que assim assume um valor simbólico ainda mais acentuado e o dá como tendo sido assassinado por três maus companheiros. Hiram, o arquiteto, existiu; a história dos Hebreus refere-o; na lenda foi assassinado por três companheiros, porque ele era o único que sabia decifrar as escrituras do templo de Salomão, pelo que era alvo de inveja.

A propósito disto, mas sem grandes interpretações, recordo que é a palavra “inveja” aquela que encerra a nossa grande Bíblia épico-lírica chamada Os Lusíadas.

Segundo a etimologia, a palavra inveja, formada pelos étimos latinos in (dentro de) e videre (olhar), aponta para um olhar penetrante, um olhar que se insinua no outro, algo que adquire uma má conotação.  Uma outra interpretação vê no prefixo in o seu outro significado de negação, e assim  entende a inveja como um olhar pela negativa, aquele que ao invés de incluir, exclui, a inveja  é o sentimento daquele que não vê, aquele que não consegue aceitar sem desconforto, a diferenças entre ele e o outro, que vê as qualidades alheias como exclusivas do outro, que não consegue vê-las em si e as considera fora do seu alcance, com o sofrimento que isso traduz.

Em termos de auto-conhecimento das insondáveis sombra da alma, esta lenda tem potencialidades iniciáticas profundas, daí a sua inclusão no ritual do Rito Escocês Antigo e Aceite da Maçonaria, que contempla Hiram Abiff, ao qual é associada uma simbologia esotérica que a liturgia iniciática maçónica inclui.

O simbolismo da palavra Abiff aumenta se tivermos em conta que se trata de uma palavra composta pelas iniciais extraídas de outras quatro palavras que também são letras: Aleph, Beth, Iod e Vav, todas hebraicas. Significa "pai". É também, um título de reverência. O Rei de Tiro ao referir-se ao seu artífice chama-lhe "meu pai Hiram". No Livro de Crônicas, é chamado "Seu Pai, Hiram Abiff". O apelido resulta como título de honra a Hiram, o pai da construção do Grande Templo.

C-    Sob a forma de palavras passe ou palavras sagradas.

É o caso da palavra Shibboleth, no ritual maçónico sendo uma palavra ritualística de valor muito importante, uma palavra passe, já se vai perceber porquê:

No Antigo Testamento, em Juízes 12: 1-15, está escrito que esta palavra foi usada para distinguir entre duas tribos semitas, os gileaditas e os efraimitas, que se encontravam em luta. Os gileaditas, vencedores, bloquearam todas as passagens para o Rio Jordão a fim de evitar que os efraimitas fugissem. Os guardas exigiam que todos os que ali passassem pronunciassem a palavra "shibboleth", mas como os efraimitas não tinham o fonema /x/ no seu dialeto, só conseguiam pronunciar "sibboleth", utilizando o fonema /si/ na primeira sílaba, sendo assim reconhecidos e executados.

 

NA BÍBLIA:

Juízes 12
“…Depois os homens de Gileade tomaram de Efraim as passagens do Jordão, de maneira que, quando um fugitivo de Efraim solicitava: “Deixa-me passar!” Os gileaditas perguntavam-lhe: “És eframita?” Se declarava: “Não”,  ordenavam-lhe: “Então diz: Shibolet”. Se a pessoa dissesse “Sibolet”, sem conseguir pronunciar corretamente a palavra, prendiam essa pessoa e matavam-na no lugar de passagem do Jordão. Quarenta e dois mil efraimitas foram mortos naquela época. Jefté comandou o povo de Israel durante seis anos. Então Jefté, o gileadita, morreu e foi sepultado na sua cidade natal, nas terras de Gileade. »

Igualmente, mas sem perigo de morte, um dos graus da maçonaria tem como palavra-passe a expressão “Shibbolet”. Sem ela não é permitida, nesse grau, a entrada no Templo.

D-   Sob a forma de alusões ou gestos:

. Por exemplo, a alusão ao facto de as lojas maçónica serem normalmente designadas como lojas de S. João, o patrono da maçonaria. Que há quem considere que são os dois; o Baptista e o Evangelista, respectivamente celebrados pelos maçons por ocasião dos solstícios de Verão e de Inverno.

Entre os antepassados da maçonaria, na Europa, era também normal escolher-se um santo protetor para cada corporação de ofício. Resultou assim, que os dois santos, São João Batista e São João Evangelista tenham sido eleitos como os padroeiros das associações de pedreiros e construtores das catedrais, que sustentam uma parte da história da maçonaria.

Filho do sacerdote Zacarias e Isabel (Elizabete), prima de Maria, mãe de Jesus, João Baptista foi considerado profeta e tido pelos cristãos como o precursor do prometido Messias (ou Cristo). Baptizou Jesus "o Cristo" bem como muitos outros, e introduziu o baptismo de gentios nos rituais de conversão judaicos, que mais tarde foram adaptados pelo cristianismo e que encontramos também na maçonaria pelo valor simbólico que se dá à água enquanto elemento ritualístico. São João Batista é o precursor da Luz e com a prática da purificação, pela água, é considerado o profeta das iniciações. Uma organização iniciática como é a maçonaria não poderia ignorar este grande Iniciador do Jordão.

. Como é a já referida alusão ao facto de o templo maçónico pretender ser uma réplica simbólica do Templo de Salomão, edifício construído por este rei de Israel para a Glória de YAHWE.

. O facto de os juramentos serem prestados com a mão sobre o Livro, que frequentemente é a Bíblia.

. A comunhão: por ocasião de um dos solstícios e nos ágapes rituais, existe a partilha do pão e do vinho.

Na Eucaristia;

“ Lucas 22:19-20

Tomando o pão e tendo dado graças, partiu-o e deu-o aos discípulos, dizendo: Este é o meu corpo que é dado por vós; fazei isto em memória de mim.

Depois da ceia tomou do mesmo modo o cálice, dizendo: Este cálice é a nova aliança em meu sangue, que é derramado por vós.”

 No Banquete de Ordem Maçónico:

“Que este gesto seja o símbolo da partilha do alimento do corpo e do espírito”

O Venerável parte um pão em dois, toma um bocado e reparte o resto à sua direita e à sua esquerda.  Depois bebe da sua taça, imitado por todos os convivas, após ter dito:

“Que este vinho aqueça o nosso corpo e conforte em nós o amor fraternal”.

Uma outra alusão surge no ritual de S. João de Verão, ou Evangelista, onde  perante a pergunta:

“Porque escolheram os Franco-maçons S. João Baptista como seu patrono?”, um oficial responde: “Porque ele consagrou a sua vida à tarefa de abrir os olhos dos seus contemporâneos para a LUZ que brilha na trevas e permaneceu fiel a essa missão até à sua morte.”

A luz é a da liberdade, a expressão superior do Amor, a libertação individual, não com um foco egoísta, mas fraterno, o mais alto ideal de liberdade, isto é, a liberdade para todos, a conduzir a ideia de igualdade e fraternidade. Que, afinal, atravessa toda a Bíblia, desde a preocupação com a justiça, uma forma de igualdade, no Antigo Testamento, ao alto ideal do Amor fraterno, compassivo e incondicional que a presença de Cristo imprime ao segundo. Para a total libertação da Humanidade, num Império que alguns apelidam de Espírito Santo.

 

Risoleta Pinto Pedro, 21 de Maio de 2016

 https://www.triplov.com/novaserie.revista/barra_590.jpg

A Bíblia no ritual maçónico

(textos bíblicos:)

 

INÍCIO DO EVANGELHO DE JOÃO

 

(1 No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.

2 Ele estava no princípio com Deus.

3 Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez.

4 Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens.

