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DOS LIVROS. 53

05-11-2016 16:47

Saído a lume, pela primeira vez, no número 30 (de Abril/Maio de 2004) de Sesimbra Eventos, agenda cultural do Município de Sesimbra, e posteriormente incluído em Sesimbra, o lugar onde se não morre (livro a que, de resto, acaba por dar o título) e no Volume III das Obras Completas de António Telmo, Luís de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas seguido de Páginas Autobiográficas, o texto que hoje publicamos destinava-se a apresentar a Revista Municipal de Sesimbra, publicação nunca concretizada, mas para a qual Telmo, que seria o seu Director, chegou a solicitar colaboração a Agostinho da Silva, então já por Sesimbra, e que para ela compôs o sublime “Projecto”, já aqui disponível, e agregada à marginália daquele volume.

Da embrionária Revista Municipal dará notícia O Sesimbrense, na sua edição de 17 de Janeiro de 1971: «Espera-se a publicação, já estudada, de uma «Revista Municipal», que também será dirigida por António Telmo, e onde se arquivem trabalhos – de sesimbrenses e de outros – de interesse regional e nacional.»

Graças a recente investigação levada a cabo por João Augusto Aldeia, membro do Projecto António Telmo. Vida e Obra, sabemos hoje mais sobre a projectada publicação. Com efeito, num livro de actas da Câmara Municipal de Sesimbra, com respeito à reunião de 29 de Dezembro de 1969, consta a lacónica deliberação: «Biblioteca Municipal: Revista Cultural - foi deliberado criar uma revista de divulgação cultural da biblioteca municipal.»

O projecto gorou-se, o que possivelmente se ficou a dever à partida de Telmo para o Redondo, na segunda metade de 1971. Mas os novos dados, agora coligidos, são por modo a fazer-nos supor que ele constituía uma prioridade para Telmo, e que quer o seu texto, quer o de Agostinho, tenham sido escritos pouco tempo decorrido sobre aquela deliberação.

 

Apresentação

 

Aconteceu em Lisboa, no Grémio Literário, na alta-roda dos intelectuais; falava-se da Califórnia e dos portugueses que aí vivem, da América do Sul e do povo brasileiro. De repente alguém, que não é de Sesimbra, atirou esta frase que deixou estarrecidos nos seus lugares os quatro sesimbrenses que assistiam ao colóquio: Não é na Califórnia nem no Brasil que devemos situar o Centro do Mundo; é em Sesimbra! Se a frase tivesse saído da boca dum sesimbrense, vamos lá!, não seria muito bonito num ambiente daqueles, com todas aquelas cabeças pejadas de grandes temas e de grandes espaços intelectuais, que tudo vêem, entendem, e fazem entender os outros pela dimensão da Europa e do Mundo. Mas o que surpreende e nos deixa perplexos é ter ela sido proferida por alguém que apenas conhece Sesimbra como turista, de ter passado aqui e ter visto este mar, este castelo, estas casas, esta gente, esta vila, numa tarde de sol inexpressiva como todas as tardes de sol em que todas as pessoas fazem o mesmo por não serem capazes de fazer coisas diferentes.

Sesimbra, o Centro do Mundo! E porquê? E como? Interrompeu o Agostinho da Silva, uma espécie de flagelo de Deus pela ideia como Atila o foi pelas patas do cavalo, para dizer que o facto de uns porem o Paraíso, o tal Centro do Mundo, em Brasília, outros na Califórnia, outros em Sesimbra, somente significa que o lugar onde se não morre está por toda a parte, por toda a parte onde haja homens que, pensando e imaginando, desceram tão profundamente dentro de si próprios que tocaram aquele ponto do espírito para o qual convergem por infinitos raios as várias esferas que definem a actividade dos outros homens. Eis o paradoxo da cultura: e é que tal homem ou tais homens é mais fácil e certo encontrá-lo ou encontrá-los no pescador que nunca ouviu falar de Einstein ou de Sartre ou de Russel, mas que tem dentro de si as grutas do ser ainda inexploradas pelos outros homens, mas onde ressoa, num ritmo ancestral e idêntico, a grande voz do mar. Por isso, todas as publicações culturais, como esta que agora nasce, deveriam nascer para dizer mal da cultura, de que já se ria Sócrates, o homem mais culto da Grécia, para quem, toda a gente sabe, o princípio da ciência residia na terra virgem das almas sem ciência nenhuma. Em Portugal, cada um de nós é um Mestre e o crer-se Mestre, no ofício, na profissão, no negócio e em tudo o mais, cresce sempre na razão inversa da sua autêntica sabedoria. Daqui o culto que prestamos aos catedráticos, aos que exibem livros como outros exibem automóveis, aos que disfarçam num pomposo título universitário ou num mais modesto diploma de formatura a sua incapacidade de ver, de investigar e, portanto, de perguntar constantemente. É uma banalidade que sempre se esquece: a de que a inteligência se mede muito mais pelas perguntas que se fazem do que pelas respostas que se dão.

Mas se na auto-suficiência de quem funciona como mestre não há nem pode haver a fecunda expectativa da pergunta, o entusiasmo da hipótese, a certeira aventura da investigação, existe sim a terrível, fria, atenção aos defeitos dos outros, aos erros (de errar, vagabundear, procurar) que todos necessariamente vamos tendo numa vida que queiramos ou não é sempre viagem, embora quase sempre de rotina depois de se ter ido à Índia, e assim em cada mestre há um crítico, o que corresponde zoologicamente à girafa, com um pescoço muito comprido a separar a cabeça do corpo e dos seus instintos, emoções, sentimentos, e uma boca de roedor que vai mastigando todas as plantas que vivem no alto, ali onde só deviam chegar pássaros e abelhas.

Triste é ter que dizê-lo: em cada português vivem de mãos dadas um mestre e um crítico. Daqui a dificuldade de um suplemento de cultura como este. Ele só serviria para os que infelizmente não sabem ler. Mas resta a esperança de que nos que sabem ler, esteja aquele que sabe e não sabe ao mesmo tempo, isto é aquele que em cada novo conhecimento adquirido sinta não uma cadeira ou cátedra em que se possa sentar definitivamente, mas uma nova forma de interrogação, o que esperamos se encontre numa terra em que o constante vai-vem do mar corrói todas as arestas definidas e destrói todos os frágeis portos dos homens.

 

António Telmo

 

(Publicado em Luís de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas seguido de Páginas Autobiográficas, 2015)

UNIVERSO TÉLMICO. 45

01-11-2016 16:13

A pobreza dos sem tempo (1)

Risoleta C. Pinto Pedro

 

Há que saber distinguir os vários tipos de sentimento de carência em relação ao tempo:

. O tempo dos modernos escravos, cujo dia é totalmente preenchido pelo trabalho, deslocações para e do trabalho e o indispensável e insuficiente repouso para no dia seguinte continuarem a trabalhar e por conseguinte nem lhes sobra tempo para pensar ou sentir o que quereriam para lá do trabalho.

. O daqueles que, embora sabendo-o e pensando-o, não dispõem de tempo para o fazer.

. O dos que, conseguindo furar o sistema e tendo muitos pontos de interesse, não conseguem ter tempo para todos…

Tenho a sorte ou o privilégio (não digo merecimento, porque esse todos têm) de me situar no último grupo e de não depender do que crio para viver. Contudo, é disso que vivo. Não sendo isso que me paga as contas.

Assim, a criação é o meu espaço e o meu tempo de inteira liberdade. Se me apetecer ficar dez horas a escrever em non-stop, posso fazê-lo. Já aconteceu. E não as sinto. Isto é, não as sinto como peso, mas como leveza. É o tempo do relógio que, paradoxalmente, vem em minha ajuda a retirar-me da eternidade onde não sinto o passar das horas e o meu corpo fica repousado (a prova dos nove de que a mente está bem) como se voltasse à infância. Por outro lado, se quisesse passar uns dias sem escrever, desejo que nunca tive, poderia fazê-lo. E não acontecendo, nem desejando que aconteça, gosto de saber que poderia dar-me ao luxo de deixar acontecer.

O preço, que é ao mesmo tempo um prémio, é não me sentir obrigada a ir a nenhum lugar excepto aqueles aonde me leva o coração, ou a ter de falar com quem não me apetece, sobre o que não me apetece. Não vivo o tempo da tribo, vivo o meu tempo. E, não sendo escultora, moldo-o como gosto.

Como Agostinho da Silva, quando nos propõe o regresso a uma «vida conversável» ou à vagabundagem, no seu sentido mais solar.

Há uns bons anos, a minha filha, ainda muito pequenina, que andava na natação, no tai-chi, na dança e no piano e tudo lhe era fácil e natural, pelo que, julgava eu, nada lhe seria pesado, um dia virou-se para mim e disse-me que não queria voltar a nenhuma aula daquelasPorquê? Socorro-me do discurso indirecto livre para vos transmitir a sua resposta: precisava de mais tempo para brincar. Assim passou a acontecer. Brincou, brincou e brincou até que se fartou e começou...  a namorar. O sinal que a denunciou foi quando escondeu os ursos de peluche no armário, avessos à dignidade do novo estatuto.

Eu ainda ando a aprender a brincar com o tempo, a não o sofrer nem a empurrá-lo para a frente. A senti-lo, cheirá-lo, acariciá-lo, saboreá-lo, observá-lo. O que me vale é que as minhas actividades principais, nomeadamente a de escritora, são uma espécie de meditação, de que saio renascida como de um spa. A arte, que me salvou uma vez da eternidade, continua a salvar-me do tempo. Mas se não fosse isso, teria sérias dificuldades. Porque tenho um problema. É que gosto de muitas coisas e não tenho tempo para todas. No momento de vida em que estou, já não sou o tipo de pessoa que não tem tempo para o prazer por ter de ganhar a vida. Mas na verdade, quando tinha de ganhar a vida, nunca me alienei do prazer, trazendo-o para dentro do trabalho. O meu problema é que gosto de tanta coisa, que não tenho tempo para tudo. É como se vivesse numa casa cheia de guloseimas e não pudesse comê-las todas. Por falta de estômago ou de… tempo. Nesta situação, é preciso fazer escolhas. Escolher umas coisas e deixar, abandonar, largar outras. Não se pode avançar com carga excessiva às costas, ainda que sejam chocolates ou caramelos. É preciso escolher, e isso implica perder ou deixar para trás algumas coisas. Talvez o nosso problema com o tempo seja sobretudo um problema de escolha. Há uma canção cuja autoria não consigo assegurar, mas penso ser interpretada por Sara Tavares, cujo texto diz: «Sei que posso querer tudo, mas nem tudo me convém…».

De modo que convidarem-me a falar sobre o tempo é como convidar um criminoso a falar sobre a criminalidade. Não sou a pessoa mais indicada, mas talvez as pessoas menos indicadas sejam as mais indicadas. Se até aqui os legisladores, os políticos, os psiquiatras, os psicólogos, os polícias não conseguiram erradicar a criminalidade, talvez tenha chegado o momento de chamar os criminosos. Assim se passa com o tempo. Se quem mais o sofre é quem melhor o conhece, talvez tenha, por isso, uma palavra a dizer, sendo que desconfio que qualquer ser humano, e não apenas eu, é um especialista do tempo, essa arte de suportar o peso do que não existe.

O tempo está relacionado com a questão da falta, do excesso, da inutilidade e do valor.

Há quem fale do desperdício de tempo. É um tema muito controverso e depende do que significar desperdício para cada um. Desperdiço tempo quando estou a trabalhar? Quando não estou a trabalhar? Quando vou à esplanada a conversar com um amigo? Quando estou na fila da ponte ou de uma qualquer cintura interna, externa ou marginal? Quando estou a dormir? Quando não estou a dormir? Quando ando a vaguear? Quando vou ver um filme estúpido? Quando fico um dia a jogar? Quando passo um dia a ler? Quando luto contra o sono? Quando passo um dia a dormir? Por aqui não nos entenderemos. Mas sei uma coisa, e não tenho sobre ela a menor dúvida: os minutos, horas, dias mais bem gastos de que me recordo, foram passados a conversar com o meu pai quando ele já estava numa cadeira de rodas devido ao Parkinson e o sentido do que dizia já não batia muito certo com a lógica, mas o que nos ríamos ambos com o nonsense das suas desconversas... Nesta fase, o meu pai já não podia dar-me nada, nem ensinar-me nada, ou ajudar-me em nada, nem sequer conseguia ter uma conversa com pés e cabeça. E no entanto, como me era precioso e preciso esse tempo que não servia para nada! Porque ele estava aqui. Era totalmente inútil e tinha todo o valor.

