Blogue

VOZ PASSIVA. 74

31-12-2016 18:53

Sobre a poesia de António Telmo

Rui Arimateia

 

Apresentar e falar sobre a figura e a Obra de António Telmo é sempre um desafio do “Arco da Velha”, simultaneamente difícil e estimulante.

Difícil, devido à complexa idiossincrasia do Autor, estimulante porque a presença de Telmo continua a inspirar-nos a constantemente re-trabalharmos (e não a repetirmos) a sua obra em nós e entre nós para que o poder do pensamento criativo aconteça e transforme e siga livremente para o Astro…

Tal como afirma António Telmo:

«A terra em que vivemos é apenas um laboratório; no athanor da humanidade separa-se o subtil do denso. Esta não é a terra definitiva. Para onde vai a energia que, pela entropia, constantemente se perde? Transforma-se em energia espiritual. Tudo quanto de bom e de verdadeiro se pensou e imaginou, e pensa e imagina, é o subtil que se separa do denso e vai formar a Terra Prometida.»

[A.T., in A Terra Prometida, Edições Zéfiro, Sintra 2014, pp.17-18].

 

No que diz respeito à sua personalidade única, poderemos socorrer-nos de uma auto-apresentação que o próprio António Telmo escreveu, na Carta-Prefácio ao livro de Alexandre Teixeira Mendes [“Barros Basto – A Miragem Marrana” (p.12)], é muito ao seu jeito:

 

«Não serve então de prefácio esta carta? É a obra de um marrano, cheia de paradoxos e de duplicidades, de desvios súbitos, de contradições, de certezas e de incertezas. (…).»

 

Daí que ao lermos e tornarmos a ler a extensa obra que Telmo nos legou, a nossa evolução/criação interior, a nossa reflexão que pretendemos séria, nos vai permitindo uma compreensão cada vez mais profunda da dinâmica do pensamento criacionista do Autor. Pois que a poesia para António Telmo é criacionista; uma vez que cria a realidade de que fala. E importa reescrever e verbalizar esse pensamento porque, como ele afirma, “Só há pensamento, pelo menos pensamento activo, através da palavra”.

Em momentos de profunda crise física (económica e financeira) e psicológica (carência de valores humanistas), como são os que nos encontramos a viver, estas Tardes Télmicas são fundamentais para a conservação e o fortalecimento da Cultura Portuguesa, da sua Filosofia, da sua Poesia, do seu Humanismo… entre as nossas comunidades.

É um projecto generoso construído em comum por homens e por mulheres preocupados com a participação e com a assumpção da palavra, factores importantes e fundamentais para a coesão e a harmonia, tanto social como espiritual. Um sentimento forte começa a nascer no mais profundo de nós próprios quando reflectimos em conjunto estas matérias, e de facto começamos a sentir que o poder da palavra (do diálogo, da partilha) cada vez mais terá de se impor perante a palavra do poder

Diz-nos António Telmo, numa entrevista a Américo Rodrigues, que:

 

«(…). Não me considero um mestre. Eu não considero e qualquer desses que aí estão no livro [António Telmo e as Gerações Novas] não podem dizer que são meus discípulos, porque eu ainda não lhes disse que eram, não é? Porque o mestre é que diz quem é o discípulo.

E um discípulo não pode escolher um mestre?

Não pode. Podíamos estar sujeitos a que qualquer cavalheiro dissesse que era discípulo. Agora seguidor, aceito. Eu gosto muito da expressão “olhar a mesma estrela”. Eu aceito que eles todos olhem a mesma estrela mas isso não me põe a mim na situação de mestre. Companheiro mais velho, talvez.»

[António Telmo, in «A Terra Prometida», Ed. Zéfiro, Sintra, 2014, pág.185.]

 

E são sobre as palavras de poesia daquele Companheiro mais velho que gostaria de tecer algumas breves considerações, tentando continuar a “olhar a mesma estrela” que muitos de nós partilharam e vivenciaram com António Telmo.

Não queria deixar de felicitar a querida Amiga, a Escritora e Poeta Risoleta Pedro, cujo trabalho de compilação e de apresentação dos poemas, agora reunidos neste VI livro das Obras Completas de António Telmo, foi extraordinário e esclarecedor para quem se quiser debruçar mais aprofundadamente sobre os textos poéticos de Telmo.

Não queria também deixar de agradecer o convite que me foi feito pelo Amigo Pedro Martins para fazer esta pequena apresentação, dando-me a oportunidade de a partilhar com os presentes. E a todos os Amigos e Amigas do Projecto António Telmo que, continuando a trabalhar e a publicar a Obra de António Telmo, estão a contribuir decisivamente para o tornar imorredouro…

Sendo estas sessões também para nos reaproximarmos da obra de António Telmo, recorrerei à sua palavra sempre que a mesma for esclarecedora, sempre que nos dê mais claridade, sobre algum assunto mais complexo, dúbio ou esotérico apresentado nos poemas.

Elegi meia dúzia de poemas. Os que pela sua leitura, e neste momento, me tocaram mais fundo e que suscitaram uma ou outra reflexão.

Então, e para “entrar a matar”, recordemos que, para António Telmo,

 

«As ideias são comunicadas pelos anjos! Só que há quem as pense e quem as não pense. O pensamento é que é nosso.  [pág. 57]

(…)

Acho que a poesia não tem intenções porque a poesia é também o resultado da colaboração do homem com o anjo. Claro que eu não digo que o anjo é que escreve os poemas, é o homem que escreve os poemas ajudado pelo génio! O génio era esse anjo que a gente vê nas “Mil e uma Noites”, os génios que são educados.  (…).»  [págs.183-4]

[António Telmo, in A Terra Prometida, Edições Zéfiro, Sintra 2014, pp.183-4].

 

Após esta consideração, indicarei então alguns dos poemas que me tocaram e que me fizeram alargar a consciência para outra Poeta, Beatriz Serpa Branco, cujas palavras considero estarem em perfeita sintonia com António Telmo e que inclusivamente se conheceram e trocaram publicações nos idos anos de 1982, em Évora.

Confesso que me diverti imenso a ler a poesia agora reunida de António Telmo e, sem esforço, ler as frases, olhar as palavras, sentir e desocultar os sentidos esotéricos e exotéricos das construções poéticas. Contudo obra inacabada, continuamente retrabalhada… sempre que me apropriar de um poema e lhe fizer uma nova leitura.

Dionísio, poema da juventude, em que António Telmo faz desocultar a relação entre o menino e sua mãe, num jogo onde a vida e morte nos alertam para o tempo mítico da criança. Obrigou-me a olhar para o tempo mítico da minha infância.

Para António Telmo – criança é o ser que cresce, o adulto em devir; a criança, através da educação deverá atingir o estado adulto com uma inofensividade (ahimsa, conceito espiritual que os orientais tanto prezam) que a tornará um “príncipe, isto é, um ser que em si tem o seu princípio e do qual o Infante é o seu perfeito símbolo.”

Tal como o Infante do poema Eros e Psique de Fernando Pessoa:

 

“(…).

E, inda tonto do que houvera,

À cabeça, em maresia,

Ergue a mão, e encontra hera,

E vê que ele mesmo era A Princesa que dormia.”

 

A Inofensividade é um estádio de evolução psicológica e espiritual que acontece após a fase de inocência da criança; é um estádio em que a reflexão e o autoconhecimento constroem um homem novo. Nos contos do maravilhoso, o Príncipe e ou a Princesa, no início da saga encontram-se normalmente num estádio de graça onde a inocência impera! Através das provas físicas e psicológicas, através da experiência perigosa de contacto com o mundo real, vão adquirir força, beleza e sabedoria interiores suficientes para assumirem a transformação/crescimento do Ser e, através da escolha e do livre arbítrio transmutam a inocência (estádio inconsciente) em inofensividade (estádio consciente). O autoconhecimento tem aqui um papel fundamental.