5 E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam.

6 Houve um homem enviado de Deus, cujo nome era João.

7 Este veio para testemunho, para que testemunhasse da luz, para que todos cressem por ele.

8 Não era ele a luz, mas para que testemunhasse da luz.

9 Ali estava a luz verdadeira, que ilumina a todo o homem que vem ao mundo.

10 Estava no mundo, e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o conheceu.)

 

 

Livro dos Reis 7:

“1 Salomão levou treze anos a terminar a construção do seu palácio.

[…]

10 Os fundamentos eram também feitos de pedras escolhidas de grande dimensão, pedras de dez e de oito côvados.

11 Por cima havia ainda pedras escolhidas, talhadas sob medida, e traves de cedro.

12 O muro, que cercava o grande pátio, tinha três ordens de pedras talhadas e uma fileira de vigas de cedro, assim como no pátio interior do templo do Senhor e no pórtico do palácio.

13 O rei Salomão mandara vir de Tiro um homem que trabalhava em bronze, Hirão,

14 filho de uma viúva da tribo de Neftali, cujo pai era de Tiro. Hirão era talentoso, cheio de inteligência e habilidade para fazer toda espécie de trabalhos em bronze. Apresentou-se ao rei Salomão e executou todos os seus trabalhos.

15 Fez duas colunas de bronze: a primeira tinha dezoito côvados de altura; a sua periferia media-se com um fio de doze côvados. Tinham quatro dedos de espessura e eram ocas. A segunda coluna era semelhante a esta.

16 Fundiu dois capitéis para pô-los no alto das colunas; ambos tinham cinco côvados de altura,

17 e eram ornados de redes de malhas e grinaldas em forma de cadeias; havia sete grinaldas para cada capitel.

18 Dispôs em círculo ao redor de cada uma das malhas duas fileiras de romãs, para ornar cada um dos capitéis que cobriam as colunas.

19 Os capitéis sobre as colunas no pórtico tinham a forma de lírios, com quatro côvados de altura.

20 Os capitéis colocados sobre as duas colunas elevavam-se acima da parte mais grossa da coluna, além da rede; em volta dos dois capitéis, havia duzentas romãs dispostas em círculo.

21 Hirão levantou as colunas no pórtico do templo; a coluna direita, que chamou Jaquin, e a esquerda, que chamou Boaz.

22 Por cima das colunas pôs um trabalho em forma de lírio. E assim foi acabada a obra das colunas.)”

 

Juízes 12
“…Depois os homens de Gileade tomaram de Efraim as passagens do Jordão, de maneira que, quando um fugitivo de Efraim solicitava: “Deixa-me passar!” Os gileaditas perguntavam-lhe: “És eframita?” Se declarava: “Não”,  ordenavam-lhe: “Então diz: Shibolet”. Se a pessoa dissesse “Sibolet”, sem conseguir pronunciar corretamente a palavra, prendiam essa pessoa e matavam-na no lugar de passagem do Jordão. Quarenta e dois mil efraimitas foram mortos naquela época. Jefté comandou o povo de Israel durante seis anos. Então Jefté, o gileadita, morreu e foi sepultado na sua cidade natal, nas terras de Gileade. »

 

Na Eucaristia;

 

 

Lucas 22
:19-20

Tomando o pão e tendo dado graças, partiu-o e deu aos discípulos, dizendo: Este é o meu corpo que é dado por vós; fazei isto em memória de mim.

Depois da ceia tomou do mesmo modo o cálice, dizendo: Este cálice é a nova aliança em meu sangue, que é derramado por vós.

  

 

INÉDITOS. 62

14-06-2016 12:15

 

Agostinho da Silva

 

Agostinho da Silva, na sua sistemática campanha contra a filosofia portuguesa e contra Leonardo Coimbra, desempenha o papel do décimo terceiro discípulo, para quem o mestre não pode ser um homem divino, mas o Espírito Santo de acção e guerra que vem trazer “a Paz a todo o mundo”.

Como Judas representava, na primeira e arquetipal comunidade esotérica cristã, pelo nome, pela definição e pela ideia, o povo judaico, este “trabalhador da terra” – Georges de baptismo –, significa dentro da filosofia portuguesa o atávico anti-filosofismo lusitano, mas nos termos de quem recebeu o ensino superior do Mestre, embaindo subtilmente na luz prodigiosa do espírito os invejosos, os soberbos e os caluniadores que, sem a sua ajuda, em vão forcejariam por levantar e arremessar contra nós o peso da sua mediocridade.

Nenhum dos discípulos herdou tanto de Leonardo Coimbra: o poder de comunicar de viva voz o verbo do espírito, o fascínio pela matemática e pela física nas suas mais altas expressões modernas, o franciscanismo, a conversão ao catolicismo, o sentido da fraternidade de todos os seres, o misticismo e o universalismo.

Escreve-me um dos nossos amigos dizendo «o seu desgosto de verificar que o Agostinho da Silva está cada vez mais acérrimo na sua campanha contra a filosofia portuguesa. Portugal não tem filósofos (apenas o Spinoza) e aliás isso não tem importância, porque o que importa é a sabedoria e essa o povo português tem-na nos seus mitos e crenças, e a matemática e a pragmática. Não é preciso filosofar, o que é preciso é agir, para o que basta o fundamento de uma sophia por assim dizer inerente ao nosso povo, com a força do Espírito Santo a soprar no nosso sentido, etc.. Em tudo isto, muitos compromissos com a política do mundo, com o socialismo, com o terceiro-mundismo, com os nomes em voga, Soares, Saramago, etc.. É muito esquisito…»

Talvez não seja tão esquisito quanto [parece]. Se o Agostinho diz que o que importa é a sabedoria e que nós não temos filósofos, das duas uma: ou finge não saber o que é a sabedoria ou sabe, e ignora o que seja filosofia; alternativa tanto mais de admitir quanto, nestas coisas, o erro de estatística (Quantos filósofos temos? Só o Spinoza.) aparece como um pecado contra o espírito.

Se o Espírito Santo não sopra no sentido que ergueu A Alegria, a Dor e a Graça, A Razão Animada, a Teoria do Ser e da Verdade, As Aproximações, etc., também não há rosto para senti-lo soprando do lado do povo, nos seus mitos e crenças. Na verdade, o décimo terceiro discípulo diz o mesmo que, por exemplo, disse o terceiro: a filosofia portuguesa é a conversão activa e consciente do que o povo português sabe e crê em pensamento individual. Era, porém, preciso levedar a “esquerda”, uma vez que o ensino de Leonardo Coimbra foi falsamente interpretado sobretudo pelos discípulos dos discípulos como de direita.  E que melhor modo de o fazer do que voltar-se contra o Mestre para poder tornar aceitável o que o Mestre disse? É possível duvidar que isso leve a alguma coisa. O Espírito Santo não sopra por toda a parte, mas onde quer. O plástico, por exemplo, é uma matéria sem Espírito Santo e, por isso, constitui o supremo problema para os ecologistas.

Só há um processo para Agostinho da Silva de não pertencer à filosofia portuguesa: é deixar de pensar, o que equivaleria a repudiar o Espírito no próprio ser encomendado à acção.  

Quanto ao Spinoza, se fosse vivo entre nós e seu nome se escrevesse com E inicial, a perseguição que sofreu na Holanda da comunidade judaica tomaria aqui a forma que todos sabemos pelos exemplos de Camões, Francisco Manuel de Melo, Gomes Leal e de tantos outros da família cabalista de Sampaio Bruno e Álvaro Ribeiro. O seu prestígio de filósofo entre nós vem-lhe de duas coisas: de ser meio estrangeiro e no estrangeiro considerado e de revestir sua loucura da forma dedutiva da geometria euclidiana.