Estar, brincar, conversar com uma criança também é uma coisa que não serve para nada e é a coisa mais valiosa que se pode fazer no mundo.  Ou escrever um poema, esse ser inerte e inútil que nos salva. Ou escrever uma história cheia de pessoas que não existem e de factos que nunca aconteceram. Ou apoiar um animal em fim de vida, já incontinente e de olhar doce. Ficar ali a olhar para ele, a reconhecer o seu ser, a acariciá-lo, a apoiá-lo, a limpá-lo, a alimentá-lo, ou nada disso, apenas a dizer-lhe, com os olhos, que fique enquanto quiser, ter-nos-á ao seu lado e que pode partir quando já aqui não quiser estar, que permanecerá para sempre no nosso coração. São momentos em que libertamos o tempo e a nós mesmos, e conhecemos o verdadeiro valor. Que só está presente no inútil, no fraco, no pequeno e dentro de cada um de nós. Independentemente do que temos ou fazemos.

O contrário é sofrermos o tempo, ou por o sentirmos demais ou, mais frequentemente, por o sentirmos como escasso. No primeiro caso, estamos perante o tédio, como se o tempo fosse excessivo «para a nossa camioneta». No segundo, sentimos a angústia dos ponteiros a correr. Como se o tempo não chegasse.

Quando nascemos, a primeira respiração é, a maior parte das vezes, escassa ou aflitiva. A experiência fica na memória celular, como: Não há ar suficiente no Universo. Essa memória de escassez transmite-se ao dinheiro, ao amor, ao… tempo. E a vida, que está a nascer, mas já ameaçada pelo medo da morte, é desvalorizada. Começamos desde ali, inconscientemente, numa corrida urgente para o final cuja data antecipamos… uma corrida contra o tempo. E nada disto tem de ser assim. Começa a ser diferente, através da consciência que os pais, os educadores, os profissionais de saúde e cada um vai adquirindo sobre este absurdo assunto.

Mas nem sempre a humanidade viveu escravizada ao tempo. Nós, portugueses, que já soubemos vivê-lo poeticamente, podemos redescobri-lo. Quando sucessivos soberanos ao longo de gerações enviaram delegações por terra e mar à Etiópia em busca de Preste João e de seu maravilhoso reino, que significa isto? Que eram ingénuos? Que queriam gastar dinheiro e vidas inutilmente? Ou que estavam, muito mais do que nós, libertos do tempo, de algum modo situados num tempo poético ou eterno, esse que havia de chegar do futuro e salvar do excesso de pragmatismo a humanidade a partir da pretérita e eterna arte de navegar no tempo?

Somos o povo melhor preparado para ensaiar e ensinar ao mundo esta nova maneira de nos relacionarmos com o tempo, mas temos de reaprender o que já soubemos muito bem fazer.

Esses nossos antigos eus faziam o tempo e imortalizaram um imperador conservando-o no seu reino por sucessivos séculos à espera dos Portugueses que tanto o amavam sem o conhecerem. Era comércio, mas também era fé. E era amor. Havia inocência neste amplo gesto libertador do tempo. Ou escultor do espaço, pelo sagrado da viagem. Nós éramos o Preste João e estávamos à espera de nós mesmos.

E quem o fez foram os melhores de entre os melhores. Outro visionário, o Padre António Vieira, escreveu algo que no tempo em que ocorreu devia ser um título inimaginável. Ainda hoje, a História do Futuro o é, para o senso comum.

Nesta linha, diz Agostinho da Silva numa carta a António Telmo, referindo Os Lusíadas, que

«tudo se passa ao mesmo tempo no eterno dos deuses e até num eterno que sobrepassa o eterno dos deuses e no tempo dos homens, sendo que provavelmente o tempo dos homens não é mais que o sinal ou símbolo do eterno dos deuses.» (2)

Isto é, o tempo dos homens é que não é real, é apenas um deíctico, aponta para outro tempo. Não afirmo isto querendo diabolizar o tempo cronológico, mas alertando para a necessidade de acabar com o seu despotismo.

E acrescentaria que talvez o tempo da criação seja o que mais se aproxima disto, sendo que, como muito bem explicou António Telmo, também essa viagem dos portugueses se fez fora do tempo, porque é de um tempo iniciático que se trata:

«A hipótese que ponho é que Os Lusíadas são a narrativa poética de uma viagem de conhecimento, ou, se preferirdes, de uma ‘viagem iniciática’». (2)

Elenca seguidamente dez características da obra que fazem dela a tal viagem de conhecimento, sendo uma delas constituir:

        «uma infracção do que é lícito, uma violação do que é proibido ou vedado». (2)

Ora, nos tempos nossos, se quisermos ser integralmente livres, estamos sempre a violar o que é proibido ou vedado. Até o ar puro já é vedado, porque a possibilidade de conspurcá-lo pertence aos poderosos. Assim, é o tempo o único do qual podemos dispor sem interferências, seja na arte, seja na vagabundagem, como a experimentaram os portugueses ao longo de séculos, e que os nossos filósofos designaram como uma síntese divina do movimento e da quietude.

 Se o tempo está directamente ligado ao espaço, o não tempo reside no centro, esse refúgio, diria um budista, ou umbigo de Deus, digo eu, essa síntese de tudo, onde tudo é possível, e os poderosos do mundo deixam de ter poder.

É depois de terem vivido a experiência da Ilha do Amor, esse espaço outro ou não espaço, mas não menos real, essa ilha de que cada um é habitado, que os portugueses podem conhecer a eternidade com que o tempo se domina:

«Levam refresco e nobre mantimento;

Levam a companhia desejada

Das Ninfas, que hão-de ter eternamente,

Por mais tempo que o Sol o Mundo aquente.» (3)

 

Por isso, volto a citar António Telmo em O Segredo dos Lusíadas:

«É deste ponto de vista que sugerimos ao leitor a aproximação d’Os Lusíadas. Aquilo que neles é dado como histórico, como discurso no tempo histórico e expansão no espaço geográfico, se for reflectido à luz do Arquétipo da Ilha, tornar-se-á transparente pela instauração interior e exterior do espaço e do tempo da alma. Deixarão Os Lusíadas de ser uma epopeia do passado, ensináveis nas escolas que do passado se ocupam. E aquilo que um dia escrevemos e dissemos – que Os Lusíadas são o Livro Sagrado de Portugal –, não terá sido uma palavra vã.» (4)

 

Porém, nesta dimensão do denso onde estamos a comunicar, tempo e espaço são dificilmente separáveis. Talvez por isso, alguns sem tecto, não todos, mas em todo o caso alguns, que não vivem a sua condição como fatalidade, mas como escolha, ou pelo menos como semi-escolha, ou escolha inconsciente para se sentirem senhores do tempo, sentem necessidade de abdicar da senhoria do espaço. Como se não fosse possível acumular duas mordomias, espaço e tempo. Como se a hipoteca da alma, que é o preço de um espaço, ou pelo menos assim a sentem, fosse impeditiva do domínio do tempo. Ou da condição que a ele conduz, que é o desinteresse. Os senhores do tempo não pensam no tempo, sentem o corpo na sua relação com os ciclos. Levantar, comer, vagabundear, dormir... entre a estrela da manhã e a da tarde se pontua a liberdade dos sem tecto. Modernos místicos, os que vivem no asfalto. Talvez por essa razão seja frequente ver pessoas sem abrigo acompanhadas por animais, esses outros seres que vivem acima do tempo.

Recordemos, porque não é demais, a crença de escassez da humanidade, já atrás referida, que radica na primeira respiração do mundo. Quando a passagem da película de protecção e abundância sem esforço que é a placenta se faz para a aflição do primeiro ar sofrido a choro, do primeiro medo de que não baste, de que o ar rareie, não seja suficiente para viver. Do extremo conforto à aflição da rarefacção do ar, dor na divina ventoinha interna. Esse sentimento de escassez vai contagiar toda a nossa relação com o mundo. Se nos falta o ar ao entrar na vida, ficamos plasmados nessa crença: se não há ar que sustente o meu viver, como é que há vida? Neste medo começa tudo: os que amealham, acumulam e roubam, e os que se deixam roubar. Mas a experiência foi semelhante e a crença é a mesma. A de que não existe ar suficiente no Universo. À crença da insuficiência do ar acrescentam-se as outras: amor, dinheiro, tempo... Uns pagam pelo ar, pela telha, pela água e pelo sol, outros recebem e amealham. Outros desistem. Mas todos têm medo. Todos são mendigos. Mendigos roubam mendigos. A única salvação dos que se sentem despojados do pouco que acreditam existir é o tempo. Esse luxo dos que não têm nada, inacessível aos que, violando, acreditam ter tudo. Não tem fonte de alimentação, não faz parte de uma experiência táctil, não se come, não se bebe, não se vê. É como se não existisse, como o ar. Subtil sistema de escravização dos dominadores. Existe uma conspiração dos silenciosos, por isso não posso dizer isto muito alto, que é permitir que os que se mostram como dominadores se vão deixando abater por esse silencioso cavalo de Tróia que é o tempo: invisível, subtil, insinuante, poderoso.

Assim tem sido. Mas não tem de ser assim. A arte pode ser uma escola de libertação desta infernal cadeia onde todos sofrem.

Quando o criador tem em mãos a sua obra, não há tempo. Apenas o escurecer ou o clarear do dia testemunha a passagem das horas. Artistas e mendigos são cúmplices desta revolução silenciosa com o tempo que está para lá de todos os tiques e ataques, de todos os tiquetaques.

Sobre o antiquíssimo drama da pobreza no mundose falarmos com adultos (e tenho levantado este assunto, para testar), sobre esta ideia da erradicação da pobreza passando pela ilegalização, olham-nos esbugalhadamente como se estivéssemos loucos. Mas as crianças, essas, acham normal. Porque é. E porque ainda não enlouqueceram. Mas é preciso mostrar-lhes que não estão sós e que há ainda uns adultos que as compreendem. Não é que elas precisem de aprender o que já (ainda) sabem. Nós é que precisamos delas, para que não esqueçam ou não desistam. São a nossa segurança e a nossa memória. Por isso é importante recordar a festa judaica de Chavuoth, evocada por António Carlos Carvalho, no Congresso Internacional sobre o Espírito Santo, que se realizou no passado Setembro em Alenquer:

«[…] Mas havia pelo menos uma festa que podiam celebrar às claras, mesmo nesse regime opressivo e de quotidano vigiado: a festa de Chavuoth. Falamos do Pentecostes, da festa do Espírito Santo, ou do Divino, um culto essencialmente popular, celebrado em quase todo o País desde tempos muito antigos, embora depois tivesse sido oficializado por D. Dinis e pela rainha Santa Isabel.

[…]Chavuoth é também a festa da realeza, a de Deus, Rei dos Reis – daí a coroa e a coroação do Imperador, que era sempre um homem pobre e humilde (antes de passar a ser um menino), como David e uma figura do Rei-Messias. E essa é uma outra faceta de que esta festa se reveste: o seu carácter messiânico – o anúncio de um tempo em que não haverá fome nem sede (por isso o bodo da festa inclui pão, carne e vinho para todos), em que não haverá mais injustiças (daí a libertação dos presos das cadeias, como ainda se pode ver nas Festas do Divino em Paraty, Brasil) e em que reinará a paz no mundo e o reconhecimento universal  do Deus Uno, tal como foi anunciado pelos profetas inspirados pelo Espírito de Santidade – como Obadias, cuja profecia inclui uma referência a Sefarad, o nome bíblico da Península Ibérica. […]» (5)

«Não haverá fome nem sede», nem falta de tempo. Porque toda a carência é a mesma carência e a fome é de pão, de tempo e de amor.

Nós temos uma antiquíssima vocação e experiência e fé em e de como fazê-lo. Precisamos apenas de nos lembrarmos de lembrar.

 

Lisboa, 17 de Outubro de 2016

(1)Texto construído a partir de uma reflexão que serviu como base à minha participação no evento "Socorro! Estou sem tempo" Seminário que decorreu no Museu do Dinheiro no dia 17 de Outubro, dia Internacional para a erradicação da pobreza.. "Pelo humano como obra de Arte" (A pobreza dos sem tempo). Projecto Impossible - Passionate Happenings criado por Henrique Pinto.

