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CORRESPONDÊNCIA. 40

15-03-2017 09:26

Publicamos hoje uma carta de António Telmo para Risoleta C. Pinto Pedro, escrita nas semanas que antecederam a apresentação, pelo filósofo, do livro Venite In Silentio, da autoria da escritora, no Convento de São Paulo, na Serra d’Ossa, no Outono de 2004. 

Carta de António Telmo para Risoleta C. Pinto Pedro, de 24 de Agosto de 2004

Estremoz

24 de Agosto

de  2004

 

Estimada Amiga

 

Demorei alguns dias a responder, porque tencionava ler o livro antes de o fazer. Deixei a leitura para mais tarde, na semana anterior ao lançamento, até porque assim vou estar na Serra d’Ossa junto a vocês e dentro da nova atmosfera espiritual que é a que me há de, estou certo, trazer o livro.

 

Acho muito bem o lugar e o dia, 1 de Outubro. Diga-me então a hora, quando estiver certa dela. Fico à espera.

 

Um abraço do

 

António Telmo

 

P. S. Afinal comecei a ler o livro. Estou encantado. 

UNIVERSO TÉLMICO. 49

07-03-2017 15:33

Agostinho e o triunfo da entrevista

Risoleta C. Pinto Pedro

 

Este livro é um pequeno grande objecto de recordação, uma pedra de desagravamento, que não corrigindo nem substituindo o que deveria estar a acontecer, isto é: a edição e reedição da obra de Agostinho da Silva, como Renato Epifânio muito bem alerta no seu importante e sintético prefácio, importante pela frontalidade, contudo ajuda a tirar da sombra esta paralisação, e contribui para um apesar de tudo impossível consolo pela situação lamentável em que se encontra a monumental obra...

O livro lê-se com muito agrado, como todos os textos de Agostinho, e para além da entrevista propriamente dita, os textos complementares (prefácio, nota editorial e posfácio) também são de assinalar. É, por diversas razões, um livro histórico. Porque retoma uma entrevista histórica, a última dada à imprensa, em 93, ao Jornal Raio de Luz de Sesimbra, na pessoa de três entrevistadores: José Pedro Xavier, na altura director do jornal, e dois então jovens jornalistas: António Ladeira, actualmente poeta e professor de literatura nos EU; e Pedro Martins, escritor na área da reflexão filosófica, criador e coordenador do PAT.VO e do GEAS. A acrescentar a essa anterior razão, o livro apresenta informação importante que a peça jornalística, naturalmente, omitia, para além de integrar uma série de publicações da colecção Nova Águia, da editora Zéfiro, série com evidentes sinais de tendência para crescer.

Esta entrevista, na sua versão original, gravada, permaneceu entre 1993 e 2014 em hibernação nas cassetes que viajaram com António Ladeira para o seu êxodo no Texas e lá repousou arquivadamente todos estes anos, até ao momento que os astros desenharam para o seu desocultamento. Nelas, os dois jornalistas de então, Pedro Martins e António Ladeira, aos quais se juntou Rui Lopo na preciosa tarefa de transcrição, aperceberam-se que uma grande percentagem do material gravado não fora publicada. Assim nasceu o segundo livro gerado no seio do GEAS, acarinhado pelo mesmo jornal Raio de Luz e seu actual director António Marques, que em breve texto chama a atenção para a forte ligação de Agostinho da Silva a Sesimbra.

Na nota editorial, Pedro Martins, António Ladeira e Rui Lopo evocam o título da entrevista original que é uma citação de Agostinho: «A Península Ibérica deveria ser guia do mundo». Isto recorda-me uma conversa recente com um amigo de Marselha com quem Agostinho teria gostado de conversar. Dizia-me ele que estava a pensar vir viver para Portugal e aqui fazer durar a sua vida até ser chamado para o Eterno, por aqui ser ainda o único país onde é possível ser patriota e nacionalista sem se ser nazi ou de extrema direita.

Este título, esta primeira publicação em jornal, é a primeira etapa de um percurso que viria a revelar-se muito mais longo do que os intervenientes de 93 teriam imaginado. Numa segunda fase, a entrevista saltou do jornal e voltaria a ser publicada na terceira parte do livro Agostinho da Silva em Sesimbra, de Pedro Martins e António Reis Marques, em 2014. Mas Agostinho foi um cruzador dos mares e dos ares, e a viagem da entrevista não terminaria aqui. Voaria do Texas novamente para Lisboa, o Atlântico estava-lhe na vocação. Mostraria, na chegada, que quatro quintos do que fora gravado permanecia inédito. É a terceira etapa, a descoberta. Ou redescoberta. Culminando num quarto passo: a publicação autónoma em livro. Acrescentado o prefácio de António Cândido Franco e o posfácio de João Ferreira. Diferentes latitudes, diferentes gerações, a mesma amizade pela personalidade, a mesma admiração pelo carácter, o mesmo respeito pela obra.

