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INÉDITOS. 64

30-09-2016 21:52

Do segredo[1]

 

Não deixa de ser cómico que chegue aos anos finais da minha vida, depois de ter percorrido um longo périplo cheio de perspectivas extraordinárias, e me encontre exactamente na mesma situação dos anos em que comecei a pensar. Parece que, ao desviar-me da orientação inicial, que, em breve, direi qual tenha sido, nada adiantei. É, em certo sentido, como se tivesse perdido o tempo de vida. Noutro sentido, porém, regresso mais senhor. Vejo que a minha alma esteve à espera de mim meio século naquele lugar inamovível que é o lugar da tradição, do passado e da sabedoria antiquíssima e que, apesar de ser muito solicitada durante a minha ausência, não quis unir-se a outro espírito.

Essa orientação inicial era a do estudo e aprofundamento dos mistérios da religião em que fui educado, a religião católica. Como muitos outros no meu caso, verifiquei a impossibilidade de seguir um clero que dava suficientes sinais de corrupção e de degradação para que nele pudéssemos confiar. Em vez de um sacerdócio, capaz de nos conduzir ao Santo dos Santos de uma misteriosa sabedoria, julgava encontrar vulgares professores de moral, dominados pelos vários complexos que Freud denuncia, que traziam para a prática religiosa a obsessão do sexo, procurando impedir que em cada um de nós, o impulso natural do amor tivesse consciência da sua essência sobrenatural. Quando os interrogava sobre os mistérios do Génesis, do Verbo e do Apocalipse deparava com um frio desinteresse que me gelava. Na verdade, a autoridade eclesiástica opunha à minha ardente indagação uma barreira, por saber muito bem talvez o perigo que há em tentar franquear certos limites.

Deixei de frequentar a Igreja muito cedo, aos catorze anos. Esta é a idade em que, segundo a convicção comum, se perde a inocência original e se fica sujeito, com o eclodir carnal do sexo, às tentações do espírito do mal. Segundo outra concepção, que é a da Kabala e que forma a base das doutrinas de Freud, o espírito imundo habita sozinho o homem desde o nascimento até à puberdade. Só com a conversão da libido num poder criador natural o rapaz se torna capaz de pureza. Desce sobre ele o Anjo das Alturas. Aos catorze anos pode enfim estudar a Bíblia. O amor natural é o próprio princípio do conhecimento sobrenatural. Também a Igreja Católica que prolonga e completa a Igreja judaica consagra o matrimónio, considera-o um sacramento ou um mistério, não amaldiçoa o amor sexual.

Dos catorze aos vinte e um anos, primeiro por notícias vindas de longe, depois directamente, tive a felicidade de receber o ensino do filósofo ocultista conhecido no mundo literário pelo nome de Álvaro Ribeiro. A Arte de Filosofar, preparada pelos três livros que a precederam, é já uma meditação clara dos mistérios da religião católica. Não podia ter encontrado melhor guia para a minha ânsia de saber. Dizia-se que ele possuía o conhecimento de terríveis segredos aprendidos na maçonaria. À volta dos homens de génio forma-se sempre uma aura de pavor que torna mais prestigiosa a luz que trazem consigo. Os mais íntimos dificilmente podem chegar a decidir se tratam com um santo ou com um demónio. Este duplo aspecto dos homens superiores, que acompanha tudo quanto participa do divino, explica a atracção e a repulsa que exercem sobre os seus contemporâneos. Assim se exprime no pequeno como no grande a essência do sagrado.

Na verdade Álvaro Ribeiro era apenas um investigador de filosofia. Tinha passado pelas lojas maçónicas onde não há segredo nenhum senão o que consiste em dizer-se que há um que nunca ninguém soube qual fosse. Um grupo de homens está reunido em nome de um segredo que nenhum deles sabe qual seja, que não existe, mas que todos supõem que existe. Sem isso não se sentiriam estimulados a investigar e a ciência seria uma palavra vã. Há um conto de Barbey d’Aurevilly, Um Jantar de Ateus, em que o único sacerdote que participa no convívio, na intervenção oratória que lhe coube, declara que vai revelar o segredo da Igreja. Todos seguem cheios de expectativa e emoção crescentes as palavras do seu discurso, que por fim atinge a catástrofe: “Meus senhores, o segredo da Igreja é este: a Igreja não acredita em Deus.” A Igreja sabe que Deus não existe, mas é através dela que adoramos Deus. Deus existe porque o adoramos. Essa é, segundo Barbey d’Aurevilly, a missão da Igreja. E, ao fim e ao cabo, só Deus sabe se vivemos ou não uma ilusão. Do mesmo modo, a natureza do segredo é a sua não existência, porque se existisse já não era segredo.  

 

António Telmo

 


[1] Título da responsabilidade do editor.

 

UNIVERSO TÉLMICO. 43

22-09-2016 09:22

Bocage visto por Agostinho da Silva

Pedro Martins

 

Agostinho da Silva não gostaria muito do século XVIII português. Pelo menos, não parece ter-lhe atribuído papel de relevo, à vista do que se (não) lê em Reflexão à margem da Literatura Portuguesa. O caso não é de somenos, por se tratar de um título axial na sua obra. Publicado em 1957, no Brasil, este livro, dos mais celebrados e representativos do autor, toma o texto literário, submetido ao crivo da filologia, como pretexto para o alto voo especulativo da filosofia. Neste caso, da filosofia da história, em que Portugal e o Brasil, na sua visão profética, ocupam lugar destacado como guias da Humanidade, segundo o providencialismo messiânico que adoptou.

Num salto gigantesco, do capítulo VIII para o capítulo IX da Reflexão, Garrett e Herculano rendem, à boca de cena, o Padre António Vieira. O século das Luzes é simplesmente apagado por Agostinho, que já no começo do livro se escusara abertamente a «tomar parte na polémica que opôs, por exemplo, Verney e a gente do anti-Novo Método». Deste modo, ficamos sem saber, pelo menos em face daquela que, para o nosso fim, seria a mais evidente e privilegiada das suas fontes, o que pensou do século em que Bocage nasceu e, sobretudo, da época em que este viveu.

A omissão é difícil de compreender, por dar a entender que durante esses cem anos, marcados por profundas mudanças na arte, na literatura e na ciência, e que foram também os do aparecimento da Maçonaria especulativa e da eclosão das grandes revoluções, na América e em França, nada de novo, ou de importante, se passou em Portugal.

Tão insólita clareira não nos deve fazer perder de vista a floresta da sua obra. Como se calcula, apesar daquele silêncio, por mais de uma vez se debruçou Agostinho sobre Bocage, fosse em referências pontuais ou de modo exclusivo. Traremos à colação três escritos, aliás muito distintos, onde isso sucede, mas admitimos que a pesquisa não tenha sido exaustiva. Por outro lado, e por pouco que tenha dito sobre o século XVIII, deixou o filósofo, em artigos ocasionais, indicações precisas quanto ao juízo global que sobre ele formava. Consideraremos dois distando entre si quatro décadas. Um respeita à Marquesa de Alorna, o outro a José Anastácio da Cunha. Em ambos os casos, trata-se de contemporâneos de Bocage, florescendo na segunda metade da centúria. Mas Alcipe, a filintista, é também a amiga, a admiradora, a protectora. É por eles que vamos iniciar o nosso percurso, pois a sua análise projecta clareza sobre a colossal estranheza que o apagão das Luzes justamente nos suscitou.

“A propósito de A Marquesa de Alorna” foi publicado n’O Comércio do Porto em 24 de Agosto de 1930. É a apreciação crítica de um livro de Hernâni Cidade, que então saíra a lume. Agostinho da Silva era ainda um jovem de 24 anos, mas já se havia doutorado, no ano anterior, com o “Maior Louvor”, em Filologia Clássica, com uma dissertação sobre o Sentido Histórica das Civilizações Clássicas, na Faculdade de Letras do Porto, onde Cidade era professor. Pese embora o incidente que, anos antes, Agostinho, enquanto aluno, com ele tivera naquela escola, a ponto de mudar do curso de Filologia Românica para o de Filologia Clássica, não há sombra de mácula nesta recensão, muito elogiosa para o futuro biógrafo e editor literário de Bocage. O crítico encarece-lhe a «segurança e honestidade de documentação», «uma real capacidade de compreensão de ideias gerais» e a «elegância» do estilo.

Não foi por acaso que, no início deste escrito de imprensa, Agostinho enalteceu o Ensaio sobre a Crise Mental do Século XVIII do antigo professor, protestando «toda a simpatia e todo o aplauso» ao serviço que vinha «prestando à história da mentalidade portuguesa». Crise, importa lembrar, significa mudança. E o ponto é nevrálgico: dir-se-ia que o filósofo, ao século XVIII português, o sofre tão pouco, que, a dele ter que se ocupar, o que, ao longo de toda a sua obra, parece não querer, só deseja que acabe, e depressa – e com ele o que já vinha de longe: o Antigo Regime, sinónimo de absolutismo e despotismo, palavras sem curso legal num coração indómito. Daí que, analisando a monografia sobre D. Leonor de Almeida, considere «particularmente interessantes as páginas em se alude às suas discussões epistolares com o pai: são bem como as resumiu Hernâni Cidade, a luta entre a Autoridade do século moribundo e a Liberdade individual do «mundo que nasce». E, logo a seguir, concretiza: «A Marquesa mesmo, nas suas contradições, de poesia e de acção, é bem uma figura desse período que marca a passagem do velho para o novo e nem de todo se revoltou contra as coisas tradicionais, nem de todo as defende.»

Na segunda parte da recensão, em que, de modo consequente, começa por valorizar «a reabilitação do romantismo» que Cidade vinha desenvolvendo e por afirmar que «a parte mais segura do livro é aquela em que se estuda o prenúncio do romantismo na obra da Marquesa», o crítico literário abraça a teoria da literatura e, abstraindo-se das páginas sujeitas ao seu juízo, ensaia antagónica distinção entre classicismo e romantismo, tomando partido por este último movimento.

Vale a pena transcrever o longo parágrafo onde caracteriza o classicismo. Por ele se entende melhor a sua aversão – mormente em Reflexão, dado o fundamento literário desta – ao século XVIII português. Diz Agostinho:  

 

Na verdade, o classicismo é, acima de tudo, uma distância; primeiramente, distância, distância entre o movimento de conceber e o momento de executar; para o autor clássico, pensar a sua obra não é realizá-la: as suas musas não lhe lançam na alma um grande fogo de inspiração, o delírio dionisíaco e criador; são divindades correctas e frias que recomendam o dicionário e impõem a sintaxe. E dois problemas se põem, logo de entrada, para o clássico: o de saber se a sua obra, quanto ao fundo, está dentro das regras, se segue perfeitamente os modelos; depois, o de procurar que a forma seja pura. Pura quer dizer destilada; a língua foi-se privando de vocábulos considerados inaceitáveis, de construções que repugnavam ao gosto clássico – ficou de todo livre de sais e impurezas, mas insignificante: foi toda pensamento e excluiu música.   

  

Diversamente – contrasta o filósofo – «para o romântico, criar é logo realizar: só haverá o acto puramente material de fixação do pensamento; o romântico não tem modelo, nem regra, nem público». E, mais à frente, acrescenta: «Com o romântico, a linguagem não é só vocabular e sintética, lógica, é já também som e melodia, estética.»

É a escolha de um homem livre, inconformista, libertário, contestatário, subversivo, impulsivo, repentista, irrequieto, inquieto, inquietante, indisciplinador, sempre aberto ao sopro invencível do imprevisível que via vindo, voando, nas asas da pomba do Paráclito. Tudo isto, note-se bem, a despeito da excelência da sua formação clássica – e não vai sem ironia que Cidade, involuntariamente, acabasse por lhe dar causa.

A deslocação do barroco para o romantismo imediatamente operada em Reflexão torna-se mais compreensível. O século das Luzes estaria longe de entusiasmar Agostinho, sequer de o interessar. Para mais, o romantismo restituía-lhe traços do barroco: o excesso, a inspiração, a religiosidade, a inquietação...

Pensamento sem música, o classicismo, de um prisma filosófico, irá, porém, emboscá-lo por esses anos, mais recuados, em que assina a recensão. Sob o influxo do racionalismo helénico e cartesiano de António Sérgio, é a época da sua colaboração na Seara Nova e da afirmação do paradigma clássico da ordem racional, como se comprova pelos ciclos textuais recolhidos em Glossas, Considerações ou Diário de Alcestes.

 

Quando, em 20 de Maio de 1971 publica “De José Anastácio” no Diário de Notícias, é já bem diverso o seu ideário. Impõe-se, por isso, que aqui se empreenda, com a maior brevidade, um bosquejo retrospectivo.

Logo no início da década de 40, o seareiro que, até então, privilegiara o binómio da Inteligência e da Vontade na arquitectura da sua ideação, tende a subalternizá-las ao querigma fraterno e caritativo da Doutrina Cristã, não por acaso o título do folheto que, em 1943, o conduz ao cárcere do Aljube. No mesmo ano, Agostinho publica Vida de Lamennais, obra da maior importância na formação orgânica do seu pensamento. Ainda não se lhe deu toda a atenção que lhe é devida, pois inspira grandemente o socialismo cristão que, naquela época, é já o do filósofo. Tal como Bocage, Lamennais, esse sacerdote filho da Revolução Francesa que abraça o liberalismo político e clama por justiça social, protagoniza «a passagem do velho para o novo» que o seu biógrafo português surpreendera já na Marquesa de Alorna. Cada qual a seu modo, numa paleta de matizes e contrastes.

