Blogue

CORRESPONDÊNCIA. 39

01-03-2017 09:42

ÁLVARO RIBEIRO, 112 ANOS DEPOIS!

Comemora-se hoje o 112.º aniversário do nascimento de Álvaro Ribeiro, mestre de António Telmo. Assinalamos a efeméride com a publicação de uma carta inédita do discípulo para o filósofo da razão animada, escrita em Estremoz, e datada de 9 de Outubro de 1965, exactamente 16 anos antes da morte do destinatário. Através dessa carta, que se guarda na Biblioteca Nacional, Telmo dá a conhecer ao mestre o horóscopo que dele fizera.    

 

Carta de António Telmo para Álvaro Ribeiro, de 9 de Outubro de 1965

 

Estremoz 9-X-65

Sr. Dr. Álvaro Ribeiro

 

Como deve calcular e saber, estou em Estremoz, para onde vim na esperança de me demorar apenas dois ou três meses, mas começo a duvidar que isso aconteça. Estremoz tem um agradável café – “Águias d’Oiro” – onde se reúnem e se podem encontrar os intelectuais do sítio: um padre poeta, um advogado ocultista praticante várias vezes preso por razões políticas, um advogado (outro) leitor de Álvaro Ribeiro, Orlando Vitorino, José Marinho, etc…, um marxista ex-director da Escola e escultor, amigo do Conceição Silva, etc.

Ganho muito pouco. Isto preocupa-me e aborrece-me. Tenho, porém, muito tempo para escrever e, por isso, comecei a redigir um trabalho sobre a “descida aos infernos” em Aristófanes, que incluirei na tese de licenciatura. Mato assim dois coelhos com uma só cajadada. Suspendi o escrito sobre Bruno, mas espero retomá-lo logo que complete o trabalho destinado aos professores da Faculdade.

Aqui, têm sido muito comentadas as declarações de Paulo VI e muito apreciadas.

Nós estamos longe desta gente toda e as ideias do grupo, se podemos chamar-lhes assim, são fantasmas sem corpo, ainda à procura do “ectoplasma” fora dos limites em que nasceram e se formaram: o mundo espiritual do Palladium e de Atena.

Peço ao sr. Dr. Álvaro Ribeiro para apresentar os meus cumprimentos a todos de quem não me despedi, sr. Dr. José Marinho, Avelino Abrantes, sr. Dr. Leitão e restante “companhia filosófica”.

Cumprimentos também à Conchita.

Muito grato

        

António Telmo  

 

1 de Março de 1905

 

[Imagem com o horóscopo de Álvaro Ribeiro]

 

Aspectos

Conjunção Vénus - Júpiter

Vénus – Júpiter em sextil com Saturno

Mercúrio em trígono com Neptuno

Mercúrio em sextil com Urano

Sol em sextil com a Lua

Sol em trígono com Neptuno

Neptuno em oposição com Urano

Lua em sextil com Marte

Mercúrio em sextil com Júpiter

 

António Telmo

(Horoscopista)

 

[Espólios N9/1049]

CORRESPONDÊNCIA. 38

26-02-2017 19:13

CARTAS DE ERNÂNI ROQUE PARA ANTÓNIO TELMO. 03


 

                                                           Algés, 18 de Junho 1977.

 

Meu caro Telmo:

 

Grato pela “História Secreta de Portugal” e pela dedicatória amiga. Li-o de um fôlego em Sesimbra (exemplar emprestado pelo Rafael), vou na segunda leitura e troquei impressões com os filósofos, 4.ª feira última, em casa do Afonso Botelho. O autor do Touro Celeste serviu-nos em Vista Alegre finíssima um chá das 5 (eram 23 horas…) infuso em chaleira rica de prata dourada, gentileza e requinte que em meu entender desbancam o cafezinho burguês do Furtado Guerra, de Miraflores (ausente por doença).

A Escola Formal estava também representada pelo Orlando, que se meteu comigo por causa das figas. Vou ter de refundir o suelto, “metendo-lhe” o Leite de Vasconcelos e a polémica do Camilo com o Senhor D. Luís, mais a pornográfica interpretação vèlhinha, da “coisa na coisa”. Se tiver paciência.

Mestre Álvaro, entre dois goles sorvidos da xícara a fumegar, foi-nos dizendo – e nós dizer-lhe – que Você na Secreta deixa o D. Manuel I mui maltratado, na medida em que lhe coloca no reinado venturoso o começo do pátrio trambolhão. Eu acho o livro formidável, a pedir 2.ª edição correcta e aumentada. Correcta: sem gralhas e com melhores fotografias, algumas grandes, de página, a dar o pormenor. Aumentada: Tomar, etc.