O pobre Sampaio Bruno, n’A Ideia de Deus, raciocina, raciocina, mas mistura a pura abstracção ideante com as expressões rudes dos cafés do Porto. Pode lá ser filósofo um homem que escreveu: “Filho da puta dum dominicano quem não te fez jesuíta!?” Mas a solene, lúcida, inspirada sobriedade de Álvaro Ribeiro não teve melhor sorte. Pobre país o nosso!

Este Agostinho da Silva é o caso mais extraordinário de poder mental (pensa não por querer pensar mas porque vive). E sobretudo faz pensar os que não vivem porque não pensam. Ao negar o carácter de filosofia aos livros de Bruno, Álvaro Ribeiro, Leonardo Coimbra fá-lo porque acha que, neles, o pensamento não foi suficientemente matemático e também físico para ser filosófico. É bem mais amigo da sofia que todos nós. A sua exigência de lucidez nos livros de filosofia resulta da sua própria maneira de vencer a densa obscuridade que detesta, sergianamente, nas classes cultas do nosso país. Mas tem sobre Sérgio o sonho e a imaginação que o faz amar nos poetas e no povo o que não ama nos filósofos. É tudo uma questão de classificação, de pôr as coisas nos seus lugares. Quais são, porém, os lugares para os lugares? Este problema, que atormentava Platão, foi resolvido pelos modernos com a noção de infinito. E assim a matemática acaba em mística.

Vamos formando ideias, sistemas solares com os seus elementos bem coordenados entre si no microcosmos e no macrocosmos. O pensamento é um barco astronáutico, uma centelha minimal visitando a harmonia dos neutrões e dos protões, os elementos primitivos activos e os que não são isto nem aquilo, como as mulheres-giocondas cuja natureza se nos furta. Tocamos o mistério lúcido dos abismos com o telescópio e o microscópio. Espinoza não seria o que foi se não fabricasse lentes.      

O ideal metafísico de um filósofo fabricador de lentes é o de elevar a sua arte a um tal grau de perfeição que possa ver o ponto, sem dimensão ou vulto, o que, por ser impossível (e dada a inegável realidade do ponto) faz que se misture geometria com teologia. Mais coerentes eram os geómetras materialistas que punham o sólido no “princípio”, como Parménides e Aristóteles. O sólido (de solus) é o Só, mas não o de António Nobre que é um só lírico e oposto ao mundo e aquele é o próprio mundo e o Perfeito (ver o Tratado do Céu de Aristóteles) em si sustido, como dizia o Luís, que combinava o Mestre com o Discípulo, fora da Universidade onde não conseguiu ser Camões.

Dizia o médico Maimónides que quando hé excesso de um humor num corpo doente se lhe desse o remédio que excite o humor contrário. Por isso, quem é, de sua estrutura íntima, racionalista deve adoptar o irracionalismo e vice-versa. De seguro, resta a acção impelida pelo vento fácil do Espírito, que não se sabe de onde sopra. A demonologia não está tão certa, quando se trata de política e de propaganda literária na televisão, da natureza do espírito que sopra. Tudo porém é para compreender e é da nossa atitude íntima de disponibilidade que tudo também depende para bem ou para mal.

Agostinho da Silva é, entre nós, o que certos sufis foram em relação aos “falasîfa” no mundo mahomédico, como por exemplo Al Gazel. Exemplo disso, é o seu modo paradoxal de pensar. A um amigo que lhe dizia que certos dias não tinha dinheiro para comprar comida respondeu:

– A mim acontece-me não o ter para a véspera.

O paradoxo dissolve certas cristalizações de sentimentos e de noções que emperram o movimento da humanidade.

Bem-haja Agostinho da Silva!

 

António Telmo 

EDITORIAL. 07

09-06-2016 18:43

Um caso singular

 

À medida que o Verão se aproxima, a actividade do Projecto António Telmo. Vida e Obra intensifica-se, com a mira posta na rentrée. Se o V Volume das Obras Completas de António Telmo, Contos Secretos seguidos de A Goga, está já em provas tipográficas, e se Agostinho da Silva – A Última Entrevista de Imprensa é o título que se segue no prelo, novos livros se anunciam desde já. Assim, o sexto Volume das Obras Completas, com prefácio de Paulo Samuel e lançamento previsto para Dezembro, permitirá reeditar Viagem a Granada e reunir toda a poesia, édita e inédita, de Telmo, num trabalho de edição de Risoleta C. Pinto Pedro. Antes, em Outubro, o GEAS – Gabinete de Estudos Agostinho da Silva, parceria que o nosso Projecto mantém com o Centro de Estudos Culturais e de Acção Social Raio de Luz, promove as primeiras Considerações – Encontros Anuais com Agostinho da Silva, que se traduzirão na realização do Colóquio “A Literatura de Agostinho da Silva”, a ter lugar a 14 e 15 de Outubro, em Sesimbra, no Auditório Municipal Conde de Ferreira e no Auditório do CECAS-RL, e que contará com as participações, já confirmadas, de António Cândido Franco, António Carlos Carvalho, Duarte Drummond Braga, Eduardo Aroso, Elísio Gala, Fernando Dacosta, Helena Briosa e Mota, Luís Afonso, Luís Carlos dos Santos, Maria Helena Carvalho dos Santos, Miguel Real, Pedro Martins, Renato Epifânio, Risoleta C. Pinto Pedro, Rui Lopo e Teresa Rita Lopes, para além dos Jograis U… Tópico. No âmbito deste colóquio, anunciam-se dois novos projectos de investigação: o livro A Literatura de Agostinho da Silva, essa Alegre Inquietação, de Risoleta C. Pinto Pedro, e uma exposição bibliográfica e documental em torno do processo de Agostinho da Silva na PIDE, que será comissariada por Helena Briosa e Mota, que é também a autora do prefácio daquele livro.

Dois anos e meio depois da sua criação, o Projecto António Telmo. Vida e Obra continua a afirmar-se como um caso singular no panorama cultural nacional, pelo dinamismo, pela pujança e pela novidade com que um grupo informal concretiza sucessivos projectos e estabelece pontes com inúmeras outras instituições culturais.

UNIVERSO TÉLMICO. 38

21-05-2016 20:06

Apresentação do livro de Pedro Martins

A LIBERDADE GUIANDO O POVOUma Aproximação a Agostinho da Silva

Zéfiro, 2016

Helena Briosa e Mota

Quando Pedro Martins me convidou para apresentar, após a manifesta indisponibilidade do Prof. João Ferreira, ao lado de Rui Lopo, o seu novo livro, a primeira reacção foi de recusar a honrosa proposta. Sem rebuço, afirmo que não só me senti como me sinto incapaz de ombrear com qualquer um dos dois convidados. Contudo, posta perante o desejo explícito do Autor e o título da obra que, versando o pensamento de Agostinho da Silva, fora intitulado de A liberdade guiando o povo, o impulso imediato foi de aceitar, sem pestanejar, o repto, dado considerar ser o tema da Liberdade aquele que mais fundo calou tanto no pensamento quanto na praxis agostiniana. Lendo o subtítulo da obra, uma aproximação a Agostinho da Silva, de imediato aflorou à minha face um sorriso, lembrando o «dissídio» manifesto pelo Pedro Martins na sua obra anterior Agostinho da Silva em Sesimbra – amorosamente escrita com outro Amigo comum de ambos, de seu nome António Reis Marques.