É, assim, um livro que alia a didáctica dos estudos à evocação da figura, a fluência da conversa e a sedução do pensamento.

Na sua reflexão, António Cândido chama a atenção para um muito significativo acréscimo de dramatização do texto publicado em 93 para o livro. O que é natural, dada a extensão significativa de texto acrescentado.

Acentua também, e isto é muito importante, relativamente à literariedade da escrita de Agostinho, a sua habilidade e domínio de vários registos, entre o oral e o escrito, não se limitando a um estilo.

Assinala igualmente a importância que o género entrevista foi progressivamente adquirindo na expressão de Agostinho, possibilitando a este conversador, com o passar dos anos, manter o ritmo de comunicação com as pessoas.

A entrevista permite-lhe, parece-me, acentuar, pela oralidade, uma já característica do seu estilo de escrita que é a coloquialidade e a vivacidade. Não surpreende pois, que num conversador por excelência, a entrevista floresça.

Faz lembrar a importância de algumas entrevistas do seu amigo e compadre António Telmo, mas no caso deste por razões de conteúdo, não de frequência ou estilo.

Em Agostinho são tantas que, como diz António Cândido, «chegam bem para criar […] um compartimento próprio» onde alterna a narração com o discurso directo, formando «quadros poéticos vivos, embutidos em conversas».

Discurso directo que frequentemente não constitui uma resposta ao entrevistador, pois a partir das perguntas, o que muitas vezes faz é discorrer, com constantes digressões, voltando sempre a apanhar o fio. O discurso directo é o diálogo que reproduz/cria/inventa, daqueles de quem fala, ou entre eles. Antecedido e seguido do discurso do narrador, como é o caso, a propósito de a Espanha se ter apropriado da designação que partilhávamos como habitantes da península, o protesto de D. João II:

«D. João II protestou. Disse: Espanha não é um país. Espanha é a Península. Nós, portugueses, somos “portugueses da Espanha”. Que ideia é essa de vocês arrebatarem o nome e ficarem sozinhos com ele? Larguem o nome! Eles nunca largaram o nome.»

O início ainda é antecedido pela marca do narrador «disse» seguido de dois pontos, mas a passagem do final do discurso de D. João II para o do narrador é feita de modo imediato, quase abrupto. O «colosso» no seu melhor.

Na alternância entre as perguntas e as respostas, o que ressalta é, ainda que respeitoso do lado dos entrevistadores e coloquial do lado do entrevistado, um tom de companheirismo, demonstrando sintonia que não é propriamente concordância, mas que surge da empatia. Igualmente passa, pelas entrelinhas das perguntas, uma boa preparação; um conhecimento implícito e não superficial dos temas, o que é de salientar; uma prontidão na articulação entre a resposta e a pergunta seguinte.

Mas também é divertido ver a forma habilidosa como, por vezes, o entrevistado se desvia da pergunta, caso a questão não lhe interesse ou desencadeie algum outro tema sobre que considere mais apaixonante discorrer. É o caso da pergunta acerca da Universidade enquanto elite intelectual, que quase ignora, para falar de tema mais da sua preferência, como o estudo das tartarugas.

O que é encantador nele e cativa e conquista o mais duro e sério racionalista é a candura, a inocência, o atrevimento com que profere heresias, a ponto de desarmar qualquer um, abrindo brechas no pensamento dito normal, lógico ou comumente aceite.

Um dos seus temas de eleição é o divino, embora não o trate a partir de nenhuma religião em particular, mesmo quando manifesta simpatia por uma ou por outra, como é o caso do cristianismo, mas o pensamento de Deus é desenvolvido frequentemente a partir do pensamento de Portugal, que vê na sua dimensão eterna, para lá do espaço que ocupa:

«Porque eu digo, podia ser que Portugal, numa catástrofe geológica qualquer, ou antropológica, sumisse. O que não sumia era esse pensamento. O que não sumia era o pensamento defendido por eles na vida da plenitude do Divino, a plenitude de Deus».