(2)  TELMO, António. Luís de Camões e o Segredo d’ Os Lusíadas. III volume das Obras Completas. Ed. Zéfiro. Junho de 2015

(3)  Idem, ibidem

(4)    CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Canto X, 143

(5)     TELMO, António. Luís de Camões e o Segredo d’ Os Lusíadas. III volume das Obras Completas. Ed. Zéfiro. Junho de 2015

(6)    CARVALHO, António Carlos. “O Marranismo e o Culto do Espírito Santo em Portugal”, in: https://www.antonio-telmo-vida-e-obra.pt/news/universo-telmico-40/

DOS LIVROS. 52

01-11-2016 14:07

Do ensino da História de Portugal pela Mensagem de Fernando Pessoa

 

Tive a ideia de imaginar o que seria o ensino da História de Portugal se tivesse como compêndio básico desde os sete anos a Mensagem de Fernando Pessoa, progredindo, ao longo dos anos escolares até ao ensino superior, do exoterismo para o esoterismo, culminando na plena compreensão do nosso destino histórico pelo mito do Encoberto.

A interpretação da história de Portugal pelo mito do Encoberto é a interpretação da história de Portugal pela filosofia portuguesa. Retomando direcções que já se encontram n’Os Lusíadas pela ideia da Ilha a mover as gestas dos heróis e pela evidência que neles tem a figura do Rei que nela habitará, direcções que se encontram também em António Vieira com a História do Futuro, essa interpretação culminou, no século XX, nos livros de Sampaio Bruno, Agostinho da Silva e António Quadros, mas está mais ou menos evidente em todos os pensadores de filosofia portuguesa. A poesia que, quando é superior, é a companheira da filosofia renovou nas formas que lhe são próprias a mesma ideia, desde a Pátria de Guerra Junqueiro, pelo Marânus de Teixeira de Pascoaes, até à Mensagem de Pessoa.

Pois é, a Mensagem de Pessoa! Logo surge a objecção de que é um conjunto de textos muito difíceis, inacessíveis à inteligência das crianças e até dos professores. Vejamos se isto é verdade, se não é possível dar todo o ensino da história de Portugal desde o primeiro até ao último ano pelo fio com que se tece a Mensagem.

Nos primeiros anos, funcionaria predominantemente como um roteiro, definindo-se pelos seus momentos os momentos predominantes do programa. O professor não precisaria de ter qualquer conhecimento de natureza esotérica, embora fosse preferível que o tivesse para o envolver na sua apresentação exotérica do texto. Roteiro embora, certos poemas poderiam ser lidos e compreendidos no seu sentido literal por uma criança de sete ou oito anos. O primeiro, sobre a Europa, (“A Europa jaz, posta sobre os cotovelos”) com a ajuda dum mapa tornar-se-ia claríssimo verso a verso. Agora que está consumada a integração de Portugal na Europa, seria bom que as crianças tomassem consciência, nos termos adequados à idade, de que, perante um mapa, se pode dizer com Luís de Camões:

 

Eis aqui quase cume da cabeça

De Europa, toda o reino lusitano

Onde a terra se acaba e o mar começa

 

Ser-lhe-ia depois mostrado de maneira mais simples todo o sentido do nosso olhar atlântico.

A Mensagem é constituída por três partes: Brasão, Mar Português e O Encoberto, que correspondem historicamente à formação de Portugal, à sua expansão pelos descobrimentos marítimos, e, com demora no sebastianismo, ao seu ideal. O Brasão é um símbolo imenso na sua profundidade, mas de início seria utilizado como uma mnemónica. Qualquer criança suficientemente normal está apta para guardar na memória os sete castelos, as cinco quinas e a coroa com o Grifo, porque nessa idade ainda não houve tempo par lhe destruirmos a imaginação. Tendo como suporte no seu espírito essas imagens, seguiria com encanto o ensino do professor que lhe falasse de Ulisses e da Odisseia, da sua fundação de Lisboa, de Viriato e da guerrilha contra os Romanos, do Conde D. Henrique e dos Cruzados, do fundador da Pátria e da briga de D. Tareja com o filho, de D. Dinis, poeta, sábio e lavrador e, por fim, do glorioso matrimónio de D. João o Primeiro com D. Filipa de Lencastre.

A glória deste casamento manifestar-se-á pelas Quinas, cujo estudo se seguiria ao dos Castelos, dando-se assim ocasião a que o professor preparasse a Segunda fase, a dos Descobrimentos.

Julgo serem suficientes estas indicações para ver como seria fácil ensinar a uma criança pela Mensagem, ainda antes da puberdade, o que na história de Portugal é essencial por ser simbólico e, ao mesmo tempo, factual, isto é, real. Aliás, não seria simbólico se não fosse real, nem real se não fosse simbólico.

Quando, no Ensino Superior, isto é, na Universidade, se fizesse convergir para o uno a múltipla variedade dos acontecimentos históricos, o mito do Encoberto teria de ser pensado pela filosofia do Encoberto para que o mais fundo sentido da história de Portugal fosse apreendido pelos que soubessem interrogar.

Um ensino da história de Portugal que, de ciclo em ciclo de estudo, fosse aprofundando a compreensão da Mensagem, assumiria a forma de uma filosofia do Oculto. Os estudantes estariam, nesse estádio, aptos para a reflexão das várias expressões portuguesas dessa filosofia, desde A Ideia de Deus de Sampaio Bruno, pela Razão Experimental de Leonardo Coimbra e a Razão Animada de Álvaro Ribeiro, até à Teoria do Ser e da Verdade de José Marinho. Como a finalidade de tal ensino da história não é cultural, bastava a companhia reflexiva de um só destes filósofos, escolhido de acordo com as tendências especulativas de quem o escolhesse, depois de uma breve passagem pelos restantes. Por exemplo: aquele que se decidisse por José Marinho para intermediário do seu mestre interior na noção de Insubstancial Substante e na relação dela com a ideia de que o Aparente é o absolutamente Encoberto e de que o Encoberto é o absolutamente Aparente, teria um caminho deslumbrante de acesso a uma das mais altas e profundas significações do mito.

Na fase de iniciação à filosofia do Encoberto, o primeiro poema estudado dos quarenta e quatro de que se compõe a Mensagem deveria ser o último. O símbolo do nevoeiro é para Fernando Pessoa como, antes dele, para Sampaio Bruno, a expressão do mundo actual moldado pela ditadura da mediocridade. Esta fase está, como se sabe, claramente indicada no mito. O Rei só regressará quando, no termo do ciclo, as forças inferiores e subterrâneas, significadas pelo ferro e pelo petróleo que se extraem dos antros da terra tiverem vindo à superfície, anulando aqui toda a luz do espírito e toda a inteligência e todo o verídico sentimento. Por outro lado, o Encoberto é encoberto porque, os homens não são capazes de o ver no Aparente, no seu aparecer. Esta significação do mito que faz depender o regresso do Rei simultaneamente de se atingir o mais alto grau de estupidez e de haver a inteligência capaz de o reconhecer é uma contradição em que se envolvem direcções insuspeitas de procura. O nevoeiro não tem só o sentido que lhe atribui Fernando Pessoa. Ele encobre no seu seio a luz da madrugada nascente, é como que um «caos cintilante», para falar como Jacob Boehme, donde irromperá o Sol, «corpo de Deus vivo e desnudo».

Creio que bastam estas sugestões para o leitor inteligente. No início escola cultural, no meio escola exotérica, no termo escola acroamática. Três fases para o mesmo ensino da história de Portugal. E essas sugestões bastam pois nunca como hoje foi tão necessária a disciplina do arcano, mas também nunca foi tão necessário dizer abertamente e por toda a parte o que julgamos saber no seio dessa “actividade invisível” que é o pensamento.  

 

António Telmo

 

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)

 

UNIVERSO TÉLMICO. 44

23-10-2016 14:45

As últimas cartas de Agostinho

Luís Carlos dos Santos

Agradecer, antes de mais, o convite que me feito pelo amigo Pedro Martins, e também a organização do Congresso ao:

Gabinete de Estudos Agostinho da Silva

Projeto António Telmo. Vida e Obra.

Centro de Estudos Culturais e de Acção Social Raio de Luz

 

“As Últimas Cartas do Agostinho…”

 

O título desta comunicação “As Últimas Cartas do Agostinho…” refere-se a um livrinho por mim organizado e editado no Círculo de Animação Cultural de Alhos Vedros, em outubro de 1995, do qual foram feitos 50 exemplares, e que se constitui por um conjunto de 12 cartas enviadas por mão de Agostinho da Silva a um grupo de amigos com quem estava em contacto mais próximo, ou que se candidataram a destinatários de tão digníssima epístola.

O repto é endereçado pelo Professor em Carta subscrita na Lua Cheia de janeiro, 8/1/1993, onde diz: “Queridos Amigos, O imaginário Convento Sonho duns Irmãos Servidores me encarrega de vos comunicar que acaba de tomar posse de tudo quanto há  e me designa como seu agente junto de vós para tudo que se refira a estas folhinhas dactilografadas, que serão sempre mensagem do Convento, assinadas ou não (…) São enviadas a tôdas as pessoas que já declararam por palavras ou feitos que desejam recebê-las ou o declarem daqui por diante.”

A primeira carta do conjunto que constitui a brochura, foi enviada no mês de dezembro de 1992 e a última em Setembro de 1993, o que significa dizer que este conjunto de cartas foi expedido, praticamente, ao logo do último ano de vida do Professor, pois que em meados de outubro, mês seguinte ao da última destas cartas, a súbita degradação física que o acometeu haveria de o guindar ao seu falecimento que, como sabemos, ocorreu no dia 3 de Abril de 1994, um triste mas revelador Domingo de Páscoa, dia de ressurreição.  

Fulcral é a primeira destas 12 cartas e, logo aí, se diz claramente ao que se vem. Fixemo-nos nas palavras de Agostinho:

“Resumo da ideologia do Povo Português nos séculos XIII e XIV, transmitida ao Brasil por seus adeptos que ali se foram acolher, passada ao futuro e, por ele, à criativa Eternidade para os que emigrem para o mais íntimo de si próprios e aí se firmem para sempre.

Missão de Portugal: Sacralizar o Universo, tornando Divina a Vida e Deus real.

Meios: Desenvolvimento dos Povos pela inteira aplicação da Ciência e da Técnica, inclusive nos sectores da Economia, da Política, da Administração Pública e da Filosofia. Conversão da pessoa à adoração da Vida.

Características do que houver no Sagrado: Criança como a melhor manifestação da poesia pura e como inspiradora e suporte, e incitadora a ser criança de todos os que existam. O gratuito da vida. A plena liberdade de todo o ser.”

Eis uma síntese perfeita do período da história portuguesa que Agostinha da Silva mais admira, e a que no dizer das suas ideias sempre regressa, resumo da ideologia que, então, orientava o país, com epicentro no reinado de D. Dinis (“o plantador das naus a haver”, no dizer de Fernando Pessoa). Agostinho complementaria assim: “Acho a época de D. Dinis perfeita (…) A Rainha Santa e o rei-poeta. Calcule, o casamento de um poeta e de uma santa, que coisa extraordinária! D. Dinis com os Estudos Gerais. Depois é que transformaram aquilo em universidade, que veio a dar no que deu. Estudos Gerais, estudo geral para toda a gente e geral para todos os estudos, que outra coisa quereríamos para Portugal senão isso? Toda a educação portuguesa devia ser essa. Voltar aos Estudos Gerais e ao D. Dinis.” 

Então, seguindo o nosso autor, haverá que disciplinar o processo de produção e de distribuição dos bens, de forma a chegar-se a uma economia comunitária que se inspire naquela que existiu, para construir uma economia mais humana, pois é esse o exemplo que nos dá a organização económica medieval em Portugal. O que a Europa trouxe para Portugal foi uma economia capitalista, uma economia de luta. Ora, muito melhor é uma economia de convivência e de cooperação comunitária, de autonomia municipalista, com uma distribuição mais equilibrada das riquezas, como era a que caracterizava a economia portuguesa da Idade Média, antes desta importação europeia. Tipo de economia que foi liquidada por essa outra importada.