Apresento-vos então um poema de Beatriz Serpa Branco, em casa de quem tive o prazer de conhecer António Telmo na Primavera de 1982, retirado do seu livro de poemas “A face e as sombras” [Colecção Daimon, Évora, 1959]:

 

“o menino é um recém-chegado de outros mundos.

anunciador de uma distância íntima. de onde nascer

é revelar

 

sinal de uma viagem a um viver separado.

 

memória. vaga memória. de brisas além da terra

em mares de aprofundar.

 

ele é o Anjo enviado de nossos reinos secretos. a este

mundo de fora     onde depois da infância nos encontrámos

habitando. sem saber de outro lugar.

 

mas o menino é de longe. a Boa Nova soada de praias

além do mar.

 

rosto voltado aos cantos da distância.

olhos despertos ao acenar do longe.

 

de onde vieste e ainda lembras sem saber lembrar?

 

eco de mundos de silêncio o teu silêncio. menino

de silêncio olhando.

presença de um Real chamando.

além das vozes. das coisas. e dos gestos.”

 

Narciso, poema também da época da juventude de António Telmo. Utiliza neste seu muito longo poema, uma riqueza de metáforas e mais metáforas. Para António Telmo, e segundo António Cândido Franco, “a arte poética é o exercício da metáfora”.

A metáfora da água que António Telmo utiliza generosamente neste extenso poema, e ao longo de toda a sua obra poética, remete-me para uma quadra do cancioneiro popular alentejano dotada de uma profundidade de significado que importa ter em conta nas nossas pesquisas sobre a criação poética portuguesa, a saber:

 

Não me inveja de quem tem

carros, parelhas e montes

só me enleva quem bebe

água em todas as fontes.

 

A água em todas as fontes terá de ser bebida para que o Amor aconteça… para que o Amor prevaleça…

O cante alentejano, através do seu cancioneiro tradicional, contém em si vestígios de uma muito antiga sageza, sem idade… Uma sabedoria oculta, subterrânea, ancestral, que nos diz que todos os homens são irmãos, que todos detêm um saber que está para além da propriedade material das coisas, dos objectos. Como consequência directa, todos poderão partilhar e simultaneamente usufruir as riquezas espirituais comuns, colocando-se cada qual disponível para ouvir o outro e partilhar com ele.

Nos dias que correm é cada vez mais necessário que cada um de nós queira e consiga “beber água em todas as fontes” para que as diferenças de todos possam ser compreendidas e aceites por todos. Para que aquilo que diferencia os homens uns dos outros seja um factor de aproximação e não um factor de desavença e de desentendimento.

Terra escura de carne dolorida, poema em que António Telmo continua a cantar a água e o sol…

Refere a certa altura o canto do rouxinol, De lunar sentimento embriegado, talvez porque sinta em si próprio o tempo sem tempo.

Na nossa notável tradição galaico-portugueza relembremos a poesia de Afonso X, o Sábio, nomeadamente as suas “Cantigas de Santa Maria”. Ora justamente uma dessas Cantigas (a CIII) canta-nos a história de “Como Santa Maria fez estar o monge trezentos anos ao canto da passarinha, porque lhe pedia que lhe mostrasse qual era o bem que avian os que eran en paraiso”.

Reza assim:

 

“Certo monge rogava a Deus em instantes súplicas, que lhe desse em vida uma pequenina amostra dos gozos do paraíso. Eis senão quando um dia chegou aos seus ouvidos o canto dum passarinho, mas tão suave e melodioso que, no desejo de mais perto o ouvir, saiu do seu convento e foi prostrar-se junto do sítio onde a avezinha estava poisada. Sempre enlevado, ali se quedou algum tempo, segundo ele pensava, até que o alado cantor se afastou, dando fim aos seus trinados. O bom do monge voltou então ao cenóbio, mas grande foi a sua admiração, quando viu o exterior mudado, e maior ainda, ao saber do porteiro que nenhum dos seus antigos confrades lá estava. À vista da sua insistência em afirmar que poucas horas havia que dali saíra, perguntaram-lhe o nome do seu abade; foi então que, consultados os anais da casa, se reconheceu que trezentos anos se tinham passado entre a sua partida e chegada. Pouco tempo sobreviveu o santo homem à estranha aventura, voando o seu espírito de aí a pouco para o seio de Deus.”

[O Monge e o Passarinho – Uma Lenda Medieval, José Joaquim Nunes, Academia das Sciências de Lisboa, Separata do «Boletim da Segunda Classe», Vol. XII, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1919.]

 

“Fecunda a terra o sol do amor perfeito. / Meu coração fica todo florido.” – Não remeterão estes dois versos para a realidade inefável de uma passagem de uma transformação… de uma Iniciação? Onde de novo faz todo o sentido o tempo sem tempo!

Outros poemas me saltaram à vista e ao sentimento:

O teu amor não veio moça? Choras. – Utilização pelo Autor de Metáforas. Imagens de grande riqueza poética a cantar o Amor.

A família é quando se dorme. – O jogo simbólico da luz com a sombra. Duas faces da mesma moeda. O Inefável… o indiscritível… Novamente as crianças, aqui aparecem como intermediárias entre os homens e Deus!

A minha fé tem a medida do que sou / Que se passou na infância que não lembro – Dois poemas que fundindo-os se constrói um soneto que trata de duas realidades psicológicas determinantes na obra e na reflexão de António Telmo: a assumpção da máxima “Eu sou o que sou” e o facto da Memória encontra-se ligada em profundidade à Inteligência! Sem inteligência não há memória e sem memória não acontece a inteligência…

A mim próprio – poema em que se adivinha a luta humana do eu e do não eu. A Gnose e as contradições da natureza humana em busca da perfeição ou da Morte. “Não sei como tentar e, se sei, temo / O fulgor essencial que mata ou cega.”

Uma vez conheci pelo Espírito Santo – Conhecer é recordar e novamente a frase iniciática “Sou aquilo que sou” saltam-nos aos sentidos e fazem sentido enquadradas pelo Espírito Santo o Senhor das Linguagens e dispensador do entendimento – novamente a máxima platónica do “conhecer é recordar”, continuamente utilizada..

Mestria / Rotina – poemas que remetem para a realidade simbólica ou menos simbólica da Maçonaria.

No primeiro poema, António Telmo dá-nos a descrição sumária da vivência íntima da passagem do Grau de Companheiro para o Grau de Mestre Maçon. Pondera a eficácia de todo o cerimonial…

No segundo poema, António Telmo, critica o comportamento de maçons no interior da Maçonaria. Maçon porquê? Para quê?...

Levaram luz pr’a onde reina a treva – novamente António Telmo fala-nos sobre a autenticidade da Maçonaria nos dias de hoje.

Lembremos, a propósito, um pequeno trecho de António Telmo sobre o assunto:

“(…) É espantoso como foi possível conservar, ao longo dos séculos, inalteráveis, no que lhes é essencial, ritos e símbolos maçónicos, quando enormes forças, cá dentro como lá fora, tudo têm feito para os adulterar e corromper (…).”

[António Telmo, in A Terra Prometida, 2014, pág. 108].

 

Breve conclusão:

Diz-nos Carlos Aurélio, Amigo e Companheiro de longa data de António Telmo que “A sua vida e a sua obra são metáforas mútuas, reflexos similares da mesma alma inquieta por Deus e por Portugal, a sua criatividade é fértil porque exposta à expectativa do espírito, ao espanto de se estar vivo.”

[Carlos Aurélio, António Telmo (1927-2010) e Vila Viçosa, in “Callipole”, n.º 18, Ed. Câmara Municipal de Vila Viçosa, 2010.]

 

Mais uma vez recorro às sábias palavras de António Telmo quando refere que “Os grandes poetas fazem-nos esquecer as imagens visuais com que nos falam. Tudo, sob a sugestão encantatória do ritmo, se dissolve em sons, cheios de «espírito», cada vez mais altos e profundos, em que ideias e sentimentos se confundem numa mesma, única e indefinível vibração.”