Fala de tudo: desde as tartarugas, a temas de um altíssimo grau de complexidade, e o tom é didáctico. Acima de tudo, é um professor a explicar coisas complexas de modo natural, porque profundamente interiorizadas. Nunca se preocupa em, e até evita, passar por erudito. Assim como não distingue temas através da gala ou da sumptuosidade da palavra. A sumptuosidade é mais criada pela vivacidade e por vezes quase gongorismo das imagens. Também não distingue personagens pelo seu estatuto, nem mesmo pelo grau de admiração que por elas nutra. A familiaridade é o modo com que trata todos, mortos ou vivos, socialmente desvalorizados ou o contrário. É o caso da mais que insuspeitamente admirada rainha Santa Isabel, que trata por «Isabelinha». É a ternura. Mas também a fraternidade. Todos os homens são irmãos e não há nenhuns acima dos outros. Aprendamos com ele.

Apesar das frequentes alusões do seu discurso ao divino, o foco é, sempre, a vida. A sua inspiração são os portugueses do passado, os portugueses das aventuras, os portugueses da História, os portugueses de sempre, com destaque para os das viagens das descobertas, cujas palavras inventa, ou melhor, cita como se estivesse em comunicação directa com eles e os ouvisse dizer: «Não basta viver no divino. É preciso também viver no concreto, no real, naquilo de todos os dias», rematando com a sua já retórica interrogação que não pressupõe uma negativa: «não é?». Porque o argumento vem de autoridades, que são «os portugueses».

A entrevista, propriamente dita, inicia-se com um tema muito caro a Agostinho da Silva: a missão de Portugal no Mundo. Mas não é com pompa que trata tão pomposo tema. São expressões coloquiais e metáforas do quotidiano que este pedagogo usa para falar de temas considerados importantes. É o caso da expressão varrer a casa, a propósito da União Europeia. Fica tudo dito e os pontos colocados sobre os ii, sobre quem varre e sobre o estado da casa a necessitar de grande varridela. Ou limpeza. Para bom entendedor…

E sempre presente a lembrança da poesia, que para ele não se limita canonicamente aos textos poéticos, mas é muito mais ampla: um espírito e um estilo e uma forma extensa e extensível de viver a vida.

Um tema que tem proporcionado alguma polémica, a propósito do culto do Espírito Santo, é o menino. Por vezes é o próprio Agostinho o criador do equívoco, pela insistência que coloca na coroação da criança, mas nesta entrevista há um momento em que quase esclarece, quase se demarca do seu próprio discurso, quando diz:

«Então o que é? É porque eles julgavam que o menino era capaz de imperar no mundo, de governar o mundo? Não, de jeito nenhum! O que eles achavam é que é o exemplo melhor que temos do homem, e que o homem é a coisa suprema do Universo. Não há nada no Universo que exceda o humano.»

Aqui mostra que não é literalmente que se deve fazer a leitura, mas pelo símbolo, pela metáfora. O que já não entra em contradição e quase converge, com estudos que mostram que na tradição mais remota o coroado era um adulto. Ele próprio afirma que ali a criança é o símbolo do que existe melhor no humano.

Aproveitando para fazer a ligação às suas preocupações com a escola e seu papel deseducativo. Mais à frente afirma: «as escolas deseducam as pessoas».

Pelo meio destes temas grandes e sérios que ele trata com um misto de naturalidade e entusiasmo, não podemos ignorar o pitoresco, como cores com que vai salpicando a conversa. É o caso, que relata, de Roberto Carneiro, ex-ministro da educação, coroado Imperador aos quatro anos. De Imperador do Espírito a ministro, uma despromoção, digo eu, seja-me permitido o aparte. E talvez uma razão para não se coroarem crianças. É demasiado pesada, a coroa sobre uma cabeça de menino que ainda pode vir a ser ministro. Sabe-se lá que consequências poderá ter…

Tema importante que irá ser magnificamente abordado por João Ferreira no posfácio, é a questão da filosofia, que Agostinho aproxima, como faz em relação a tudo, do quotidiano. Fazer filosofia sobre o requeijão será, para ele, a mais elevada das filosofias. Aquilo que designa como a «atenção ao concreto», a vida material ou o espírito na matéria, ou, melhor ainda, a matéria como expressão do espírito, Deus «inteiro e pleno no mundo». A recorrente ideia de aliar a existência na carne ao anseio de plenitude. O que está, de algum modo, relacionado com a busca do poético com que salva o quotidiano da banalidade. E nenhum tema, nem a regionalização, fica fora desta outra forma de filosofia, ou, como diriam Huxley e Telmo, da «arte de olhar».

Especificamente em relação ao tema da filosofia portuguesa, que como já referido será o centro do texto de João Ferreira no final do livro, Agostinho vai igualmente pôr os pontos nos ii. Para ele, não está em causa a existência da filosofia portuguesa, mas não a situa na Universidade. Os «homens que fazem a Universidade […] não têm filosofia portuguesa.»