Discorrendo sobre a organização política que se deveria seguir, em carta de Lua Nova de 22 de Janeiro, 1993, sustenta-se que deve esse tal “imaginário Convento Sonho duns Irmãos Servidores”, deveria assumir dois compromissos: primeiro, o de que Portugal, inspirando-se nesses princípios da ideologia medieval portuguesa, se deveria comprometer na educação da Europa Transpirenaica; segundo, de que viesse  a constituir-se uma Confederação, ou coisa parecida, de todas as Nações de Língua Portuguesa, sendo um dia Portugal seu representante na Europa Comunitária e, citando,  “…que fique nítido que o ideal de futuro é o da cultura do Povo Português nos séculos XIII e XIV.”

Neste sentido, relembre-se, a importância que tem, para si, o culto popular do Espírito Santo que ganha uma dimensão fundamental em Portugal neste período, com o ativismo espiritual da Rainha Isabel de Aragão. Culto Popular do Espírito Santo, ou Culto do Divino, que chega a Agostinho da Silva pela influência direta de Jaime Cortesão, e também de António Quadros, embora na forma de um reencontro, pois que, como nos diz, não exclui a hipótese de que ele próprio tenha “andado no tal século XIII envolto com os outros na Festa do dia de Pentecostes em que sonhava o povo português sentir-se já num Paraíso a vir…”.

Eis os três pontos essenciais da festa do Espírito Santo:

1. A coroação de um menino como imperador do mundo. A representação na Terra do Espírito Santo é a imaginação da criança. Ou, como diz Agostinho, também pode ser, inspirando-nos no presépio de Francisco de Assis, o menino representando o renascimento de Cristo: “é como se fosse Cristo renascendo.”

2. Através da imaginação da criança se chegará à libertação dos presos e ao fim de todas as prisões, internas e externas. Ou seja, à consagração do grande ideal de liberdade e de libertação espiritual que Agostinho sempre releva.

3. O banquete gratuito, como representação simbólica de uma livre repartição de recursos alimentares entre todos, de modo a que ninguém falte que comer.

No dizer do Professor, “É como se os portugueses tivessem dentro deles sem se expressar, inconscientemente, já essa ideia fundamental de ter que se caminhar para o futuro, mas para um futuro que era ao mesmo tempo do passado, porque, se o espírito santo que viria a reinar numa terceira Idade era coetânea do Pai e do Filho, logo pertencia a um passado de toda a Eternidade. (…) ou seja, uma festa em que os portugueses declaram como vai ser o tal mundo do Espírito Santo.”

E seguindo a carta de Lua Cheia de 8 de Março de 1993, “Pôsto isto assim, e acreditando num universo sacralizável ou de que se descobriria o Sagrado, na possibilidade de uma vida gratuita, numa defesa e desenvolvimento contínuos do Poeta que nasce em cada Criança e numa desejável inteira liberdade de cada ser, o melhor é não o andarmos pregando, mas o pormos em prática.”

Continuando em carta no Crescente de Abril “como os da Festa foram todos expulsos, para a Guiné ou para o Brasil, aí pelos séculos XV e XVI, pensámos que já era tempo de regresso (…) Nada será de uma dia para o outro, mas iremos à nossa tarefa com toda a calma, experimentando, poucos como somos, tornarmo-nos um tanto contagiosos e reaver o tesouro que se perdeu, mas de que ainda há lembrança nos Açores e muita prática no Brasil (…) Porque afinal tudo isto é só uma tentativa de alicerce de império: Império de Servir.”

E por se falar em “Império de Servir”, sobre as ideias quinto-imperiais, relembremos que Agostinho da Silva vê uma perfeita linha de continuidade entre a cultura medieval portuguesa, Camões, Vieira e Pessoa, seja no “culto do espírito santo”, na “ilha dos amores” ou “5º império”, embora pesem os diferentes tempos em que existiram e a inevitabilidade de se relacionarem com as ideias de seu respetivo tempo. Afinal, em suma, dizer que Camões, Vieira e Pessoa são heterónimos do desejo de que haja no Mundo alguma coisa que seja a realização plena do homem.

Assim, o Império enaltecido na “Ilha dos Amores” dos Lusíadas, preconizado por Vieira e por Pessoa, será um império verdadeiramente “católico”, quer dizer, de acordo com a etimologia da palavra, universal, e caracteriza-se pelo advento da Idade do Espírito Santo, o consolador da esperança humana, tal como profetizara o evangelista S. João e idealizou o abade italiano Joaquim di Fiore.

Este Deus consolador que se refere é aquele que Cristo revela, a quem Agostinho reza na igreja, mas que não é o Deus das igrejas, antes o Deus que as une a todas e paira acima de todas. É um Deus que podemos chegar se atingida a verdade. Um Deus íntegro, total, paradoxal, tudo e nada, imanência e transcendência, que junta tempo e eternidade, sem separação de bem e de mal, de homens e animais, de tudo o que existe. Um Deus que é, antes de mais, inefável, e é silêncio, onde ciência e filosofia, “saudades disfarçadas em raciocínio”, devem ajudar a atingir, mas não podem definir.

Às influências de Jaime Cortesão e de António Quadros, sobretudo do primeiro, seu sogro, com quem conviveu e trabalhou no Brasil, deve juntar-se a ideia de “luso-tropicalismo” do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre que nesse país fez escola, base da ideia que expressa na carta de Lua Nova (face virada ao sol), Abril de 93, sobre “o empreendimento em que pensa o Brasil duma Comunidade de Povos de Língua Portuguesa, e seus crioulos, filhos, por seu turno, do crioulo que o Português foi do latim, tudo afinal neto do mais vasto Indo-Europeu.” O Brasil torna-se em Agostinho, o contemporâneo parceiro ecuménico por excelência daquele Portugal medieval que proclamava o reino do Paráclito, pois que à comunidade luso-brasileira deverá caber a missão de condução desse projeto ecuménico ao mundo. Como sabemos, Agostinho da Silva é um dos percursores da conceção de um Projeto Lusófono que junte países e comunidades, ideia que acabou por se materializar em 1996, com a criação da “CPLP” (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa).

E continuando ainda com o que nesta carta se diz: “O que vai haver, sem velas, excepto as desportivas, mas por aeroportos e por Faxes, é a integração dum pensamento como o de Lao-tsu, se dele é, (…) que os há em todas as religiões e filosofias (…) reinado da criança e sacralização dos animais e de tudo o resto. O que temos de ter connosco é um sentido de ordem não opressiva que impeça o caos e ondas de imaginação a saudar o que ainda não veio, com uma China cada vez mais para o concreto, um Brasil todo virado ao sonho, e, no meio, uma África que nos ensine a todos, já que índio enfraqueceu por tanto século de luta.” E aqui, como se refere Lao-tsu também se poderia referir as ideias de Buda, particularmente, do budismo zen, espiritualidade que Agostinho também enalteceu. Como sabemos o próprio Agostinho visitou o Japão em 1963 e aí conviveu entre faculdades, templos e monges budistas, e disso nos deixou testemunho.

E para terminar, na última carta “de Setembro de Lua Cheia e de 93”, e sendo que o forte “avc” de 17 de Outubro já se avizinhava, Agostinho deixa-nos três princípios pessoais orientadores de vida: “o de se ver livre do supérfluo, o de não confundir o verbo amar com o verbo ter, o de prestar voto de obediência ao que for servir, não mandar (…) Para tudo o que fordes e fizeres rogarei perfeito empenho e boa sorte, bom vento de navegar.”

 

Obrigado.

 

Luís Santos

12 de Outubro/2016

Referências Bibliográficas:

 

SANTOS, Luís Carlos dos (org.) (1995) As Últimas Cartas do Agostinho… Edição do Círculo de Animação Cultural de Alhos Vedros.

 

Idem (2016) Agostinho da Silva: Filosofia e Espiritualidade, Educação e Pedagogia (td). Vila Nova de Gaia: Euedito.

 

DOS LIVROS. 51

23-10-2016 11:31

Teoria da imaginação em Álvaro Ribeiro

 

Nenhum dos títulos das vinte conferências sobre Álvaro Ribeiro neste congresso apresentadas inclui uma menção ao aristotelismo. Conviria saber em que medida Álvaro Ribeiro foi, de facto, um pensador aristotélico e como o foi, estudo que outros, mais competentes do que eu, não deixarão certamente de fazer no futuro.

Álvaro Ribeiro é o filósofo da mediação. Por este lado não é difícil interpretá-lo como um pensador aristotélico, um pensador que segue Aristóteles, que, na Ética a Nicómaco, caracteriza a virtude ou a força do homem pela mediação e digo força do homem porque a palavra virtude que traduz perfeitamente aretê é, pelo étimo, conotável com varão e virilidade. O silogismo é a mediação entre dois logismos. “Só amo a relação” escreveu Leonardo Coimbra. O aristotelismo de Álvaro Ribeiro já vinha de Leonardo Coimbra, não obstante a reivindicação que este fazia para si do platonismo. Seria interessante verificar como Álvaro Ribeiro pensou o platonismo através de Aristóteles e Leonardo Coimbra pensou o aristotelismo através de Platão.

O que nos importa fixar é a hegemonia da mediação. Todo o valor do pensamento filosófico depende do modo como a concebermos.

Porque digo que Álvaro Ribeiro é o filósofo da mediação? O verbo ser não garante a mediação, e é por isso que, como diz, pretende evitar uma doutrina do ser. Não garante porque exclui dela o movimento, e não há verdadeira mediação sem movimento. Quando dizemos o ser não sabemos se estamos a pensar um substantivo ou um verbo. E, ao funcionar para a formação do juízo como cópula (S é P), fixa o predicado ao sujeito, subsumindo a existência na essência. Os verbos activos, criadores de existências, funcionam como metáforas e devem constituir a base de uma lógica criacionista. A relação S P ou significa uma identidade e nada acrescenta ao conhecimento ou a integração numa espécie, género ou classe que desinvidualiza e despersonaliza a existência.

 

Uma lógica que fosse a repetição da gramática, como erradamente a supõem alguns em Álvaro Ribeiro dizendo que ele não fez mais do que pensar uma filosofia da linguagem, é logo superada pela proposição de que os tropos é que realizam a relação da língua com o pensamento. Assim explica que entre a língua e o pensamento não há uma relação unívoca mas de convergência e de divergência. Esta afirmação implica que há pensamento sem palavras, como se verifica entre os amantes. Também aqui o pensamento aparece como mediação. O amor entre o homem e a mulher não é só o amor entre dois corpos distintos, mas entre duas imaginações que podem atingir o êxtase.

O pensamento é do domínio angélico. O que é próprio do homem é a razão que movimenta as relações de convergência e de divergência com a língua por meio de silogismos em que o termo médio é um tropo. Pelo tropo, sobretudo pela metáfora, a razão compõe-se com a imaginação. A imaginação é, porém do domínio da alma, porquanto é ela que faz a relação da sensação com a razão, que é o espírito do homem. Seria interessante verificar neste momento como, pela actividade da mediação, as tríades se encadeiam umas com as outras em escada, o que poderá fazer-nos julgar que haja em Álvaro Ribeiro uma adesão ao emanatismo, gnóstico ou neoplatónico.

O homem foi criado por Deus, mas a criação não cessou com a queda do homem na história, depois do pecado original. A razão imagina pelo estudo científico do homem actual a antropologia revelada pelo texto sagrado, mas porque seria impiedade alterar uma letra deste texto tem de considerar pseudo-científicas as conclusões do evolucionismo darwinista.

Observando o homem hoje existente, verificamos pela figura que o corpo ostenta – a posição vertical – e pela liberdade de movimentos, harmónicos com a autonomia da cabeça; pelas expressões da sua imaginação significando uma certa iniciativa; pelo dom da palavra e relativo exercício do raciocínio verificamos que ainda conserva os vestígios da primitiva realeza adâmica, hoje perdida. Tudo se passa, porém, como se ele fosse, de facto, um animal inteligente e munido de vontade tão somente. Também os outros animais são munidos de vontade e de inteligência; sempre que querem alimentar-se ou reproduzir-se têm aptidão para relacionar os meios com os fins e é essa aptidão que caracteriza a inteligência. No homem a relação dos meios com os fins é mais complexa, a sua inteligência animal exprime-se superiormente nas várias ciências económicas e financeiras. É este um modo de dizer irónico que Álvaro Ribeiro utiliza para chamar o homem para mais nobres e altos fins, aqueles a que, segundo a sua natureza, há-de aspirar se tomar consciência de que é um artista, isto é, uma pessoa dotada de razão e de imaginação. Como é que é possível que só alguns homens tomem consciência disso? É que, na maioria dos homens, a imaginação, presa à carne que de si criou, arrastou consigo a razão para formas de perversão em que as palavras ou significam sentidos, isto é, as imagens do mundo sensível ou se articulam por abstracções entre a técnica e a metafísica.