 

*   *   *

 

Termino com a leitura e a partilha de dois pequenos poemas de Beatriz Serpa Branco exactamente sobre “o poeta”:

 

todo o poeta é profeta

 

só ele sabe      antes do tempo

como acontece a verdade

 

e onde é verdade a cidade

aquela antiga cidade

da unidade e da altura

 

só ele sabe essa lonjura

 

terra em amor prometida

depois do tempo acabar

 

todo o poeta é profeta

 

só ele faz nascer o dia

antes de o sol o criar

 

*   *   *

 

deixa a Visão ficar

deixa o poeta morar      ah deixa

deixa que o poeta viva em ti

 

 

ele vem a acordar o poeta que em ti era

 

e da infância esqueceste

pelos caminhos da terra

 

*   *   *

 

Rui Arimateia – Sesimbra, 10 de Dezembro de 2016.

Sessão de apresentação do Vol. VI das Obras Completas de António Telmo – VIAGEM A GRANADA SEGUIDA DE POESIA, na Biblioteca Municipal de Sesimbra, dia 10 de Dezembro de 2016, 15:00.

 

VOZ PASSIVA. 73

31-12-2016 18:36

O plano C

António Couvinha

 

Estávamos em 1974 e vivia-se a revolução de Abril.

Viéramos de vários locais como Évora, Rio de Moinhos, Estremoz e o encontro estava marcado para o Café Plátano no Redondo.

Na sala interior à volta de umas garrafas de vinho, pão e queijo, éramos uns 11 ou 12, talvez 13. Não sei bem.

Relembrando um antigo “Manifesto” publicado em 71 e um segundo apreendido pela PIDE e sobretudo o que estava mais actual, a revista PI (com letra grega) da Escola Secundária do Redondo, orientada por Manuel Calado e Armando Carmelo, propúnhamo-nos criar uma outra publicação de intervenção artística e sempre empenhada politicamente como seria de esperar na época que decorria. (O Redondo era nessa altura mais ou menos a sede da LUAR no Alentejo).

O António Telmo e o Armando Carmelo eram os mais velhos participantes neste encontro e foi precisamente o António Telmo que propôs a criação de uma revista que fosse o braço artístico, ideológico e interventivo deste grupo ali presente. Constituir-se-ia assim um grupo ou “sociedade secreta” como centro de gravidade desta produção cultural. Foi então que sugeriu que o nome do grupo e o título dessa publicação começasse pela letra C visto que, apenas com uma excepção, o António João Brito, todos os outros presentes tinham um nome começado por C.

Foi um momento com muita surpresa e alguma expectativa perante aquele olhar e sorriso misterioso que todos conhecemos do António Telmo, pois não tínhamos tomado consciência disso e além disso ele não conhecia todos os presentes. Então todos nos entreolhámos para confirmar com satisfação, que salvo a excepção do Brito, que ficou um pouco desanimado, de facto o Armando Carmelo, o Manuel Calado, o Luís Cavaco e o seu irmão .... Cavaco, o António Fernando Cabeça, o José Manuel Carvalho (Pepe), a Lídia Cascalho, o meu primo José Manuel Couvinha, eu próprio António Couvinha e até o António Telmo Carvalho Vitorino todos tínhamos um nome começado por C!

Passados esses momentos de “suspense” começámos por aventar para a mesa sugestões do que poderia vir a ser o nome dessa publicação e que além do C, por ser pela Liberdade deveria ter o nome de uma ave. Lembro-me do quase óbvio Colibri, mas houve outras propostas embora a memória não me auxilie.

Não foi formado grupo nenhum. Ele já existia, estava ali. Não foi criada nenhuma publicação, apenas uns panfletos policopiados que foram o catálogo efémero da Exposição de Pintura e Desenho que o Fernando Cabeça, o Manuel Calado e eu próprio, viríamos a realizar no Alandroal e em Sesimbra, organizada pelo António Telmo. A intervenção musical foi do Vitorino e Cantadores do Redondo. Em Sesimbra também com a participação do Zeca Afonso.

 

Évora 29/10/2016

CORRESPONDÊNCIA. 32

31-12-2016 18:23

CARTAS DE ANTÓNIO CARLOS CARVALHO PARA ANTÓNIO TELMO. 01

 

5/1/77

 

Meu caro Amigo (permita-me que o trate assim, visto que, afinal, estamos ligados por laços tradicionais, ou seja, indestrutíveis, para além dos condicionalismos do tempo e do espaço)

Primeiro que tudo, um pedido de desculpas, que é a ao mesmo tempo uma justificação: escrevo-lhe à máquina porque a minha caligrafia tem piorado com os anos, a ponto de somente eu e minha mulher a podermos decifrar. E, mesmo assim, às vezes…

Vamos ao que importa: terça-feira passada[1] houve reunião com os sócios da VEGA[2], Assírio Bacelar e Vítor Paiva. Nessa reunião evidentemente o ponto principal da “agenda de trabalhos” foi o seu livro. Fiz-lhe a devida apresentação, afirmei claramente que tinha tanto interesse nele como se fosse meu e procurei realçar a importância do seu texto e da sua publicação numa colecção do tipo da “Janus”[3]. Tudo isto foi claramente entendido por eles, o que muito me consolou. E foram eles próprios a pôr a questão: não haverá outras pessoas, suas amigas ou conhecidas, interessadas nestes temas, que tenham projectos, investigações já feitas ou até livros já prontos que estejam apenas à espera de editor?... Veja a perspectiva que isso nos poderia abrir – formar um grupo de estudos a partir desta colecção, com autores-investigadores que encontrassem ali abrigo para os seus originais… Parece quase um sonho, não é verdade? Mas talvez se possa tornar realidade se os Fados nos forem propícios. Seja como for, vamos lutar por isso.

Em termos monetários e quantitativos, o seu livro deverá ter três mil exemplares vendidos a cem escudos. E dessa multiplicação cabem-lhe de direitos dez por cento, pagos em quatro prestações (a editora é “minhoca”, como sabe): a primeira a 30 dias da publicação, a segunda a 60 dias e as outras duas a 6 e 12 meses da publicação, com os devidos ajustamentos em relação às vendas. Espero que esta explicação esteja clara…

Mas este livro é só o princípio. Estão abertas as portas para continuarmos a escrever nesta colecção, nós e outras pessoas que estejam interessadas. Compete-nos, portanto, angariar colaboradores e textos que se enquadrem dentro desta linha. De facto o tempo que nos resta é escasso; convém aproveitá-lo bem. Que o Grande Arquitecto do Universo nos ajude.

Sempre se confirma a existência de um inédito “sebastianista” do José Marinho? Se assim fosse, teríamos que arrancar já com isso, para entrar a seguir na colecção.

Aguardo as suas boas notícias e entretantos estamos de parabéns!!!!!

Um abraço tradicional do seu amigo

António Carlos Carvalho

 



[1] A terça-feira imediatamente anterior à data desta carta foi o dia 4 de Janeiro de 1977.

[2] Chancela que publicou, em 1977, a edição prínceps da História Secreta de Portugal.

[3] António Carlos Carvalho era o director da Colecção Janus.

 

EDITORIAL. 10

20-12-2016 17:05

Um gigante entre gigantes

 

Há alguns dias, António Telmo foi um dos autores estudados em Lisboa no 8.º seminário do projecto Redenção e Escatologia no Pensamento Português, da Universidade Católica Portuguesa, ao lado de nomes como Antero de Quental, Fernando Pessoa ou Agostinho da Silva. Agora, de Espanha, chega-nos a notícia da homenagem que a prestigiada revista Cultura Masónica lhe prestou no seu mais recente número, o 27, enfileirando o seu nome - Telmo, simplesmente Telmo - na capa ao lado dos de René Guénon, Cagliostro, Pascoal Martins e Joseph de Maistre, entre outros. São “figuras que aportaron otras luces”, dando corpo ao tema desta edição da revista: “Heterodoxia Masónica”, onde se publica uma versão castelhana do escrito télmico sobre Abellio, já reunido em A Terra Prometida. Compreende-se que assim seja: o lugar de um gigante é entre os gigantes. Por muito que custe a alguns atormentados pela hiena da alma, a hora de Telmo está a chegar…  

Um Santo Natal e um feliz ano de 2017!