Comecemos, então, pela questão do dito «dissídio». Pois se Pedro Martins tanto discorda de Agostinho da Silva (AS), por que motivo lhe dedica – e continua a dedicar – tanto do seu labor reflexivo? Por que motivo continua insistindo em lhe estudar o pensamento? A resposta é simples, e todos a conhecemos. Mais do que as diferenças que dele o separam, as características de que se reveste a personalidade única de Agostinho sobrepõem-se e ultrapassam qualquer argumento de eventual dissidência. Pedro Martins identifica-as e não deixa de se render à sua grandeza quando as enumera:

(i)      Agostinho da Silva é um dos nomes cimeiros da história do pensamento português no séc. XX. Se nos lembrarmos da consulta popular, feita via televisão, em 2007, para se eleger O Grande Português, e se abstrairmos os 7 políticos (Salazar, Cunhal e Aristides S. Mendes, Pombal, Salgueiro Maia, Mário Soares e Sá Carneiro), os 2 reis (Afonso Henriques e D. João II) e o príncipe D. Henrique e o navegador Vasco da Gama, e os dois santos (António de Lisboa, Nun´Álvares) e o não canonizado missionário João Almeida, os jogadores e o dirigente futebolístico (Eusébio, Pinto da Costa e Mourinho) e a cantora (Amália), verificamos que Agostinho, a quem coube um 21º lugar, só foi ultrapassado por Camões (5.º lugar) e Pessoa (8.º lugar)! Portanto, como acima se disse, Agostinho da Silva é um dos nomes cimeiros da história do pensamento português no séc. XX.

(ii) como escritor, foi um dos maiores que Portugal leu. E leu de forma entusiástica: de acordo com os relatórios dos informantes da PIDE, ficamos a saber que «contam-se, aos milhares, os seus leitores»;

(iii) no que à oratória diz respeito, reconhece-a como «genial e lendária»;

(iv) é homem de uma coragem cívica caracterizada de «exemplar, entretecida sempre da maior dignidade»;

(v) de «peculiar sentido de liberdade… dirigido, por inteiro, ao que em cada um de nós é mais autêntico e mais aventuroso»;

(vi) de «bondade sumamente dadivosa». (Martins e Marques, 2014: 15-17).

Claro que tão vultoso elenco de características humanas não passa despercebido, muito menos deixa alguém indiferente. E eis Pedro Martins a ganhar consciência de que, se havia algo que o separava de Agostinho, tal residia, tão simplesmente, no «devocionismo que em seu redor se gerou», (Martins, 2016: 4), na «incensação acrítica do seu legado», penas que, de forma alguma, se poderiam imputar a Agostinho.

Daí à aproximação foi um passo. Pedro Martins não resistiu, não resiste à grandeza do «pedagógico monstro» que em muitos passos da sua obra, mas sobretudo no Caderno de Lembranças se auto-analisa e vai revelando. Melhor dizendo, se vai desvelando (2006: 45). Dois anos passados sobre a última obra, durante os quais prosseguiu nos seus estudos, vem o autor dar o dito por não dito reconhecendo, candidamente, que afinal é «um agostiniano». As reservas de pensamento que tinha, continua a tê-las e, salutarmente, qual José Kertchy Navarro irá Pedro Martins mantê-las[1]. Como agostiniano que a partir de agora se assume, ao distanciar-se de Agostinho, não se está a afastar dele, muito pelo contrário. Pedro assumiu para si a agostiniana tarefa de lançar sobre a terra «uma semente de renovação e de íntimo aperfeiçoamento», reservando para si a tarefa «de compreender e unir» (AS, 1989: 59).

Rememorando a conversa havida entre Agostinho da Silva e António Reis Marques no dia em que este, espantado, vê o seu Amigo chegar a Sesimbra, quando seria suposto que estivesse em cerimónia oficial recebendo, das mãos do Presidente da República, uma das mais honrosas distinções, a da Ordem da Liberdade, Agostinho afirma ter sido sempre, «tanto quanto se pode ser, um homem livre», pelo que, em liberdade, decidiu vivenciar tal bem em Sesimbra. Renunciando ao ‘objecto’, ao ‘penduricalho para ostentar na lapela’, Agostinho demonstra não abdicar do ideal do valor supremo, muito menos do seu integral gozo.

A liberdade é o α e o Ω no pensamento de Agostinho da Silva. Explícita ou implicitamente, este valor essencial perpassa por toda a sua obra, condicionando e, simultaneamente, orientando toda a sua acção.

Quando chega a Paris, em 1931, e até ao fim da sua estada na cidade-luz, em 1933, o jovem bolseiro encontra-se no epicentro da Europa que, em crescente preocupação, vai ganhando consciência das ameaças crescentes à liberdade pessoal dos cidadãos. A população é sensível às chamadas de atenção do Doutor Armangaud que, neste ano, vê a Mairie aceder à edificação de uma estátua em memória de Montaigne, o paladino das liberdades. Dois anos passados, por ocasião da celebração do quatro centenário do nascimento do humanista (1533 – 1592), o escultor Paul Landowski vê descerrar o pano inaugural, mostrando o belíssimo conjunto em mármore branco na Rue des Écoles, na Sorbonne[2]. Entre a Sorbonne e o Collège de France, diariamente frequentados por Agostinho.

 De Montaigne, de quem estuda o pensamento e traduz alguns dos Ensaios, revela Agostinho que, por admirar os Reis, perante eles se inclina: «Diante deles tudo se deve inclinar e submeter salvo a inteligência» (1933: 112). E para que quanto a isto não reste qualquer dúvida, anota o tradutor a quem declara aborrecer «toda a espécie de tirania» (1933: 105) o comentário: «Em política, como em religião, Montaigne curva o joelho; a inteligência não (1933: 112).

Nada mais óbvio que tal tomada de posição: Montaigne é o dilecto Amigo de Étienne de la Boétie (1530 – 1563), o dedicatário do ensaio Da Amizade e autor de Discurso sobre a Servidão Voluntária, verdadeiro hino à liberdade que não terá passado despercebido a Agostinho que, ao longo de toda a vida, se assume como «Irmão Servidor», aquele que sacrifica a sua liberdade em prol dos direitos universais de seus irmãos.

Foi em defesa do valor da liberdade que, em 1943, no âmbito da campanha de divulgação cultural que empreendera, escreveu Doutrina Cristã, um folheto de quatro páginas, desdobrável, em que apresenta uma tese explanada ao longo de quatro pontos que, por ser considerada subversiva, acabou por o levar à prisão do Aljube. No último ponto da proposição explicita Agostinho a ideia e defende a teoria de que

Para que possa compreender Deus, para que possa, melhorando-se, melhorar também os outros, o homem precisa de ser livre; as liberdades essenciais são três: liberdade de cultura, liberdade de organização social, liberdade económica. Pela liberdade de cultura, o homem poderá desenvolver ao máximo o seu espírito crítico e criador; ninguém lhe fechará nenhum domínio, ninguém impedirá que transmita aos outros o que tiver aprendido ou pensado. Pela liberdade de organização social, o homem intervém no arranjo da sua vida em sociedade, administrando e guiando, em sistemas cada vez mais perfeitos, à medida que a sua cultura se for alargando; para o bom governante, cada cidadão não é uma cabeça de rebanho; é como que o aluno de uma escola de humanidade: tem de se educar para o melhor dos regimes, através dos regimes possíveis. Pela liberdade económica, o homem assegura o necessário para que o seu espírito se liberte de preocupações materiais e possa dedicar-se ao que existe de mais belo e de mais amplo; nenhum homem deve ser explorado por outro homem; ninguém deve, pela posse dos meios de produção e de transporte, que permitem explorar, pôr em perigo a sua liberdade de Espírito ou a liberdade de Espírito dos outros. No Reino Divino, na organização humana mais perfeita, não haverá nenhuma restrição de cultura, nenhuma coacção de governo, nenhuma propriedade. A tudo isto se poderá chegar gradualmente pelo esforço fraterno de todos.