O pecado original é um pecado da imaginação ou, se preferirdes por ser mais claro, um pecado de magia. Álvaro Ribeiro insurge-se contra as explicações do pecado original que nele vêem a relação carnal entre o homem e a mulher. Já Adão tinha conhecido Eva quando se deu o pecado de que temos notícia pelo Génesis.

Há uma degeneração na carne que serviu de carro ou de veículo ao amor de Adão por Eva quando ele a conheceu. Os cinco sentidos ou sensos, como prefere dizer Álvaro Ribeiro, puras irradiações do sentido interno, o sensorium communis dos escolásticos, pelo pecado original emergiram na carne e a imaginação passou a confundir-se com a sensação. Com efeito, sem a imaginação não seríamos capazes de reconhecer uma rosa. Sem a imaginação nunca a sensação seria percepção.

Deixemos, porém, este assunto que é o mais difícil e misterioso da obra de Álvaro Ribeiro, mas retenhamos a ideia de que o homem é uma tríade vivente composta de corpo, alma e espírito. A alma é mediadora entre o corpo e o espírito em analogia ou correspondência da imaginação entre a sensação e a razão.

O mundo dado pela sensação é um mundo irreal, um prestígio, como vimos, da imaginação. Álvaro Ribeiro não atribui melhor realidade às sensações por alucinação. «Quando o sentido (o que está sendo sentido), escreve ele, não corresponde a um objecto determinado no espaço – à sua causa externa segundo dizem alguns autores –, diz-se que houve alucinação em vez de sensação. A alucinação é tida por um fenómeno meramente subjectivo, e até de ordem patológica, mas define-se exactamente pelo seu carácter ilusório e pela consequente desilusão.» A imaginação somente é criadora de verdade quando se move pelo “encanto da palavra exterior, ou da palavra interior”. Pela expressão “criadora de verdade” significamos conhecimento.

Como o conhecimento não é, vimos já, a relação de sujeito-predicado e não é também a relação sujeito-objecto da filosofia alemã, a descida da alma à sensação seria irremediável se, através dela, sensação, não fossem possíveis melhores relações. Referimo-nos, evidentemente, ao amor, porque a mulher é que é para o homem o verdadeiro mundo sensível. O conhecimento não é a relação sujeito-objecto mas sim uma relação de espíritos. Desta relação os amantes só tomam conhecimento pela imaginação e pela palavra. Daqui a suprema importância do ensino da arte de imaginar durante a puerícia e adolescência. «O grau espiritual atingido, ou grau de razão», escreve o filósofo que «é apenas o resultado, variável com os temperamentos e os caracteres, do exercício da imaginação.»

Parece-lhe, então, que, entre os géneros literários, o mais apto como exercício para formar a imaginação durante a puerícia será o conto onde a alma poderá assistir deslumbrada aos prodígios e aos milagres dos heróis e dos santos e às misteriosas manifestações dos génios. Dir-se-ia que, dois livros depois, no Liceu Aristotélico, em doutrina confirmada no seu último livro Memórias de um Letrado, dir-se-ia que mudou de opinião quando propõe para aquela idade o ensino da mecânica e da matemática com o argumento de que, dado o rigor e a objectividade destas disciplinas, o rapaz habituar-se-á a mentar sem mentir. Não há contradição. O mundo maravilhoso dos contos e das histórias tradicionais não mente. É a expressão de verdades supra-racionais a que só esse factor divinizante do homem que é a imaginação tem real acesso quando devidamente estimulada pela razão. Aqui convém distinguir a imaginação da fantasia que é um factor meramente subjectivo. Mas, sem dúvida que o rapaz e a rapariga não dispõem ainda das categorias que lhes permitissem relacionar o racional com o supra-racional. Esses relatos imprimem-se-lhe na memória, vão estar presentes no subconsciente do adulto e permitir futuras aberturas, bem reais e conscientes, para o mundo do espírito. As crianças têm disto a presciência, por tal modo que, ao contar-lhes uma história pela segunda ou pela terceira vez, se alterarmos nem que seja um pormenor, logo nos corrigem. Daqui todo o cuidado que há-de haver em não dar a ler aos rapazes e às raparigas histórias escritas por mulheres para as crianças que pretendam substituir os contos tradicionais, mas que são apenas produtos da fantasia. Como Fernando Pessoa ensinou, a propósito do Bartolomeu Marinheiro e Afonso Lopes Vieira, as histórias para crianças não se escrevem para crianças.

Quando nós éramos rapazes, na nossa estimativa, não havia essencial diferença entre um conto tradicional como, por exemplo, o de Aladino e a Lâmpada Maravilhosa e as histórias narradas no livro da nossa religião. Esses contos e essas histórias mostravam-nos proezas, prodígios e milagres que nos encantavam e deslumbravam indiferentemente. Eram os tapetes voadores e Jesus caminhando sobre as águas, as palavras que faziam surgir um palácio ou as que ressuscitavam Lázaro. Os mais velhos distinguiam entre umas e outras, separando-as como a fantasia da verdade. Nunca os tapetes voaram nem nunca houve criação de palácios pelas palavras, mas Jesus caminhou de facto sobre as águas e ressuscitou Lázaro. Assim nos ensinavam a ter como critério da verdade o facto histórico. O facto era tudo e a poesia, bem ao contrário do que mais tarde viríamos a saber por Aristóteles, era menos verdadeira do que a história, se não era completamente mentirosa.

Se bem observarmos, insinua-se aqui na oposição da história à poesia um equívoco que não nos deixa ver claramente o problema. É o do emprego da palavra história, num duplo sentido, um pelo qual é sinónima de conto, como em contar uma história, e outro pelo qual significa a realidade vivida pelo homem na sua existência terrestre, aquilo que é costume designar por mundo dos factos, considerados em sucessão. Pelo primeiro sentido, a palavra é relativa à poesia e à imaginação, pelo segundo à vida que temos por real no tempo e no espaço físicos.

 

É possível, porém, ver, por exemplo, a história de Portugal, não como uma sucessão de factos brutos, ligados uns com os outros por relações de causa e efeito que são afinal apenas de antecedente e de consequente, mas como uma história significativa na tangência de sobrenatural com o humano, como uma fenomenologia do Encoberto.

O poeta alemão Goethe, reagindo contra Kant, criou um admirável aforismo que é o seguinte: «Os fenómenos são mistérios manifestados.» Tinha em mente, sem dúvida, os fenómenos naturais. É ocasião de dizer aqui com Álvaro Ribeiro que a história de um homem, a de um povo ou a da humanidade devem ser vistas como a manifestação de profundos mistérios. Tal visão da história somente é possível se soubermos realizar o procedimento mental inverso, o de trazermos ao plano da positividade os contos ou as histórias como o de Aladino e a Lâmpada Maravilhosa, ao plano da positividade vivida, por tal modo que tomemos esses relatos absolutamente a sério, naquela atitude de alma que assumiremos certamente se pensarmos que o seu autor anónimo pode muito bem ter sido Deus. Então, nem a poesia será mais verdadeira do que a história nem a história mais verdadeira do que a poesia. Isto teria como consequência roubar a literatura aos literatos e a religião aos religiosos que cindem uma da outra.

Cheguei ao fim do que me propus vir aqui dizer. Não é tudo quanto haveria para discorrer sobre a imaginação no pensamento de Álvaro Ribeiro, mas julgo ter acordado algumas ideias essenciais adormecidas nas letras dos seus livros. Tenho a esperança de ter criado, no espírito daqueles que quiseram seguir-me, alguma inquietação.

Se soubermos estar atentos aos nomes daqueles que Leonardo Coimbra designou como «a monstruosa variedade dos contemplativos» e que nós, ensinando latim, diremos “prodigiosa”, o nome de Álvaro Ribeiro aparecer-nos-á bem significativo. Lançando a filosofia como uma corrente, Álvaro foi, na verdade, o mestre do alvoroço.

 

Texto lido em Colóquio sobre Álvaro Ribeiro realizado no Ateneu Comercial do Porto. 

 

António Telmo

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)

 

DISPERSOS. 15

15-10-2016 00:03

Dionisio[1]

 

Dans la nuit qui tombe, la nuit s’élève,

Les enfants dorment, à cette heure, dans ses lits,

Et les mères qui la lueur embellit

Baisent les enfants avec ses lèvres.

 

Ah! mon dieu, je suis enfant aussi!.

Et qui sait si mes jours ne seront brèves

C’est pourquoi je lève les mains, endolori

À toi demandant sa vie jusqu’à les tenebres.

 

Et puis, o mon dieu, après la mort

N’y a-t-il pas une espèce de sort

Qui me fait vivre une autre vie ?

 

Ah ! Si est ainsi, ó dieu, donnez-moi

Qui cette chérie même y soit

Et qui je sois le même enfant endormi.

 

Sesimbra, 10 de Outubro de 1946

 

António Provença

 

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(Tradução portuguesa de Risoleta C. Pinto Pedro)

 

Dionísio

 

A noite que cai é a mesma que se eleva,

À hora em que as crianças dormem nos seus leitos,

E as mães que o luar embeleza

Depõem nas crianças, com os lábios, beijos.

 

Ah! Meu Deus, também eu sou menino!

E quem sabe se meus dias não serão breves;

Por isso as mãos elevo, dolorido

A ti suplicando a sua vida até às trevas.

 

E depois, ó Deus meu, após a morte

Não haverá uma espécie de sorte

Que me faça viver uma outra vida?

 

Ah! Ó meu Deus, concedei-me se assim for

Que esta amada aí me siga

E eu seja a mesma criança adormecida.

 

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Comentário

Risoleta C. Pinto Pedro

“DIONÍSIO”

in Búzio, Sesimbra, 1946

 

Alguns erros começam por se revelar, ao olhar de quem conheça a língua francesa, erros esses derivados da prematura idade em que foi escrito este poema: aos 19 anos de um jovem que fez quase toda a escolaridade em estudo autónomo, apenas com apoio paterno. É assim de assinalar, e não deixa mesmo de ser notável, a elegância sintáctica e rítmica, essa sim já denotando, para além de leituras assimiladas, alguma prematuridade poética.

 As incorrecções linguísticas verificam-se ao nível da morfologia e da escolha do léxico com repercussões semânticas. Mas não causam beliscadura, nem à estética nem ao sentido, antes acrescendo o poema de ocultos sentidos que muito interessariam a uma psicologia das profundezas.

Este tema da noite e da família adormecida vai repetir-se num poema mais tardio “A família é de noite quando se dorme”, onde volta a aparecer a alusão ao sono das crianças: «há crianças a dormir», como se o sentido da família, a união ou a sua pacificação fosse mais fácil de reconhecer à noite.

Já encontramos aqui alguma da temática da poesia posterior, e características da sua arte poética e da obra em geral, tal como da sua vida. É o caso dos opostos que se conciliam «Dans la nuit qui tombe, la nuit s’élève», o paradoxo, que no oriente se traduz no princípio do yin/yang; e a noite como regaço dos mistérios.

Mas aqui está, neste Telmo de 19 anos, aquele outro Telmo que ainda não se despediu do menino: «Ah! mon dieu, je suis enfant aussi!». Nem do regaço da mãe, uma forma de noite. Mãe e noite aqui idolatradas e quase confundidas. Isto não anda muito longe da filosofia oriental na sua forma do I Ching que tanto viria a fasciná-lo: a associação da mãe e do feminino à noite, às trevas e à lua. Bem como a já referida conciliação dos extremos «tombe» e «élève» que nos remetem para a «tábua pitagórica transmitida por Aristóteles» que encontramos logo no início da Gramática Secreta.

Por outro lado, são de uma precocidade quase chocante, quer o pensamento sobre a brevidade da vida: «Et qui sait si mes jours ne seront brèves»; quer a atitude de adoração e prece: «je lève les mains, endolori/À toi demandant sa vie» daquele que irá ao longo do seu percurso conciliar perfeitamente a contemplação mística com a intolerância para com os fanatismos das religiões.

Em termos psicológicos, um desejo quase regressivo de infância, naquilo que esta tem da união com a mãe, certa recusa em crescer, saltando imediatamente para uma outra vida em que volte a ser o menino… da mesma mãe: « Qui cette chérie même y soit/Et qui je sois le même enfant endormi.»