VOZ PASSIVA. 72

17-12-2016 21:18

Viver o caminho: António Telmo e a assunção da História*

Pedro Martins

Entender o modo como António Telmo concebe a redenção implica a consideração prévia da sua noção de pecado original, pelo qual se deu a queda do homem na história. Dado o tempo limitado, postularei uma conclusão: na esteira de Bruno e de Álvaro Ribeiro, Telmo converge com o martinismo, ao qual, aliás, refere a essência da filosofia portuguesa, segundo a sua concepção operativa.

Teremos, assim, a degradação, por condensação, do corpo glorioso do Adão primordial, em consequência de um pecado de magia: uma arrogância demiúrgica, usurpadora da Divindade, mas frustrada no comércio impuro da imaginação com a sensação. Quem assim decaiu, reinava sobre o Universo e todas as suas criaturas no paraíso terrestre a que Pascoal Martins, misteriosa, mas significativamente, chama terra erguida acima de todos os sentidos.

Em entrevista tardia, Telmo afirma que

 

o pecado original é uma ruptura entre o ser e o pensamento, quer dizer, eu não sou aquilo que penso e penso aquilo, penso mas não sou. O que eu chamo Filosofia Operativa é aquela Filosofia em que o pensamento é ao mesmo tempo o ser da pessoa.

 

Para Pascoal Martins, o pensamento adâmico coincidia essencialmente com o pensamento divino, resultando a queda do modo como a vontade livre do primeiro homem, influenciada pelo espírito perverso, se decidiu contra esse pensamento.

Nas Congeminações de um Neopitagórico, de 2006, republica-se a entrevista à revista Encontro, conduzida por Ângelo Monteiro. Nela se afirma que Arte Poética, o livro de estreia de 1963, «vale sobretudo pelo último capítulo que foi escrito para a sua segunda edição» e se esclarece a noção de filosofia operativa, cerne desse mesmo livro: «Por operativo significava eu eficaz, capaz de nos curar da dor e de nos libertar do mal».

Do prisma soteriológico, esta definição é coerente com a já citada, que diz ser operativa «aquela Filosofia em que o pensamento é ao mesmo tempo o ser da pessoa», e isto tão certo com o pecado original ser «uma ruptura entre o ser e o pensamento».

Será digno de nota que a única parte de Arte Poética que Telmo valoriza – a quarta, o diálogo entre X e Y, “Sobre a Poesia”, aditado à reedição de 1993 – ressurja nas Congeminações com ligeiras modificações, porém significativas: os interlocutores chamam-se agora Thomé (o gnóstico) e Nathan (o cabalista) e tratam-se por tu. São as duas metades íntimas de Thomé Nathanael, alter ego de Telmo, dissociadas por um processo de dianoia, mas convergindo pelo diálogo para o que mais importa.

Como o título logo indica, as Congeminações cifram um pensamento maçónico. Daí que a republicação daquele diálogo neste livro seja congruente com uma confissão à Encontro: «O que propus e proponho ainda é uma filosofia que seja essencialmente uma arte poética, criadora de força, de sabedoria e de beleza pela virtude dos conceitos». A alusão à Arte Real, pelo enunciado da tríade iniciática, vincula a Arte Poética à tradição maçónica. A metamorfose onomástica dos interlocutores, revelando a metade cristã e a judaica do ser íntimo do filósofo marrano, confirma-o. A Maçonaria visa conciliar, pela mediação de Schaddaï, o Grande Arquitecto do Universo, os antagónicos atributos divinos – El Elyon e Elohim – que os dois credos, respectivamente, privilegiam nos seus cultos.

O livro de 1963 parte do pensamento de Bergson. «Servi-me dele para dizer a minha Arte Poética», consigna-se na entrevista à Encontro, não sem, porém, se esclarecer: «A minha visão iniciática da Vida e da História não vem de Bergson, mas sim de Álvaro Ribeiro e de Eudoro de Sousa que foram quem me mandou ler o filósofo francês». «O esforço intelectual de Bergson, desenvolvido em alguns livros notáveis» – lê-se na versão original do livro – «teve o valor de pôr a «base» ou a «matéria» da filosofia operativa». Telmo, todavia, adverte: «Ilude-se o leitor que procurar nesses livros uma construção mental explicativa do universo interior ou exterior, mas também ficará decepcionado aquele que neles indagar as operações – princípios e regras – a realizar sobre a “matéria”».

A terceira parte de Arte Poética entremostra o que na primeira ficara aludido: Bergson, sendo, «principalmente, um antropólogo», ignora os pequenos e os grandes mistérios da iniciação, com expressão filosófica na cosmologia e na teologia, respectivamente. Sublinhando que os pequenos mistérios respeitam à restauração do estado primordial do paraíso terrestre, dir-se-á que toda a ideação de Telmo posterior a 1963 se concebe como demanda de formas tradicionais inscritíveis na matéria posta por Bergson, culminando, ao cabo de um processo lógico e ontológico, na eleição operativa da tradição maçónica, pela sua iniciação no Regime Escocês Rectificado, de inspiração martinista.

Se a queda implicou uma condensação, importa lembrar, com André Benzimra, que «o que para Adão, no Éden, era corporal, ou seja, ocupava o lugar da exterioridade, pertence no homem da nossa época à ordem da interioridade e releva de um plano superior». Isto «explica que diversas tradições apresentem a natureza corporal dos primeiros tempos como mais fluida, mais subtil e mais cintilante do que a matéria a que estamos acostumados». Por isso, «do mais alto grau de espiritualidade ao mais baixo grau de corporeidade há um número indefinido de níveis que podem ser vistos como as etapas de uma solidificação progressiva».

A doutrina tradicional dos elementos, «raízes onde se entronca directamente o mundo sensível em toda a sua extensão espácio-temporal e em todas as modalidades que o caracterizam», oferece um quadro simbólico de correspondências com os «diferentes estados da “matéria” correspondentes aos graus da condensação física».

Nas Congeminações, no diálogo Sobre a Poesia, quinta-essência da Arte Poética, Nathan adverte: «O erro é o de julgar que o corpo é um corpo de terra e que não pode ser feito pelos outros elementos.» Apelando às formas tradicionais, a asserção esclarece o que em 1963 sucessivamente se afirmara: «a alma (…) está sempre ligada à matéria por dentro»; «o corpo é uma manifestação da alma»; e «todos os princípios que constituem a alma devem encontrar-se no corpo, segundo os seus modos próprios». Assim, os sistemas determinantes da corporeidade estão referidos a centros que respondem logicamente «a círculos ou esferas cada vez mais profundas da vida».

Tudo estará, pois, segundo a fórmula bergsonina, em «remonter la pente de la nature», em «inverter», pela autognose, «a direcção habitual ou natural do espírito». Como em 1963 se escreveu, «as imagens são portas, no sentido de que, por elas, o espírito penetrou e penetra na matéria e de que, por elas também, pode penetrar na sua própria vida». Pelo aditamento do diálogo “Sobre a Poesia”, esclarece-se que «a mediação entre o mundo sensível e o mundo inteligível, entre o natural e o divino, é que é propriamente a metáfora».