E põe a tónica no aspecto operativo da filosofia portuguesa, aquela que se traduz em comportamento, por se impregnar no ser. Dá, então, a sua definição do que é ser filósofo: «olhar a vida e pensar sobre ela»

Não se trata da recusa do pensar, mas da recusa do pensar estéril, sem consequências. Elege um pensar com visibilidade no «comportamento», um conceito muito do seu interesse, nomeadamente quando, a propósito da Seara Nova, afirma que, independentemente de não se ter de concordar com tudo, existe naquele projecto «um plano de comportamento de Portugal». O que valoriza.

Embora não coroando o pensamento como coisa abstracta desligada da vida e do comportamento, são várias as passagens em que, sem que o faça explicita ou deliberadamente, acaba por reconhecer, admitir e admirar … o pensar crítico. Como é o caso da passagem em que fala dos portugueses autores dos primeiros textos sobre a China, como «gente crítica […] gente capaz, e […] gente no fundo da qual há sempre a capacidade de julgar».

Ele próprio é o exemplo vivo do pensamento crítico. Nomeadamente sobre nós mesmos. Sobre cujo tempo lamenta faltar a componente da proeza. E aqui é totalmente coerente com o que defende num texto sobre educação que estudei e sobre que falei recentemente, em que, a propósito de Baden-Powell, exalta o risco e o perigo, e portanto a proeza, como condições necessárias à aprendizagem.

No seu magnífico posfácio, o companheiro de Brasília, João Ferreira, considera esta entrevista «uma peça testamentária» contendo «o fermento principal de todo um discurso elaborado durante uma vida inteira», vendo não apenas nas repostas, mas também nas perguntas, o «discurso essencial arquivado nas principais obras do Mestre», como a ideia de fraternidade e cooperação, uma das preocupações do seu pensamento essencialmente educativo. Liga-se esta ideia à da sua concepção de filosofia, uma «filosofia dinâmica» ou arte de viver. Como não gostava de rótulos, também não queria que lhe chamassem filósofo, mas existe coerência entre a definição que dá de filosofia como «dialéctica da arte de desembaraçar» e a sua própria atitude prática e teórica: «Olhar a vida e pensar sobre ela». No seu caso, «em nome próprio». E ousamos nós, por isto mesmo, aproximá-lo da filosofia portuguesa, que não desconhecendo as filosofias estrangeiras, a elas não se submete, com elas não se emaranha. Como ele, é a filosofia portuguesa «uma filosofia em nome próprio». Desembaraçada.

João Ferreira irá desenvolver, em torno do tema, larga e importante reflexão a que, por merecimento, dedicarei texto à parte. Como A Última Entrevista de Imprensa, talvez por contágio, também eu desdobro e prolongo esta reflexão à margem da Entrevista. A culpa é do insaciável Agostinho, esse doce e alegremente inquieto e feroz colosso.

 

Biblioteca Municipal de Ponte de Sor

25 de Fevereiro

(texto de apresentação do livro A Última Entrevista de Imprensa, Ed. Zéfiro)

CORRESPONDÊNCIA. 39

01-03-2017 09:42

ÁLVARO RIBEIRO, 112 ANOS DEPOIS!

Comemora-se hoje o 112.º aniversário do nascimento de Álvaro Ribeiro, mestre de António Telmo. Assinalamos a efeméride com a publicação de uma carta inédita do discípulo para o filósofo da razão animada, escrita em Estremoz, e datada de 9 de Outubro de 1965, exactamente 16 anos antes da morte do destinatário. Através dessa carta, que se guarda na Biblioteca Nacional, Telmo dá a conhecer ao mestre o horóscopo que dele fizera.    

 

Carta de António Telmo para Álvaro Ribeiro, de 9 de Outubro de 1965

 

Estremoz 9-X-65

Sr. Dr. Álvaro Ribeiro

 

Como deve calcular e saber, estou em Estremoz, para onde vim na esperança de me demorar apenas dois ou três meses, mas começo a duvidar que isso aconteça. Estremoz tem um agradável café – “Águias d’Oiro” – onde se reúnem e se podem encontrar os intelectuais do sítio: um padre poeta, um advogado ocultista praticante várias vezes preso por razões políticas, um advogado (outro) leitor de Álvaro Ribeiro, Orlando Vitorino, José Marinho, etc…, um marxista ex-director da Escola e escultor, amigo do Conceição Silva, etc.