O período que em 1944 se abre com a ida de Agostinho para a América do Sul denota, no certeiro dizer de Miguel Real, uma «espiritualização das suas teses», a que não será alheia a sua aproximação ao catolicismo, patente em Reflexão, As Aproximações ou Só Ajustamentos. Essa espiritualização ocorre, também, por força do que poderíamos chamar a nacionalização do seu pensamento. Quase se pode dizer que, no Brasil, Agostinho, exilado voluntário, descobre Portugal, aquele que, na Europa, jamais encontrara. Com Pessoa, sobretudo o de Mensagem, que o entusiasma, logo na década de 40, em São Paulo, Camões e Vieira constituirão o cerne profético do seu cânone. E se a Paraíba lhe revela, surpreendente, a sobrevivência do sebastianismo entre os caboclos do sertão, Santa Catarina e a Baía oferecem-lhe depois o ritual e a simbólica do culto popular do Espírito Santo que, não sem equívocos, passará a definir o núcleo central donde, doravante, fará irradiar a sua ideação.

O Agostinho que, em 1971, escreve sobre José Anastácio da Cunha subira, porém, uma oitava. No Brasil, fora sobretudo um católico entrevendo naquele culto, com que judeus e mouros se congraçavam, o motor de um proselitismo de conversão. Agora, depois da Educação de Portugal, procurava cumprir a catolicidade, profundando-lhe a etimologia pela conciliação ecuménica dos credos, enfim concertados, senão fundidos, pela busca da unidade essente do Espírito, se bem que a este, para lhe chamar Santo, continuasse o pensador a pedir licença.

Pelo meio, permanecera fiel ao Portugal medievo, sobretudo o da primeira dinastia, uno pela fraternidade, mas livre pela autonomia comunitária do municipalismo descentralizador. Com respeito à de Avis, não oculta a sua suspicácia. Deplora o Império transformado em empório; lamenta a encarnação de Maquiavel na pessoa do Príncipe Perfeito; verbera a insinuação antropocêntrica e individualista do Renascimento e da Reforma, de que a Contra-Reforma, que igualmente repele, constitui o reverso. Em tudo isto, Agostinho vislumbra já a formação do Estado moderno, centralizador e absolutista, e, sob a égide de uma civilização de matriz protestante, a emergência do capitalismo, com sua economia de concorrência, tributária de uma ciência que prevê para, através da técnica, dominar, assim se postergando a cooperação entre irmãos. No exacerbamento da Autoridade que suprime o liberalismo político, como no da Liberdade que a degrada e desvirtua em liberalismo económico, em detrimento da Igualdade, encontra o filósofo uma quebra da Fraternidade, termo médio do silogismo que revela, pela superação das antinomias, o que Agostinho essencialmente pensava.

 

A reflexão sobre Anastácio da Cunha, dada em três parágrafos, evidencia, sobretudo, o matemático, mas não esquece o militar, nem o heterodoxo às voltas com o Santo Ofício. A Anastácio lamenta Agostinho a aproximação a Pombal, a quem aponta o fracasso da sua reforma da Universidade por lhe faltado uma real «economia de base», sem deixar de aludir, nas referências ao processo dos Távoras e à rasoura mortífera da Trafaria, ao cruel paroxismo do seu autoritarismo. Assim se compreende que na nota sobre Anastácio, de novo, e por duas vezes, tomado de saudades do futuro, concentre o olhar no proximamente vindouro «século liberal» como, por antonomásia, lhe chamara na Vida de Lammenais. Primeiro, ao alvitrar que melhor fora para o cientista ter ficado na «pequena Valença», onde havia «moças a quem se podiam fazer versos que já adivinhavam os românticos», na que, aqui, fica sendo a única menção ao poeta que Anastácio também foi. Depois, quando, ao duvidar do seu estro científico, hoje assente, pergunta «se a matemática de José Anastácio era de tão grandes inovações que a sua obra se impusesse em países de forte tradição científica e em que a sua disciplina estava prestes aos esplendores do século XIX».

Há, em tudo isto, da parte do filósofo, alguma erronia e injustiça. A injustiça torna-se notória por contradição, porquanto, logo no primeiro parágrafo, sugere que Anastácio foi um génio, pois a sua «inteligência» não era «simples talento». A erronia advém de, porventura, não haver ponderado as reais possibilidades de difusão – através da publicação e da circulação de livros – que a obra do cientista tivera aquém e além-fronteiras.

A explicação para esta agridoce evocação creio eu encontrá-la no facto de Anastácio, matemático e artilheiro, como Agostinho acentua, encarnar, aos olhos deste, uma civilização – a da «Europa da gente loira, ordenadora e filosófica» que estava «para lá dos Pirinéus». O filósofo não acreditava que nela estivessem «a verdadeira cultura e a verdadeira humanidade e o verdadeiro futuro do mundo» – assim escreve no capítulo inaugural de Reflexão, onde, como se viu, tragou de um só hausto o século das Luzes. Mas é afinal o pensamento da Idade Moderna, fundado na matemática e na mecânica, cindindo a antropologia e a cosmologia da teologia, e induzindo, desde Descartes, o dualismo entre o espírito e a matéria em detrimento da tradicional distinção entre corpo, alma e espírito, que Agostinho, para quem «filosofia separada de teologia» era «invenção do diabo», julga e condena na pessoa de José Anastácio da Cunha, de cuja semente, enfim, dirá que não arreigou no solo pátrio por não interessar ao cerne do país. Por isso, entre os motivos que o levam a lamentar-lhe a colaboração com Pombal, encontramos ainda este: o de não ver «para Portugal outro futuro que não fosse atrelar-se à Europa. Entusiasta, tomou como bom o que nada prestava; pois bem cedo o pagou».

Este tópico é precioso. Dá, de um só golpe, a evolução espiritual de Agostinho, por confronto com o artigo sobre A Marquesa de Alorna, onde elogiara a abordagem de Cidade ao «movimento de ideias de alguns anos que contam entre os que mais nos aproximaram da Europa intelectual».

 

São os anos de Bocage. De que modo o vê Agostinho?

O primeiro documento data de 1944. É o Caderno de Informação Cultural sobre Literatura Portuguesa, série Iniciação. Louva-se a nobreza do propósito destas publicações, exíguas na sua concisão didáctica. Daí que o seu teor seja sumário e o estilo despojado.

Ao cabo de página e meia, o século XVIII não sai maltratado do opúsculo. Verney, Ribeiro Sanches, árcades como Quita, Garção e Cruz e Silva, o pré-romântico Tomás António Gonzaga e o satírico Tolentino integram-se numa digressão competente que, se ilumina o neoclassicismo por contraste com o obscuro gongorismo de Seiscentos, subalterniza-lhe o poder das musas: «O movimento, no campo da ciência e da técnica, vingou por algum tempo, embora, por motivos que não eram talvez de plano intelectual, não tivesse lançado raízes bastante profundas. Quanto à literatura, os resultados foram menos brilhantes.»

Fatalmente, Bocage leva a palma. Cito o que é óbvio:

 

É, no entanto, com Bocage (1765-1805), que este pré-romantismo [Agostinho acabara de se referir a Gonzaga] se define melhor; o temperamento exaltado e doentio do poeta, o seu perfeito sentido da musicalidade do verso, a facilidade da improvisação, dão-lhe entre os poetas do século XVIII, um lugar de nítida superioridade. Nem José Anastácio da Cunha (1744-1782), nem a Marquesa de Alorna (1750-1839), nem Filinto Elísio (1734-1819), podem, sequer de longe, competir com Bocage, a quem, no entanto, prejudicaram muito, quer os defeitos da sua personalidade, quer as pressões de vária ordem que sobre ele se exerceram.

 

O trânsito para o século liberal define-se sem surpresa: «Certo é, porém, que apesar de todas as inegáveis qualidades dos escritores do século XVIII, só o movimento romântico vem abrir horizontes novos à literatura portuguesa.»

 

Foi preciso esperar quase três décadas para que Agostinho abordasse Bocage autonomamente. Ainda assim, a sua resolução parece acidental. Não é de crer que sobre Elmano tivesse publicado um artigo no Diário de Notícias, como o fez em 4 de Janeiro de 1973, sob o título “Já Bocage não sou”, se a tanto uma causa próxima, aliás eficientíssima, o não tivesse movido: a publicação da Antologia Poética do sadino que Ester de Lemos organizou para a Colecção Livros RTP. O «poético, sentido, dramático prefácio» da estudiosa tocou-o profundamente: «bem informado, escapa por completo à objectiva secura de tão grande número de especialistas» – acrescentará, depois de concordar com o sentido dado pela autora ao verso com que intitula a recensão: Já Bocage não é o poeta aviltado e desfigurado por uma tradição popular que, além do nome, só conhece anedotas que nunca disse e versos que nunca escreveu. Já Bocage é um dos grandes poetas portugueses, o maior que o seu século viu nascer.

Para Agostinho, «se é bom, para descrever rinocerontes, sê-lo o menos possível, é conveniente ser o mais possível poeta para de poetas se falar». Bocage, recorde-se, granjeou numa só década dois dos maiores: Olavo Bilac, o parnasiano, cuja conferência de São Paulo, em 1917, se tornou um marco miliário; Teixeira de Pascoaes, o saudosista, que lhe dedica páginas esplendorosas n’Os Poetas Lusíadas. Se o brasileiro, vinculado a ditames de escola, lhe exalta, superlativo, a expressão formal, propugnando que lhe restituam, autêntica e inteira, a estatura de um artífice que, enquanto tal, superou Camões, a Pascoaes, numa visão isenta de moralismo, interessa sobretudo a alma do poeta inspirado, «apaixonado por todas as mulheres e por todas as ideias», e «o mágico poder da sua lira sobre as almas e as cousas», anunciando, num clarão de aurora, a nova era da Liberdade.

Agostinho, com laivos de biógrafo, não resiste à comparação com Camões, que Elmano aliás consente. Assinala-lhes «o parentesco de destino ao mesmo tempo que a distância de génio», esta a débito de Bocage; contudo, furta-se à minudência indelicada dos juízos estéticos. Maior ou menor, certa que está a grandeza, interessa-lhe, sobretudo, em ambos, o homem além do poeta, com seus dramas, suas tramas, suas possíveis tragédias. Na ventura e no infortúnio, no pecado e na virtude, traça-lhes paralelos. Mas a vantagem de Elmano sobre Camões, pois deste sabe «pouco o povo e quaisquer comemorações, como água em pato, por ele escorrem sem que o molhem», é o da sua medular identificação com esse mesmo povo que, se inconscientemente o diminuiu,

 

nele pôde ver o retrato do seu génio e de sua desgraça; a sua mutilada aspiração de um Deus universal; a sua constantemente iludida sede de liberdade; sua limitada pujança de alar-se ao infinito e seu reencontrar-se na eterna moenda em que talvez se esmague ainda grão, mas de que não sai farinha alguma para o pão da sua vida.    

           

Se para de poetas se falar é conveniente ser o mais possível poeta, dificilmente o estro poderia agora ser mais alto. Irmanando-o com Bocage, lucilam três palavras onde lhe cabem todas as ideias: Deus, povo e Liberdade. Porque, para Agostinho, o homem, criado à imagem e semelhança do Criador, é, como este, essencialmente Liberdade. E, com a iludida sede que dela tem, ao próprio Deus o liberta o povo das cadeias em que as igrejas o encerraram.

Já assim Bocage estaria pago do apagão. Mas, sem que se soubesse, houvera juros. Num texto escrito em 1968, na Baía, para um livro de António Telmo que se perdeu, e mantido inédito até 2014, quando tive o privilégio de o publicar na revista A Ideia, afirma Agostinho:

 

Só os portugueses menores, e é óptimo que haja portugueses menores chamados Sá-Carneiro ou Régio, foram monovalentes; os grandes são plurivalentes, o que se liga ao mesmo tempo com valentia e valência; Camões, soldado, Bocage, marinheiro de navio e taberna, Antero, conspirador, todos eles tiveram a coragem de assinar com um só nome a sua obra; Fernando Pessoa, tímido desempregado de escritório, fez como o caramujo da Inês Pereira; não saiu senão à porta e foi lançando seus pedúnculos oculares, ou seus variáveis pseudópodos de ameba para aquela exploração do mundo do sol e da verdade a que não ousava ir, bravo inteiro guerreiro; tudo isto viu muito bem António Telmo.

    

Como Bocage incapaz de assistir num só terreno, bem merece quem tal escreveu assiná-lo com um só nome: Agostinho.

 

Setúbal, 13 de Setembro de 2016.

UNIVERSO TÉLMICO. 42

21-09-2016 14:18

LIVRO DOS DIÁLOGOS 

1 - O sentimento de um oriental

Pedro Martins

 

Oriental de Lisboa – Diga-se o que se disser, os aviões foram uma grande invenção.

Atlético de Portugal – …???

O. L. – De outro modo, a viagem teria sido longa, difícil, perigosa…

A. P. – Cheia de escolhos…?  

O. L. – Receio bem que sim. Ou cheia de escolhas. Escolhas como escolhos, escolhos como escolhas, tanto faz, escolha você, vem tudo a dar no mesmo.  

A. P. – Mas que viagem, afinal?

O. L. – A única possível. Instantânea como um pudim Alsa. Prêt-à-porter. Ready made. Um flash, um clarão, um photomaton. O deslumbramento de uma iluminação! Já deveria saber que não vou em fitas… Comigo, só retratos, e à la minute.