 

Como Pedro Martins muito bem identifica na sua obra, «na arquitectura do pensamento de AS será possível reconhecer uma função basilar à Igualdade, uma função pontifícia à Fraternidade e uma função reitora à Liberdade» (2016:8). Este é o α da sua obra, que desenvolve ao longo de doze capítulos para, chegando ao Ω, concluir que «Agostinho não é o mito, nem é um mito. Anuncia, pelo mito, o mundo a haver.» (2016:181)

E é ao longo destes doze capítulos que, num passeio pelas obras de Agostinho, mas também pelas de outros companheiros de carteira ou contemporâneos (mestre Leonardo Coimbra, Álvaro Ribeiro, Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoaes, Pinharanda Gomes, António Quadros e António Telmo, para apenas enumerar alguns), e pela mão hábil de Pedro Martins vemos o desfiar e o evoluir dos conceitos relativos à ética, à moral, à política, e a forma como a arte, a ciência, a educação, a economia e a religião, se entrelaçam e alicerçam, ganhando foros de imprescindibilidade na construção da realidade proposta para a sociedade ideal segundo a proposta agostiniana.

A tríade Martiniano-revolucionária que põe em interacção a Liberdade, Igualdade e Fraternidade orientou, qual Estrela-Polar ou Cruzeiro-do-Sul, a acção e o pensamento de Agostinho da Silva. Porque sendo princípios orientadores de uma revolução, a Francesa, historicamente fundadora dos direitos civis, não podem senão apresentar-se em clara oposição a toda e qualquer opção absolutista.

Agostinho pertence ao grupo daqueles que, antes de conceptualizar, age. Age por imperativo, e imperativo de ordem ética, em prol e em defesa d’ O Outro. Fraternalmente, e porque O Outro é, efectivamente, seu irmão, Agostinho não o vê de outra forma que não seja como seu igual. E como igual que é, e igual o quer a si, salta para a liça e combate, lutando ferozmente em prol do valor da Liberdade.[3]

Em 1982, em conversa com seu neto, João Rodrigo Mattos [e Silva], à pergunta: “– Está com algum novo projecto?”, Agostinho responde: “– Vários”. “– Qual deles é o mais importante?” “– Mudar o mundo”, respondeu Agostinho, convicto. “– Não acredito que haja projecto meu mais importante que este.” (2000:206)

Aos 88 anos de idade Agostinho continuava a acreditar no projecto que empreendera desde os tempos em que, menino de escola, em caderno de duas linhas, escrevia histórias descrevendo um mundo melhor. Ao longo da vida, porque acreditava na causa libertária, bateu-se pela convicção de que é necessário, é imprescindível mudar o mundo. Um mundo melhor, de gente liberta, vivendo em fraternidade. Um mundo solidário e justo, de gente mais feliz, porque mais consciente de que, sozinha e isolada, nada é: só em comunhão e em amorosa união cada um poderá ser capaz de, a um tempo, ser uno e plural. E lançar as bases da tão desejada sociedade da prosperidade e da abastança geral, conquistada à custa da paz. Construir o Reino do Divino ou Quinto Império, a propalada Nova Civilização ou Sociedade sem Classes, a Idade Final ou Idade de Ouro, a tão difundida Idade, Reino ou Era do Divino Espírito Santo, que um dia há-de chegar. Pessoanamente, n’ A Hora.

Está na nossa mão decidir se queremos envolver-nos naquele que era ainda o projecto de Agostinho: lutar pela nossa liberdade, pela liberdade dos nossos. E, ganha a luta, ouçamo-nos e detenhamo-nos, em reflexão. Deixemos a nossa consciência de cidadãos empenhados falar. E, finalmente, ousemos agir! Porque, tão simplesmente, dizia Agostinho em A Doutrina Cristã, «… a tudo isto se poderá chegar gradualmente pelo esforço fraterno de todos.»

Pelo que se sabe e vai sabendo da sua vida, não restam dúvidas de que Agostinho da Silva foi um homem bom. E os iguais identificam-se, vendo-se nos outros reflectidos. E Pedro Martins viu-se nele espelhado. E a obra nasceu, para nosso júbilo. Intitulou-a de A Liberdade Guiando o Povo, uma Aproximação a Agostinho da Silva. Ei-la, para nossa reflexão e intelectual prazer.

Obrigada a todos, OBRIGADA, Pedro Martins!                                                            

 

Sampaio, Sesimbra, aos 14 de Maio de 2016,

 

 

REFERÊNCIAS

MONTAIGNE, Três Ensaios – Do Professorado –Da Educação das Crianças – Da Arte de Discutir. Tradução de Agostinho da Silva. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1933

SILVA, Agostinho da, Considerações e outros Textos. Lisboa, Assírio & Alvim, 2.ª ed., 1989

MATTOS [e Silva], João Rodrigo, “Velho Mestre Menino”. In: Agostinho, AA.VV., coord. Rodrigo Leal Rodrigues, Academia Lusíada de Ciências, Letras e Artes, São Paulo: Editora Green Forest do Brasil, 2000.

SILVA, Agostinho da, Caderno de Lembranças. Corroios, Zéfiro, 2006

MARTINS, Pedro e MARQUES, António Reis, Agostinho da Silva em Sesimbra. s/l (Setúbal), Centro de Estudos Bocageanos, 2014

MARTINS, Pedro, A Liberdade Guiando o Povo – Uma Aproximação a Agostinho da Silva. Sintra, Zéfiro, 2016

 

Lista dos 100 maiores portugueses

(eleição em 25 de Março de 2007)

 

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Os_Grandes_Portugueses [consulta em 21-04-2013]

 