Há dias, no Centro do Livro Brasileiro, perguntei se a História estava a vender-se bem. Disseram-me que sim e aproveitei para afirmar, altissonante: é um grande livro! Quando saí, já havia dois indígenas entregues à folheadela percursora da compra!

Prometi ao Dr. Manuel Guimarães solicitar-lhe para ele um exemplar, dado o entusiasmo demonstrado quando lhe falei do livro. Se quiser ser amável e mandar-lho, a direcção é Hotel dos templários, Tomar. Gostava que lho enviasse.

A terminar: quanto ao horóscopo que não pode fazer, há decerto um pequeno lapso. Feito foi ele. O que Você pensa não poder fazer é revelá-lo e por isso o re-velou. Só me resta o Valete, Frate!

 

            Um abraço,

                        Ernâni Roque

UNIVERSO TÉLMICO. 48

12-02-2017 22:54

Moisés

António Carlos Carvalho

Todos sabemos que Agostinho da Silva gostava de contar histórias – eu próprio passei por essa experiência inesquecível na casa dele perto do jardim do Príncipe Real, em Lisboa; foi lá, por exemplo, que ouvi pela primeira vez falar do episódio de Canudos e de António Conselheiro, a última expressão do sebastianismo «ao vivo». Por isso, não é de estranhar que Agostinho tenha escrito biografias – escrever uma biografia é contar a história de uma vida por escrito.

E assim surgiu A Vida de Moisés, publicada pela Seara Nova em 1938 – fixemos esta data, porque esse é também o ano da tristemente famosa «Noite de Cristal», ou noite dos vidros partidos, os vidros das montras de lojas judaicas na Alemanha, anúncio do que viria a seguir, até 1945.

Contar a vida de Moisés em quarenta páginas é uma proeza, convenhamos …

Também sabemos que, mais cedo ou mais tarde, toda a gente acaba por «tropeçar» em Moisés – lembremo-nos que, nos anos 60 do século XX, nos EUA, por exemplo, Moisés era constantemente invocado pelos negros americanos, envolvidos na luta pelos seus direitos cívicos.

A começar pelos artistas: todos conhecemos o Moisés de Rembrandt ou o de Miguel Ângelo. Mas Moisés surge mesmo onde menos se espera – no portal sul do Mosteiro dos Jerónimos, bem explícito com as Tábuas da Lei, ao lado direito do Infante, ou até no portal oeste, «disfarçado» de Menino Jesus, mas deitado numa cesta, não nas palhinhas de uma manjedoura…

Mas voltemos ao Moisés de Miguel Ângelo: sempre que visitava Roma (coisa que fazia frequentemente), Sigmund Freud passava horas a contemplar a estátua de Moisés, totalmente fascinado. E foi esse mesmo Moisés que inspirou Freud a escrever a sua última obra, O Homem Moisés e a Religião Monoteísta, que teve uma primeira parte publicada em 1937 e a versão final em 1939.

Então percebemos esta coincidência extraordinária: Freud e Agostinho interessaram-se e escreveram ao mesmo tempo sobre a mesma figura: Moisés.

A Vida de Moisés, de Agostinho da Silva, é supostamente uma biografia, mas se o é, é certamente muito estranha, invulgar, algo que nos deixa perplexos. Vejamos: quando escrevemos uma biografia, temos o cuidado óbvio de procurar as informações essenciais: nomes dos pais, dos irmãos, etc. Mas quando lemos esta biografia de Moisés verificamos que Agostinho não nos dá esses nomes – só o do pai, a quem chama Levi (nome da sua tribo) e não Amram, e de Aaron, sem nunca dizer que este é o irmão de Moisés; a mãe, Jokebed, e a irmã, Myriam, nunca têm direito a nome …

António Cândido Franco tem razão: Agostinho era um «narrador de ficção», criava «mundos fictícios» – mesmo à custa de diversas invenções, digo eu.