A. P. – Mas que viagem, afinal?

O. L. – A única possível. Dos píncaros de Itatiaia para as antenas da televisão. Nas asas de um avião.

A. P. – Julgo compreender. Cavalgar o tigre com o pulo do lobo…

O. L. – E o que é que queria? Que fosse o pulo da pulga?! E a solução de ácidos, ali à ilharga, no laboratório? Já imaginou o pobre bicho a contorcer-se, dissolvendo-se num sofrimento atroz?… Eu vi! Vi pelo microscópio… Um horror!

A. P. – Mas, afinal, aquilo de que me está a falar é do naufrágio de uma pulga…

O. L. – Evidentemente. A pulga não sabe nadar. A pulga foi feita para pular.

A. P. – Como o lobo.

O. L. – Como o irmão lobo, se faz favor.

A. P. – Seja. Como o irmão lobo.

O. L. – Nada de nadar. Devemos antes aprender a flutuar.

A. P. – Mas, no caso da pulga, flutuar não foi solução. Foi dissolução.

O. L. – Deixe-se de brincadeiras! Sabe bem que, em se tratando de ácidos, a solução é sempre a dissolução. Devia cultivar a séria gravidade hierática do novo paradigma. As palavras podem ser cruéis…

A. P. – Como a rasoira da foice que sega a seara nova?

O. L. – Está a confundir tudo. Isso é outra coisa. As espigas não são sencientes. E sabe que mais? Começo a ficar cansado do seu verbalismo infrene. Glossas, considerações, conversações. Flatus vocis! Falar é nadar com a voz. Flutuemos no silêncio.

A. P. – Recordo-lhe que a solução é a dissolução.

O. L. – Não seja parvo! Deixe de se armar em Aristóteles! A dissolução é que é a solução!

A. P. – Cesário, que Pessoa tanto admirou, não ia por aí. Pôs Camões a lutar no Sul, salvando um livro a nado, soberbas naus a singrar, que ele não veria jamais…

O. L. – Pois claro, no Sul! Já era de esperar... Cesário era um nambam, um bárbaro do Sul. Um troglodita ou, pelo menos, um trangalhadanças… Um desengonçado. A mais sublime aspiração do ser humano é a de alcançar a verticalidade inerte de um cabide de espaldar. Espaldar, ouviu? Espaldar!!!  Nada de nadar!

A. P. - Mas… e as naus da iniciação de Pessoa, esse Pessoa que Agostinho tanto admirava?! As naus que esplendiam sob o sul sidéreo?

O. L. - Bah! Patranhas!... Isso ainda é o sentimento de um ocidental. O próprio Kertchy Navarro se afogou num pântano. Por alguma razão foi. Receio bem que os nossos queridos poetas tenham ambos ficado a ver navios. Cesário, o realista, por jamais os ver onde irrealmente os poderia ver, Pessoa pela razão contrária. Pobres vítimas da ilusão. A aeronáutica fez entretanto grandes progressos, sabe? Ademais, há o pára-quedas. É outra segurança. E o paraquedismo, com o seu apelo de sublime vertigem, é, em mim, uma vocação inata e irresistível…

VOZ PASSIVA. 71

21-09-2016 09:43

António Telmo e Manuel Maria Barbosa du Bocage:

A coragem de morrer vivo

ou a ressurreição antes da morte

Risoleta C. Pinto Pedro

Se Bocage dispensa apresentação, já António Telmo (o filósofo do futuro, que a Hermes foi buscar seu nome), injusta e infelizmente ainda dela necessitará, mas as coisas estão a mudar velozmente.

Procurarei mostrar de que modo a grandeza da alma humana transposta para obra de excepção, seja ela poética ou filosófica, se revela genial na diferente, mas semelhante expressão, no momento em que tudo é posto em causa, até a própria obra.

Aparentemente, nada aproxima estes dois génios, começando pelos séculos que os separam. Aprofundadamente, muito os irmana. O talento, a radicalidade e a excepcionalidade, a autenticidade na vida e na obra, a dedicação à criação, a demarcação em relação aos poderes, a complexidade do pensamento e respectiva expressão. A profunda humanidade. E, pasme-se!, a racionalidade. Num pré-romântico e num estudioso do esoterismo. Assim são os génios, esses centros do paradoxo.

Se lermos os textos do fim, a atitude de cada um perante a vida por causa da morte, e perante a morte por causa da vida, arrasta-nos para assistirmos a uma extrema-unção auto-administrada, ou uma coroação pungente de dignidade na dor moral.

Através da análise comparativa de passagens das obras do poeta Bocage e do filósofo Telmo, entraremos na contemplação do momento em que a aproximação da morte transforma a expressão estética numa ética da consciência. Derrota ou transcendência? Arrependimento, desolação e grandeza.

Perante a certeza e a dúvida, a mesma coragem. Na desesperada paixão ou na fria serenidade, à perturbadora aproximação da eternidade, essa tão próxima e tão distante desconhecida.

De António Telmo são muito tocantes as “Páginas Íntimas“, que poderiam ser uma síntese do portal em que se encontra o ser humano após abandonar todas as ilusões: silêncio, solidão, dúvida, nada. Esta é a grande prova da fé, a grande iniciação depois de todas as iniciações. Pungente, honesto e generoso, este grito:

«A única esperança é a que uma tábua da nau divina em que me sonhei me possa servir de socorro no mar turvo da minha desolação. Desejei o mais alto. Procurei caminhos para ele. Perdi-me em todos.»

Faz parte de uma passagem de “Dois Escritos íntimos”, tal como a que se segue:

«A sensação que me tem, ao evocar-me no meu passado, é a de que tudo foi em vão. É uma sensação de derrota, de rota desfeita, de naufrágio, de navis fracta. [...] Desejei o mais alto. Procurei caminhos para ele. Perdi-me em todos. Hoje, não sei pensar, não sei sentir, não sei praticar. Lentas e surdas correm as horas sobre o meu ser.[...] Se viajo ainda, é sem o saber. A sensação é só a de estar parado como no cinema a ver correr uma fita. Tudo o que vi é como se não o tivesse visto, porque tendo-me sido mostrado veio no “instante” que sendo sem ser é, por isso, impossível de conservar. Estou infinitamente só, sem pão para a minha boca e luz para o meu olhar. “Do fundo do abismo chamo por ti.” Dizem-me e eu compreendo que não virás porque o meu grito é calculado»

O que Telmo vive ou expressa neste texto é algo que eu poderia sintetizar como:

Morte, transição, iniciação, ou a coragem de morrer vivo, através da admissão sincera de uma derrota.

Esta iluminada e iluminadora passagem, arrancada às entranhas da solidão escura a golpes de dor, é o retrato de uma importante etapa da vida de um ser humano consciente.

O momento em que, após todas as experiências, o experimentar de todos os caminhos, o verbalizar de todas as certezas, perante a fragilidade do corpo e a ausência da evidência, o ser baixa os braços. Não será arrependimento, porque sabe que lhe competia fazer o que fez, nem desistência, porque não lhe está na natureza, é antes a dolorosa e corajosa assunção de que depois de tudo, a dúvida permanece. Rendição, entrega, aqui estou mais pequeno do que quando cheguei.

O sentir, como diz, «que tudo foi em vão».

E aqui entra o de todos nós conhecido soneto de Bocage, que tomei como base para esta aproximação:

 

«Já Bocage não sou!... À cova escura

Meu estro vai parar desfeito em vento...

Eu aos céus ultrajei! O meu tormento

Leve me torne sempre a terra dura.

 

Conheço agora já quão vã figura

Em prosa e verso fez meu louco intento.

Musa!... Tivera algum merecimento,

Se um raio da razão seguisse, pura!

 

Eu me arrependo; a língua quase fria

Brade em alto pregão à mocidade,

Que atrás do som fantástico corria:

 

Outro Aretino fui... A santidade

Manchei!... Oh! Se me creste, gente ímpia,

Rasga meus versos, crê na eternidade!»

 

Se para Telmo «tudo foi em vão», igualmente afirma Bocage: «Conheço agora já quão figura/ Em prosa e verso fez meu louco intento.», reduzindo à vacuidade a sua obra, como se esta espelhasse o autor ou reforçasse o «louco intento».

 

Bocage afirma «Já Bocage não sou». Telmo confessa: «Hoje, não sei pensar, não sei sentir». 

Em Bocage, o seu nome é como uma máscara que caiu.

Apesar de a dissolução da alma não representar, para a filosofia portuguesa a aniquilação, nesta fase de término, Telmo até essa antes certeza não posso afirmar que negue, mas solta, como a máscara.

Mas se em Bocage existe arrependimento: «Eu me arrependo», já o mesmo não podemos afirmar em relação a Telmo.

Talvez graças a um padre libertador, banhado pela aura do Espírito Santo ou da Graça, que o absolveu para sempre, ao dizer-lhe aquando da primeira confissão: «̶  Vai-te! Tu não tens pecados.»; sem, segundo ele, «o deixar abrir a boca».

Em si ficou implícito, talvez devido a este episódio, que nada há de que se arrepender, porque tudo foi tentado: Desejou, procurou e perdeu-se.

A palavra, para Bocage, é arrependimento. Para Telmo é desolação.

Bocage põe a tónica no erro, sinónimo de pecado. Este precursor do romantismo lamenta a ausência de «um raio da razão», aquela de onde ele vem, onde se fez a sua formação. Já saudade, talvez, do século das luzes, ainda o seu. Mas apesar da regularidade do soneto, da presença dos elementos clássicos, como a linguagem erudita; a alusão à Musa; a comparação com uma figura da plenitude do Renascimento Italiano, Aretino; a referência positiva à razão, já é todo emoção, todo paixão, todo arrebatamento: na explosão sentimental, no vocabulário escolhido, no excesso emocional presente na pontuação pródiga em exclamações, na ideia de morte a rondar todo o poema, no diálogo imperativo, radical.

Telmo, por sua vez, é sereno no desespero. É a razão que analisa, com o mínimo de turvação, o desespero, e o acalma. Sem o atenuar. Uma quase frieza intensa, lucidez afiada como lâmina. Arrepia. Queima de excesso, não de Bocageana paixão, mas de fria filosófica serenidade.

A Bocage sempre podemos absolvê-lo, estende-nos, arrebatado, a mão arrependida para que o façamos. A Telmo não, não tem pecado, apenas a presença implacável da inalienável aventura humana:

«sensação de derrota, de rota desfeita, de naufrágio, de navis fracta».

A honra do guerreiro que lutou e perdeu, que envelheceu. Apenas. É a vida. Sem culpa. Apenas desolação. Desespero silencioso e digno.

 

Neste soneto de final de vida, “Já Bocage não sou”, o poeta mostra estar arrependido por algo a que chama vacuidade «vã figura em prosa e verso», define seu «intento» como «louco», apelida a sua obra de «som fantástico» não no sentido que hoje atribuímos ao adjectivo, mas de algo sem consistência, compara-se a Aretino, cuja poesia e vida foram consideradas libertinas e à margem da moral, acusa-se de ter manchado a santidade e exorta quem o leu e nele acreditou, a rasgar os versos e a crer… «na eternidade!».  Dele, a fé não se ausentou.

Contudo, uma vida deitada ao chão. Num poema poderosíssimo de arrependimento.

Os versos como veículo da devassidão. Como se deles se tivesse retirado o sagrado. O peso da Igreja com a sua condenação do corpo e dos prazeres a ele associados.

Por sua vez, Telmo, o filósofo da “Misteriosofia”, mais judeu do que católico, e portanto celebrando o corpo na busca da alma, aos 80 anos parece deitar tudo a perder. O filósofo duvida dos caminhos da busca aonde o pensamento o levou. 

O poeta lamenta os versos que escreveu.

Procuraram o mesmo, por diferentes caminhos. Telmo procurou «o mais alto» e não encontrou. Bocage tê-lo-á encontrado, mas sente que o desmereceu: «eu aos céus ultrajei». O que um encontrou e perdeu, o outro buscou e não encontrou.

Vejamos o último texto das Páginas Autobiográficas, “O Quarto Inimigo do Guerreiro”.

«o sonho que vivo há oitenta anos é constituído por uma quantidade mínima de pesadelos. De resto, o que me é contrário deixa-me mais ou menos indiferente. A vida é sonho. Perturba-me às vezes pensar no que haveria de mal por detrás desses pesadelos.

[...] Tentei sair deste “deixa andar”, depois de ter visto o meu fracasso a escrever a Gramática para o Abel Lacerda. [...]

[...] Isto hoje já não me entusiasma.»

 

É necessário ter coragem para descrever a proximidade do abismo:

«Estou velho. A velhice é, segundo o famoso Índio inventado por Castañeda, o quarto inimigo do guerreiro.»

E Bocage, um passo mais à frente, já a ver o abismo:

«À cova escura

Meu estro vai parar desfeito em vento...»

Ambos se confrontam com a dissolução que o envelhecimento e a morte aparentam. Têm sobre os olhos a venda do neófito antes da iniciação, aquele momento em que todo o saber se perde.

É necessária enorme coragem para enfrentar a verdade da dúvida, e mais ainda, escrevê-la.

«Eu sei que sou, como é cada homem, um misterioso mágico microcosmo que só se conhecerá tendo a coragem de descer ao poço da alma, se é que há alma e não só corpo

Essa dúvida, ou a sua verbalização, não tem ímpar na bravura. É ela a fonte do seu tormento. Cada um bebe de água diferente com que se atormenta:

Bocage tenta desfazer o passado ou consertar o mal feito, implorando ou imperando ao leitor: «crê na eternidade!»

É esta certeza da eternidade, que evidencia, que o atormenta. Ou alivia?