1. António de Oliveira Salazar (1889-1970) - presidente do conselho de ministros

2. Álvaro Cunhal (1913-2005) - líder comunista

3. Aristides de Sousa Mendes (1885-1954) - diplomata

4. D. Afonso Henriques (1111-1185) - primeiro rei de Portugal

5. Luís de Camões (1524-1580) - poeta épico e lírico

6. D. João II (1455-1495) - 13º rei de Portugal

7. Infante D. Henrique (1394-1460) - impulsionador dos descobrimentos

8. Fernando Pessoa (1888-1935) - poeta modernista e escritor

9. Marquês de Pombal (1699-1782) - ministro do Reino

10. Vasco da Gama (1469-1524) - navegador

11. Salgueiro Maia (1944-1992) - militar, capitão de Abril

12. Mário Soares (1924-) - político

13. Santo António (1195-1231) - religioso

14. Amália Rodrigues (1920-1999) - fadista

15. Eusébio (1942-2014) - futebolista

16. Sá Carneiro (1934-1980) - político

17. Pinto da Costa (1937-) - dirigente desportivo

18. Nuno Álvares Pereira (1360-1431) - militar

19. João Almeida (1628-1691) - missionário

20. José Mourinho (1963-) - treinador de futebol

21. Agostinho da Silva (1906-1994) - filósofo

22. Eça de Queirós (1845-1900) - escritor

23. Egas Moniz (1874-1955) - médico, investigador

24. D. Dinis (1261-1325) - Rei

25. Fernando Nobre (1951-) - Fundador da AMI, médico

26. José Hermano Saraiva (1919-2012) - historiador

27. Cavaco Silva (1939) - político, professor, presidente da República

28. Humberto Delgado (1906-1965) - militar, político

29. Zeca Afonso (1929-1987) - cantor, compositor

30. Luís Figo (1972) - futebolista

31. Marcello Caetano (1906-1980) - político, professor

32. Pedro Nunes (1502-1578) - matemático, cosmógrafo

33. Padre António Vieira (1608-1697) - religioso, escritor, pregador

34. Florbela Espanca (1894-1930) - poeta

35. Fernão de Magalhães (c.1480-1521) - navegador

36. Maria de Lurdes Pintasilgo (1930-2004) - política

37. D. João I (1357-1433) - rei

38. Sophia de Mello Breyner (1919-2004) - escritora

39. Antónia Ferreira, "Ferreirinha" (1811-1896) - empresária

40. Padre Américo (1887-1953) - religioso, filantropo

41. António Damásio (1944) - cientista

42. Afonso de Albuquerque (1462-1515) - político, militar

43. D. Manuel I (1469-1521) - rei

44. José Saramago (1922-2010) - escritor

45. Rainha Santa Isabel (1274-1336) - rainha

46. Catarina Eufémia (1928-1954) - trabalhadora rural

47. Carlos Paredes (1925-2004) - compositor, intérprete, guitarrista

48. José Sócrates (1957-) - político

49. Pedro Álvares Cabral (1467-1520) - navegador

50. Ruy de Carvalho (1927-) – actor

51. Padeira de Aljubarrota (século XIV/XV) - padeira, heroína

52. Alberto João Jardim (1943-) - político

53. Almada Negreiros (1893-1970) - pintor, escritor

54. Vasco Gonçalves (1921-2005) - militar, político

55. Álvaro Siza Vieira (1933-) - arquitectura

56. Belmiro de Azevedo (1938-) - empresário

57. Sousa Martins (1843-1897) - médico

58. Maria do Carmo Seabra (1955-) - política

59. Pe António Vieira (1580-1634) - missionário, explorador

60. D. Carlos I (1863-1908) - rei

61. Mariza (1973) - fadista

62. D. Leonor de Viseu (1458-1525) - rainha

63. Rosa Mota (1958-) - atleta

64. António Teixeira Rebelo (1748-1825) - militar

65. D. Afonso III (1210-1279) - rei

66. Vítor Baía (1969-) - futebolista

67. Bartolomeu Dias (c.1450-1500) - navegador

68. Otelo Saraiva de Carvalho (1936) - militar, político

69. Cristiano Ronaldo (1985) - jogador de futebol

70. Herman José (1954) - humorista

71. D. Maria II (1819-1853) - rainha

72. Carlos Lopes (1947-) - atleta

73. Afonso Costa (1871-1937) - político

74. Fontes Pereira de Melo (1819-1887) - político

75. Gago Coutinho (1869-1959) - aviador, historiador, geógrafo

76. Ricardo Araújo Pereira (1974-) - humorista

77. Manuel Sobrinho Simões (1947-) - médico, investigador

78. Bocage (1765-1805) - escritor

79. Hélio Pestana (1985-) - actor

80. Jorge Sampaio (1939-) - político

81. António Champalimaud (1918-2004) - empresário

82. António Lobo Antunes (1942-) - escritor

83. Gil Vicente (c.1465-c.1536) - dramaturgo

84. Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) - pintora

85. Miguel Torga (1907-1995) - escritor

86. Natália Correia (1923-1993) - escritora, poetisa, política

87. Edgar Cardoso (1913-2000) - engenheiro

88. Fernão Mendes Pinto (c.1510-1583) - escritor, explorador

89. Irmã Lúcia (1907-2005) - religiosa

90. Alfredo da Silva (1871-1942) - industrial

91. Pedro Hispano (c.1205-1277) - religioso, Papa

92. Damião de Góis (1502-1574) - humanista

93. D. João IV (1604-1656) - rei

94. Joaquim Agostinho (1943-1984) - ciclista

95. Adelaide Cabete (1867-1935) - médica

96. Almeida Garrett (1799-1854) - escritor

97. António Gentil Martins (1930) - médico

98. António Variações (1944-1984) - cantor, compositor

99. Paula Rego (1935) - pintora

100. Maria João Pires (1944) – pianista

O político António de Oliveira Salazar, Presidente do Conselho de Ministros por mais de 40 anos, foi o vencedor, com 41% dos votos.



  1. Em total discordância com o «discipulato», e em suma concordância com a tese defendida por AS e propalada pela voz de seu heterónimo José Kertchy Navarro, de que são seus discípulos, se alguns tem, os que estão contra si.

 

[2] Desde 1981 que, para fazer face ao desgaste, foi a peça mandada fundir em bronze.

[3] Escuso-me a apresentar o que quer que seja de dado biográfico para sustentar esta afirmação, tautológica que seria perante tão selecta e douta assistência. Em conversa informal, à roda de um chá ou de um café, sem qualquer constrangimento de tempo ou de qualquer outra sorte, poderemos todos exemplificar multimodamente a asserção que acabei de fazer. As histórias ilustrativas são quase que infinitas. E saborosas.

 

UNIVERSO TÉLMICO. 37

21-05-2016 19:51

Um Lisboeta chamado Isaac Abravanel[1]

António Carlos Carvalho

 

Há sempre um elemento de surpresa nos textos de António Telmo, algo que nos obriga a voltar atrás e a reler, para verificarmos se lemos realmente bem...

No caso desta comédia satírica (em que se dizem coisas muito sérias), a primeira surpresa é a de ver a questão dos Painéis de Nuno Gonçalves tratada nestes termos, quando desde o início sempre foi, e continua a ser, encarada como tema da maior gravidade e seriedade, ao ponto de ter havido mesmo quem pusesse a vida em jogo nessa polémica sem fim.

A segunda e maior surpresa é verificarmos que António Telmo – que já na História Secreta lembrava que está por fazer uma interpretação dos Painéis que, mais atenta às funções das personagens do que à identificação dos indivíduos ali retratados, mais perscrutadora do simbolizado do que do símbolo, fosse capaz de os dar como uma das cifras fundamentais da História de Portugal – chama agora à boca de cena duas personagens realmente essenciais, mas pouco referenciadas nesta questão dos Painéis:

D. Afonso V e Isaac Abravanel, o rei infeliz e o pensador sempre condenado ao exílio;

D. Afonso V apresentado como «último rei de Portugal» e discípulo de Abravanel «na sublime ciência da Cabala».

E são estes dois sublinhados que mais nos surpreendem: vermos que António Telmo considera «o Africano» como o derradeiro monarca – sendo o 12.º rei, encerra um ciclo perfeito – e o que realça nele é a busca da sabedoria. O que obriga a olhar para o corpo das suas armas pessoais (um rodízio aspergindo gotas, mas gotas de quê...?) com outros olhos, mais profundos.

Na peça, Isaac Abravanel queixa-se de que «tudo têm feito para apagar a minha figura dos Painéis. Ninguém tem querido ver em mim o Judeu... com a Torá aberta nas minhas mãos». E, no entanto, «Portugal era para nós o novo Israel » – estas palavras que Telmo coloca na boca de Isaac Abravanel constituem certamente uma alusão ao plano original da História Secreta de Portugal enquanto História de Portugal-Israel incluído em A Terra Prometida, volume I das Obras Completas de António Telmo, páginas 91 a 93.

E Abravanel também se poderia queixar do completo esquecimento a que o seu próprio nome foi votado na cidade, Lisboa, que o viu nascer em 1437.

Conselheiro de reis, cortesão e financeiro de casas reais, erudito enciclopédico, pensador filosófico, exegeta bíblico notável, escritor brilhante, diplomata incansável, último porta-voz dos judeus portugueses e europeus na Idade Média, mas igualmente construtor de pontes para a era seguinte, a do Renascimento, Isaac Abravanel foi ainda o «pai» dos movimentos messiânicos dos séculos XVI e XVII, tanto no mundo judaico como no universo cristão.

Por essas e por muito boas outras razões chamaram-lhe «a grande águia», «um homem de Deus», «tão sábio como Daniel», «uma fortaleza e um escudo para o seu povo», «aquele que salvou os oprimidos das mãos dos seus inimigos».