Não é inocente nem alheio ao que conhecemos da sua biografia, o facto de a noite trazer pacificação, amor e beleza às mães junto dos meninos, como se esbatesse a dureza do que mostra o sol e até o signo solar; cito, a este propósito, passagem das Páginas Autobiográficas:

 

«O signo do Touro, onde estava o meu Sol quando nasci, é, como se sabe, oposto ao signo do Escorpião, que, logo por meu azar, preside aos horóscopos de minha mãe e de meu irmão Rui, que Deus tenha as suas almas em paz. Do mesmo lado, a um ou dois graus do Escorpião se encontrava ao nascer o Sol do meu irmão Orlando.»

 

Este poema é um grito surdo, obscuro e elegante saído da prematura e durativa dor do amor.

A propósito do pseudónimo, dado que não é de menosprezar, vejamos o que escreveu Pedro Martins no PAT.VO, a 11-10-2016:

«O poema de Telmo, como se disse já, está datado de 10 de Outubro desse ano de 1946. A pseudonímia patente na assinatura “António Provença” não pode deixar de evocar a poesia trovadoresca e, porventura, a kabbalah, a partir de um dos seus principais focos de irradiação. Neste sentido, o título do poema, “Dionísio”, é susceptível de nos remeter para D. Dinis, até por a data da composição ser o dia imediatamente posterior ao do aniversário do Rei Lavrador. Mas pode muito bem tratar-se, por outro lado, de uma homenagem do jovem poeta a seu pai, António Martinho Diniz Vitorino. Não sabemos.»

 

Outubro de 2016



[1] In Búzio, Ano I, n.º 1, 15 de Outubro de 1946.

 

EDITORIAL. 08

14-10-2016 23:50

Uma alegre inquietação

 

A poucas horas do início do Colóquio “A Literatura de Agostinho da Silva”, que amanhã terá lugar no Auditório do Centro de Estudos Culturais e de Acção Social Raio de Luz, não pode o Projecto António Telmo. Vida e Obra deixar de se regozijar com toda a actividade que, ao longo do ano em curso, tem desenvolvido em parceria com aquela associação, no âmbito do GEAS – Gabinete de Estudos Agostinho da Silva.

Criado há apenas dez meses, o GEAS já contribuiu para fazer sair a lume três livros de agostiniana desde Maio: A Liberdade Guiando o Povo – Uma Aproximação a Agostinho da Silva, de Pedro Martins, com prefácio de Miguel Real; Agostinho da Silva – A Última Entrevista de Imprensa, de Pedro Martins, António Ladeira e José Pedro Guerreiro Xavier, com prefácio de António Cândido Franco e posfácio de João Ferreira e coordenação editorial de António Ladeira, Pedro Martins e Rui Lopo; e A Literatura de Agostinho da Silva, essa alegre inquietação, de Risoleta C. Pinto Pedro, com prefácio de Helena Briosa e Mota. Todos estes títulos saíram sequencialmente na Colecção Nova Águia, com a chancela da editora Zéfiro, e são o fruto do labor de uma equipa dedicada e entusiasta.

O colóquio de amanhã, disso estamos certos, dará continuidade à renovação dos estudos agostinianos que, desde 2014, vem sendo assumida como um desígnio importante deste Projecto, e aqui convirá lembrar que, em Novembro desse ano, a Biblioteca Nacional de Portugal acolheu no seu auditório, à guisa de homenagem a Agostinho no 20.º aniversário da sua partida, a apresentação dos livros Agostinho da Silva em Sesimbra e Cartas de Agostinho da Silva para António Telmo. Em dois anos e meio, o PAT.VO e o GEAS contribuíram para a aparição de cinco novos livros no universo agostiniano, num ritmo médio quase semestral, sem contar com as sessões dedicadas à apresentação de outros livros, como são os casos dos de António Cândido Franco e Luís Carlos dos Santos. O nosso mapa vai do Porto ao Redondo, passando por Coimbra, Sintra, Lisboa, Almada, Sesimbra, Setúbal, Évora e Estremoz.

A página mensal do GEAS no jornal Raio de Luz, a George, alcança o oitavo número e tem já a sua programação definida até ao final do ano em curso. Deste modo, proporciona-se a (re)descoberta de Agostinho a milhares de leitores e contribui-se para a formação de novos públicos no âmbito daquele a quem o jornal chega.

O ano de 2015 e o começo do que está em curso, com a realização dos ciclos Agostinho Revisitado – Novas Aproximações em Sesimbra (Sampaio) e em Almada (Feijó), traduziram-se numa acentuação do novo paradigma. A renovação dos estudos agostinianos passa muito pela frescura do olhar que se projecte sobre a obra do portuense ilustre, seja com gente nova, ou com gente que chega de novo, seja pela escolha de territórios pouco explorados, seja pela adopção de novas perspectivas, como a da incidência temática preconizada para o colóquio de amanhã, de modo a privilegiar o aprofundamento em detrimento da extensão dispersiva que, não raro, conduz à superficialidade.

Seria bom que a este renovo dos estudos agostinianos correspondesse, entretanto, um ressurgimento do cânone agostiniano nas livrarias de Portugal. Mas a corpo inteiro – devolvendo aos escaparates o que deles há muito misteriosamente desapareceu: os livros do filósofo português de maior notoriedade. À apagada tristeza saibamos responder com uma alegre inquietação.

DOCUMENTA. 07

11-10-2016 23:15

“Dionísio” e o Búzio: a estreia literária de António Telmo, setenta anos depois

Pedro Martins

 

A estreia literária de António Telmo não poderia ter sido mais humilde. Na verdade, e por isso mesmo, também não poderia ter sido mais autêntica, preciosa e original. E, provavelmente, não poderia ter sido noutro lugar. Completam-se no próximo sábado setenta anos sobre o dia em que em Sesimbra saiu o número 1 – e único – do Búzio, com o subtítulo Jornal de Sesimbra, onde Telmo publica pela primeira vez um texto seu. Trata-se do poema “Dionísio”, soneto escrito em francês, datado de 10 de Outubro de 1946 e assinado com o pseudónimo de António Provença. Aqui o publicaremos na data da efeméride, com transcrição, tradução para português e notas de Risoleta C. Pinto Pedro, que está a ultimar a edição literária da poesia de Telmo, parte integrante do próximo Volume, já o VI, das suas Obras Completas. Setenta não é um número qualquer: exprime a plenitude um ciclo. Daí que também por isso se impusesse a recolha definitiva em volume da sua criação poética neste ano de 2016.

O jornal é, pois, de 15 desse mesmo mês de Outubro de 1946. Mas debalde o leitor o buscará, ciente desta data, na Hemeroteca de Lisboa ou na Biblioteca Nacional. Tal como o número, o exemplar foi único. Morto à nascença por vicissitudes da baixa política local, o Búzio não emergiu à tona de um prelo, sendo antes escrito à máquina e ilustrado à mão. As imagens, primorosas, são de José Augusto de Andrade Júnior, o célebre poeta Zé Preto, cedo desaparecido.

O director e editor era o inevitável Rafael Monteiro, sendo seu chefe de redacção e administrador Manuel J. Palmeirim. A Redacção, lê-se no cabeçalho, era “Aqui, ali ou acolá”. Vale a pena transcrever o “Anúncio” do Búzio, deixar falar essa sorte de editorial que lhe domina a capa, sob a rubrica “Do cesto da gávea”:

 

Está presente o primeiro número de um jornal ambicioso – no título, na doutrina, no ideal que o concebeu e lhe deu forma.

Ambicioso, porque é de juventude, e só ela sabe ambicionar, com a irreverência que é virtude, no sonho que pode ser realidade. Ambição dirigida para cima, muito para cima… Apesar de isso, e por isso, jornal de rapazes e para rapazes, aberto a todos os que queiram vir connosco – no caminho da verdade, da honra, do trabalho e da fé.

“Búzio” se chama. É a voz do mar a chamar-nos para a luta, a acordar em nós o desejo de servir, a recordar-nos na sua ressonância estranha, a missão que tomámos sobre os nossos ombros de rapazes portugueses: servir a terra e servir a Pátria. Será esta a nossa tarefa, de todos os dias e de sempre.

Compreende-a tu, leitor, e nós nos encontraremos bem pagos do sacrifício que tão alegremente empenhámos – para te servir.

 

Subscrito pela Redacção, este texto é, na verdade, da autoria do director. Ainda na primeira página, o Búzio exara saudações ao «avozinho» O Sesimbrense, o jornal da terra, e ao «colega mais velho» e «irmão» Presente, folha dos Bombeiros Voluntários, feita pelo mesmo Rafael e por Manuel José Pereira.

Figura tutelar da modesta publicação – que tinha apenas seis páginas – era o excelente Padre José de Freitas, mais tarde merecedor da dignidade de Monsenhor. Assistente religioso da Mocidade Portuguesa em Sesimbra, mantinha ligação privilegiada com Rafael Monteiro e António Reis Marques, membro do Projecto António Telmo. Vida e Obra cujo valioso testemunho foi indispensável à elaboração desta nota. Homem bondoso, generoso, entusiasta, notável condutor de homens, guardava uma posição de neutralidade face ao Estado Novo e mostrava-se tolerante perante todos. Veio a ser um destacado colaborador de O Sesimbrense, numa época em que os serões no jornal se prolongavam pelo velho Ribamar, a dois passos dali. Não poderia deixar de assinar colaboração no Búzio, com um artigo intitulado “Deus”, a quem brandamente vincula a jovem equipa e o ideário do novo jornal.

O já referido Palmeirim, Luiz de Melo, rapaz de Coimbra, e Jaime D. C. Neves são outros colaboradores da folha, onde se incita à compra e à leitura da Arte de Ser Português, de Teixeira de Pascoaes, e da Mensagem, de Fernando Pessoa. Ainda que venham a ser estes os dois grandes poetas por Telmo estudados no ciclo do povo da História Secreta de Portugal, o incitamento, desta feita, foi da lavra de Rafael, segundo assevera Reis Marques.

Zé Preto, além de o ilustrar, dará em verso “A História do Búzio…”, onde o jovem Telmo é o Tó:

 

Era uma vez um jornal

que ainda está para sair…

Senhores, muita atenção

sua história ides ouvir:

 

Entra o Rafael, sorrindo

- perdeu o ar macambúzio –

- Já tem título, já tem título,

o jornal chama-se o “Búzio”.

 

O Tó todo radiante

dá um pulo triunfal

e sobe ao cesto da gávea

no tope do mastro real.

 

Mas o Marcos não concorda

e não acha a coisa boa

- cesto da gávea, protesto!

é melhor pôr: “lá da proa”.

 

Vai-se o caso complicando

- Eu digo que sim! – Eu não!

às duas por três o Jaime

já tinha a lua na mão…

 

O Palmeirim com veneta

reage de má catadura

mete a chave na lingueta

dá a volta à fechadura!...

 

……………………………………..

……………………………………..

……………………………………..

……………………………………..

 

E lá dentro na cozinha

A Angelina a resmungar:

- vão pró diabo que os carregue,

eu quero é ir-me deitar.

 

Percebe-se a exasperação da mulher de Zé Preto quando verificamos que o poema está datado de “Sesimbra, / Quarto de V. Ex.ªs”. Parece que desta vez a Redacção se instalara no lar do poeta, alvoroçando-o. Mas com o nomadismo dos plumitivos contrasta a circulação do único exemplar do Búzio, restrita às mesas do Café Central. Era aqui que se reunia a tertúlia formada ao redor das figuras maiores – e mais velhas – de Rafael e de Preto. O Búzio, de alguma forma, seria o órgão literário e artístico de um grupo a quem António Telmo viera rasgar novos horizontes intelectuais e espirituais, iniciando-o, primeiro, nos grandes poetas portugueses, e mais tarde, sofrendo já o influxo lisboeta de Álvaro e de Marinho, nos autores da Filosofia Portuguesa.