Ganho muito pouco. Isto preocupa-me e aborrece-me. Tenho, porém, muito tempo para escrever e, por isso, comecei a redigir um trabalho sobre a “descida aos infernos” em Aristófanes, que incluirei na tese de licenciatura. Mato assim dois coelhos com uma só cajadada. Suspendi o escrito sobre Bruno, mas espero retomá-lo logo que complete o trabalho destinado aos professores da Faculdade.

Aqui, têm sido muito comentadas as declarações de Paulo VI e muito apreciadas.

Nós estamos longe desta gente toda e as ideias do grupo, se podemos chamar-lhes assim, são fantasmas sem corpo, ainda à procura do “ectoplasma” fora dos limites em que nasceram e se formaram: o mundo espiritual do Palladium e de Atena.

Peço ao sr. Dr. Álvaro Ribeiro para apresentar os meus cumprimentos a todos de quem não me despedi, sr. Dr. José Marinho, Avelino Abrantes, sr. Dr. Leitão e restante “companhia filosófica”.

Cumprimentos também à Conchita.

Muito grato

        

António Telmo  

 

1 de Março de 1905

 

[Imagem com o horóscopo de Álvaro Ribeiro]

 

Aspectos

Conjunção Vénus - Júpiter

Vénus – Júpiter em sextil com Saturno

Mercúrio em trígono com Neptuno

Mercúrio em sextil com Urano

Sol em sextil com a Lua

Sol em trígono com Neptuno

Neptuno em oposição com Urano

Lua em sextil com Marte

Mercúrio em sextil com Júpiter

 

António Telmo

(Horoscopista)

 

[Espólios N9/1049]

CORRESPONDÊNCIA. 38

26-02-2017 19:13

CARTAS DE ERNÂNI ROQUE PARA ANTÓNIO TELMO. 03


 

                                                           Algés, 18 de Junho 1977.

 

Meu caro Telmo:

 

Grato pela “História Secreta de Portugal” e pela dedicatória amiga. Li-o de um fôlego em Sesimbra (exemplar emprestado pelo Rafael), vou na segunda leitura e troquei impressões com os filósofos, 4.ª feira última, em casa do Afonso Botelho. O autor do Touro Celeste serviu-nos em Vista Alegre finíssima um chá das 5 (eram 23 horas…) infuso em chaleira rica de prata dourada, gentileza e requinte que em meu entender desbancam o cafezinho burguês do Furtado Guerra, de Miraflores (ausente por doença).

A Escola Formal estava também representada pelo Orlando, que se meteu comigo por causa das figas. Vou ter de refundir o suelto, “metendo-lhe” o Leite de Vasconcelos e a polémica do Camilo com o Senhor D. Luís, mais a pornográfica interpretação vèlhinha, da “coisa na coisa”. Se tiver paciência.

Mestre Álvaro, entre dois goles sorvidos da xícara a fumegar, foi-nos dizendo – e nós dizer-lhe – que Você na Secreta deixa o D. Manuel I mui maltratado, na medida em que lhe coloca no reinado venturoso o começo do pátrio trambolhão. Eu acho o livro formidável, a pedir 2.ª edição correcta e aumentada. Correcta: sem gralhas e com melhores fotografias, algumas grandes, de página, a dar o pormenor. Aumentada: Tomar, etc.

Há dias, no Centro do Livro Brasileiro, perguntei se a História estava a vender-se bem. Disseram-me que sim e aproveitei para afirmar, altissonante: é um grande livro! Quando saí, já havia dois indígenas entregues à folheadela percursora da compra!

Prometi ao Dr. Manuel Guimarães solicitar-lhe para ele um exemplar, dado o entusiasmo demonstrado quando lhe falei do livro. Se quiser ser amável e mandar-lho, a direcção é Hotel dos templários, Tomar. Gostava que lho enviasse.

A terminar: quanto ao horóscopo que não pode fazer, há decerto um pequeno lapso. Feito foi ele. O que Você pensa não poder fazer é revelá-lo e por isso o re-velou. Só me resta o Valete, Frate!

 

            Um abraço,

                        Ernâni Roque

UNIVERSO TÉLMICO. 48

12-02-2017 22:54

Moisés

António Carlos Carvalho

Todos sabemos que Agostinho da Silva gostava de contar histórias – eu próprio passei por essa experiência inesquecível na casa dele perto do jardim do Príncipe Real, em Lisboa; foi lá, por exemplo, que ouvi pela primeira vez falar do episódio de Canudos e de António Conselheiro, a última expressão do sebastianismo «ao vivo». Por isso, não é de estranhar que Agostinho tenha escrito biografias – escrever uma biografia é contar a história de uma vida por escrito.