Figura de verdadeira estatura internacional, exerceu uma profunda e duradoura influência no próprio mundo cristão. Entre a Reforma e o Iluminismo, nenhum outro autor gozou de maior fama ou suscitou maior discussão – lembra-nos o seu principal biógrafo, Benzion Netanyahu, em Dom Isaac Abravanel – Estadista e Filósofo, 1953 (Edições Tenacitas, 2013).

Durante mais de 200 anos, os pensadores cristãos debateram os seus argumentos e viram nele uma fonte de inspiração. E ainda hoje, quem se interessar pela exegese bíblica ou pelo pensamento filosófico «tropeça» constantemente no seu nome e nas citações das suas obras. (Além da biografia de Netanyahu, com várias reedições, podemos ler Isaac Abravanel – La mémoire et l’espérance, de Jean-Christophe Attias, 1992, ed. Cerf; Isaac Abravanel – Conseiller des princes et philosophe, de Roland Goetschel, 1996, ed. Albin Michel; Two Portuguese Exiles in Castille, de Elias Lipiner, 1997, ed. Magnus Press; ou, entre nós, A Filosofia Hebraico-Portuguesa, de Pinharanda Gomes, 1981, ed. Lello; História do Pensamento Filosófico Português, volume II, 2001, ed. Caminho; além de Don Isaac Abravanel, Almoxarife e Rabi-Mor de Portugal, de Amílcar Paulo, 1972.)

Isaac ben Judah Abravanel nasceu em Lisboa, em 1437 – o mesmo ano da morte de D. Duarte –, no seio de uma família ilustre de judeus peninsulares. O pai, D. Judah, fora financeiro do Infante D. Fernando; o avô, D. Samuel, fora cortesão de três reis de Castela; o bisavô, D. Judah (um nome próprio constantemente repetido na linhagem familiar), fora tesoureiro de Fernando IV em Sevilha e almoxarife-mor de Castela. A família Abravanel dizia ser descendente do rei David, da casa real de Judá, tendo vindo para a Península logo após a destruição do primeiro Templo. Em 1378, quando Sevilha assistiu ao início de uma campanha de perseguição dos judeus, os Abravanel começaram a pensar que se deviam instalar em Portugal, o que fizeram a seguir à batalha de Aljubarrota. No início do século XV, a família Abravanel tem já um papel activo no comércio do país, resistindo a alguns sinais esporádicos de intolerância religiosa por parte do povo e do clero, no tempo de D. Duarte e mesmo já no reinado de D. Afonso V. Quando Isaac tem 12 anos, em 1449, regista-se o primeiro motim da multidão fanatizada, que ataca as três judiarias de Lisboa e só recua porque elas se encontravam fortificadas e defendidas. D. Afonso V, que se encontrava então em Évora, foi obrigado a regressar rapidamente a Lisboa e a enfrentar a revolta com medidas fortes e condenações severas dos amotinados. Este rei tentou sempre proteger os judeus portugueses contra o clima adverso das próprias Cortes. Aliás, manifestou uma grande curiosidade pelos judeus, dos quais dizia estarem destinados a receber recompensa divina «porque os seus motivos religiosos são puros».

Este soberano notável, que Isaac Abravanel descreveu como «justo e íntegro, vigoroso e heróico, numa busca ardente do bem-estar do povo, culto e sensato», foi também um patrono das letras e até colecionador de livros – segundo o cronista Rui de Pina, foi o primeiro no seu reino a coleccionar bons livros e tinha uma biblioteca no palácio real.

O jovem Isaac estudou Latim e Grego, a Escolástica e os Padres da Igreja, Filosofia, Medicina e Astrologia, além de ter recebido a sua formação judaica junto de Isaac Aboab e de Joseph ben Shem Tov.

O seu primeiro texto filosófico é dedicado às «formas dos elementos»; o segundo livro, A Coroa dos Anciãos, também escrito em Lisboa por volta de 1465, aborda já o conceito de Deus e o significado da profecia e nele exprime a sua admiração pela Kabbalah e pelos kabbalistas, a quem chama «portadores da verdade».

Mas é igualmente obrigado a seguir as pisadas do avô e do pai, tornando-se então um financeiro muito eficiente e o conselheiro de maior confiança de D. Afonso V. Por outro lado, em 1472, passa a ser o líder natural da comunidade de judeus portugueses, cujos interesses representa na corte. E assim se vai delineando o que será o dualismo constante da sua vida: por um lado, as obrigações dos negócios e das finanças públicas; por outro, as devoções pessoais, a escrita, a reflexão filosófica, o comentário bíblico, sobretudo o dos textos proféticos.

Em 1471, após a conquista de Arzila, cerca de 250 judeus locais são feitos escravos e trazidos para Portugal. Isaac Abravanel toma a seu cargo a missão de os devolver novamente à condição de homens livres: durante seis meses, faz tudo para conseguir a sua libertação.

Entretanto, nascem os seus filhos Judah (1460), o futuro Leão Hebreu; Joseph (1470) e Samuel (1473), além de duas filhas. A sua casa de Lisboa é o centro de grandes debates intelectuais: tal como virá a escrever no seu comentário de Josué, «Habitava então tranquilamente a casa que herdara de meus pais na cidade tão formosa de Lisboa (...). Era a minha casa o centro onde se reuniam homens doutos e prudentes. Via-me respeitado nos paços de D. Afonso V, um soberano poderoso e justo, que durante o seu reinado fez prosperar e conservou a liberdade aos judeus. Mantinha-me sempre ao seu lado, era o seu auxiliar e livremente entrava nos seus paços e saía deles.»

Contudo, tudo isso acabou em Agosto de 1481: D. Afonso V morreu com 49 anos e com ele morreu também uma época para Isaac Abravanel e para os judeus portugueses. Subiu ao trono D. João II, com a sua fúria centralizadora virada contra a casa de Bragança, que sempre apoiara a família Abravanel. Isaac viu-se subitamente envolvido numa suposta conspiração da nobreza contra o rei; perseguido, atravessou a fronteira para Castela e instalou-se perto de Badajoz, numa localidade onde viviam umas 300 famílias judaicas, e escreveu ao rei invocando a sua inocência. Em vão. Dois anos depois são publicadas sentenças de morte contra ele e Joseph, seu sobrinho e genro. Conclui então que a ira divina caiu sobre ele por se ter dedicado tanto à busca de valores temporais, negligenciando o lado melhor do seu ser. No exílio, entrega-se mais ao estudo dos profetas, de Josué e dos Juízes, completando os seus comentários sobre Josué, Juízes e Samuel: em quatro meses e meio, escreve quatro grandes volumes, num total de mais de 400 mil palavras. E reflecte sobre a História e a Política à luz da experiência reflectida na Bíblia e, também, face à sua própria experiência pessoal vivida na pátria.

A partir de 1485 instala-se em Alcalá de Henares, tratando das rendas do cardeal Mendoza e do Infantado. Sete anos depois da fuga para Espanha, tem uma posição semelhante à que tivera em Portugal: em 1491, é o financeiro pessoal da rainha Isabel; em 1492 é o líder não-oficial da comunidade judaica espanhola.

Mas 1492 é também o ano da expulsão dos judeus de Espanha: Isaac tenta interceder junto dos reis chamados «católicos» para que o decreto não seja aplicado. Sem sucesso.