Exemplos: põe Moisés a trabalhar nas obras, como pedreiro, imagine-se, junto dos seus irmãos judeus, a quem incita à revolta, mesmo depois de matar o capataz egípcio e de ser denunciado por isso; diz que Moisés e Séfora tiveram filhos e filhas – filhos, sim, tiveram, Gershom e Eliezer (mas Agostinho troca-lhes os nomes, chama-lhes José e Levi), mas filhas não, embora invente nomes para elas, Raquel e Maria… A seguir, coloca a visão da sarça ardente no campo, junto ao poço de Madian, e não no alto do monte Horeb… O episódio em que a mão de Moisés fica de repente leprosa e logo a seguir sã (e que acontece durante o diálogo com Deus junto da sarça ardente) é contado por Agostinho como sendo apenas um prodígio feito por Moisés perante os anciãos do povo… Refere que os escravos judeus  no Egipto tinham magistrados (leia-se juízes), coisa que só viria a acontecer na travessia do deserto e por conselho do sogro de Moisés, Jetro… Apresenta os escravos judeus a apropriarem-se do ouro e da prata «dos pagãos», «como vingança dos maus tratos» que tinham recebido dos egípcios, o que é inacreditável e pura invenção – esse ouro e essa prata foram trazidos do Egipto pela enorme multidão de não judeus que os acompanharam para o deserto e depois participaram na cerimónia do bezerro de ouro… De Myriam, vidente da água no deserto, nada é dito… Agostinho inventa também uma animosidade e divergência profunda entre Moisés e Aaron, quando o texto bíblico diz precisamente o contrário… E ainda inventa que Moisés pensava que o povo hebreu era «mau, fácil às solicitações da vida criminosa» (sic), quando o texto bíblico conta que Moisés sempre defendeu o seu povo até mesmo da própria ira de Deus … Etc., etc.

Bom, que pensar de tudo isto?

Como foi referido, Agostinho escreve esta biografia e publica-a em 1938. Ora os anos 20 e 30 foram uma época sobretudo marcada pela ascensão ao poder de homens de mão forte e determinada, digamos assim, em muitos pontos da Europa e do mundo: Mussolini em Itália, Estaline na URSS, Salazar em Portugal, Hitler na Alemanha, Franco em Espanha, Getúlio Vargas no Brasil. Homens, esses, que conduziram as massas para os seus objectivos próprios, contra ventos e marés, sem olhar a meios. Foi o tempo do que na Renascença italiana se chamava os «condottieri». O perfil de Moisés que Agostinho nos apresenta aqui é precisamente o de um homem obstinado, «tenaz nos seus propósitos», exigente, o chefe desejado por todos que os irá libertar da escravidão, «fraco na aparência, poderoso no íntimo, como que animado por uma força divina». Nunca lhe chama profeta e muito menos o maior dos profetas.

A Vida de Moisés tem como epígrafe uma passagem do Deuteronómio, na tradução do padre António Pereira de Figueiredo. Podemos, portanto, deduzir que Agostinho leu esse livro, e provavelmente o do Êxodo, em que se fala de Moisés.

Mas leu-os certamente com os olhos de um «narrador de ficção», que ele era fundamentalmente. E não quero ir mais longe nas minhas deduções…

CORRESPONDÊNCIA. 37

12-02-2017 21:57

AGOSTINHO DA SILVA, 111 ANOS DEPOIS

A poucas horas de se comemorar o 111.º aniversário do Estranhíssimo Colosso, um dos quatro mestres de António Telmo e padrinho de baptismo de sua filha Anahi, assinalamos a efeméride com a publicação de uma brevíssima mas tocante carta inédita de Agostinho da Silva para a sua afilhada. 

22.7.79

Querida Menina

 

Há actualmente no Brasil grandes movimentos a favor dos índios e eles próprios estão defendendo seus direitos – o que é o melhor. Hoje queria dizer-te que um dos grupos mais influentes, de Rio e São Paulo, se chama exactamente ANAÍ. Não é interessante que haja essa coincidência? Gostarias de receber informação sobre índios?

Como vai Manuel?

Um grande abraço do Padrinho

CORRESPONDÊNCIA. 36

05-02-2017 18:55

CARTAS DE ERNÂNI ROQUE PARA ANTÓNIO TELMO. 02

Algés, 23/III/77.

 

Meu caro Telmo:

Está provado: quem porfia… fotografa.