Em “Sobre a metáfora”, de Viagem a Granada, Telmo relata como, tendo contemplado, uma tarde, por instantes, uma árvore num montado alentejano, e fechado depois «os olhos com a intenção de a ver reproduzida interiormente no espelho da memória tal e qual a via exteriormente», pôde ver «reproduzido todo o montado até ao mínimo pormenor, com todos os seus recortes, mas cada sobreiro era uma mobilidade imóvel, uma labareda estática, cheia no entanto de uma vida poderosa». Continuarei a citar:

        

Abri os olhos e de novo me apareceram as árvores na sua realidade verde de sobreiros. Verifiquei que a imagem ígnea interior era exactamente igual, em todos os seus aspectos, à que agora presenciava cá fora. Só eram diferentes pela substância: de madeira ou material na forma exterior, de puríssimo fogo no espelho mágico da alma.

(…)

Mais tarde, rememorando o acontecimento, lembrei-me ao mesmo tempo de uns versos que tinha escrito vinte anos atrás:

 

Todas as árvores são chamas

Porque é fogo a essência da semente

E tudo que na árvore é e sente

Busca o sol e é sol verde nos ramos.

 

Aquilo que mais interessou aqui ao aprendiz de filósofo que eternamente sou foi ver que pela metáfora é possível conhecer, embora em modo reflectido, a relação do mundo sensível com o mundo subtil imaginal. A visão dos sobreiros na sua essência ígnea veio confirmar esta possibilidade.

 

A remissão operada pela imagem ígnea da metáfora situa-nos no plano dos pequenos mistérios. No estado primordial, inerente ao grau de realização espiritual que lhes corresponderia, o homem seria um com o mundo de modo tal que todos os corpos seriam tantos quantos os seus órgãos e a alma de cada coisa seria uma parte da sua alma.

Parece ser à luz destes ensinamentos tradicionais que o relato da visão deve ser lido, como entendida deve ser uma passagem de Arte Poética que pressupõe as limitações cosmológicas da filosofia de Bergson:

 

Queremos insinuar que, sem realizar em nós um estado de vivência interna da natureza a partir do qual sentimos a natureza como o «Todo Um», como uma serpente mágica que infinitamente se devora a si mesma, e nesse infinito devorar-se, a si mesma se aumenta infinitamente (esta imagem anima o conceito bergsonino de tempo), não poderemos transitar da filosofia especulativa para a filosofia operativa.   

 

Não será, também, difícil aproximar a fenomenologia daquela visão da que Telmo, laboriosamente, relevou em Camões, segundo a forma tradicional da gnose persa, com o que se não afastou da matéria posta por Bergson. Como escreve em 1963:

 

A indistinção entre o «dentro» e o «fora» pode dar-se na própria percepção. Em La Pensée et le Mouvant, Bergson desenvolve uma teoria da percepção segundo a qual a percepção comum corresponde a um empobrecimento da percepção original. Esta seria animada, vivente, profunda, de tal modo que, sem intervenção do raciocínio ou de qualquer função mental, as coisas seriam percebidas na sua realidade interna, – como movimentos.

 

O cume atinge-se, todavia, em Bergson pela intuição, «conhecimento do espírito todo pelo espírito todo». Sendo «real porque directo, sem imagens interpostas», e «transmutador porque o homem que consegue tornar activa a intuição latente sofre uma dissociação dos elementos psíquicos que altera as condições naturais de manifestação do espírito», ele é «eficaz porque o pensamento, restabelecendo-se numa nova relação, – dinâmica –, com a matéria, tem em si a possibilidade permanente de realizar prodígios».

Aqui retomamos a entrevista à Encontro, onde se explicita que operativo significa eficaz, isto é, capaz de nos curar da dor e de nos libertar do mal, pela possibilidade permanente de realizar prodígios. Mas a redenção, sobre realizar-se na plenitude do composto humano, não é exclusivista. A relação dinâmica com a matéria que a garante, se opera sobre a densidade do próprio corpo, abarca o outro e o mundo.

No escrito de Viagem a Granada em que, combatendo o gnosticismo, perfilha a concepção brunina de que «a matéria não é eterna como Deus», Telmo propugna a Cabala d’A Ideia de Deus. Convergindo com Álvaro Ribeiro para divergir de José Marinho, ali proclama que

 

“o pensamento procede da contemplação”, não para que Sofia, representante da alma humana, se eleve do lodo terrestre, onde se submergiu, mas para organizar esse lodo em sociedade de homens livres. A política é, assim, a primeira das ciências, como para Augusto Comte fora a sociologia.

 

Ainda neste livro, sempre na senda do mestre, afirma:

 

O filósofo aristotélico (…) é o que pratica a contemplação, mas não para se dissolver em qualquer homogeneidade mística, mas para receber do mundo sobrenatural o sopro inspirador das palavras que fazem ver, das palavras criadoras de pensamento. 

 

E, num terceiro texto, considera que «nunca foi tão necessário dizer abertamente e por toda a parte o que julgamos saber no seio dessa “actividade invisível” que é o pensamento».   

 

Cumpre-se, então, a redenção na imanência? Não. Em “Meta-História ou a Terra Prometida”, arrostando a evidência do mal, Telmo afirma que

 

a terra em que vivemos é apenas um laboratório; no athanor da humanidade separa-se o denso do subtil. Esta não é a terra definitiva. Para onde vai a energia que, pela entropia, constantemente se perde? Transforma-se em energia espiritual. Tudo quando de bom e de verdadeiro se pensou e imaginou, se pensa e imagina, é o subtil que se separa do denso e vai formar a Terra Prometida. As formas do nosso verídico imaginar ficarão à espera de que os tempos se cumpram para se incorporarem numa nova humanidade de que não participarão só os vivos de então, mas também todos os mortos do presente e do passado que não podem ter vivido em vão.

 

A entrevista à Encontro confirma esta tendência, pois

 

é no mundo intermediário, intermediário do mundo para Deus e de Deus para o mundo, que tudo se decide. Não é na terra; aqui todos são jogados. A filosofia portuguesa é uma criação da língua, é o que resulta da língua se pensar no espírito dos humanos. As suas teses, sobretudo os seus teoremas actuam no mundo intermediário, são tidas em consideração ali, pois, como ensinou Leibniz, «os anjos também investigam». Porque eu creio (…) que uma Nova Terra nascerá tendo por matriz a matéria do mundo intermediário ou imaginal, «essa matéria de que os sonhos são feitos».

    

Como conciliar estas duas direcções, aparentemente divergentes, da sua arte poética? Será insincera a sua esperança quando mostra ser por Neptuno «que o alto espírito contemplativo de Agostinho da Silva se torna activo pela palavra política, a humilde, audaz e inteligente serva da cidade dos homens para que um dia nela mandem os pobres e os iluminados»?

Para o pensamento maçónico, que é também o seu, não há contradição entre teurgia e política, entendida esta superiormente. Por aquela entende Charles Mopsik «a arte de produzir o divino ou efeitos na esfera do divino, com um fim redentor e não com fins pessoais egoístas». Em Filosofia e Kabbalah, Telmo afirma que o que é comum aos poetas e filósofos da Escola Portuense «é o modo de entender a oração como uma forma poética ou filosófica de acção sobre o mundo espiritual capaz de acelerar o processo colectivo de redenção». Mas essa acção, ainda que, em seu fundo martinista, se repercuta teurgicamente no mundo intermediário, incide também, como se verá, sobre este mundo.

Do conhecimento pela experiência do mistério ao pensamento que lhe dá expressão cumpre-se a arte poética de António Telmo, que, sobre o conto A Dama de Ouros, dirá a Ângelo Monteiro: «Esse conto tem por núcleo irradiante o mistério da imaginação e a experiência pessoal desse mistério. As palavras com que escrevi o conto ensinaram-me a conhecer melhor esse mesmo mistério e o que é dado na sua experiência.» Na verdade,

 

o homem, que tem por espírito a razão poética, precisa da língua para pensar, pensa com palavras, isto é, desenvolve em imagens e conceitos as ideias que o intelecto superior lhe comunica. Se todos os homens pensassem do mesmo modo, isto é, se não houvesse como há formas de pensar heterogéneas em correspondência com diferentes línguas, os anjos não teriam qualquer interesse em ensinar-nos ou em aprender connosco.