E assim surgiu A Vida de Moisés, publicada pela Seara Nova em 1938 – fixemos esta data, porque esse é também o ano da tristemente famosa «Noite de Cristal», ou noite dos vidros partidos, os vidros das montras de lojas judaicas na Alemanha, anúncio do que viria a seguir, até 1945.

Contar a vida de Moisés em quarenta páginas é uma proeza, convenhamos …

Também sabemos que, mais cedo ou mais tarde, toda a gente acaba por «tropeçar» em Moisés – lembremo-nos que, nos anos 60 do século XX, nos EUA, por exemplo, Moisés era constantemente invocado pelos negros americanos, envolvidos na luta pelos seus direitos cívicos.

A começar pelos artistas: todos conhecemos o Moisés de Rembrandt ou o de Miguel Ângelo. Mas Moisés surge mesmo onde menos se espera – no portal sul do Mosteiro dos Jerónimos, bem explícito com as Tábuas da Lei, ao lado direito do Infante, ou até no portal oeste, «disfarçado» de Menino Jesus, mas deitado numa cesta, não nas palhinhas de uma manjedoura…

Mas voltemos ao Moisés de Miguel Ângelo: sempre que visitava Roma (coisa que fazia frequentemente), Sigmund Freud passava horas a contemplar a estátua de Moisés, totalmente fascinado. E foi esse mesmo Moisés que inspirou Freud a escrever a sua última obra, O Homem Moisés e a Religião Monoteísta, que teve uma primeira parte publicada em 1937 e a versão final em 1939.

Então percebemos esta coincidência extraordinária: Freud e Agostinho interessaram-se e escreveram ao mesmo tempo sobre a mesma figura: Moisés.

A Vida de Moisés, de Agostinho da Silva, é supostamente uma biografia, mas se o é, é certamente muito estranha, invulgar, algo que nos deixa perplexos. Vejamos: quando escrevemos uma biografia, temos o cuidado óbvio de procurar as informações essenciais: nomes dos pais, dos irmãos, etc. Mas quando lemos esta biografia de Moisés verificamos que Agostinho não nos dá esses nomes – só o do pai, a quem chama Levi (nome da sua tribo) e não Amram, e de Aaron, sem nunca dizer que este é o irmão de Moisés; a mãe, Jokebed, e a irmã, Myriam, nunca têm direito a nome …

António Cândido Franco tem razão: Agostinho era um «narrador de ficção», criava «mundos fictícios» – mesmo à custa de diversas invenções, digo eu.

Exemplos: põe Moisés a trabalhar nas obras, como pedreiro, imagine-se, junto dos seus irmãos judeus, a quem incita à revolta, mesmo depois de matar o capataz egípcio e de ser denunciado por isso; diz que Moisés e Séfora tiveram filhos e filhas – filhos, sim, tiveram, Gershom e Eliezer (mas Agostinho troca-lhes os nomes, chama-lhes José e Levi), mas filhas não, embora invente nomes para elas, Raquel e Maria… A seguir, coloca a visão da sarça ardente no campo, junto ao poço de Madian, e não no alto do monte Horeb… O episódio em que a mão de Moisés fica de repente leprosa e logo a seguir sã (e que acontece durante o diálogo com Deus junto da sarça ardente) é contado por Agostinho como sendo apenas um prodígio feito por Moisés perante os anciãos do povo… Refere que os escravos judeus  no Egipto tinham magistrados (leia-se juízes), coisa que só viria a acontecer na travessia do deserto e por conselho do sogro de Moisés, Jetro… Apresenta os escravos judeus a apropriarem-se do ouro e da prata «dos pagãos», «como vingança dos maus tratos» que tinham recebido dos egípcios, o que é inacreditável e pura invenção – esse ouro e essa prata foram trazidos do Egipto pela enorme multidão de não judeus que os acompanharam para o deserto e depois participaram na cerimónia do bezerro de ouro… De Myriam, vidente da água no deserto, nada é dito… Agostinho inventa também uma animosidade e divergência profunda entre Moisés e Aaron, quando o texto bíblico diz precisamente o contrário… E ainda inventa que Moisés pensava que o povo hebreu era «mau, fácil às solicitações da vida criminosa» (sic), quando o texto bíblico conta que Moisés sempre defendeu o seu povo até mesmo da própria ira de Deus … Etc., etc.

Bom, que pensar de tudo isto?