Aí vai o que finalmente consegui. Não é famoso, mas para mais não chegou nem o engenho nem a arte. Devo entretanto dizer-lhe que também este rolo teve malapata: foi enviado pelo laboratório para outra casa, devolvido por esta, etc., originando um atraso de alguns dias na entrega. Fizeram as provas em papel baço (que não pedi), sendo mais conveniente para o efeito o brilhante, etc. Do São Jerónimo, parece-me acertada a escolha por ordem de numeração, mas ampliando (a 1 ou a 2). Todas elas precisarão ser “puxadas” ao passar à chapa, podendo também alguns contornos ser antes marcados a negro para melhor contraste e noção de volumes (descida da cruz, na cabeça de Cristo, etc.). O técnico sabe como é. (Os medalhões foram feitos só para acabar o rolo).

Desculpe o atraso, mas sem menosprezar a aselhice própria, continuo desconfiado da intervenção do além nos sucessivos desaires… Até consultei o I CHING (que aliás respondeu sibilina mas favoravelmente)! Enfim: penso estarmos arrumados de fotografias – e venha o livro.

Cumprimentos para sua Mulher e beijos aos gaiatos.

Um abraço amigo do

     Ernâni Roque

 

P. S. – O “registo” é a última cautela…

 

CORRESPONDÊNCIA. 35

20-01-2017 22:18

CARTAS DE ERNÂNI ROQUE PARA ANTÓNIO TELMO. 01

 

INTRODUÇÃO CORRIGIDA EM 14 de NOVEMBRO DE 2023

 

Amigo de António Telmo, que o conheceu através do sesimbrense Rafael Monteiro, num círculo a que também pertenceram António Reis Marques, Orlando Vitorino e Agostinho da Silva, entre outros, Ernâni Roque é uma das figuras menos conhecidas, mas nem por isso das menos significativas, do universo télmico. Não sendo natural de Sesimbra, manteve estreitos laços com esta terra, onde durante décadas, na segunda metade do século XX, passou as suas férias em casa arrendada, dados os laços de amizade que o ligavam a alguns dos seus naturais. Por um lado, o já referido Rafael Monteiro, que o conhecera, nos anos quarenta, na sede da Mocidade Portuguesa, no Palácio da Independência, em Lisboa, quando Marcelo Caetano era o Comissário Nacional daquele organismo. Roque conhecia Caetano, de quem era amigo, das lides do escutismo, e este, conhecedor dos seus dotes de escrita, nomeou-o editor do Jornal da Mocidade Portuguesa

Ernâni Roque trabalhou como desenhador na Câmara Municipal de Lisboa, onde tinha por colega, na Repartição da Cor, um outro sesimbrense, João Cardoso Baptista Gouveia, circunstância que evidentemente concorreu na sua predilecção pela póvoa marítima. Mais tarde, ingressará nos quadros da Polícia Judiciária, onde chegará a subinspector. 

Ernâni Roque foi director do jornal O Sesimbrense, entrevistando, em Julho de 1973, Álvaro Ribeiro para o periódico da Piscosa. São da sua autoria as fotografias do claustro do Mosteiro dos Jerónimos que ilustram a primeira edição da História Secreta de Portugal. Faleceu em 1982. A sua correspondência para Telmo, cuja publicação hoje iniciamos, dá-nos conta dos estranhíssimos episódios que envolveram a atribulada captação dessas imagens. Revela, ainda, informações preciosas sobre a recepção do livro pelo grupo da Filosofia Portuguesa e pelo grande público. 

 

_/_

 

Algés, 10/III/77.

 

Meu caro Telmo:

 

Você está mesmo com azar! O rolo (que não rolava), mas era a preto e branco, entregue a um idiota aqui em Algés para verificar em câmara escura, foi por ele remetido ao laboratório – que revelou um rolo inteiramente virgem, fazendo-me perder tempo e dinheiro. Visto o resultado, compro ao mesmo cretino um rolo preto e branco, volto aos Jerónimos, faço vinte exposições e entrego o trabalho a uma casa em Lisboa. Vou hoje de manhã busca-lo e verifico que, sem saber, estive a trabalhar a côres. Resultado: isto também não serve, porque não tem nitidez nem contraste capazes para dar gravura.

De qualquer modo, vão inclusos os oito ângulos, com as repetições que eu tive o cuidado de fazer, de São Jerónimo. Junto alguns dos medalhões. Pode guardar tudo como recordação dos sucessivos falhanços…    

Como se prova portanto pelos documentos juntos, há necessidade de 4.ª (!) tentativa. Fá-la-ei sábado próximo e, se quiser, mande-me instruções entretanto no sentido de entregar as provas directamente ao homem da tipografia, que não sei onde é. Poderemos assim poupar algum tempo.