 

Assim se demonstra a importância decisiva da descoberta revelada na Gramática Secreta da Língua Portuguesa: a conformidade da estrutura fonética do idioma pátrio com a árvore sefirótica. Na senda de Moshe Idel, o pensamento de Telmo deve ser referido à cabala teosófica-teúrgica de linhagem sefardita. Da teosofia, isto é, do conhecimento das leis e das estruturas do mundo divino depende a eficácia da oração como uma forma poética ou filosófica de acção sobre esse mesmo mundo, isto é, da teurgia.

Mas a razão poética é bifronte.

Na esteira do capítulo “Os ritmos” de Arte Poética, lembra Telmo a Ângelo Monteiro: «O encantamento é o que é próprio da poesia, que para tanto dispõe do ritmo e da imagem. O ritmo embala e adormece a alma. Ai daquele que no ritmo incorpora imagens contrárias aos impulsos do ser que se rendeu ao encanto por aspirar ao Bem e à Verdade.»

Noutra entrevista, conduzida por Vítor Mendanha, afirma:

 

«A razão é o nome do espírito humano», escreveu Álvaro Ribeiro, e, se a intuição é divina, ou semidivina ou angélica, uma vez dada, deve ser integrada na economia espiritual da Terra.

 

Ainda que, de facto, possa não o ser, deve a História ser dignificada por um processo de assunção a que aqui se chamará de primeira instância. Tudo está, pois, em garantir a adunação da política à realização espiritual de cada homem.

Mas o que é a História?

Em Viagem a Granada, Telmo explora o equívoco da palavra, que se apresenta

 

num duplo sentido, um pelo qual é sinónima de conto, como em contar uma história, e outro pelo qual significa a realidade vivida pelo homem na sua existência terrestre, aquilo que é costume designar por mundo dos factos, considerados em sucessão. Pelo primeiro sentido, a palavra é relativa à poesia e à imaginação, pelo segundo à vida que temos por real no tempo e no espaço físicos.     

 

Considerando a hierarquia aristotélica que subordina a história à poesia, e que os adultos, perante as crianças, tendem a subverter pela afirmação do facto histórico em detrimento dos contos tradicionais, tidos por fantasiosos, Telmo lembra o aforismo de Goethe: «Os fenómenos são mistérios manifestados», fazendo notar que também «a história de um homem, a de um povo ou a da Humanidade devem ser vistas como a manifestação de profundos mistérios». E prossegue:

 

Tal visão da história somente é possível se soubermos realizar o procedimento mental inverso, o de trazermos ao plano da positividade os contos ou as histórias como o de Aladino e a Lâmpada Maravilhosa, ao plano da positividade vivida, por tal modo que tomemos esses relatos absolutamente a sério, naquela atitude de alma que assumiremos certamente se pensarmos que o seu autor anónimo pode muito bem ter sido Deus. Então, nem a poesia será mais verdadeira do que a história nem a história mais verdadeira do que a poesia.

    

A vida vivida segundo a razão poética, aqui pressuposta; e a História assim dignificada pelas vidas que a entretecem – eis a assunção da História que, numa primeira instância, nos propõe. No início das Congeminações, Agostinho da Silva esclarece-lhe o desígnio:

 

Foram Portugal e Espanha – sobretudo Portugal – a darem ao Mundo o conhecimento de si mesmo. Agora lhes conviria e lhes caberia o papel de dar o conhecimento daquilo que é fundamental nesse Mundo: Toda a gente poder ter aquilo a que chamo de Vida Poética, no sentido de criadora, em qualquer dos domínios: artes, ciências, filosofia, mística. Isso é possível e deveria fazer-se.

 

Que o maçonismo é compatível com o agostinianismo comprova-se pelo final do mesmo livro. Como Agostinho gostaria, ali se conciliam Platão e Aristóteles, pela resposta à pergunta do 5.º grau do ritual do Rito Escocês Antigo e Aceite: «Conheço os ideais celestes e esforço-me por os encarnar sobre a terra». É isso que, segundo Telmo, estará significado n’A Escola de Atenas, ao afirmar ser o fresco de Rafael «o símbolo do perfeito entendimento entre os dois filósofos». Na verdade,

 

eles conduziam e projectavam na nossa direcção a mesma energia urânica, um recebendo-a pelos dedos em ponta na mão fechada e passando-a para o outro que a dirige para nós pelos dedos separados da mão de palma voltada para a terra. Os olhos nos olhos concentram num único ponto o foco interior dessa energia.   

 

Nada disto colide com o que, evocando António Quadros, dissera: «A revelação do oculto não pode ser histórica. O oculto só se revela à alma.» Nessa evocação se sublinha não poder o compromisso do mito com a História ser tal que seja já esta a decidir, «através da política», do sentido daquele. Neste ponto, somos remetidos para uma outra acepção, de segunda instância, que a assunção da História comporta no pensamento de António Telmo. O tempo não permite agora a sua abordagem, pelo que ficará para a versão desenvolvida deste estudo.

 

Lisboa, 14 de Dezembro de 2016.

____________

* Comunicação apresentada ao 8.º Seminário do Projecto Redenção e Escatologia no Pensamento Português, da Universidade Católica Portuguesa.

UNIVERSO TÉLMICO. 47

01-12-2016 22:28

Publicamos hoje a comunicação que Miguel Real apresentou ao COLÓQUIO A LITERATURA DE AGOSTINHO DA SILVA, que o Gabinete de Estudos Agostinho da Silva organizou e concretizou no passado dia 15 de Outubro, no Auditório do Centro de Estudos Culturais e de Acção Social Raio de Luz. Este texto acaba também de sair a lume no número 9 da GEORGE, página mensal do GEAS no jornal Raio de Luz. Todas as comunicações serão reunidos no livro em que virão a lume, no decurso de 2017, as Actas do Colóquio.

As novelas sul-americanas de Agostinho da Silva

Miguel Real

 

1. – Agostinho da Silva escritor?

Numa primeira leitura, as novelas de Agostinho da Silva constituem-se como reflexão existencial pela qual o autor, através da alteridade de uma instância narrativa designada por “Mateus-Maria Guadalupe”, vai plasmando memórias, impressões de viagens, tipos sociais e meditações filosóficas e estéticas, numa peregrinação sem fim nem objectivo entre a Europa, a África e a América do Sul.

Escrita ao longo da década de 50, a novelística de Agostinho da Silva divide-se em três blocos narrativos, datados de 1953 – Herta, Teresinha, Joan -, 1955 – “Macaco-Prego” -, e 1957 – Dona Rolinha, Ada Carlos, Tumulto Seis e Clara Sombra a das Faias -, ainda que estes dois últimos, publicados em 1989, na editora Cotovia, de Lisboa, não possuam data especificada de escrita.

Com excepção das duas últimas novelas, Agostinho da Silva designa o conjunto dos restantes textos literários por “memórias” e por “lembranças”, inscrevendo-os deste modo na literatura memorialista de viagem. Porém, pelo seu conteúdo diegético, Tumulto Seis e Clara Sombra a das Faias podem igualmente inscrever-se neste género literário.

Fundindo escrita e vida, o cunho memorialista que Agostinho da Silva imprime aos seus textos literários denota mais uma preocupação de auto-reflexão do autor sobre a vida própria – uma espécie de escritor-testemunho - e menos uma pretensão de fazer literatura. Ele próprio o confessa, declarando, na apresentação dos primeiros três textos, de 1953, não atribuir importância a questões de estilo[1], isto é, justamente ao elemento categorial que define a singularidade de um escritor, integrando-o no panorama geral da literatura de uma época. Dois anos depois, na apresentação da novela “Macaco-Prego”, Agostinho da Silva enfatiza de novo o pouco valor que atribui ao trabalho estético-literário sobre a linguagem, escrevendo: “[as] minhas memórias, que eu vou escrevendo tão preguiçosamente e tão desordenadamente, (...) [escritas no] bom remanso e bom repouso para uma existência que, sem acidentes, apesar disso, ou talvez por isso, tanta vez se cansa de si própria. Revejo-o [ao texto da novela], mas não o corrijo. Porque muito me agrada restituir à vida, sem esforço, o que a vida, a mim, sem esforço me trouxe”[2].