Como foi referido, Agostinho escreve esta biografia e publica-a em 1938. Ora os anos 20 e 30 foram uma época sobretudo marcada pela ascensão ao poder de homens de mão forte e determinada, digamos assim, em muitos pontos da Europa e do mundo: Mussolini em Itália, Estaline na URSS, Salazar em Portugal, Hitler na Alemanha, Franco em Espanha, Getúlio Vargas no Brasil. Homens, esses, que conduziram as massas para os seus objectivos próprios, contra ventos e marés, sem olhar a meios. Foi o tempo do que na Renascença italiana se chamava os «condottieri». O perfil de Moisés que Agostinho nos apresenta aqui é precisamente o de um homem obstinado, «tenaz nos seus propósitos», exigente, o chefe desejado por todos que os irá libertar da escravidão, «fraco na aparência, poderoso no íntimo, como que animado por uma força divina». Nunca lhe chama profeta e muito menos o maior dos profetas.

A Vida de Moisés tem como epígrafe uma passagem do Deuteronómio, na tradução do padre António Pereira de Figueiredo. Podemos, portanto, deduzir que Agostinho leu esse livro, e provavelmente o do Êxodo, em que se fala de Moisés.

Mas leu-os certamente com os olhos de um «narrador de ficção», que ele era fundamentalmente. E não quero ir mais longe nas minhas deduções…

CORRESPONDÊNCIA. 37

12-02-2017 21:57

AGOSTINHO DA SILVA, 111 ANOS DEPOIS

A poucas horas de se comemorar o 111.º aniversário do Estranhíssimo Colosso, um dos quatro mestres de António Telmo e padrinho de baptismo de sua filha Anahi, assinalamos a efeméride com a publicação de uma brevíssima mas tocante carta inédita de Agostinho da Silva para a sua afilhada. 

22.7.79

Querida Menina

 

Há actualmente no Brasil grandes movimentos a favor dos índios e eles próprios estão defendendo seus direitos – o que é o melhor. Hoje queria dizer-te que um dos grupos mais influentes, de Rio e São Paulo, se chama exactamente ANAÍ. Não é interessante que haja essa coincidência? Gostarias de receber informação sobre índios?

Como vai Manuel?

Um grande abraço do Padrinho

CORRESPONDÊNCIA. 36

05-02-2017 18:55

CARTAS DE ERNÂNI ROQUE PARA ANTÓNIO TELMO. 02

Algés, 23/III/77.

 

Meu caro Telmo:

Está provado: quem porfia… fotografa.

Aí vai o que finalmente consegui. Não é famoso, mas para mais não chegou nem o engenho nem a arte. Devo entretanto dizer-lhe que também este rolo teve malapata: foi enviado pelo laboratório para outra casa, devolvido por esta, etc., originando um atraso de alguns dias na entrega. Fizeram as provas em papel baço (que não pedi), sendo mais conveniente para o efeito o brilhante, etc. Do São Jerónimo, parece-me acertada a escolha por ordem de numeração, mas ampliando (a 1 ou a 2). Todas elas precisarão ser “puxadas” ao passar à chapa, podendo também alguns contornos ser antes marcados a negro para melhor contraste e noção de volumes (descida da cruz, na cabeça de Cristo, etc.). O técnico sabe como é. (Os medalhões foram feitos só para acabar o rolo).

Desculpe o atraso, mas sem menosprezar a aselhice própria, continuo desconfiado da intervenção do além nos sucessivos desaires… Até consultei o I CHING (que aliás respondeu sibilina mas favoravelmente)! Enfim: penso estarmos arrumados de fotografias – e venha o livro.

Cumprimentos para sua Mulher e beijos aos gaiatos.

Um abraço amigo do

     Ernâni Roque

 

P. S. – O “registo” é a última cautela…

 

CORRESPONDÊNCIA. 35

20-01-2017 22:18

CARTAS DE ERNÂNI ROQUE PARA ANTÓNIO TELMO. 01

 

INTRODUÇÃO CORRIGIDA EM 14 de NOVEMBRO DE 2023

 

Amigo de António Telmo, que o conheceu através do sesimbrense Rafael Monteiro, num círculo a que também pertenceram António Reis Marques, Orlando Vitorino e Agostinho da Silva, entre outros, Ernâni Roque é uma das figuras menos conhecidas, mas nem por isso das menos significativas, do universo télmico. Não sendo natural de Sesimbra, manteve estreitos laços com esta terra, onde durante décadas, na segunda metade do século XX, passou as suas férias em casa arrendada, dados os laços de amizade que o ligavam a alguns dos seus naturais. Por um lado, o já referido Rafael Monteiro, que o conhecera, nos anos quarenta, na sede da Mocidade Portuguesa, no Palácio da Independência, em Lisboa, quando Marcelo Caetano era o Comissário Nacional daquele organismo. Roque conhecia Caetano, de quem era amigo, das lides do escutismo, e este, conhecedor dos seus dotes de escrita, nomeou-o editor do Jornal da Mocidade Portuguesa