Um abraço do seu chatiadíssimo amigo

                              Ernâni Roque

INÉDITOS. 70

13-01-2017 23:56

Sobre a Pátria[1]

 

Para mim a Pátria não é um Estado definitivo, que por vezes se corrompe, por vezes se aperfeiçoa, assim como se fosse uma espécie de modelo fixo onde devem estar bem comidos, bem empregados e, na melhor das hipóteses, bem casados. Esta ideia de um país operoso e bem comportado, que aumenta pelo trabalho a riqueza, que dispõe de uma cultura (poetas, romancistas, pintores, filósofos), que terá, porventura, encontrado a melhor forma de economia, que vai todos os domingos à missa e, se não vai à missa, vai ao futebol, e tudo o mais que tão bem conheceis, não é melhor ideia do que aquela que nega uma cultura própria, que nega a propriedade da Pátria, a subordina a um único factor – o trabalho – e a dissolve num Estado mais vasto, o de toda a humanidade. As duas ideias não prestam porque não são ideias, são expressões do desejo de ser feliz. Num caso como noutro o que se pretende é a quietação, a tranquilidade, o bem estar, nem que, para isso, tenhamos de sacrificar, como na verdade sacrificamos, não a liberdade, como em geral se diz nada dizendo, mas o próprio ser, sem o qual existimos como se fôssemos e não sendo nada somos nada. “O fim do homem não é ser feliz; é ajudar a evolução da natureza.” Como pode o homem saber isto se se esqueceu de si e definitivamente ignora que é um intermediário entre os mundos inferiores e os mundos superiores? De tal modo ignora que temo, ao escrevê-lo, despertar o encolher de ombros do leitor.

Tu, homem operoso no domínio do músculo ou do intelecto, que julgas contribuir, trabalhando, para um mundo melhor, diz-me porque entras em pânico sempre que a ideia da morte se torna suficientemente intensa, quer a impressão que a cause seja um tremor de terra, uma guerra civil, uma doença grave ou a solidão nos baixos caminhos da noite? Se és capaz de, com um grupo de amigos, consultar os espíritos à volta de uma mesa de três pés, terás porém a coragem de o fazer sozinho num cemitério? Afastas a ideia da morte e julgas que não morrerás nunca. A morte para ti é uma ideia matemática. O que tu receias é o teu próprio ser, esse mistério que trazes contigo, que, por vezes, tornas consciente, mas que logo afastas para “poderes ser feliz”.

Então, não me venhas falar de política, de evolução da humanidade porque o que no fundo queres é a tua tranquilidadezinha na convicção de que isto – o mundo dos homens – continuará sempre como o encontraste ao nascer, pelos séculos dos séculos, com pior ou melhor distribuição da riqueza.

Claro que para quem pense que a humanidade evolui para que o mundo evolua, dentro de um grande e misterioso plano em que todo o Universo colabora, a Pátria aparece como um elemento criado para ajudar a evolução da humanidade. Quando um homem como Agostinho da Silva diz que Portugal é um dos nomes de Deus e D. Manuel Primeiro pede ao Papa que reconheça o Arcanjo São Miguel como o Anjo Portugal é então que a mais perfeita e verídica ideia de Pátria se encontra nestes dois espíritos régios e se, no primeiro, pode ser dada por uma ideia poética, no segundo, foi um acto de profundas consequências políticas.

Na casa de Portugal, antes da conversão obrigatória ao cristianismo, não havia uma Pá[tria.]

 

_/_

 

Não há pátria, há Portugal.       

 

É o não haver pátria nesta terra que explica a sua história, a sua política, a sua cultura.

 

De início e até D. Manuel Primeiro, houve, não uma, mas três pátrias: a judaica, a muçulmana e a cristã. Se queremos falar com propriedade, por “pátria” há-de entender-se uma comunidade referida a pais comuns ou a antepassados comuns. Moisés, Maomet e Cristo tivera, entre nós, desde o início do que se chama nacionalidade as suas três “nações”. Não era apenas uma diferença de religião. Cada Nação tinha tribunais próprios, administração própria, costumes próprios, representantes seus junto do Rei das três nações. Embora historiadores como o português Paulo Mereia e o espanhol Américo Castro tenham mostrado o que foi Portugal até à obrigatoriedade da conversão ao cristianismo de todos os portugueses, o facto é que com a vitória da casta cristã a história passou a ser contada como se fôssemos “ab initio” um povo de Cristo. O país estava cheio de sinagogas e de mesquitas e não só de igrejas. A grande maioria das sinagogas foram destruídas e as mesquitas transformadas em igrejas. Depois, judeus e mouros que não tiveram a coragem de partir, cruzaram-se com os cristãos, fizeram-se “mais papistas que o papa”, “vestiram a pele do lobo”, ou o “hábito do monge”, ensinaram os filhos a ser hipócritas.