 

Já para António Telmo:

«No céu enublado não há estrelas.» e «se é que há alma».

 

Se um se atormenta pela responsabilidade que terá tido em afastar outros da eternidade de que não duvida, Telmo que não duvidou, agora procura e não vê, e perturba-o o não ver, ele que foi, mais que ocultista, o grande desocultador, o do olhar laser sobre o que os mortais olham sem ver, sendo que ele aí descobria sinais inequívocos, evidentes e eloquentes do desenho do oculto. Parafraseando Camões, que a ele como a poucos se aplica, leu mais do que viu escrito.

 

Mas é apenas aparente, a divergência.

Porque Aquele que não acorre ao grito do fundo do abismo não o faz não porque não exista, mas porque «o [...] grito é calculado».

É grande, afinal, a convergência.  Para ambos, o céu existe, mas algo os separa dele: num caso a devassidão, no outro o cálculo. A devassidão foi coisa do passado. O cálculo é coisa do presente. É grande, afinal, a divergência.

Ou talvez não. Em ambos existe um ser que se sente e assume como responsável: pela devassidão ou pelo cálculo. É grande, afinal, a convergência.

E o efeito é igual:

Sentimento de expiação pela vivência do castigo que é tormento:

«O meu tormento

Leve me torne sempre a terra dura.»

 

Ou de separação:

«Estou infinitamente só, sem pão para a minha boca e luz para o meu olhar.»

 

E mais coragem ainda é necessária, e a ambos comum, para encontrarem e revelarem o fracasso daquilo a que dedicaram as suas vidas, a Obra:

Telmo: «Tentei sair deste “deixa andar”, depois de ter visto o meu fracasso a escrever a Gramática para o Abel Lacerda»

Bocage: «Oh! Se  me creste, gente ímpia,

Rasga meus versos,»

 

«Conheço agora já quão vã figura

Em prosa e verso fez meu louco intento.»

 

Assumidos fracassos do que lhes encheu as vidas, no momento de toda a verdade, na maior solidão.

 

E contudo, existe uma esperança. Verbalizada:

O efeito aliviador do tormento ou sofrimento, o arrependimento («eu me arrependo») e a reparação («rasga meus versos»), no caso de Bocage.

No caso de Telmo, «A única esperança é a que uma tábua da nau divina em que me sonhei me possa servir de socorro», uma espécie de Graça concedida, não vinda de fora, sim por efeito de um sonho do próprio, o efeito poderoso da responsabilidade por si mesmo.

Tal como Bocage, no meio do cenário de desespero, algo pode ser feito.

E em ambos, afinal, e apesar de tudo: a crença:

Bocage: «Crê na eternidade.»

Telmo: «não virás porque o meu grito é calculado», o que faz acreditar que alterando a qualidade do grito Aquele que é chamado manifestar-se-á.

A assunção da responsabilidade pela fé. A própria, no caso de Telmo. Pela dos outros, no caso de Bocage.

A preocupação do poeta está na convicção de ter desviado gente do recto caminho, como se o seu poder aí chegasse.

Afasta-se, neste caso, das preocupações finais do filósofo.

Quem com ele privou sabe, afirma e confirma que não pretendia que o seguissem como mestre.

Distinguem-se ainda Telmo e Bocage na relação que cada um tem com o pecado.

Não há conciliação, em Bocage, entre o pecado e o céu, sendo o problema, não a falta de crença no céu, mas a crença no seu acesso por causa do pecado na terra. A questão de Telmo é quase ao contrário: uma vida de quase inabalável fé sofrendo, com a aproximação do fim, um aparentemente irreparável sismo. Não tão real assim.

Mas em ambos, o largar da ilusão, neste caso o antecipar dessa revelação ou apocalipse em estado agudo de lucidez que pressente que ninguém está a salvo das fantasias. Até nisto, dois grandes mestres, embora relutantes à mestria.

Depois desta viagem pelo essencial derradeiro medo que com estes seres excepcionais fizemos, uma observação parece impor-se:

Perante a possibilidade da fragmentação, e sublinho «possibilidade», não inevitabilidade, Telmo e Bocage fazem o que os poetas alquimistas não podem deixar de fazer: transformar a «noite escura» da alma em alvorada, por mágica transformação, pela luz da consciência, nas condições mais difíceis, na busca da verdade, ainda que dura.

Curioso que este estado de perplexidade perante a nova, a totalmente distinta das anteriores dificuldades, não os deixe, afinal, completamente surpreendidos.

Vejamos uma carta a Álvaro Ribeiro em 1959, com 32 anos de idade e 51 anos antes de morrer, um texto antecipatório, quase premonitório, como se já tivesse vivido tudo:

 

Disse-lhe na última carta que tinha deixado de escrever [...]A minha vida foi toda um engano. Esperei imenso: em mim. Julguei-me, muitas vezes, uma inteligência de escol. Resta-me o consolo dos medíocres: – ter convivido, em fraterna amizade, com homens superiores. Por isso as minhas cartas não têm interesse de maior e nas minhas palavras haverá sómente o traço viril de uma ironia amarga, e de um despeito calmo (…)» [BNP, Espólios N9/1047] 

 

Igualmente em Bocage verificamos que não é apenas do fim a lucidez que o habita:

« Apenas vi do dia a luz brilhante/ Lá de Túbal no empório celebrado,/ Em sanguíneo carácter foi marcado/ Pelos Destinos meu primeiro instante. //[…] E enquanto insana multidão procura/ Essas quimeras, esses bens do mundo,/ Suspiro pela paz da sepultura.»

Como Sampaio Bruno à beira da morte, pela pena de António Quadros, num extraordinário romance biográfico, Uma Frescura de Asas, que sobre ele escreveu:

«Olhamos para dentro de nós e apercebemo-nos de que fomos pouca coisa, de que somos pouca coisa, Escrevemos livros, […] montámos toda uma teoria de respostas satisfatórias para as nossas mais fundas interrogações, julgámo-nos senhores de um saber superior ao da maioria dos nossos amigos ou contemporâneos, mas sempre a mesma pergunta, contundente e inevitável. O que se encontra, meu Deus? […] Não tenho medo da morte. […] Tenho pena, sim, de não deixar gravada na memória das gerações que virão a ideia de que viver com honra é pensar com autonomia, a partir do que mais nos é próprio, do mais íntimo da nossa consciência e do nosso espírito.

Que importa na verdade a autoridade dos nomes? Que quer dizer a subserviência às reputações feitas? Nós somos livres, nós outros, sabei-o; e mais nos quadra cair no erro, independentes, do que subir às alturas, equilibrados nas asas alheias. O que o moderno lusitano tem a ler, de ora em diante, no pórtico da sabedoria, é a divisa inapagável: pensa por ti próprio e não estabeleças juízos por ouvir dizer.»

A capacidade que têm certos seres de, sem negarem a morte, dela se salvarem ressuscitando antes dela, pela destruição de qualquer coerência que tivessem construído, pelo exercício consciente e verdadeiro da corajosa lucidez.

Como Agostinho:

«O que chamamos verdade/ é coerência inventada/ por um saber que imagina/ que sabe e não sabe nada.»

Dois seres, Telmo e Bocage, separados por quase dois séculos, no supremo momento, pondo em causa a autoridade dos próprios nomes («Já Bocage não sou» e «Perdi-me»), deitando ao chão a reputação e a obra, frágeis e limitados como nunca, e livres, independentes.

Ainda Agostinho: «e que a partir de não ser/ te construirás total.»

Em comum, a transcendente coragem. À beira do abismo retiram a máscara que restasse e vestem-se da nudez do nada, como o neófito que deixa os metais e as roupas profanas à porta do templo e tal como veio ao mundo, apenas coloca sobre si o hábito de noviço.

Iniciados preparando-se, já desde o nascimento para a grande prova e terceira iniciação, em que a venda se cola aos olhos e não há quem a arranque. Pelo menos daqui. De lá, por muitos livros escritos, por muitas frestas espreitadas, nada conhecemos. É isso a iniciação e sua condição: salto no escuro, nada saber. Dela, estes dois Irmãos Maiores deixaram comovente e corajoso testamento filosófico, a sua obra, vibrante de contradições e tão viva. Através do seu Apocalipse, ou Revelação, nossa Epifania.

Poderia ter usado, para este texto, um título de Huxley, esse mestre da ‘Arte de Olhar’ que mereceu o interesse de António Telmo, e que seria: “Também o cisne morre”. Estes génios sentiram-se como provavelmente todos os cisnes numa comunidade de patos, sem ofensa para estes.

Só os cisnes se expõem à vulnerabilidade e à dor que é duvidar das antigas certezas talvez fantasias do:

«conceito que fazemos de nós próprios. Imaginamo-nos criaturas livres, dotadas de uma finalidade. Mas, de vez em quando, acontecem coisas incompatíveis com esse conceito. Chamamos-lhes acidentes; chamamos-lhes despropositadas, irrelevantes. Mas em que critério nos baseamos para julgar? No retrato que a nossa fantasia faz de nós próprios».

Só um cisne tem estrutura para arrostar com esta realidade. Porque sabe que morre. A condição indispensável para poder renascer.

Se aqui estivesse Pessoa, acrescentaria aquilo que eles sabiam e que não os impediu do tremor, o frio no indispensável despir a capa para entrar na “Estalagem do Assombro”, e assim apenas cito o final do poema “Iniciação”, que ilumina a escuridão em que as suas almas mergulharam, o caminho, o processo de confusão e espanto:

« […] neófito, não há morte…!»

 

 

É com Bocage que concluo, sábio mestre do paradoxo reunindo morte e vida e assim criando, com as potências que são as palavras, como tão bem demonstrou Telmo na Gramática Secreta, o poder que tudo transcende:

«Com dura e branda cadeia, 
Com facho activo e suave, 
De seus mistérios co'a chave, 
Amor entre nós volteia: 
Já deprime, já gloreia, 
Já dá morte, já dá vida; 
E nesta incessante lida, 
Que em si traz, que em si contém, 
Com o mal, e com o bem, 
Amor a amor nos convida.» 

Bocage, in 'Amor a amor nos convida (Décimas sobre verso único)' 

 

Julho 2016

UNIVERSO TÉLMICO. 41

20-09-2016 10:41

NOTA PRÉVIA

Sabemos hoje, pelos estudos de Anita Novinsky e da escola de estudos judaicos que criou na Universidade de São Paulo, que a construção do Brasil foi sobretudo obra de cristãos-novos fugidos à Inquisição. Bahia, Pernambuco, São Paulo são, desde muito cedo, pólos de proliferação marrana. A esta luz, creio eu, haverá que reequacionar a propagação do culto popular do Espírito Santo em solo brasileiro.

Falemos entretanto de gigantes. O grande Raposo Tavares, o maior dos bandeirantes, confessou matar em nome da lei de Moisés. Um antepassado de Fernando Pessoa andou por terras de Vera Cruz durante vinte e cinco anos e acabou reduzido a cinzas num auto-de-fé lisboeta. Anita Novinsky lembra, a propósito, que os versos de Álvaro de Campos ganham toda uma outra significação a esta luz.

Entre nós, apesar dos estudos de Moisés Espírito Santo, Jorge Martins ou Maria Helena Carvalho dos Santos, entre outros, muitos continuam a varrer o judaísmo português – e essa sua tão problemática como original metamorfose que foi e é o marranismo – para debaixo de um tapete. O Dicionário Essencial da Língua Portuguesa, denuncia Jorge Martins, não diccionariza a palavra judeu, mas não esquece os termos cristão e muçulmano. E o editor literário dos Apólogos Dialogais de Dom Francisco Manuel de Melo, fazendo quanto pode, ao abordar o Tratado da Ciência Cabala, para afastar o Melodino da pista judaica, cita inúmeras vezes a monumental biografia que Edgar Prestage dedicou ao seiscentista, mas esquece que a páginas 285 desse livro se refere a ascendência judaica do polígrafo, cristão-novo pelo lado materno.

O texto que agora se publica, desprovido de referências bibliográficas e passível de revisão em ordem à sua publicação, corresponde ao que disse no passado sábado na Sala dos Actos da Câmara Municipal de Alenquer, no decurso do Congresso Internacional do Espírito Santo. Como levo Agostinho da Silva bem a sério, há muito que interiorizei a velha máxima do seu alter ego Kertchy Navarro: só pode ser seu discípulo quem for contra ele. Não se trata, pela minha parte, de um propósito deliberado ou programático, mas tão-somente de manifestar franca e lealmente as discordâncias que mantenho com o Estranhíssimo Colosso no que respeita à sua visão do culto popular do Divino. Agostinho da Silva é porventura, a meu parecer, o mais complexo – e porventura o mais estimulante – caso de marranismo da cultura portuguesa do século XX, porque é aquele em que o dramatismo do ser dividido alcança o seu paroxismo, sempre em busca daquela síntese de que falava António Telmo e que o conduz a um novo e superior entendimento da religião. Não por acaso, na sua última entrevista de imprensa, frisava já o pensador, muito judaicamente, que o culto era “apenas” o culto da obra do Divino. Claro que isto pode brigar com a visão joaquimita que, nessa mesma entrevista, parece manter da festa do Império. Que o debate prossiga…   

P. M.

 

Agostinho da Silva, Joaquim de Flora e a demanda do Divino

Pedro Martins           

 

1. Agostinho da Silva pode ser considerado um pensador neojoaquimita, inscrito n’a posteridade espiritual de Joaquim de Flora, tal como Henri de Lubac a entendeu na monumental obra homónima, por ter recolhido «a ideia fundamental que Joaquim havia retirado da sua exegese: a de um «terceiro estado» a vir, no tempo e sobre esta terra, que seria a Idade do Espírito». O portuense, para quem «só pela teologia se poderá compreender a História», vai consequentemente adoptar e adaptar a tripartição do movimento histórico do monge calabrês. Na reelaboração de Agostinho, os estados triádicos designam-se, correspondentemente, por Idade Antiga, Idade Média e Idade Nova. A Idade Antiga termina quando a Igreja institucionalizada muda a face do Império, e isso basta para que a sua Idade Média se inicie muito depois da Idade do Filho de Joaquim, que começou a prosperar com a Encarnação e terá terminado em 1260. A Idade Média agostiniana ainda decorre.