Assim, numa primeira leitura, a posição de Agostinho da Silva face à literatura aparenta não ser a de um escritor. Em 1957, na apresentação de Lembranças Sul-Americanas de Mateus-Maria Guadalupe, Agostinho da Silva insiste nesta sua posição exterior à Literatura enquanto arte: “De modo que, se a crítica me permite, eu continuarei supondo-me do lado de fora da literatura, que é assunto sério e difícil de mais para mim; sentir-me-ei assim muito mais à vontade”[3].

Agostinho da Silva parece ostentar a sensibilidade estética prenunciada de quem, em horas de “repouso”, nas férias, decide passar para o papel as suas impressões de viagem, tomando como um dos temas centrais a sua relação com diversas mulheres. Com efeito, o autor parece nunca ter levado a literatura a sério, não ter querido ser escritor ou fazer da literatura o elemento sagrado da sua existência. Por isso, no seu primeiro núcleo de novelas, explora o tema da relação de impossibilidade do amor entre homem-mulher, enquadrando-o em contínuas viagens, estabelecendo-lhe uma forma literária (o memorialismo), mas, como confessa, não intenta desenvolver um estilo singular, escrevendo apenas de um modo gramaticalmente correcto.

Assim, se nas primeiras novelas – 1953 - a exploração de um tema e o enquadramento literário já existem, como prenúncio de um possível escritor, falta ainda, porém, o elemento estético vital que diferenciaria Agostinho da Silva dos restantes escritores – o estilo. Evidencia-se assim, em 1953, que se repetirá em 1955, a existência de um quadro contraditório em Agostinho da Silva principiante de escritor: 1.– possui um tema, que explora abundantemente (a impossibilidade da realização de um amor absoluto entre homem e mulher); 2. – possui uma forma literária enquadradora da exploração do tema: o memorialismo; 3. – falta, porém, o selo sagrado da individualidade estética de um escritor – o estilo próprio pelo qual uma história nunca fora contada dessa excepcional maneira.

Pelas citações que referenciámos, constatamos que Agostinho da Silva tem consciência de que não é verdadeiramente um escritor e de que se encontra do “lado de fora da literatura”. Na mesma apresentação de 1955, recolhendo informações de críticos literários portugueses, que não nomeia, indica três factores por que os seus textos não seriam propriamente literários: - a coloquialidade brasileira; a ausência de carácter das personagens e a ausência de trama narrativa[4]. Torna-se hoje evidente que nenhum destes factores, prendendo-se exclusivamente com análises parcelares e modísticas da parte dos críticos, então, meados da década de 50, profundamente divididos em correntes literárias, projecta Agostinho da Silva para “fora da literatura”. A verdadeira razão – parece-nos -, encontramo-la num desabafo do autor quando confessa “não ser muito versado no estudo dos clássicos, muito dos quais, para falar verdade, não tornei a ver desde os meus tempos de liceu”[5]. Ou seja, para Agostinho da Silva da década de 50, a literatura evidencia-se como uma actividade de tempos de vilegiatura, um fazer as contas ficcionais dos passos dados na vida, com evidente prazer estético, claro, mas não prazer sagrado. Numa palavra, sem estudo e sem prática estética, a literatura parece ser encarada por Agostinho da Silva de um modo diletante, literatamente, isto é, sem nunca encará-la como um absoluto em que se joga a vida. O literato é o escritor que escreve bem, maneja habilidosamente a gramática, limitando-se a uma descrição das impressões filosóficas e ideológicas da vida. Assim, o literato não escreve literatura, mas impressões de vida, espécie de testemunho escrito da sua existência, ficcionando esta segundo preocupações específicas, que habitualmente constituem o tema e o enquadramento dos seus textos.

Em conclusão, os textos literários escritos entre 1953 e 1955, indicam-nos que Agostinho da Silva não é um escritor, mas - porque já possui um tema próprio e uma forma estética privilegiada - um principiante ou candidato a escritor, ostentando, nas introduções às suas novelas, uma posição diletante ou literata da literatura.

Permitam-nos, porém, tentar esclarecer a afirmação de Agostinho da Silva segundo a qual ele e os seus textos se encontrariam “fora da literatura”. Será argumentativamente suficiente esta declaração pessoal? Não pertencerá a uma estratégia retórica do autor de modo a acentuar a radical novidade dos seus textos? Recordemos que, vinte anos antes, tanto Jorge Amado, no Brasil, na epígrafe a Cacau, como Alves Redol, em Portugal, na epígrafe a Gaibéus, tinham ostentado idêntico desprezo pela literatura como arte com o evidente intuito, porém, de criticarem as antigas criações romanescas e de lançarem uma nova corrente estética; menos de dez anos antes, os jovens surrealistas portugueses, como José-Augusto França, Mário Cesariny, António Maria Lisboa, manifestavam nos cafés de Lisboa um profundo desprezo pelo modo harmonioso de compor versos ou textos narrativos; que, sete anos depois, em 1962, o juvenilíssimo Almeida Faria, em Rumor Branco, manifestará idêntico desprezo, dispensando-se do uso da sinalética fonética no seu romance. Poderemos inserir Agostinho da Silva nestas correntes e gestos literários de profundo simbolismo contestatário? Cremos que não, só se critica o que se conhece e, em termos literários, é o desconhecimento, o não convívio com a recente literatura portuguesa e brasileira, que leva Agostinho da Silva a confessar com sinceridade estar “fora da literatura”. Se o autor se confessa “fora da literatura” é porque tem consciência que não está “dentro” dela, ou seja, que é alheio a tudo o que é vital a um tempo literário, definindo-o. E Agostinho da Silva prova, pelos seus próprios textos, que se encontra alheio ao então sangue quente da literatura brasileira e portuguesa. Mateus-Maria Guadalupe convive com uma inúmera diversidade étnica de povos do interior do Brasil e não faz nenhuma referência ao modernismo brasileiro e a Macanuíma, de Mário de Andrade; Mateus-Maria Guadalupe atravessa o Recife, descreve a personagem Ada Carlo a ser presa na delegacia da polícia de um bairro que, pela descrição do mercado e dos joalheiros, não pode ser outro senão o Bairro de S. José, e nem uma referência a um espírito errante tão semelhante ao seu como o de Manuel Bandeira. Mateus-Maria trabalha em Minas Gerais mas parece desconhecer totalmente a existência de Carlos Drummond de Andrade ou de Guimarães Rosa. Mateus-Maria Guadalupe viaja pelo Sul, Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Santa Catarina, mas nenhuma referência, por mínima que seja, que nos faça lembrar o lirismo de Erico Veríssimo. Mateus-Maria privilegia a Bahia e o Recôncavo, mas parece desconhecer totalmente a épica mulata e operária que Jorge Amado acabara de escrever; descreve o sertão, partes da Bahia, da Paraíba, do Pernambuco, do Ceará, mas nenhuma menção a Graciliano Ramos e muito menos ao clássico José de Alencar. Mais: Mateus-Maria explora o rio Madeira, quem sabe se não terá descansado nas ruínas do “seringal Paraíso”, cruza o Amazonas e desembarca em Belém do Pará e nem um mínimo de referência à personagem Alberto de A Selva, de Ferreira de Castro. É como se Mateus-Maria Guadalupe fosse uma mónada literária, reflectisse todo o mundo segundo o seu lugar no universo e a ordem do universo de Mateus-Maria a tudo respeitasse menos o da literatura brasileira.