D. Manuel Primeiro, consciente talvez de que o sentimento da Pátria estava para sempre aniquilado, pediu ao Papa que reconhecesse no Arcanjo São Miguel o Anjo Portugal. É aqui que Portugal se transcendentaliza, o que leva o poeta Fernando Pessoa a chamar-lhe São Portugal e Agostinho da Silva a tê-lo por um dos nomes de Deus.

Eis pois que nunca houve pátria, mas pátrias. Eis que passa com D. Manuel Primeiro a haver Portugal.

No portal sul dos Jerónimos, o Arcanjo São Miguel está no alto de uma linha vertical representativa do eixo do mundo, tendo em baixo primeiro Santa Maria e depois o Infante. Há aqui a adesão ao Mistério essencial, o Mistério do Espírito Santo, que se revelará inteiramente aos homens através de um Imperador que é o Infante ou a Criança. Os católicos gostarão de verificar como em Fátima às três crianças apareceu Santa Maria, antes anunciada pelo Anjo Portugal, mas já nos Açores, onde estão as ilhas de São Miguel, de Santa Maria e a Terceira (também chamada do Menino Cristo) se celebrava o culto do Espírito Santo.

Claro que esta ideia de uma criança ser o Imperador do Mundo, de ser ela a soltar os presos e a distribuir o pão por todos, faz “encolher os ombros a políticos e a sociólogos e até a religiosos demasiado ciosos da sua fé política. É um sonho bom para ser sonhado por poetas como aconteceu ao Alberto Caeiro a quem uma criança, a Criança Divina, ensinou a pensar, sentir e viver.

Oremos! Quer dizer, reflictamos!

Todos nós nascemos não para sermos os homens que somos; o de que a criança é embrião é outra coisa, mas a “educação”, não só do Estado mas também essa, transforma esse embrião de poder e de conhecimento no pobre ser frágil do adulto, num ser poltrão, vaidoso, superficial, movendo-se pelas impressões exteriores como um mecanismo, completamente dependente dos outros. Pelo contrário, se a criança recebesse o ensino que convém, aquele que soubesse tornar adulta a sua essência, teríamos nela finalmente o ser que em si tem o seu princípio, de que o Infante é o mais alto símbolo.

É evidente que quando se fala no reino da Criança, não é da criança que se fala tal como a vêem os adultos, um ser imaginoso, criativo, ignorante ainda da realidade, que confunde a lua com uma fada (assim ao jeito dos contos de Afonso Lopes Vieira, ridicularizados por Pessoa, ou de Sophia de Mello Breyner, consagrados nas nossas selectas). A criança é o ser que cresce e o Infante é o ser que não fala. A criança é, porém, desviada no seu crescimento e ensinada a falar pelos adultos que nas palavras a que a habituam transmitem a sua “representação do mundo”. Um dos aspectos dessa representação está em não ver a criança como uma potência, mas como uma deficiência. Claro que a lua não é uma fada, nem a criança pensa que seja uma fada, tal como esta se representa na cabeça dos adultos. Mas que a lua é qualquer coisa que os adultos ignoram isso se o não sabe a criança, tem em si a virtualidade de o saber.

É possível que, por circunstâncias excepcionais, alguns tenham escapado ao destruir de todas as suas virtualidades de conhecimento e de poder. E que, num país sem pátria, mas com um “nome” encontrem o segredo de fazer o que não pode ser dito. Nem a todos pode já ser comunicado o Graal e o Galo que o detém no Porto de onde sempre se parte, até quando se perdeu já o gosto de “viajar”.

O Graal? O Galo? Mas porque é que o Infante não fala, tal como o nosso Pai Rosacruz dos sonetos de Fernando Pessoa?

Entretanto, reflectindo, oremos.                     

 

António Telmo


[1] Título da responsabilidade do editor.