Tal como os primeiros joaquimitas, Agostinho crê, expectante, na iminência da nova era.  Pressente-a pelos sinais, mas não sabe quando, ou onde, se iniciará, o que logo nos recorda a sua Vida de Lamennais, pós-joaquimita a quem Lubac consagra extenso capítulo no seu tratado. Posto que o trilho, fecundo, esteja inexplorado, não me alongarei na análise da influência que Agostinho, manifestamente, recebeu deste seu biografado. Assinalarei, somente, que das diversas fases da obra do francês colheu o português inúmeros contributos, incorporados na formação diacrónica do seu neojoaquimismo, pela revelação de uma experiência dramática com seu quê de comparável à evolução espiritual que irá viver, e que parece dar razão a Henry Corbin quando afirma que é no interior hierofânico de cada alma, e não na imanência do tempo histórico, que a Igreja de João sucede à de Pedro.

 

2. Nos escritos numerosos que, após o retorno a Portugal, em 1969, Agostinho dedica ao culto popular do Espírito Santo, não encontramos já a perspectiva crítica da heresia de Joaquim vigente na fase brasileira. Nesta, em que define e apura a estruturação principial, axiológica e cronológica das três Idades, não deixa o filósofo de censurar a audácia joaquimita. Repele-lhe o corolário do desaparecimento da Igreja institucional, à vista da injunção que, no rigor dogmático da teologia católica, determina a coeternidade das hipóstases trinitárias. No intuito de aproveitar a conveniente sedução do esquema joaquimita, surpreende-se o afã de Agostinho na reelaboração da “Terceira revelação”. Num escrito de Só Ajustamentos que a toma por título, fá-la refluir ao recesso psíquico da individualidade, resguardando-a de vicissitudes sociológicas, no que antecipa a abordagem angelológica, já aflorada, que Henry Corbin, no início dos anos 70, propõe do joaquimismo para o preservar da mácula imanente da mundanidade.

Posto que Lubac o omita a esse respeito, é possível incluir a leitura de Corbin nas interpretações «diversamente minimizantes», porém «dificilmente conciliáveis», do pensamento joaquimita que o cardeal agrupa pela comunidade do esforço com que buscam atenuar a «violenta interpretação» textual operada por Joaquim e «reconduzir a ideia da terceira idade a visões mais tradicionais». Encontramos, aliás, nestas palavras de Lubac uma síntese que se aproxima da tese de Corbin:

 

Para outros, sob a exterioridade de um desenvolvimento histórico, Joaquim teria simplesmente querido enumerar as etapas ascendentes da vida espiritual; as figuras do Liber Figurarum, considerado autêntico, sugeririam três fases místicas, mas somente duas idades históricas, antes e depois de Jesus Cristo.

  

Se bem que, pelo propósito operativo, transcenda a hermenêutica restritiva de Corbin, Agostinho, de alguma sorte, navega, por esses anos, nas mesmas águas. «A terceira revelação», escreve,

 

é a da íntima e profunda e secreta relação de cada um consigo próprio. Como poderia ela vir de fora com um pregador, um anunciador, um evangelista, que eu e os outros pudéssemos ver com os nossos olhos de carne e pudéssemos arquivar nos pobres e falíveis anais da nossa história? Cristo foi o mensageiro último de que os homens puderam ser testemunhas. O que não quer dizer que tivesse sido a última mensagem.

 

Ao dealbar a década de 60, em “Considerando o Quinto Império”, reformula essa revelação pelo anúncio «de que a criança deve ser o modelo de vida e que por ela se estabelecerá na terra o Reino do Espírito Santo». Por muito que se queira aproximar esta criança divinizada dos viri spiritualis de Joaquim, será forçoso reconhecer quão longe estamos já do visionário calabrês. Na recusa da heresia joaquimita desenha-se a invenção agostiniana.

A Educação de Portugal, escrita logo em 1970, inaugura uma fase de reconciliação com o joaquimismo. Ainda quando assinala a heresia, Agostinho limita-se a identificar-lhe os termos, sem tomar outro partido que não seja o de se conformar com o bom abade. Compreende-se. No iter evolutivo do seu pensamento, já a Liberdade sobreleva a Fraternidade, afrouxando os ditames de submissão hierárquica que esta, sob pena de quebra, opressivamente predispunha.

 

3. Parte do que Agostinho afirma do culto popular do Espírito Santo levanta-nos problemas pelos seus frágeis fundamentos históricos e etnológicos. Afeiçoada a ciência dos factos aos prejuízos do profeta, só como recriação mítica poderemos considerar sem mácula a sua invenção poética. 

 A problemática concepção agostiniana, bem patente e insistente em escritos vários dos anos 80, mas já amplamente desenvolvida no artigo “Algumas considerações sobre o culto popular do Espírito Santo”, de 1967, advém do modo como relaciona o culto com o joaquimismo, supostamente chegado a Portugal no reinado de D. Dinis, pela mão de Isabel e dos franciscanos espirituais que a acompanharam.

Diz Agostinho que «logo que a nova rainha ocupou a vila de Alenquer, seu presente de noivado, surge em Portugal, espalhando-se rapidamente por todo o País, o culto popular do Espírito Santo ou do Divino». Diz também que,

 

na sua forma mais perfeita, consistia a Festa, celebrada por altura do Pentecostes, na coroação de um imperador do Império do Espírito Santo, geralmente uma criança, na celebração de um banquete ritual, gratuito para todos que o quisessem, e no libertarem-se presos da cadeia local.

 

E acrescenta:

 

Com a Contra-Reforma, de estrita ortodoxia, o culto declinou rapidamente em Portugal continental, dele só restando vestígios, mas algumas ideias fundamentais aparecem em escritores como Fernão Lopes, Camões, Vieira e Fernando Pessoa, e cerimónias populares são ainda vivas nos Açores, na Madeira e no Brasil.

 

No texto citado, “O homem e as civilizações”, embora reconheça, pensando talvez em Prisciliano, que se terão «agregado à concepção de Joaquim de Flora elementos de origem mais antiga que faziam parte da vivência do povo», Agostinho, como vimos, afirma que foi em Alenquer, e com a nova rainha, que o culto surgiu.

Moisés Espírito Santo, nas Origens Orientais da Religião Popular Portuguesa, lembra, porém, que certas capelas beirãs do Espírito Santo já existiam quando Isabel nasceu; e que Rocha Beirante, no seu Santarém Quinhentista, «diz igualmente que o culto do Espírito Santo em Santarém é anterior à Rainha Santa». No mais, o autor sublinha uma evidência:

 

Os cultos populares não são, nem nunca foram, nem poderão ser, «instituídos» por decreto ou pela boa-vontade de uma pessoa, seja ela rainha, beata ou santa. Certos autores tomam as sociedades e as culturas por multidões descerebradas que se põem a cultuar um deus por ordem ou a pedido de um rei ou governante. É possível imaginar um dirigente ou monarca, ou as respectivas esposas, a decretar um ritual, a ordem das procissões, os dizeres dos pendões? Como se os povos precisassem das directivas dos dirigentes para fazer a sua festa! Os rituais, como as religiões, obedecem exclusivamente aos ditames e à dinâmica da cultura e sempre inseridos na tradição. Aquela paternidade é uma invenção de Frei Manuel da Esperança, cronista da Ordem franciscana. No «dia da fundação», em Alenquer, a Rainha Santa até teria cercado a vila com um «pavio de cera a arder, o qual, preso à igreja do Espírito Santo, dava a volta à vila»… (Invenção milagrosa! Como pode um pavio de cera arder nestas circunstâncias?) Os informantes do cronista teriam referido «um círio», não «um pavio»; um círio é a deslocação de uma povoação, atrás de um pendão, a um lugar santo em obediência a um voto antigo, podendo tomar a forma de uma procissão; o círio de Alenquer dava a volta à vila a partir da capela.   

 

Diferente será afirmar que o patrocínio régio possa ter contribuído para a institucionalização do culto popular, conferindo-lhe «um aparato nunca antes visto», como acentua Manuel J. Gandra. Nesta linha, admitamos, como hipótese de raciocínio, que com Dinis e Isabel se tenham insinuado laivos de joaquimismo no ritual da Festa do Império, ficando, porém, por averiguar, se, e em que medida, o culto assim afeiçoado irradiou em território nacional, notadamente por efeito da acção real.

A respeito do elo que supõe ligar o joaquimismo à festa do Império, Agostinho, de ordinário assertivo, denota cautela. Pelo menos nas “Dez Notas…” de 1985, onde começa por afirmar que «parece assente, sob o ponto de vista histórico, que o Culto Popular do Espírito Santo (…) tem sua origem no pensamento de Joaquim de Flora», para, mais à frente, não deixar de reconhecer que

 

da questão teológica não há, como era de esperar, nenhum vestígio no Culto Popular, a não ser que a Igreja, sobretudo depois de Trento, sempre fez todo o possível por eliminar o Culto. Mas nada nos garante que não haja entre essa ideia fundamental de Joaquim de Flora e as vivências do Povo de Portugal um elo da maior importância, que por outro lado se liga, ao que penso, ao problema da existência ou não existência de pensamento filosófico na Cultura Portuguesa, quer nos intelectuais quer no Povo.

 

Concluindo pela usual resposta negativa a esta sua velha questão, porque, «para o Português, o importante não é a Filosofia, é a Vida, com toda a sua variedade e todas as suas contradições, que pode não aceitar, mas corajosamente assume», o pensador atribui em seguida aos «certamente analfabetos portugueses» a façanha de resolverem, no contexto «concreto» em que se moviam, os «problemas de bem difícil contexto teológico e filosófico» em cuja solução não foram tão longe «os atilados, inspirados e eruditos teólogos».

Que solução foi essa? Uma «popular intuição»: «o estabelecer-se um Império do Espírito Santo» não «implicava o desaparecimento da Igreja de Cristo; Deus se revelaria sempre trino em cada uma das Pessoas que nele haveria que distinguir, tanto no Eterno como no Tempo, e até, talvez, haveria uma Divina Igreja cada vez mais se alargando no domínio dos fenómenos, cada vez abrangendo maior número de homens».

Fica por saber o que, sem o desaparecimento da Igreja de Cristo, resta afinal do problemático joaquimismo. Quando, em seguida, concretiza as feições da nova idade histórica tal como os portugueses a teriam visionado, depara-se-nos o intuito de, «sem quebra com a Igreja, ou as Igrejas, anteriores, levar esta última, verdadeiramente católica ou universal, ao todo da Ecúmena». Reincidindo nas ideias medievas da sua fase brasileira, Agostinho apresenta-nos um proselitismo de conversão mais paraclético do que cristológico, desta sorte favorecido pelo desvio da ênfase para a unidade essente do Espírito. 

Fica, sobretudo, por entender o prodígio dessa intuição, que não se vislumbra possível sem o conhecimento dos termos – filosóficos e teológicos – do problema a resolver. Na obra já citada, conta Moisés Espírito Santo como «Frei Bartolomeu dos Mártires deplorava a ignorância dos Minhotos que pensavam cair nas boas graças do bispo saindo ao seu encontro a gritar «Viva a Santíssima Trindade, que é irmã de Nossa Senhora!». E acrescenta:

 

Na região da Batalha, onde se celebra, pelo menos desde o século XV, um importante e imponente bodo de pão «contra as formigas», em honra da Santíssima Trindade, supõe-se que o ente a quem se dirige o culto é «uma santa mais importante do que as outras», pois é tratada no superlativo e tem um nome feminino. Na percepção religiosa dos Beirões, nem sequer está implícito que Deus seja eterno, porque se ouve dizer com a maior das canduras: «Isto já vem dos tempos antigos, ainda Deus não era nascido.» Jesus Cristo é a única expressão de Deus. Para dois mil anos de cristianismo, o balanço não é encorajador!

 

Ainda segundo o etnólogo, episódio convergente foi vivido por Jaime Cortesão, ao verificar ocasionalmente que, perante uma escultura da Santíssima Trindade, impropriamente chamada do Espírito Santo, os fiéis não identificavam este último

 

com a pomba, mas com o Ancião de barbas onduladas, coroado, e de semblante carregado, que sustém a cruz nas mãos. Jaime Cortesão apercebeu-se bem desse importante pormenor; notou o facto mas, segundo ele próprio diz, não entendeu a razão. A razão é esta: para os Judeus-secretos, o Espírito Santo equivale a Yaveh, que é o ancião da escultura.

 

Eis o motivo por que Agostinho não encontrou no culto popular do Espírito Santo vestígios da questão teológica suscitada pela heresia joaquimita: nunca ali terão estado presentes. Escreve Moisés Espírito Santo: «O culto vem directa e inteiramente da tradição hebraica». Acto contínuo, enfatiza: «O Espírito Santo dos cultos populares não é a terceira pessoa da Trindade Cristã». É, sim, conformemente àquela tradição, a força ou princípio vital que enforma, sustenta e renova o Universo, tão certo ser o judaísmo o culto que electivamente se dirige ao aspecto criador da Divindade: os Elohim que, no Genesis, proclamam a bondade da criação.