O poema de Telmo, como se disse já, está datado de 10 de Outubro desse ano de 1946. A pseudonímia patente na assinatura “António Provença” não pode deixar de evocar a poesia trovadoresca e, porventura, a kabbalah, a partir de um dos seus principais focos de irradiação. Neste sentido, o título do poema, “Dionísio”, é susceptível de nos remeter para D. Dinis, até por a data da composição ser o dia imediatamente posterior ao do aniversário do Rei Lavrador. Mas pode muito bem tratar-se, por outro lado, de uma homenagem do jovem poeta a seu pai, António Martinho Diniz Vitorino. Não sabemos. Ao princípio era o segredo…

INÉDITOS. 66

09-10-2016 15:45

No dia em que se completam trinta e cinco anos sobre a partida de Álvaro Ribeiro, damos hoje a conhecer, em singelo preito de evocação e homenagem, a parte inicial de um dos mais importantes manuscritos inéditos que se guardam no espólio do seu discípulo António Telmo. Os Diálogos do mês de Outubro destinavam-se a integrar o livro Filosofia e Kabbalah, naquela que seria a sua primitiva versão. São dedicados pelo autor “Ao filósofo do meu alvoroço, meu terceiro e verdadeiro mestre, Álvaro Ribeiro.” Os diálogos passam-se no Vale do Infante, na Serra d’Ossa, próximo de Estremoz, onde, na época da composição, se realizaram várias conferências proferidas por autores da Filosofia Portuguesa, como o próprio António Telmo, António Quadros, Orlando Vitorino e Pinharanda Gomes, entre outros. Parecem, pois, ser um eco ou um reflexo desses encontros.

O texto que agora se publica é apenas uma parte – a inicial, como dissemos – do conjunto dos diálogos, que não constituem obra acabada e estão a ser transcritos, para serem depois sujeitos a edição literária. Assim, a versão parcial que aqui se apresenta é também uma versão provisória, podendo vir a sofrer alterações.  

 

Diálogos do mês de Outubro

 

Ao filósofo do meu alvoroço, meu terceiro e verdadeiro mestre, Álvaro Ribeiro.

 

Outono e Outubro (oito e outo)

 

Têm de ser três interlocutores: um católico, um anti-católico orientalista, um católico martinista. Os três são filósofos. Entendem-se enquanto filósofos.

 

1.º interlocutor: uma coisa é a religião, outra a filosofia.

2.º interlocutor: a filosofia é superior a todas as religiões, mas não as nega, compreende-as.

3.º interlocutor: a religião é sempre católica, etc….

 

Nomes: Eudoro, Marinho, Álvaro.

 

Lugar em que decorre o diálogo: o Vale do Infante, em Estremoz.

 

Tarde serena de Outubro. A mesa está sob uma latada. No fundo da paisagem a ocidente são montes.

 

O Vale do Infante é um lugar aprazível da Serra d’Ossa, a doze quilómetros de Estremoz, um dos poucos oásis que ali restam numa terra secada pela rede insaciável do eucalipto. O aglomerado das casas está no fundo da vertente que desce da estrada ao alto para uma ribeira em baixo, o vale abre-se largamente para o lado do poente e ali os olhos podem saborear a alegria de pousarem na distância. Em frente da moradia há um pequeno terraço onde tiveram lugar estes diálogos do mês de Outubro.

 

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Explicação

 

Se este livro merecesse a atenção dos investigadores do obscuro, os três seriam, certamente, identificados como o Eudoro de Sousa, o José Marinho e o Álvaro Ribeiro. Num certo sentido, todos foram mestres do autor, mas, na verdade, somente o terceiro me considerou seu discípulo numa carta que guardo comigo. Observará o leitor que, porventura, conhece a obra escrita destes três homens, que o pensamento de cada um dos interlocutores do Vale do Infante não coincide com o pensamento de cada um daqueles. A coincidência é apenas simbólica. Do Eudoro de Sousa se pode dizer que sempre foi um católico ortodoxo que transferiu para a religião grega a crença, impedida pro razões pessoais, de se manifestar aqui e agora; do José Marinho disse um “estrangeiro” que passou por nós que a sua filosofia era a magnífica versão portuguesa do Tao Te King e, mesmo que nos pareça mal a redução, não podemos deixar de reconhecer nele o gnóstico, o oriental, o pensador da luz e do abismo; Álvaro Ribeiro é o católico ocultista, o cristão novo, o sefardi converso.

Neste sentido e porque não há coincidência de pensamento, pudemos fazer de cada nome um símbolo. Eudoro, o bem dotado, transporta consigo o dom inestimável da ortodoxia; Marinho é o que sobre aos altos mastros do céu e daí contempla a vastidão do abismo; Álvaro é o filósofo do alvoroço, o núncio apostólico da Terceira Idade.

Na verdade, as três perspectivas, que neles se significam, coexistem no espírito do autor deste livro. Pu-las a conversar umas com as outras e procurei ser o quarto que as conduz como um pastor. Os espíritos em quem as ideias vivem sem a concorrência doutras ideias mereceram dum esoterista célebre o ápodo de “autómatos”. É o caso da generalidade das pessoas: dominadas por ideias sem concorrência, são uma espécie de hipnotizados incapazes de sonhar sequer que haja mais verdade. Noutras pessoas, a concorrência torna-se um caos; não há uma dominante que harmonize entre si os vários aspectos do horóscopo mental. Em mim, o católico ortodoxo da tradição familiar e o ocultista que procura fora do catolicismo aquela verdade esotérica que é pertença de todas as religiões vêm conciliar-se ou harmonizar-se no católico ocultista, que vê no Homem o nome de Deus que devemos santificar. Estes assuntos não podem ser computorizados. Daí resultará talvez a indiferença do leitor vulgar. Mas nem todos são leitores vulgares. Alguns sabem que o problema do catolicismo é, em Portugal, o único problema.

A Igreja fundada por Cristo em Pedro permanecerá até ao fim dos séculos. Quem souber compreender o trabalho de João Paulo II, nosso Papa admirável, que, segundo a profecia de São Malaquias, já cumprida, imitará o Sol nas suas viagens (de labore Solis) não poderá ver na grande divisão que opõe passadistas e progressistas senão um episódio histórico destinado a sucumbir às mãos do tempo. Acusado por uns de comunista, de maçon, e até de seguidor do ensino de Rodolfo Steiner não é apreciado pelos outros que gostariam de o ver favorecer o materialismo ateu, rompendo com a tradição esotérica definitivamente cristã. 

 

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Primeira conversa

 

José

Convido-vos a sentir este momento como convém que seja sentido, antes de começarmos a conversar. Sabeis o que significo por sentir: uma perfeita atenção à paisagem, ao lugar, à hora e, ao mesmo tempo, a quem, em nós, presta atenção. Trata-se de realizar aquilo a que Plotino chamava uma sinestesia. Criaremos, segundo as regras, o éter para a comunicação dos nossos espíritos, que, caso não seja assim, ficarão separados, como é habitual entre os espíritos humanos, por um elemento denso.  

 

Álvaro

O Conde Joseph de Maistre nos seus Serões de São Petersburgo, constituídos por onze conversas a três, avisa contra os perigos das reuniões do homens pois o três suscita a presença de um quarto, mas invisível. O Timeu de Platão começa assim: Um, dois, três. Onde está o quarto?

Compreendo muito bem que você pretenda que preparemos as nossas almas para que o quarto lugar não seja ocupado por um espírito indesejável.

 

Eudoro

Recordo-vos, meus senhores, e perdoarão ao católico que vo-lo recorde, que o Mestre de toda a sabedoria diz, nos Evangelhos, que onde estiverem três ele estará presente. Mas Jesus Cristo falava aos Apóstolos, aos Discípulos. Por mim, que não recebi a ordenação sacerdotal, preferiria que puséssemos de parte essas preocupações, dando à religião o que é da religião e à filosofia o que é da filosofia. Para rezar tenho as igrejas e, se rezo fora delas, no silêncio nocturno do meu quarto ou em família, faço-o ainda de acordo com as prescrições eclesiásticas. Há, como sabeis, um texto fixado para as orações. Creio não me enganar pensando ser aquilo que o nosso amigo nos aconselha uma espécie de oração, na qual participa muito mais o sentimento da natureza do que o sentimento de Deus. Perdoem-me, mas não tenho culpa de ver qualquer coisa de pagão naquilo que você, José, aconselha e você, Álvaro, subscreve.

 

Álvaro

Eis um belo e difícil assunto para conversarmos, as relações da filosofia e da religião. O problema parece ter sido conduzido insensivelmente para saber se é possível uma teologia sem a revelação de Deus através dos profetas que fundaram as religiões, se a razão por si só é capaz de fundar uma teologia ou se o faz também profetizando, isto é, se o filósofo é também profeta. É a filosofia o verdadeiro sacerdócio? Pode haver verdadeiro sacerdócio quando o reconhecemos naqueles homens que receberam a ordenação, mas que não possuem nenhuma qualificação espiritual no seu exercício, e tudo ignoram dos “mistérios” que celebram?

 

José

O Eudoro pode responder que lá porque o homem que representa a personagem do Hamlet não possui o conhecimento contido nos pensamentos, nas palavras e nos actos do Príncipe da Dinamarca nem por isso deixa de transmitir esse conhecimento se sabe representar segundo o rito teatral prescrito por Shakespeare.

 

Eudoro

É desagradável comparar o sacerdote a um actor, mas é impossível não reconhecer que assim é. Devemos porém acrescentar a essa relação, o valor do sacramento da ordenação que é, afinal de contas, a santificação daquilo que no actor existe, diríamos, por graça ou dom demoníacos. Há ainda uma outra diferença decisiva: é que o padre foi ordenado para pôr em acto o sacerdócio de Deus, enquanto o actor pode fazer todos os papéis porque não tem alma, porque é um vazio capaz de receber todos os “fluidos”. Os anticlericais deveriam ser capazes de sentir o assombro que eu sinto perante a dignidade sacerdotal, quando assisto ao mistério da missa, quando pasmo, ajoelho e adoro porque a figura sacrossanta do sacerdote que tenho diante de mim já não é o homem vulgar e muitas vezes corrupto que conhecemos na vida do dia a dia. Onde os anticlericais vão buscar um argumento contra a Igreja que consente ser servida por homens indignos ou incompetentes vejo eu o mistério pelo qual, através de tantas vicissitudes, a Igreja perdurará até ao fim dos séculos: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”.

 

Álvaro

Se concordamos com essa diferença entre o sacerdote e o homem que o representa, entre a dignidade do sacerdócio que pode subsistir apesar da indignidade do homem, a quem confiamos a missão de conservar e transmitir, em plena lucidez sófica, a sabedoria dos “mistérios” ou “sacramentos” que constituem, afinal, a essência imperecível da Igreja? Por mim, penso que aos verdadeiros filósofos incumbe, não digo propagar, mas cultivar o conhecimento misterioso ou sacramental. Dir-se-á que, dada a Igreja visível, há sempre que pressupor a existência de uma Igreja invisível, que alguns têm apontado como a Igreja de São João, contrapondo-a, erradamente quanto a mim, à Igreja de São Pedro. É, neste sentido, que recordo o papel que o martinismo desempenhou na Europa Central, durante o século XVIII. Pascoal Martins, essa figura misteriosa de judeu português, que a habitual confusão tem feito pensar a alguns que se tratava de um judeu espanhol, difundiu nas lojas maçónicas de Lyon uma doutrina que funcionou na altura como a síntese católica das três religiões do Livro, das três tradições peninsulares, cujas linhas gerais podemos conhecer através desse obscuro e luminoso tratado de hermenêutica da Reintegração dos Seres nos Seus Princípios Primitivos. O seu discípulo mais famoso foi Claude de Saint-Martin, a quem chamaram “le philosophe inconnu”, mas o mais poderoso foi Willermoz que continuou, depois do desaparecimento de Pascoal Martins, a chefiar a orientação das lojas martinistas, utilizando o mesmo esquadro e o mesmo compasso.

O Conde Joseph de Maistre, que já tive ocasião de referir nesta conversa, recebeu de Willermoz a iniciação que o conduziu até aos mais altos graus da maçonaria e conviveu de perto com Saint-Martin, cujo cristianismo esotérico várias vezes enaltece nos seus Serões de São Petersburgo.

 

Eudoro

Isso deixa-me estupefacto! O Conde Joseph de Maistre? Tenho de confessar a minha ignorância, mas sempre o tive pelo pensador mais reacionário, mais anti-maçónico, mais hostil a todas as formas de livre-pensamento… O autor do Papa e da Inquisição Espanhola colocado nos altos graus da maçonaria!... O supremo defensor da autoridade civil e religiosa em conluio com os inimigos da Monarquia e da Igreja!... A filosofia tem mistérios.