E a família Abravanel parte para o segundo exílio, no reino de Nápoles, onde mais uma vez Isaac consegue uma importante posição junto do rei. É em Nápoles que completa o comentário dos dois Livros dos Reis, incorporando reflexões sobre o exílio espanhol. Interroga-se: o mundo será governado por algum princípio moral? Haverá recompensa para a virtude e castigo para o mal? Deus estará realmente presente neste mundo? Em resposta escreve Justiça Eterna, mostrando as maneiras pelas quais a justiça se revela neste mundo, e ainda Princípios de Fé A atmosfera intelectual de Nápoles ajuda-o a curar em parte as feridas do exílio. Mas o rei Ferrante morre em 1494, os franceses invadem a Itália e Isaac Abravanel acompanha o novo rei, Afonso, para Mazzara, na Sicília, enquanto em Nápoles o bairro judaico é saqueado, incluindo a sua casa: perde bens, a maior parte da biblioteca e o próprio manuscrito de Justiça Eterna. Isaac ainda vai com o rei para Palermo e depois instala-se em Corfu – onde encontra muitos outros exilados e, sobretudo, recupera aí o manuscrito do seu comentário inacabado do Deuteronómio, perdido durante a fuga de Portugal.

Ainda em Corfu, completa os comentários dos profetas maiores e inicia um novo livro, Os Dias do Mundo, em que apresenta a sua visão da História de Israel em relação com a História universal e demonstra a eternidade do povo judaico.

De Corfu segue então para Monopoli, um porto do Adriático entre Brindisi e Bari; no ano seguinte completa aí o comentário do Deuteronómio. Pela primeira vez, sente-se aliviado da pressão dos deveres políticos e sociais – mas, ainda que tenha apenas 58 anos, sente-se igualmente velho, enfraquecido, abandonado. E começa a perder a visão: tem cada vez mais dificuldade em escrever, alguns anos depois passará a ditar os seus textos a um escriba.

Em 1497 escreve Fontes da Salvação, o primeiro volume da sua trilogia messiânica, em que profetiza o rumo futuro do mundo e indica o ano de 1503 como data provável do início da redenção; seguem-se Os Anúncios Salvadores do seu Ungido e Anunciador da Salvação, segundo e terceiro volumes da trilogia que Netanyahu considerou a maior obra alguma vez composta, até então, sobre a questão messiânica.

Em 1498, escreve Céus Novos, comentário do Guia dos Perplexos, de Maimónides, e completa o comentário dos profetas menores.

Em 1503, o tal ano em que previra o início da redenção do mundo, instala-se em Veneza: a última etapa da sua vida errante de exilado. Aí oferece os seus serviços ao Conselho dos Dez como moderador entre a República e Portugal na negociação de um tratado de comércio das especiarias; as negociações falham e mais uma vez Isaac regressa à escrita: completa o comentário sobre os últimos profetas e termina o comentário do Pentateuco, que considerou a primeira das suas obras: «nela investi todo o meu pensamento e todo o meu conhecimento.»

Isaac Abravanel morreu em Novembro de 1508, com 71 anos. Foi sepultado em Pádua, porque Veneza não permitia que se enterrassem judeus no seu território.

O principal biógrafo de Abravanel, examinando essa vida atribulada mas tão rica de feitos e de obras, assinalou que Isaac Abravanel, como pensador, foi um místico; como líder judaico, foi simultaneamente realista e místico; perdeu a batalha prática da defesa do seu povo, é verdade, mas ganhou o combate pela alma desse mesmo povo. A sua tarefa histórica foi a de dar nova vida à auto-confiança judaica e restaurar a esperança na redenção. Enquanto pensador messiânico, entrou na discussão do quinto reino ou quinto Império, tal como se apresenta na profecia de Daniel, afirmando que, antes desse império final, o quarto, o de Roma, seria destruido por divisão interna e pelo confronto entre o Cristianismo e o Islão.

Falando de si próprio, disse sempre que não era um kabbalista (como foi o filho, Judah) mas aceitou os métodos kabbalísticos, que praticou nos seus escritos, e manifestou uma grande admiração pelos antigos mestres dessa ciência ou arte, os tais que tinham respostas para todos os mistérios do mundo.

Duas notas finais:

Agora que se anuncia a criação em Lisboa de um museu judaico, seria da mais elementar justiça que lhe dessem o nome de Isaac Abravanel – tal como Tomar tem um museu com o nome de Abraham Zacuto (que nem sequer era de lá...), Lisboa prestaria assim as devidas, ainda que tardias, homenagens a um lisboeta ilustre.

«Em tudo, nos seus êxitos e nos seus fracassos, no seu trabalho de comentador e de criador, no seu sofrimento e na sua glória, Isaac Abravanel foi, mesmo quando disso nos esquecemos, um judeu de Portugal» (João Vila-Chã, em «História do Pensamento Filosófico Português»).

Assim foi, assim é e assim será, por muito que doa a alguns.

António Telmo tinha absoluta noção dessa verdade.

 



[1] Posfácio a Contos Secretos seguidos de A Goga, V Volume das Obras Completas de António Telmo (no prelo).

 

INÉDITOS. 61

15-05-2016 15:52

Sobre A Goga

 

Goga é o termo grego para o italiano Duce e para o alemão Führer. A palavra, pela repetição da gutural, é a repetição de um estado peculiar da alma bem conhecido, muito frequente nas pessoas que o destino, a ambição e a vaidade, e também a incompetência, elevaram a cargos de chefia. Na Comédia do Ensino de que o leitor acabou, se leu, a primeira parte, a Goga é a personificação da pedagogia, tropo que atrairá a censura de quem vê na condução da criança para a escola (é este o significado exacto da palavra pedagogia) a suprema virtude do Estado. Se a palavra pedofilia (amor pela criança) não tivesse sido posta a correr com o sentido de pederasta, diria que os pedófilos são os educadores, os que conduzem da escola para o mundo e para a vida as crianças que o pedagogo traz para dentro das quatro paredes de uma escola. Não são jogos de palavras, mais ou menos inofensivos, que ponho aqui. A linguística tem vindo a demonstrar cientificamente uma doutrina filha da intuição dos antigos, a de que o poder de transformação das sociedades se exerce através das palavras. Poem-se a correr termos em vez dos termos correntes, pela substituição, que parece deixar tudo na mesma, alterando os significados e as relações de conceitos. Como só se pensa com palavras, a sociedade que recebe e acolhe a substituição, adopta aquelas novas relações como as verdadeiras.

Um dos exemplos disto é a troca de pederasta por pedófilo. Como o amor pela criança é uma virtude, o conteúdo sordidamente sexual da nova palavra insinua-se revestido de ares aprazíveis. Outro exemplo, bem actual, é o da substituição da distinção homens–mulheres pela de homossexuais e heterossexuais. Como cada homem pode ser homossexual e heterossexual, e também cada mulher, ninguém já se caracteriza por ser um ou outro, a antiga e natural distinção anula-se porque homens e mulheres agrupam-se na classe dos homossexuais, homens e mulheres agrupam-se na classe dos heterossexuais. Assim se torna justificado o direito à pederastia, ao homossexualismo.

O comediógrafo usa de análogo processo, não com a finalidade naqueles exemplos apontada de integrar na sociedade e de valorizar os que, por este ou aquele motivo, se desviaram do “natural”, mas com outra, essa cheia de malícia e de maldade, que é a de ridicularizar os que pretendem como a Goga construir uma sociedade, mais justa e mais livre, sem diferenças e em que cada um faça o que quiser, com a condição de não poder fazer, como é lógico, o que o torna diferente dos outros. Sou livre, para a Goga, de fazer tudo o que me torna igual aos outros, vou preso quando reconheço aos outros o mesmo direito.

A maldade do comediógrafo começa logo, usando o tal processo, pela escolha da palavra Goga. Insinuam-se subtilmente uma sugestão de gaguez e, ao mesmo tempo, de desequilíbrio interior, de descontinuidade psíquica a acompanhar a diferença física das duas pernas e a arritmia do andar. A alternância do ô da primeira sílaba e do a da segunda insinua estes desequilíbrios. Mas a força da Führer está na gutural, reside na garganta, como se vê pelos dois gês de ambas as palavras.

 

António Telmo

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