A argumentação do etnólogo é opulenta e tendencialmente exaustiva, como se verifica pela leitura do seu estudo, escorado no fundo conhecimento das religiões e da tradição etnográfica e num trabalho de campo desenvolvido na década de 80, sobretudo nas regiões de Leiria e da Beira Baixa, reconhecidos pólos de proliferação judaica onde, no terreno, registou fenómenos cultuais persistindo pelos séculos.

Não obstante, Agostinho, na mesma época, parece apenas levar em conta o culto do Divino nos Açores, de resto de origem beirã. É possível que esta redução influencie o erro de, em “O Império do Passado e do Futuro”, afirmar que «logo», isto é, desde a suposta criação da festa do Império pela Rainha Santa Isabel, o povo coroou «seu real monarca a genial imaginação da criança, sufocada por escola alguma», depois de, como se viu, ajuizar que isso sucedia «geralmente».

Não há notícia histórica da coroação de um menino nos primórdios do culto. Por longo tempo, coroaram-se adultos – homens do povo, gente de baixa condição – sem que se possa asseverar quando e por que razão surge a criança no centro da cerimónia. Segundo António Quadros, nas Festas do Penedo, em Sintra, ainda activas no século passado, «as coroas (feitas inicialmente para adultos), são grandes demais para os meninos Imperadores, pelo que há sempre pessoas que as seguram, simulando-se no entanto que estão colocadas nas cabeças das crianças».

Noutros lugares, como Alcabideche, onde as festas perduraram até ao princípio do século XX, continuaram os adultos a ser coroados. Em Nisa, no século XIX, o imperador era um mancebo. No litoral, como na Beira Baixa, Moisés Espírito Santo mostra ser regra a coroação de um «benfeitor» – um emigrante que enriqueceu, um homem próspero da aldeia – como imperador ou juiz.

Por que surge a criança coroada? Não se sabe. Mas parece insustentável a razão sugerida por Agostinho, na qual, aliás, suspeito existir anacrónica projecção da sua pedagogia.

Este intento parece tê-lo conduzido à perigosa inversão simbólica concretizada pela divinização da criança. Sempre Agostinho se mostrou pouco atreito ao sério código ocultista. Daí, a meu ver, a dificuldade do seu ecumenismo em superar os dogmas. Se assim se pode dizer, é um exoterismo sem esoterismo. A boa vontade, decerto louvável, é precária.

Vem a propósito o seu ensaio “De como os Portugueses retomaram a Ilha dos Amores”, onde emerge a figura, jocosa e dúbia, do estucador de Alpiarça, um pobre diabo que replica António Telmo. Não terá Camões, como pretende Agostinho, aludido a Zoroastro ou à Cabala (que implica sobretudo Fiama)? Com respeito àquele, e embora o tenha feito, por mais de uma vez, como Telmo mostrou, não precisaria sequer de o fazer. Bastava-lhe a insólita atenção à «matéria perigosa» do cristianismo gnóstico de Tomé, com a qual pôde Telmo, no Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões, encontrar um elo de ligação entre a Pérsia e o priscilianismo.

Esqueceu-se Agostinho do que talvez soubesse por René Guénon: as verdades tradicionais não se escancaram. Revelam-se. Mostram-se para se ocultar. É da natureza das coisas: esotérico quer dizer interior. E Guénon adita razões de defesa: da doutrina e do iniciado. Se é preceito evangélico não dar pérolas a porcos, seria insânia oferecê-las aos monstros do Palácio dos Estaus. Agostinho passa como cão por vinha vindimada perante o labor probatório do discípulo, que, como o de Fiama, é plausível quando não é inequívoco.

Para ele tudo vem já do fundo cultural inato dessa improvável abstracção a que chamou Portugal, «como se tudo o atribuído a persas, indianos ou judeus fosse do tesouro, comum e nativo, dos portugueses de todos os tempos». Curiosamente, relançando antiga freima, reincide na sugestão de que Camões, na Ilha dos Amores, sofreu a influência de Joaquim de Flora, porque ali soube congraçar o tempo com a eternidade, «como se a nossa peça fundamental» – escreve – «embora com personagens diferentes, uns eternos, outros perituros, se representasse em dois palcos da mais exacta correspondência», com o que Camões daria expressão a um conceito «tão da natureza do povo de Portugal que imediato o inseriu em sua religião popular».

Colossal estranheza! Se realmente sabemos do encontro do tempo e da eternidade na Ilha, foi porque Telmo, vivendo a verdade do símbolo sob o signo de Hermes, o demonstrou numa leitura aguda e arguta, que reconduz o desenrolar da «peça» ao palco luminoso do mundus imaginalis, onde os espíritos se corporizam e os corpos se espiritualizam.

Desprovida daquela acuidade que só a exacção da letra, na extensão do texto e no contexto do entrecho, à vista de uma significação global, permite garantir, a leitura agostiniana da Ilha instituiu uma vaga alegoria: rochedo batido pelas ondas do providencialismo no oceano das ideias. Tudo isto é irónico em quem conviveu com Eudoro e recomendou a Telmo a leitura de Américo Castro e Henry Corbin…

Num ensaio que dediquei ao presumível marranismo de Agostinho, avancei a hipótese, congruente com o criptojudaísmo do culto, de a coroação do Menino traduzir a intromissão, no cerimonial, da figura de Metatron, o Anjo da Face da kabbalah que Telmo viu cifrado no Portal Sul dos Jerónimos. «Tal é a razão», ensina André Benzimra, «pela qual se lhe dá o nome de pequeno YHVH. E se ele é representado sob os traços de um adolescente, é para se significar que se trata de um Deus ainda na infância.» Intermediário celeste, mediador do Céu e da Terra e irmão-gémeo da Shekinah, responde ainda ao nome de Schadaï, que, na lição de Benzimra, é «o federador do Céu e da Terra, o grande Reconciliador de qualquer discórdia», e que, naquele seu outro aspecto a que melhor convém o nome de El-Schadaï, «será chamado a desempenhar um papel primordial nos tempos messiânicos». Numa perspectiva cristo-angelológica Metatron surge, assim, em correspondência com o Espírito Santo.

Aqui, importa de novo citar Moisés Espírito Santo, quando trata da figura do Imperador no culto do Divino: «Os Hebreus não faziam distinção entre Deus de Israel, Rei de Israel, «Anjo do Senhor» ou Enviado de Deus e Messias». Pouco adiante, acrescenta: «O Rei de Israel tanto era o «Anjo de Deus» como o próprio Deus, que toma a figura humana para executar as suas vinganças. Segundo a concepção religiosa dos Semitas, Deus desdobrava-se em personagens terrestres». Por fim, consigna:

 

É muito significativo que, da região de Leiria à do Fundão, se designe a personagem do imperador, do rei ou do juiz desta cerimónia como o «Espírito Santo», isto é, a sua incarnação ou representação terrestre. O imperador é um sósia ou um duplo do Espírito Santo, do Messias. O ritual constitui assim um anúncio, uma catequização e uma promessa desse evento.

 

Eis um dos inúmeros argumentos que o etnólogo aduz na demonstração de que o culto popular do Espírito Santo mais não é, entre nós, na sua essência profunda, que uma manifestação críptica das celebrações do Pentecostes judaico.

Esboço um sorriso, ao ler, em Reflexão à margem da Literatura Portuguesa, que

 

os judeus por seu turno não levantavam oposição alguma a assistir reverentemente a esse culto do Espírito Santo, o qual, como já foi dito, descera em novo Pentecostes sobre a nação portuguesa, sagrando-a para seu apostolado.

 

Não preciso de explicar por quê.

           

Alenquer, 17 de Setembro de 2016.

UNIVERSO TÉLMICO. 40

19-09-2016 10:41

O Marranismo e o Culto do Espírito Santo em Portugal

António Carlos Carvalho

Somos sempre mais, e mais antigos, do que imaginamos ou do que julgamos  saber. Nós, portugueses, e este País que é o nosso.

1496-97: com a expulsão e conversão forçada termina em Portugal o que Elias Lipiner chamou, e bem, «o tempo dos Judeus», começando então o tempo dos cristãos-novos, que irá durar até ao governo do Marquês de Pombal, o qual, em 1773, acabou com a distinção entre cristãos «novos» e «velhos».

Claro que os «baptizados em pé» mudaram de nome, adoptaram novas práticas religiosas para os outros verem, mas dentro das suas casas e dos seus corações continuaram a ser quem sempre tinham sido: portugueses e Judeus. E assim nasceu um cripto-Judaísmo, um Judaísmo secreto, um marranismo, algo muito complexo e ainda hoje pouco conhecido que acabou por caracterizar os portugueses judeus. Uma maneira de ser e de estar na vida marcada profundamente pela sua ambiguidade e pela duplicidade: uma vida aparente, pública, e outra secreta; um nome para a rua e outro para se usar dentro de casa; uma religião oficial e outra, a verdadeira, seguida em privado, com as portas e as janelas fechadas. Alguns chamaram a isto hipocrisia, outros viram todo este comportamento como uma série de engenhosas estratégias de sobrevivência – sobretudo a partir do momento em que o chamado «Santo» Ofício da Inquisição se instalou entre nós, na primeira metade do século XVI, e as vidas de todos, públicas e privadas, se tornaram objecto de vigilância cada vez mais apertada. Então tornou-se necessário esconder tudo. (Curiosamente, ainda esta semana foi noticiado que tinha sido encontrada uma Torah com mais de 400 anos na Covilhã, escondida numa casa particular).

Mais do que uma religião, o Judaísmo é um conjunto de tradições ancestrais, com milhares de anos, que dão razão de existência ao que significa ser-se Judeu. Essas tradições, transmitidas de geração em geração, são constituídas por ritos próprios de fundação bíblica, celebrados de acordo com o calendário das sete festas principais: Roch Hachanah, o Novo Ano, Yom Kippur, o Dia do Perdão, as três festas de peregrinação, Pessah, Páscoa, Chavuoth, Pentecostes, e Sucoth, a festa das Cabanas – cinco festas promulgadas por Deus, segundo a Torah – e ainda duas festas instituídas pelos próprios homens, Purim, a festa de Esther, e Hannukah, a festa das Luzes.

Obrigados a viver uma vida dupla, e às vezes tripla, os marranos deitaram mão a tudo o que puderam imaginar para poderem continuar a celebrar essas festas e rituais, que eram a sua herança sagrada e pelos quais se definiam, e que, inclusivamente, lhes lembravam cíclicamente quem eram e quem deviam continuar a ser.

Não é difícil perceber as dificuldades que tinham de enfrentar para que esse calendário sagrado fosse cumprido. O próprio Shabbath tinha de ser celebrado no segredo da casa, com os candelabros ou candeias acesos dentro de armários...

Mas havia pelo menos uma festa que podiam celebrar às claras, mesmo nesse regime opressivo e de quotidano vigiado: a festa de Chavuoth. Falamos do Pentecostes, da festa do Espírito Santo, ou do Divino, um culto essencialmente popular, celebrado em quase todo o País desde tempos muito antigos, embora depois tivesse sido oficializado por D. Dinis e pela rainha Santa Isabel.

Assim, aquilo que para os cristãos-velhos significava essencialmente a descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos, para os cristãos-novos era algo substancialmente diferente, com um simbolismo múltiplo tendo raízes na Torah – a festa do dom dessa mesma Torah no Sinai, 50 dias depois de Pessah, a renovação da Aliança no Sinai, a festa das Ceifas, das Colheitas ou das Primícias.

Nessa festa de Chavuoth lê-se o rolo ou livro de Ruth, a mulher justa, humilde e recatada, que escolheu abrigar-se sob as asas da Presença Divina, da Ruah ha-Qodesh, do Espírito de Santidade que inspirou os profetas e que estava presente, pairando acima das águas, logo no início do Génesis. O ambiente desse livro-rolo de Ruth é todo ele o das colheitas, das ceifas. De festa das primícias, bem presente na Festa dos Tabuleiros de Tomar, tabuleiros esses que lembram pela sua forma os rolos da Torah, também encimados por uma coroa imperial – a coroa que simboliza a Vontade divina.

E Ruth é a bisavó do rei David, o rei messiânico, que terá nascido e morrido nesse mesmo dia de Chavuoth.

E as asas sob as quais Ruth escolheu abrigar-se lembram as asas da Pomba, que é também símbolo de Israel. Repare-se que é uma pomba e não um pombo, tal como Ruah, de Ruah ha-Qodesh, é uma palavra feminina.

Chavuoth é também a festa da realeza, a de Deus, Rei dos Reis – daí a coroa e a coroação do Imperador, que era sempre um homem pobre e humilde (antes de passar a ser um menino), como David e uma figura do Rei-Messias. E essa é uma outra faceta de que esta festa se reveste: o seu carácter messiânico – o anúncio de um tempo em que não haverá fome nem sede (por isso o bodo da festa inclui pão, carne e vinho para todos), em que não haverá mais injustiças (daí a libertação dos presos das cadeias, como ainda se pode ver nas Festas do Divino em Paraty, Brasil) e em que reinará a paz no mundo e o reconhecimento universal  do Deus Uno, tal como foi anunciado pelos profetas inspirados pelo Espírito de Santidade – como Obadias, cuja profecia inclui uma referência a Sefarad, o nome bíblico da Península Ibérica.