Assim, tanto por razões intrínsecas (as palavras confessionais do autor) quanto por razões extrínsecas (a historiografia das literaturas portuguesa e brasileira), parece-nos ser verdadeira, e não uma mera estratégia retórica, a declaração de Agostinho da Silva de que a sua actividade literária se encontra “fora da literatura”. Neste aspecto, e por todas estas razões, em termos de crítica e de historiografia literárias não se pode deixar de confessar ser a obra ficcional de Agostinho da Silva mais de um literato do que de um verdadeiro escritor, de um pensador do que de um escritor.

 


[1] Cf. Agostinho da Silva, “Nota Prévia” a Herta. Teresinha. Joan. Três Novelas ou Memórias de Mateus-Maria Guadalupe, [1953], in “Obras de Agostinho da Silva”, Estudos e Obras Literárias, Lisboa, Âncora Editora, 2002, p. 73.

[2] Cf. Agostinho da Silva, “Macaco-Prego”. Lembrança Sul-Americana de Mateus-Maria Guadalupe, ed. cit., p. 155.

[3] Cf. Agostinho da Silva, Lembranças Sul-Americanas de Mateus-Maria Guadalupe Seguidas de Tumulto Seis e Clara Sombra a das Faias, ed. cit., p. 183.

[4] Idem, ibidem, pp. 183 – 184.

[5] Idem, ibidem, p. 183. 

 

EDITORIAL. 09

20-11-2016 00:31

Continuar

 

O Projecto António Telmo. Vida e Obra completa hoje três anos de existência. Por vezes difícil, a nossa caminhada tem sido aliciante e fértil. Não falamos somente da realização de muitas dezenas de colóquios e conferências de Norte a Sul do país. Falamos também de doze livros editados com a nossa marca, com destaque para as Obras Completas de António Telmo, cujo Volume VI, Viagem a Granada seguida de Poesia, hoje mesmo, dará entrada na editora Zéfiro. Os livros do nosso patrono encontram-se finalmente disponíveis nas principais redes livreiras de Portugal, assim se tornando disponíveis os títulos canónicos da sua bibliografia a par de centenas de páginas inéditas que vêem a luz do dia e continuamente revelam uma obra fecunda e futurante.

A par da perpetuação do legado do nosso patrono, outros nomes ligados ao pensamento português têm recebido a nossa dedicação. É o caso de Agostinho da Silva, um dos mestres de Telmo, que nos motivou a criação do GEAS – Gabinete de Estudos Agostinho da Silva em parceria com o Centro de Estudos Culturais e de Acção Social Raio de Luz, estrutura que tem vindo a promover, com assinalável sucesso, a renovação dos estudos agostinianos, através da edição de obras, da publicação mensal da página GEORGE no jornal Raio de Luz e da realização de colóquios e conferências que congregam amigos e estudiosos do Estranhíssimo Colosso.

Três anos passados desde o primeiro passo, cabe-nos agradecer a quantos – e têm sido muitos – nos apoiaram, das mais diversas formas, nesta caminhada. A todos eles, fica ainda a nossa promessa de continuar. De continuar a crescer. E a surpreender.  

Uma palavra final, de profundo reconhecimento e gratidão, para a família de António Telmo, na pessoa de Maria Antónia Vitorino, sem a qual, provavelmente, este texto não poderia ter sido escrito. Bem-haja! 

INÉDITOS. 68

19-11-2016 22:46

[Que se passou na infância que não lembro]

 

Que se passou na infância que não lembro

Mas sinto como sombra em mim erguida

E me deu cabo da alma nesta vida

E me marcou o corpo membro a membro?

 

Se não me lembro como existe em mim?

Memória da alma que não chega à mente

Memória deste corpo que a alma sente

 

António Telmo

UNIVERSO TÉLMICO. 46

19-11-2016 22:19

Agostinho da Silva: a década perdida

Pedro Martins


António Telmo ofereceu-me este manuscrito (ou dactiloscrito, se preferirem) de Agostinho da Silva no início de 2004. "Projecto", destinado à nunca concretizada Revista Municipal que a Câmara de Sesimbra deliberara criar em Dezembro de 1969, quando Telmo era já o Director da Biblioteca Municipal, estava ainda inédito ao vir para a minha mão. Tive o privilégio de o publicar, juntamente com a, também inédita, "Apresentação", por Telmo, da revista, no número 30 da agenda cultural Sesimbra Eventos (1999-2005), na verdade uma pequena revista cultural bimestral de que se publicaram 40 números, e que jornalistas autorizados como o saudoso Helder Pinho, de A Capital, e Pedro Rolo Duarte, do Diário de Notícias, consideraram uma das melhores do país.
Dois anos e meio depois, «Projecto» saiu pela primeira vez a lume em livro, nas Actas do Congresso «Agostinho da Silva e o Espírito Universal», realizado na Biblioteca Municipal de Sesimbra, sob a égide de António Telmo, por ocasião do centenário agostiniano. Recentemente, em 2015, foi republicado na marginália do Volume III das Obras Completas deste filósofo, chegando, assim, à disposição do grande público. Acompanha-o um outro escrito de Agostinho, sobre um livro perdido de Telmo, proveniente do espólio deste, mantido inédito até ao final de 2014, quando a generosidade de António Cândido Franco me permitiu publicá-lo na revista A IDEIA. Creio não errar por muito se afirmar que, desde 2007 e até hoje, foram estes, a par das Cartas de Agostinho da Silva para António Telmo, de Agostinho da Silva - A Última Entrevista de Imprensa (no âmbito do GEAS - Gabinete de Estudos Agostinho da Silva), e da segunda parte de Vida Conversável, em curso de publicação na revista NOVA ÁGUIA, os únicos inéditos do filósofo que vieram a lume. Depois da de Fitzgerald, também Agostinho parece ter tido a sua década perdida. Ficaremos por aqui? 
Quando será possível vir a encontrar os dois escritos do espólio télmico que acima mencionei num livro de dispersos do próprio Agostinho da Silva? 
Quantos inéditos da autoria deste aguardam por um prelo? Por que motivo, de 2006 em diante, praticamente parou a edição de novas obras de Agostinho da Silva? Por que estão hoje ausentes das nossas livrarias os títulos clássicos da sua bibliografia? Agostinho não vende? Deixou de ter leitores? Perdeu o interesse? Não interessa dar a conhecê-lo às novas gerações? Ou será apenas desejável confiná-lo à memória circense das Conversas Vadias? Ou ao debitar a esmo de citações avulsas, dirigidas e descontextualizadas no facebook, para fomento do devocionismo, a par do famélico recurso a uma ou outra selecta? De repente, um assombroso paradoxo se abateu sobre o Colosso, ao ver-se agora servido como célere comida de plástico num qualquer McDonalds, mas jungido à frugalidade herbívora das tebaidas. 
Por que se organizou um grande Colóquio Internacional sobre o filósofo em Fevereiro deste ano sem o mínimo vislumbre de actas, ou sequer da disponibilização electrónica dos respectivos registos em video, sabendo-se que o colóquio foi difundido pela Internet em live streaming?
Talvez, como há não muito Renato Epifânio alvitrou no texto que assina em Agostinho da Silva - A Última Entrevista de Imprensa, seja este caso uma «espécie de maldição». Se assim for, só nos resta esperar que o feitiço se vire contra o feiticeiro.

INÉDITOS. 67

12-11-2016 23:12

[Uma vez conheci pelo Espírito Santo,]

 

Uma vez conheci pelo Espírito Santo,

Mas esqueci o modo como o fiz.

Ficou só uma sensação de espanto

E de que fui feliz.

 

Por isso busco reaver o modo

P’lo qual veja de novo o que então vi.

Entretanto, afundo-me no lodo

Do olvido em que me perdi.

 

Este destino é comum a toda a gente

Dos que se movem pelo que souberam

O que há de mim pr’a eles de diferente

É que eles esqueceram que esqueceram.

 

António Telmo

<< 24 | 25 | 26 | 27 | 28 >>