 

Álvaro

Entre os inéditos do Conde, agora publicados, figura um com o título La franc-maçonnerie, mémoire au Duc de Brunswick, que constitui a resposta ao inquérito que o Duque, em 1782 Grão-mestre da Maçonaria Escocesa da Estricta-Observância, endereçou às várias lojas sob a sua égide. Como tenho aqui o volume publicado por Émile Dermenghem posso ler-vos um passo da Introdução, que tirará todas as dúvidas, se alguma subsiste, ao Leonardo.

«Dès 1774, Joseph de Maistre (né en 1753) faisait partie de la loge des Trois Mortiers où il était grand orateur, substitut des généraux et maitre sym-bolique. Mais da Maçonnerie vulgaire était un enfantillage, comme il écrivit le 9 décembre 1793 à son ami Vignet, et ces réunions mondaines finissaient par le lasser quand il fut con quis par la Réforme écossaisse. Le 4 septembre 1778, il entre en effet, avec quinze autres frères, à la loge de la Sincérité et il fait, en même temps, partie, sous le surnom de Josephus a Floribus, d'un groupe très secret de quatre initiés supérieurs, le collège particulier de Chambéry, dont les autres membres étaient son ami salteur (a Cane), le Chevalier de Ville (a Castro) et le bourgeois Marc Rivoire (a Leone alto). Ces collèges, placés dans les différents chefs-lieux du rite écossais, étaient formés par la classe secrète des Grands Profès, chevaliers maçons de l'ordre bienfaisant de la Cité Sainte, ‘dernier grade en France – disait Willermoz – du régime rectifié’. Cette classe était ‘répandue en petit nombre et partout inconnue’. Son existente même était ‘cachée depuis son origine à tous les chevaliers qui n'ont pas encore été reconnus dignes et capables d'y étre admis avec fruit’.

On voit à quel rang Joseph de Maistre s’était élevé dans la hiérarchie occulte.»

        

José

É pelo menos interessante saber. Em todo esse texto caço esta abelha de oiro: o nome maçónico Josephus a Floribus revela-nos que o seu portador tem como supremo modelo Joaquim de Flora.        

 

Álvaro

Eu não quero dizer que o martinismo se identifique com a Igreja mística de que há pouco vos falei. Mas o martinismo é, como vos venho sugerindo, uma das principais ligações da Igreja visível de Pedro com a Igreja invisível de São João.

 

Leonardo

Não quer explicar-nos porque diz é e não diz foi? Tudo isso se passa no século XVIII e não se pode dizer que a escola fundada por Pascoal Martins permaneceu activa e se manteve pura naquelas correntes esotéricas que dela se reclamam.

 

Álvaro

Refere-se certamente a Papus. Ao empregar o verbo no tempo presente estou a pensar na nossa filosofia, na filosofia portuguesa. Não são A Ideia de Deus de Sampaio Bruno e O Criacionismo de Leonardo Coimbra duas projecções em terra portuguesa do pensamento que anima o Tratado da Reintegração dos Seres de Pascoal Martins? Deixemos os detractores da filosofia portuguesa entreterem-se a negar a sua originalidade e, portanto, a sua existência, acusando-a de ser uma pobre filha bastarda de Bergson. Estamos agora em condições de saber a razão profunda pela qual um livre-pensador revolucionário como Sampaio Bruno nos aconselha a ler, n’O Encoberto, o modelo filosófico de todos os fanáticos, o Conde Joseph de Maistre. É que nada disto se compreende em ter em conta o problema do cristão-novo… Deixemos, porém, isso, para amanhã, pois começa a escurecer, e a humidade e o frio…

 

José

Vénus, a estrela do pôr do dia, como lhe chamam aqui na Serra d’Ossa os camponeses, prenuncia outra bela tarde para amanhã. Fixemos o seu brilho lúcido. Lembremo-nos que os antigos a situavam no terceiro céu. Antes de nos levantarmos, meus senhores, para nos recolhermos debaixo das telhas, vamos criar durante alguns minutos um silêncio absoluto em nós, para que na nossa alma se imprima aquela lucidez que transportaremos connosco até à próxima conversa.         

 

António Telmo

INÉDITOS. 65

06-10-2016 23:22

Numa carta para António Quadros de 2 de Junho de 1986, António Telmo afirma esperar publicar um volume sobre “Filosofia e Cabala”, «já completo». Noutra, de 7 de Abril do ano seguinte, informa o amigo de que nele tenciona incluir “As tradições heterodoxas da filosofia portuguesa”, então já a aguardar publicação num número especial da revista Democracia e Liberdade organizado por Pinharanda Gomes e inteiramente dedicado à Filosofia Portuguesa. Numa terceira missiva para Quadros, ainda de 1987, mas já de 28 de Julho, escreve: «Enquanto bibliógrafo, estou aperfeiçoando e reunindo escritos antigos que intitularei, num novo livro, de “Filosofia e Cabala”.»

Conjugando estes dados, seríamos levados a suspeitar que o livro anunciado em Junho de 1986 e dado por «completo» era bem diverso do que viria a sair a lume em 1989, sob o título Filosofia e Kabbalah. Recentemente, a consideração de um caderno de apontamentos existente no espólio de António Telmo, com a indicação, na capa, de “Filosofia e Kabalah (Diálogos)”, veio reforçar essa suspeita. Pelo menos em parte, Filosofia e Cabala terá sido inicialmente concebido pelo filósofo como um livro escrito de raiz, e não como a recolha de dispersos que depois se viria a revelar. Só um estudo mais detido deste material, ainda inédito, permitirá avaliar em que medida houve mudança no propósito. Mas o inédito – um de três textos sobre ecologia que dele consta – que agora damos a conhecer mostra como o pendor aforístico do conciso e incisivo “Para um movimento metafísico de ecologia – princípios” teve um antepassado próximo bem distinto, apesar das flagrantes semelhanças verificáveis na ideação. 

Movimento metafísico de ecologia[1]

 

Em geral, todos os movimentos de ecologia que nos últimos cinquenta anos têm aparecido no estrangeiro e em Portugal, procedem acusando. Segundo a Bíblia, será o diabo que acusará o homem no fim dos tempos. É necessário que haja sempre quem acuse. Mas o acusador tem por fim condenar e perder o acusado. Não pretende a ecologia salvar o homem, salvar todos os homens e não só aqueles que não têm culpa dos desequilíbrios e da corrupção da natureza em que somos e vivemos? Há alguém que não tenha culpa? 

Os ecologistas, em Portugal, dividem-se em dois campos: o daqueles que responsabilizam o capitalismo e o mau uso da ciência e da tecnologia e o daqueles que responsabilizam, em termos análogos, o socialismo. Os primeiros escolheram como símbolo a cor verde e os segundos não se importarão, talvez, de serem designados por azuis, que evoca a imagem do céu sem nuvens e da monarquia sem mancha. Ambos coincidem em fazer depender de “acções físicas” as perturbações naturais. Os seres devoram-se entre si em cadeia. A destruição de uma espécie causará a multiplicação excessiva da espécie que ela devora que irá por sua vez tornar impossível a existência de outras espécies. Entre o sol e a terra há uma harmonia que se reflecte na pureza da atmosfera. Através da comunicação no espaço e da distribuição no tempo, os quatro elementos recebem uns dos outros o movimento próprio da vida: a água torna a terra fecunda, os vegetais purificam a atmosfera onde recebem a luz ou a energia solar. A ecologia é a ciência destas relações que devem ser conhecidas para harmonizar com elas a acção do homem. Mas o homem sobrepõe o seu interesse imediato de produção de riqueza, capitalista ou socialista, aos interesses dessa mãe antiquíssima que é a natureza, construindo fábricas onde não deve, cortando ou plantando florestas, desviando energias, como a eléctrica ou a atómica, dos seus cursos naturais. Nós pensamos que estas acções visíveis não são causas, mas consequências das verdadeiras causas, que são sempre invisíveis ou de natureza espiritual. Daqui a escolhida designação de “movimento metafísico de ecologia”.

O segredo está em dar como causa de uma alteração na natureza uma acção humana que aparentemente nada tem que ver com essa alteração. Assim, num exemplo propositadamente disparatado e escolhido artificialmente para fins didácticos, diremos que a causa da plantação do eucaliptal que cobre a Serra d’Ossa não foi o interesse de produção de capital de uma empresa como a Socel mas o facto das mulheres da região terem passado a cortar as unhas dos pés em forma de garra. Eis que, por este caminho, se substituem os critérios dos economistas pelos critérios dos bruxos. O raciocínio subjacente é este: quando as mulheres alteram o seu comportamento social produz-se no mundo subtil das verdadeiras causas um movimento que vai alterar nos homens o sentido realista da paisagem e da agricultura. A ideia basilar é a de que existem leis invisíveis que ligam os seres entre si e sobretudo a esfera do espírito do homem à totalidade da natureza. Somente pelo conhecimento dessas leis é possível instituir a ecologia e torná-la capaz de eficácia na restauração da ordem natural primitiva. No exemplo dado, se persuadíssemos as mulheres a cortarem as unhas em meia-lua secariam todos os eucaliptos que povoam a Serra d’Ossa.

É evidente que escrevemos para os leitores capazes de apreender através de um exemplo disparatado a ideia base que os levará a encontrar relações mágicas verdadeiras entre acontecimentos aparentemente desligados.

A bruxaria, e as suas leis, constitui uma aplicação menor, um eco e uma repercussão ou superstição de uma augusta e solene doutrina que a Igreja Católica desde o início chamou a si e soube perpetuar através de todas as vicissitudes políticas. É a doutrina do pecado original.     

A natureza não pecou. Quem pecou foi o homem. Esse misterioso crime primitivo, cuja verdadeira essência e razão nos escapa, abalou todo o universo natural e sobrenatural dependente do Espírito Central criado à imagem e semelhança de Deus, repercutindo-se no vasto espaço e no tempo imenso, pelos séculos dos séculos. Eis o motivo fundo porque a primeira das ciências é a antropologia, a Ciência do Homem. Acordar para a vida espiritual implica a passagem pela consciência de que participamos nesse crime, de que todos somos um, como Cristo nos ensinou. O nosso adormecimento é a nossa divisão, mas à consciência de sermos uma só Inteligência não se acede negando o valor do Espírito e dando como natural o que é o resultado do pecado original. Os ecologistas cometem o erro de perspectiva de darem a natureza sem o homem ou com o homem antes da civilização, como uma realidade sem mancha, movendo-se e perpetuando-se harmoniosamente. São, neste sentido, filhos de Jean-Jacques Rousseau. Noutro sentido, preferem à doutrina cristã o neo-orientalismo, para o qual o homem não é o ser privilegiado de Deus, mas um elo na cadeia infinita dos seres. A cosmologia (ou as Ciência Físicas) detém o primeiro lugar no mundo do conhecimento. A antropologia é mais uma ciência física na vasta enciclopédia do saber.   

Na natureza todos os seres se devoram entre si. A vida haure-se na morte. “Crescei e multiplicai-vos”, foi a palavra, mas não foi dito “e devorai-vos”. Atribui-se a Lenine a seguinte frase, proferida contra Kerenski: “as revoluções não se fazem com vegetarianos. Eu, por mim, prefiro a carne mal passada.” Isto é, ensanguentada, exalando ainda os fumos[?] do sangue que o fogo não consumiu. Esta frase equivale a esta: “Esse homem não sabe que somos demónios que nos alimentamos de sangue; sejamos civilizados, passando a carne pelo fogo, mas preservemos a parte de verdade do nosso ser verídico consumindo completamente na carne de que nos alimentamos a vida animal que a constitui.” Lenine conhecia a prescrição de Moisés que proíbe alimentarmo-nos do sangue dos animais. Em geral, a ecologia é um movimento de vegetarianos, em grande parte leninistas que não querem ver a grande contradição que é substituir o “vermelho” pelo “verde”. Através de uma simplicíssima experiência de óptica pode observar-se como não há vermelho sem verde, como um está sempre onde o outro está, como um se transmuta no outro deixando a luz seguir os seus próprios caminhos.

Como se concilia o orgulho sanguinário de Lenine com a serena suavidade anémica dos vegetarianos? Não significa “anémico” “sem sangue”?

O nosso Teixeira Rego interpretava o pecado original como a manducação da carne. No princípio, o homem paradisíaco nutria-se apenas de vegetais. Ao alimentar-se de carne, infringiu a proibição de tocar na “Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal”. Daqui a sua queda no sofrimento e na dor. 

 

António Telmo   



[1] Título da responsabilidade do editor.

 

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