Os portugueses marranos souberam integrar-se nessas festas populares, tornando-se «foliões do Espirito Santo», membros das irmandades que o celebravam – tal como se tornaram membros de outras irmandades e confrarias, construindo capelas e até mesmo mandando fazer estátuas de santos que para eles tinham outro significado. Onde os cristãos velhos viam este ou aquele santo ou santa, ou até mesmo a Virgem em pose majestática, os marranos viam a rainha Santa Esther, uma espécie de padroeira dos cripto-Judeus, também eles obrigados a esconder a sua verdadeira identidade.

Temos um bom exemplo dessa prática no caso da estátua de Esther «disfarçada» de Nossa Senhora dos Campos no mosteiro de monjas com esse nome, perto de Montemor-o-Velho, no início do século XVII, em que algumas monjas judaizantes estavam igualmente ligadas ao culto de S. Diogo, supostamente S. Diogo de Alcalá, franciscano do século XV, mas na verdade tratava-se de Frei Diogo da Assunção, frade do Mosteiro de Santo António da Castanheira, aqui perto de Alenquer – um judaizante que anunciava a vinda em breve do Messias e que morreu na fogueira da Inquisição em 1603. Esse outro «S. Diogo» foi venerado como mártir por uma confraria em Coimbra, presidida pelo cripto-Judeu António Homem, lente da Universidade, especialista de Direito Canónico, que viria a morrer igualmente na fogueira em 1624. O mesmo Dr. António Homem que muito se bateu pela canonização da Rainha Santa Isabel, em quem ele e os outros membros da confraria viam a representação da Santa Rainha Esther.

 

Em resumo: quem se vê perseguido até à morte por ser diferente, por ter outra religião e outro pensamento no tempo da religião única e do pensamento único, agarra-se ao que pode para sobreviver, ele próprio e as suas tradições religiosas. Foi o que aconteceu em Portugal, durante quase três séculos, no tempo da Inquisição.

Termino lembrando o ensinamento do sábio Hillel, contemporâneo de Jesus, procurando explicar em breves palavras a essência da sua religião: «Não faças aos outros o que não gostavas que te fizessem a ti. Isto é o essencial. O resto é comentário. E agora vai e estuda.»

 

Bibliografia de apoio:

 

«Origens Orientais da Religião Popular Portuguesa», Moisés Espírito Santo», ed. Assírio e Alvim, 1988

«Symboles du Judaïsme», Marc-Alain Ouaknin, ed. Assouline, 1995

«Le Chandelier d’Or», Josy Eisenberg e Adin Steinsaltz, ed. Verdier, 1988

«Confraria de S. Diogo – Judeus Secretos na Coimbra do séc. XVII», João Manuel Andrade, ed. Nova Arrancada, 1999

«A Terra Prometida», António Telmo, ed. Zéfiro, 2014

«Um António Telmo», Pedro Martins, ed. Zéfiro, 2015

«O Encoberto», Sampaio Bruno, ed. Livraria Moreira – Editora, 1904

Idem, «Os Cavaleiros do Amor», ed. Guimarães Editores, 1960

«Histoire des Juifs Portugais», Carsten L. Wilke, ed. Chandeigne, 2007    

DOS LIVROS. 50

16-09-2016 21:38

Louvor da matéria

 

1. O «manuelino» é a arquitectura da Árvore, porque a matéria do mundo é a madeira.

2. A madeira é o que cresce indefinidamente, é o princípio da multiplicação sem divisão.

3. As árvores crescem em direcção ao Sol, mas quanto mais se aproximam da luz mais fundo mergulham as raízes na terra.

4. Alimenta-se de luz a árvore do mundo, como as pobres e belas árvores dos nossos campos.

5. A matéria é a árvore sephirótica.


6. Há corpos sem matéria de tão densos que são.

7. Todos os pontos da totalidade infinita estão unidos entre si por uma árvore invisível.

8. Esta árvore não cresce de baixo para cima, mas do alto para o abismo. Compete ao homem justo inverter em si a corrente que vem das alturas, concitando as vozes mais fundas do abismo a um cântico de louvor.

9. Eu sou o fruto da árvore; serei a semente que apodrecerá nas águas inferiores ou que germinará nas águas superiores, criando um novo futuro.

10. Os últimos produtos da árvore são as folhas secas, que dela se soltam, que se amontoam no chão do Outono, até que venha o vento frio do Inverno e as espalhe sobre a terra para formar o húmus onde as sementes germinarão. 

11. As belas cores do Outono são o resultado da decomposição dos corpos (Gustavo Meyrink).

12. O mal são as cascas, o exterior, o rígido que está morto no vivo, mas que pode ser queimado, purificado no fogo do fim do mundo.

13. Em grego, matéria diz-se úlê, palavra que corresponde a silva no latim. Em português, matéria é madeira, que se arranca das florestas.

14. Se quando falamos em matéria pensássemos em madeira, não diríamos tantos disparates sobre o que ela é, sobre o que são as suas relações com o espírito. Aristóteles e Platão e os outros gregos pensaram a matéria através de uma palavra que tinha como sentido imediato madeira ou floresta. Foi uma grande vantagem.

15. Há ainda outra conotação, matéria e mater, matéria e mãe.

16. As raízes e as matrizes. 

17. Uma árvore pode ter muitas raízes, mas o número exacto é três. Pode ter muitos ramos, mas o número exacto é sete.

18. Um ensinamento maçónico: ««O Grande Arquitecto do Universo edificou o Templo do Mundo sobre a Madeira».

19. Por isso a arte da carpintaria, que parece auxiliar a maçonaria, é-lhe anterior.

20. A planta do Templo é a árvore dos números e das letras. Por isso, uma árvore pode ter muitas raízes, mas o número exacto é três: keter, hochmah, binah, a coroa, a sabedoria e a inteligência. 

Daqui tudo deriva e tudo cresce, conhecendo o Abismo. 

Por isso uma árvore pode ter muitos ramos mas o seu número exacto é sete.

21. A suprema arte do carpinteiro trabalha com a matéria do mundo e os aprendizes têm de transformar-se em pássaros para não sentirem a vertigem sobre os altos andaimes.

22. Em tiferet, no centro dos centros, já não há o perigo de cair, porque o baixo é o alto e o alto é o baixo. O Sol não cai, imóvel no centro do seu sistema. Pois para que lado se há-de cair, se já não há lado?

23. O ser em si dos filósofos, o ser que em si tem o seu princípio, é como um pássaro que voa de ramo em ramo, sustentado, não pelas asas, mas pelo que move as asas.

24. O ser em si, livre por não ter o seu princípio noutro ser, é, mais do que o pássaro, o voo.

25. O pássaro foi pensado na ideia (em Aziluth) como voo puro, foi criado como arcanjo em Beriah, formado na energia de uma imagem em Yetzirah, feito como pássaro em Aziah. Mas de keter a malcuth, pela linha vertical, a ideia é um relâmpago, onde o pássaro é o voo e o voo o pássaro.

26. O pássaro dos Jerónimos, da coluna do oriente, é um galo, a visão imediata do Sol, a essência ígnea do homem redimida de seiva em flor vermelha.

27. Nos reis, em D. Manuel por exemplo, o galo é substituído pela águia, essa senhora dos vastos domínios do Sol, ser absoluto sem vertigens.

28. A vertigem é a sensação do vórtice que anima o mundo, sem se estar no centro desse vórtice. A sensação periférica.

29. E até lá? O pavor da queda e a sedução dela.

30. Meu Deus, que farei de mim quando me encontrar sem este corpo em que me estabeleci e firmo e que guarda a minha alma? »

 
 
António Telmo
 
 
(Publicado em Filosofia e Kabbalah seguida de Álvaro Ribeiro e a Gnose Judaica, 2015)
 

DOS LIVROS. 49

06-09-2016 14:43

Gurdjieff

 

  — Ó  meu cavalo inquieto

       Diz-me lá o que tens tu?

  — Não consigo sossegar

       Com as moscas de Belzebu.

  — Das moscas de Belzebu

        Já te vou a livrar,

        Já te ponho a correr

        Para longe as enxotar

        Até o mundo morrer

        Até o mundo acabar.

 

António Telmo

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)

VERDES ANOS. 20

03-09-2016 14:43

O SOM E O SONO NA PSICOLOGIA DE HENRIQUE BERGSON[1]

 

Entre os erros, já denunciados, do nosso ensino humanista, o da filologia, do curso de românicas das Faculdades de Letras, constitui, para quem saiba ver, um dos maiores que o positivismo produziu. Distinguindo as ciências pelo objecto, o positivismo não admite o principio axiológico de unidade dinâmica, segundo o qual o estudo de cada ciência implica o conhecimento virtual de todas as outras. Assim, a filologia aparece como um especialismo, propriamente como linguística, à qual a sociologia empresta depois uma falsa e fictícia aparência de unidade com as ciências restantes. Não obstante, esses desgraçados que ignoram a filosofia são capazes de se sentirem indignados quando ouvirem alguém afirmar que a filologia não progride sem o estudo das várias modalidades do sono e dos vários graus de cada uma dessas modalidades, de tal maneira que a biologia, a psicologia e a pneumatologia se integram no sistema de conhecimento especial que designamos por filológico. Tal é, no entanto, como procuraremos mostrar, a natureza do ensino bergsonista da filosofia.

Torna-se, porém, necessário fazer um pouco de história, como infelizmente é indispensável neste país nosso de historiadores. A persistência em negar, combater, ou esquecer a filologia autêntica, da parte de quantos a ignoram ou dela têm evasivos sinais, acelera o processo de degenerescência mental que se acentuou entre nós quando o positivismo contaminou os meios cultos que desde os Descobrimentos se esforçavam por encontrar a palavra perdida. Muito bem se explica que aqueles que não foram convencidos nem dominados pelo positivismo se apoiassem, desde então, na autoridade de filósofos estrangeiros, o que deu à expressão do nosso pensamento uma aparência de servilismo, atraso e falta de originalidade, com gáudio dos medíocres que assim puderam conquistar todos os lugares nos jornais, nas cátedras e nos diversos serviços públicos, pela exibição, nos vários ramos exteriores do conhecimento, orientado pela disciplina positivista, de um aparato erudito, conseguido à custa, muitas vezes, do próprio envilecimento. Todavia, aqueles portugueses ainda movidos pela esperança, em breve, se desgostam dos filósofos europeus, para os quais foram atraídos por alguns vestígios, indícios ou resíduos da filosofia autêntica que Pascoal Martins emprestou à Europa.

Tem causado algum escândalo a defesa por Álvaro Ribeiro duma filosofia portuguesa superior à dos outros povos europeus. Viciados polo método positivista de comparação de quantidades, os nossos historiadores, quer sejam poetas, críticos ou ensaístas, são de uma sincera e honesta inconsciência, quando, perante a lista europeia de tantos nomes ilustres, consideram megalomania o que é, dentro dum critério de comparação menos positivista e, por conseguinte, mais qualitativo, simples enunciado de uma verdade evidente. Sem dúvida, a filosofia europeia é inferior à filosofia portuguesa, não só porque representa, do século XVIII em diante, no seu melhor aspecto, uma degenerescência desta filosofia, tal como se exprime no ensino de Pascoal Martins, como, considerada na sua linha cartesiana, que é a  que conta essencialmente para os menos[2] intelectuais, mostra uma pobreza de princípios lógicos tão grande que os próprios franceses, depois de Bergson apenas por motivos patrióticos de internacionalismo político-cultural, por vezes até contrários às directrizes fundamentais do seu espírito, dificilmente mantêm Descartes no ensino oficial de filosofia.

Queremos dizer que, se em vez de compararmos nomes, figuras e números, investigarmos os princípios fundamentais da filosofia europeia, paralelamente com os princípios fundamentais da filosofia portuguesa, não podemos deixar de reconhecer a superior qualificação espiritual do povo que une o Ocidente ao Oriente. Um destes princípios é o da tríplice constituição do homem. A razão porque o indicámos não se esconde a quem souber que da antropologia, até na visão teocêntrica, dependem o valor, a amplitude e a profundidade do todo filosófico. O homem resume o universo, mas pensá-lo implica dissolver a sua imagem sensível para conceber o arquétipo primordial ou espírito vivente.

No pensamento de Bergson, o filósofo que melhor traduziu para o seu país Pascoal Martins, este princípio tende a parecer dissolvido no dualismo da «matéria e memória», da «alma e corpo», da «consciência e vida». Estas dualidades que, aliás, se encadeiam, constituem, porém, pontos de partida, – os pontos de partida da mentalidade comum e corrente, formada pela divulgação do cartesianismo. Porquanto, se retomamos as relações da palavra com o sono, verificamos que Bergson considera essas relações nas suas três modalidades correspondentes aos elementos constitutivos do ser humano: – o sono natural, o sono magnético, e o sono supranormal.

O primeiro, no qual o homem cai, por uma espécie de simpatia física com os ciclos naturais do dia e da noite, pode ser explicado por uma teoria geral da queda, com base na existência do corpo.

A biologia vem explicar o adormecimento ascendente das resistências físicas, pois o cérebro é o último órgão a manter-se desperto. O sonho, porém, oferece-se como um enigma só decifrável pela psicologia profunda. Bergson estuda então o sono magnético, que apresenta maiores analogias com o sono adâmico em que se elabora a criação de Eva. O processo pelo qual se opera esta segunda espécie de sono é inverso do processo segundo o qual se dá o sono natural. A acção dos ritmos, artisticamente dirigidos, do gesto, do sopro e da voz, sugere ao filósofo uma inédita explicação da arte. Pelos olhos se transmite o fascínio das figuras plásticas, pelos ouvidos o encantamento das formas rítmicas. O ritmo essencial é o binário, que encanta, adormece e torna a alma passiva à emanação das imagens do sonho, – ao mito versificado pelo poeta. O modernismo, ao combater o estudo da prosódia, não pode nunca ser confundido com o bergsonismo.