 

CORRESPONDÊNCIA. 34

13-01-2017 23:26

CARTAS DE ANTÓNIO CARLOS CARVALHO PARA ANTÓNIO TELMO. 03

 

9/2/77

 

… de facto a epistolografia pode remediar em parte os males do afastamento entre nós. Desde que consigamos vencer a nossa preguiça natural e passar ao papel pelo menos um resumo daquilo que vamos pensando, desejando, sonhando…

Tenho já escrita e entregue a apresentação do seu livro[1]. Assim que tiver provas dessa parte, pelo menos, mando-lhas para dizer de sua justiça. Aproveitei a oportunidade para explicar um pouco melhor o que se pretende com a colecção “Janus” e salientei, a propósito do seu livro, o significado da História como símbolo e mito, conceitos tradicionais.

Logo que puder mande as fotografias.

Entretanto, soube-se que a ACER, representante espanhola dos livros de Evola, teria cedido os direitos da “Metafísica do Sexo” a nós e às Edições 70… Efectivamente, o editor Soares da Costa apareceu na Quadrante, distribuidora da edição Ribeiro de Mello, a protestar porque também ele tinha os direitos do livro… Esperamos agora resposta da ACER para esclarecer toda esta embrulhada…

Esperamos também que eles nos digam quanto valem os direitos de “O Mistério do Graal” para podermos avançar. O ideal seria que houvesse sempre dois livros na forja, um na tipografia e outro na linha de montagem.

Aguardo, igualmente, resposta da Gallimard cerca dos direitos de “A crise do mundo moderno” e de “O Esoterismo de Dante”. No caso de estarem livres seria possível contar consigo para traduzi-los? Pessoalmente, desagrada-me traduzir coisas – faltam-me a paciência e a resistência física para esse fim…

Já agora, que novas me dá do projecto do seu livro sobre “Os Lusíadas”?

A respeito de Gustav Meyrink, dele conheço apenas “A Noite de Walpurgis” e passagens de “O Golem”, o que é pouco. Mas percebi já que se trata de um autor importante pelo que diz e pelo que sugere. Além dos outros livros gostaria de ler uma biografia ou um estudo sobre ele. Conhece algum?

Quando vem cá outra vez?

Continuo à espera de notícias de Coimbra.

“The Man and the Nature” está na lista de espera[2].

Diga coisas – cada carta sua é um estímulo – dos poucos que ainda vou tendo.

Madalena recomenda-se e diz que o não esquece…

 

Um abraço 

           António Carlos Carvalho



[1] António Carlos Carvalho prefaciou a primeira edição da História Secreta de Portugal.

[2] Referência ao livro, com este título, de Seyyed Hossein Nasr.

 

INÉDITOS. 69

07-01-2017 14:47

Rascunho de uma carta para Max Hölzer

 

Como deve calcular, leio sempre várias vezes as suas cartas, tentando tornar precisas as indicações que nelas me vai dando, indicações que muito agradeço.

Acabei hoje a segunda leitura do livro e vi e senti nele muitas coisas que na primeira leitura me passaram completamente desapercebidas. É um livro inesgotável para ler e estudar toda a vida.

Deixo o que digo no plano da generalidade, porque em relação a si passa-se em mim qualquer coisa de esquisito: de um lado, a impressão de que sabe muito melhor do que eu o que se está passando comigo, do outro lado um querer conduzir-me nesta nova forma de vida (antes, o ser e estar obrigado a conduzir-me porque estou só e o Max Hölzer longe) por mim próprio e meus próprios meios. Diga-me, pois: quer que lhe conte, em próxima carta, o que procuro procurar fazer?

Claro que estou consciente de que não sei ainda (sabê-lo-ei algum dia?) distinguir o subjectivo do objectivo, mas temo por vezes arriscar-me para além do devido neste momento. É exactamente isto: subjectivo, subjectivo com certeza, mas pode ser objectivo.  Com efeito, começo a sentir cada vez mais a necessidade de uma orientação exterior (a sua), por assim dizer, enquanto não souber guiar-me por uma orientação interior. Devo dizer, ainda de uma maneira geral, que tenho procurado activar o sentimento de mim e das coisas onde estou, “não querendo nada”. Mas há cães, gatos que me aparecem quando tento, isolado e quedo, no meio da Natureza, o “rappel de moi” (afinal, começo a particularizar, mas vejo-o imediatamente a rir de mim).