O sono supranormal corresponderá a uma operação do espírito que Bergson designa por intuição. Diz assim um texto conhecido: «Faz por sair de Ti mesmo, como acontece aos que dormem e sonham, mas Tu sem dormir!» Falar aqui de sono só é possível porque antes de passar pelo sono ninguém desperta para a vida supranormal do espírito. Trata-se de fazer a viagem ao contrário, pela absorpção, no centro superior do ser de todos os elementos psíquicos. Mas uma barreira, simbolizada pela queda, impede a passagem para os planos superiores da consciência, e, por isso, o exercício da razão, no sentido bergsonista de inteligência, não nos liberta das condições limitativas do espaço. Ao filósofo importaria ver como Bergson relaciona com uma teoria dos tropos o processo de transmutação interior, desencadeado pela intuição.

Tudo quanto ouvimos e lemos nos contos fantásticos da idade em que ainda não sabemos falar, as metamorfoses dos homens em animais, o aparecimento súbito e espantoso de palácios, a descida aos subterrâneos com árvores de pedras preciosas, é aquilo que a filosofia de Bergson fala transformando em processos lógicos o que o positivismo só pode ver como esquemas pré-lógicos, ao descrever como história a gradual revelação do espírito. Não é apenas, porém, um erro de perspectiva que aqui comete o positivismo. Ao negar realidade à imaginação no plano gnósico, esta doutrina para homens que não esperam nascer segunda vez fica incapaz de, perante os poucos fenómenos que admite, dar a sua articulação em leis com autêntico carácter de ciência. De modo que o positivismo é a menos científica das explicações da natureza e da vida humana, aquela que menos adequa o pensamento à realidade. A natureza é a metamorfose, inexplicável mecanicamente e na humanidade não há nada, absolutamente nada, que se represente por um movimento que não implique a operação secreta de agentes activos.

«Todos os seres, todos os fenómenos da natureza, estão ligados, como se entre eles houvesse fios invisíveis, pelas leis misteriosas da analogia». Relacionando esta bela e sábia frase de Bergson com o quanto nos diz sobre a simpatia e a antipatia dos seres, estamos no limiar duma poética em que os movimentos da palavra não se dissociam de repercussões psíquicas e até físicas. A analogia, como a praticam os cientistas, reduz-se a esquemas mecânicos, constituídos pelas abstracções mentais que elaboramos sobre as formas viventes. Pode então ser formulada uma regra de três em que o termo desconhecido substitui e ilude a causa oculta e activa. A analogia, para Bergson é a evolução criadora do pensamento.

Daqui deriva o interesse do estudo da filosofia, com o fim de encontrar os instrumentos lógicos, os órgãos, o organon do pensamento. Bergson atribui grande importância ao som, na sua modalidade humana. Quem ler, com o ouvido atento, uma página dum livro seu, verifica que os sons das palavras se articulam segundo significações, que não são as dadas pelo arranjo sintático dos termos do discurso. Isto, que à primeira vista, parece um jogo sem consequências na ordem filosófica, à segunda vista, surge como um processo de persuasão de quem sabe que a acção sobre o inconsciente do leitor, sendo embora mais lenta nos efeitos de repercussão remota, é muito mais subtil, profunda e transformadora. À terceira vista, implica uma concepção da palavra e das suas relações com o pensamento, segundo a qual essas relações não se estabelecem pela inteligência dos esquemas visuais, mas pela intuição dos elementos primitivos do som primordial, donde emerge, segundo o Génesis, a primordial luz.

Vejamos agora, porque tem oportunidade, como Bergson via a linguística, propriamente, dentro da mesma ordem de ideias. Ele admitia que os mesmos princípios que explicam o homem singular explicam também a humanidade e o universo. Assim, a sociedade igualmente dorme um sono magnético, no qual as imagens lhe são sugeridas por agentes externos, sobre cuja natureza no Riso se pronuncia mais claramente. Daqui, a importância dos estudos linguísticos, de modo a situar, classificar e caracterizar as correntes mentais dominantes no espaço e no tempo. Quanto diverge este ponto de vista do da sociologia positivista escusado é dizê-lo. As linguagens, na medida em que fixam preconceitos e imagens, são índices exactos do modo como se organizam as influências errantes, errantes porque sem relação com princípios superiores. O princípio de organização é a inteligência, palavra que Bergson usa mal para designar a faculdade de perceber, conceber e realizar um espaço sem qualidades. A noção dum meio homogéneo constitui a base de fabricação de máquinas, dos vários artifícios empregados para captar e dirigir as forças naturais. Analogamente, a língua funciona como um mecanismo utilizável na apreensão das forças subtis e muito mais poderosas da imaginação.

Julgamos chegado o momento de terminar estes apontamentos, mas não queremos fazê-lo sem apresentar as nossas humildes objecções. A poética de Bergson é muito mais uma poética do estilo do que uma poética do símbolo, a não ser que não tivéssemos sabido ler bem. O mundo invisível, a que os filósofos chamam o espírito invisível, pode, com efeito, ser concebido directamente, sem a intermediação de imagens, porque é próprio do espírito conhecer-se; mas a poesia, sendo inferior à filosofia, exprime-se por símbolos que condensam, ou sinalam, ou traduzem as universais significações concretas.

Esta minoração da arte como simbólica coincide, em Bergson, com a confusão dos géneros literários, que não identifica às substâncias, aliás como lhe acontece perante os géneros biológicos. Há, no seu pensamento, a tendência para um monismo místico, muito semelhante ao de Sampaio Bruno, com a sua teoria do homogéneo inicial. A divisão atómica, agenciada pela matéria, há-de corresponder, inversamente no espírito, à permanência dos diferentes, porque só o diferente, concebido como Leibnitz concebe a mónada, assegura o princípio da unidade transcendente. É sempre, porém, difícil tomar posição perante um pensador que só se exprime por cifras.

 

António Telmo



[1] 57, ano II, n.º 5, Setembro de 1958, p. 11.

[2] Nota do editor – É provável que se trate de gralha tipográfica, e que António Telmo tenha escrito, no original, “meios”.

 

VOZ PASSIVA. 70

03-09-2016 14:30

Em 20 de Junho de 1980, António Telmo proferiu, na Sala dos Espelhos do Palácio Foz, a célebre conferência “O Segredo d’Os Lusíadas”. Integrada nas comemorações oficiais do IV Centenário da morte de Camões, resultou de um convite de Afonso Botelho, seu amigo e condiscípulo no magistério de Álvaro Ribeiro e José Marinho. Botelho era então o Director de Serviços Literários da Direcção-Geral da Divulgação, numa época em que António Braz Teixeira era Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros. A título de curiosidade, refira-se que Telmo recebeu, de honorários, 6.000 escudos pela realização da conferência, que viria primeiramente a ser publicada no livro Retrato de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas, editado pela Secretaria de Estado da Comunicação Social. Mais tarde seria recolhida em Filosofia e Kabbalah, de 1989, constando hoje, também, de Luís de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas, III Volume das Obras Completas de António Telmo, que foi lançado em 20 de Junho de 2015, em Estremoz, trinta e cinco depois da realização da conferência camonina de Lisboa.

A apresentação do conferencista coube a Afonso Botelho. Dela nos ficou o respectivo texto, igualmente foi dado à estampa em Retrato de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas. 

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Apresentação do Sr. Dr. António Telmo pelo Sr. Dr. Afonso Botelho, Director de Serviços Literários[1]

Afonso Botelho

 

Na modesta proporção que um brevíssimo espaço de tempo nos consentiu, juntámos nesta exposição em torno de um mesmo tema, alguns géneros artísticos, vários gostos e épocas, diversas culturas nacionais.

Quem quiser pode, com esta matéria, fazer diferentes leituras do retrato de Camões, desde que não rejeite o estímulo que ela constitui para a imaginação. Porque, conforme o sentido da legenda de uma estampa, ali exposta, a imagem dá-nos apenas o que teria sido o corpo do poeta, enquanto a sua nobilíssima obra o revela à imaginação. O que se torna visível na diversidade destes retratos, mais não é do que uma ajuda para que encontremos, o que em todos, e em nós próprios, está como invisível.

Não foi, assim, nosso propósito acentuar a multiplicidade e consequente indefinição das imagens plásticas, mas, pelo contrário, apresentar, na sua variação e diferença, degraus de um conhecimento ascendente para o uno. E confirmámos esse intento, acompanhando a exposição iconográfica com outras interpretações, ordenadas no mesmo sentido – do visível para o invisível. Eis porque, nas duas primeiras conferências, se foi configurando o poeta, por intermédio dos sinais concretos que deixou nas letras e na admiração de homens ilustres, tanto como nos indícios que os inventários familiares registavam, nos períodos essenciais da história, em que a aristocracia do sangue tende a identificar-se com a aristocracia do espírito. Eis porque, também hoje, vos proporcionámos a aproximação de uma leitura de Camões que nos inicie no que até agora, mais do que invisível, se tenha guardado secreto.

Ainda no sentido da legenda a que aludimos, nos anima o desejo de conhecer o maior segredo de Camões, que não é certamente uma mensagem transmitida de emissor a receptor, na modalidade mecanicista que hoje se adopta para ensinar a língua pátria, mas a que estará velada na «nobilíssima obra». Por isso pedimos ao autor da História Secreta de Portugal que nos dissesse qual o segredo d’Os Lusíadas.

Seria impertinente este pedido, se António Telmo não se tivesse proposto realizar uma história secreta de Portugal e se não a tivesse realizado como a realizou, lendo o interior do exterior do ser, segundo «rigorosa aplicação da lei da analogia».

Um dos capítulos desta obra crucial (do calvário da Pátria Portuguesa) abre-nos o caminho para o saber esotérico d’Os Lusíadas.

A ruptura entre este saber e aquele que converge nas instituições de ensino, nas igrejas do culto e do oculto, e nas forças organizadas da cultura, obrigar-nos-á a um arriscado salto de qualidade, mas o conferencista de hoje, à claridade íntima de iniciado, associa os dons do magistério, em que é, aliás, exímio. Diríamos noutra linguagem, que ele se ilumina na tradição do pensamento português, que aflorou, nos começos do século, no movimento da Renascença Portuguesa, que foi ensinado na Faculdade de Letras do Porto, por Leonardo, e, que de discipulato em discipulato, não mais deixará de criar escolas de filosofia.

Até no pequeno percurso, que esta exposição iconográfica nos oferece, é fácil reconhecer a degradação dos princípios e o afastamento dos arquétipos, na sucessão dos retratos de Camões.

Enquanto o desenho das estampas mais antigas preserva ainda, não direi a riqueza mas, pelo menos, o rigor da simbólica e, nas composições românticas, se eleva de novo a realidade à altura dos grandes ideais, as obras em que se firma o realismo valem tão-só pela factura artística. Caso extremo desta pobreza de símbolos é, sem dúvida, a aguarela assinalada por el-rei D. Carlos, que figura o Príncipe dos Poetas como um velho reformado da corte, suporte de cores de um grande aguarelista, manequim de vestuário da época. A realeza estava já distante do segredo d’Os Lusíadas, como a cultura dos seus detractores o estava também. A realeza havia perdido os fundamentos primordiais do real, os homens cultos de então mal sabiam o que haviam de fazer com ele.

Veja-se o que se passa com os dois Bordalo Pinheiro, talentosos artistas que dominam uma geração. Em face d’Os Lusíadas, ainda é o caricaturista, de arte menor, que melhor exprime a grandeza e qualidade espiritual do Poema – coloca o Zé-Povinho inclinando-se para a superioridade d’Os Lusíadas, apesar dos esforços dos gnomos políticos do tempo para que ele opte pela maior valia da Carta Constitucional. O povo não lera o Poema mas era e é capaz de jurar sobre ele, como jura sobre a Bíblia, mesmo que não a tenha lido na imagem dada por Lopes Ribeiro ao introduzir aqui o filme Camões. Em contrapartida, o grande Columbano, nas alegorias inspiradas na épica camoniana, contradiz-se esteticamente, porque o símbolo não procura o simbolizado e o real das figuras vicia o irreal. São mulheres, em vez de seres mitológicos o que Columbano pinta, são modelos de «atelier», mas não modelos da História de um Povo.

Culturalmente, será já este século um recomeçar, sob o signo dos mais transcendentes poetas que Portugal teve, depois de Camões. Ou, com a lucidez dos filósofos, poderá também ser a visão serena da própria ruptura.

Tudo indica, porém, que o corpo da Pátria sofrerá ainda, por longa espera, os efeitos das doutrinas que lhe ocuparam a alma.

Enquanto o idealismo crítico subjugar o modo de ser colectivo, invertendo o sentido do real, obrigando-nos a pensar por equivocidade, como se fosse por analogia, quem poderá ler os sinais do outro Portugal que somos, dos outros Lusíadas que são?! Quem poderá imaginar o outro retrato de Camões, o outro dos múltiplos que é possível juntar e expor?!

Vamos ouvindo com toda a atenção quem nos possa segredar algo sobre o que mais nos importa. Tenhamos, contudo, a certeza que esse alguém será, como António Telmo é, discípulo e mestre numa escola secreta de pensamento português.



[1] Publicado em Retrato de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas, Lisboa, Secretaria de Estado da Comunicação Social – Direcção-Geral da Divulgação, pp. 61-65.

 

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