O meu livro História Secreta de Portugal tem sido um êxito; é lido por muita gente. Adquiri uma certa celebridade e há pessoas que me procuram como se eu fosse um sábio; há também os que, depois de terem lido o livro, o aplaudem mas procuram dizer-me o verdadeiro segredo que ele contém. Recebo cartas a que não respondo; uma marca-me um encontro misterioso mas não vou. Eis nisto tudo uma prova para a minha vaidade. Julgo saber, porém, que a vaidade não se ataca de frente; cai de si, quando se conquista uma certa “plenitude” de ser; por ora, combato-a pela astúcia com perguntas deste género: o meu livro, naquilo que tem de verdadeiro, não o sei; eu não sei nada daquilo que lá escrevi; julgo ter apenas uma vaga premonição, por um lado, por outro uma série de associações mentais resultado de leituras, de alguma reflexão de outro que não sou eu.

Fala o Max Hölzer de uma certa “confluência” na interpretação sua e minha de Pessoa. Aceito, desde que se utilize a palavra confluência, pois creio que as duas fontes se encontram em planos distintos. O Max Hölzer diz o que sabe e diz bem; eu digo o que não sei e digo bem.

Creia que estou convencido de estar a dizer o que penso.

Ultimamente ocorreu-me a suspeita de que os poemas curtos de Pessoa são exercícios de “rappel de soi” sobre um suporte ocasional: o voo de um pombo, a brisa que passa, o gato que brinca na rua, a onda que enrolada torna ao mar que a trouxe. Que acha o Max Hölzer?

Estou passando a fotocópia do excerpto da carta ao Francisco aos outros participantes das reuniões. Seguirão, se puderem ou quiserem, a recomendação sobre leituras prévias.

Eu, por mim, já fiz a leitura do capítulo XII do Castaneda.

Dia quinze estaremos de novo em Lisboa, onde se lerá o capítulo XVII do B.

Claro que passo a fotocópia aos dois elementos de Estremoz: Ballesteros e Maria de Lurdes. Eles irão daqui comigo.

Como esta carta já vai longa, despeço-me de si, meu Amigo, pedindo-lhe que me diga alguma coisa de si. Já se libertou dos trabalhos físicos?

 

António Telmo 

CORRESPONDÊNCIA. 33

06-01-2017 22:35

CARTAS DE ANTÓNIO CARLOS CARVALHO PARA ANTÓNIO TELMO. 02

 

17/1/77

 

Ora viva!

Afinal acabámos por nos despedirmos precipitadamente, cada um para seu carro, naquela madrugada fria em Miraflores. E frio foi também aquele serão, povoado de longos silêncios. Meu Deus, que falta de inspiração… Espero que não seja assim todas as quartas-feiras… Qualquer dia volto lá, para ver se tenho mais sorte com a animação cultural e filosófica. A propósito: qual é a morada do Luís Furtado Guerra (Júdice mas nunca judeu!)??

Devo confessar que saí de lá de casa bastante decepcionado. Tinha imaginado que iria encontrar um “festival” de diálogo socrático – mas como, se Platão era “apenas” um amante da “ironia”, “pouco sério”, etc., etc.?... preferi remeter-me ao silêncio, bem mais positivo neste caso.

Veja que diferença houve entre o diálogo a três[1], durante o almoço e na Pastelaria Zurique, e aquele serão em que todos parecíamos esperar que o Espírito Santo descesse sobre as nossas cabeças, sob a forma de línguas de fogo…

Uma certeza nos resta: a de que interessa realmente trabalhar noutro sentido, com outra profundidade e com os olhos postos em tarefas mais concretas que estão por fazer. O seu estudo sobre a “trilogia” Virgílio-Dante-Camões, o estudo alquímico de Yvette Centeno, a minha “viagem” ao Reino do Preste João e a simbologia numérica do nosso amigo Sottomayor (espero que lhe forneça o necessário estímulo) são perspectivas de trabalho muito reais para os próximos meses, já anunciadas por mim aos sócios da Vega. Entretanto, vamos apontar para uma assídua troca de conhecimentos e informações várias a partir do que formos lendo e sabendo. Certo?

A propósito: Edições Afrodite (Fernando Ribeiro de Melo) publicaram “Metafísica do Sexo”, livro que eu queria tanto para a nossa colecção. Paciência… espero agora resposta de Espanha, para saber o que está livre do Evola.

Espero também resposta de Coimbra, do tal grupo ligado à revista “Ruta Solar”. Vamos lá ver o que dizem.

E os “ruídos estranhos” continuam: depois e Coimbra, foram ouvidos na Marinha Grande…

Um abraço e até à próxima

António Carlos Carvalho

 

 



[1] O terceiro elemento seria, presumivelmente, Francisco Sottomayor.

 

<< 23 | 24 | 25 | 26 | 27 >>