Ernâni Roque trabalhou como desenhador na Câmara Municipal de Lisboa, onde tinha por colega, na Repartição da Cor, um outro sesimbrense, João Cardoso Baptista Gouveia, circunstância que evidentemente concorreu na sua predilecção pela póvoa marítima. Mais tarde, ingressará nos quadros da Polícia Judiciária, onde chegará a subinspector. 

Ernâni Roque foi director do jornal O Sesimbrense, entrevistando, em Julho de 1973, Álvaro Ribeiro para o periódico da Piscosa. São da sua autoria as fotografias do claustro do Mosteiro dos Jerónimos que ilustram a primeira edição da História Secreta de Portugal. Faleceu em 1982. A sua correspondência para Telmo, cuja publicação hoje iniciamos, dá-nos conta dos estranhíssimos episódios que envolveram a atribulada captação dessas imagens. Revela, ainda, informações preciosas sobre a recepção do livro pelo grupo da Filosofia Portuguesa e pelo grande público. 

 

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Algés, 10/III/77.

 

Meu caro Telmo:

 

Você está mesmo com azar! O rolo (que não rolava), mas era a preto e branco, entregue a um idiota aqui em Algés para verificar em câmara escura, foi por ele remetido ao laboratório – que revelou um rolo inteiramente virgem, fazendo-me perder tempo e dinheiro. Visto o resultado, compro ao mesmo cretino um rolo preto e branco, volto aos Jerónimos, faço vinte exposições e entrego o trabalho a uma casa em Lisboa. Vou hoje de manhã busca-lo e verifico que, sem saber, estive a trabalhar a côres. Resultado: isto também não serve, porque não tem nitidez nem contraste capazes para dar gravura.

De qualquer modo, vão inclusos os oito ângulos, com as repetições que eu tive o cuidado de fazer, de São Jerónimo. Junto alguns dos medalhões. Pode guardar tudo como recordação dos sucessivos falhanços…    

Como se prova portanto pelos documentos juntos, há necessidade de 4.ª (!) tentativa. Fá-la-ei sábado próximo e, se quiser, mande-me instruções entretanto no sentido de entregar as provas directamente ao homem da tipografia, que não sei onde é. Poderemos assim poupar algum tempo.

Um abraço do seu chatiadíssimo amigo

                              Ernâni Roque

INÉDITOS. 70

13-01-2017 23:56

Sobre a Pátria[1]

 

Para mim a Pátria não é um Estado definitivo, que por vezes se corrompe, por vezes se aperfeiçoa, assim como se fosse uma espécie de modelo fixo onde devem estar bem comidos, bem empregados e, na melhor das hipóteses, bem casados. Esta ideia de um país operoso e bem comportado, que aumenta pelo trabalho a riqueza, que dispõe de uma cultura (poetas, romancistas, pintores, filósofos), que terá, porventura, encontrado a melhor forma de economia, que vai todos os domingos à missa e, se não vai à missa, vai ao futebol, e tudo o mais que tão bem conheceis, não é melhor ideia do que aquela que nega uma cultura própria, que nega a propriedade da Pátria, a subordina a um único factor – o trabalho – e a dissolve num Estado mais vasto, o de toda a humanidade. As duas ideias não prestam porque não são ideias, são expressões do desejo de ser feliz. Num caso como noutro o que se pretende é a quietação, a tranquilidade, o bem estar, nem que, para isso, tenhamos de sacrificar, como na verdade sacrificamos, não a liberdade, como em geral se diz nada dizendo, mas o próprio ser, sem o qual existimos como se fôssemos e não sendo nada somos nada. “O fim do homem não é ser feliz; é ajudar a evolução da natureza.” Como pode o homem saber isto se se esqueceu de si e definitivamente ignora que é um intermediário entre os mundos inferiores e os mundos superiores? De tal modo ignora que temo, ao escrevê-lo, despertar o encolher de ombros do leitor.

Tu, homem operoso no domínio do músculo ou do intelecto, que julgas contribuir, trabalhando, para um mundo melhor, diz-me porque entras em pânico sempre que a ideia da morte se torna suficientemente intensa, quer a impressão que a cause seja um tremor de terra, uma guerra civil, uma doença grave ou a solidão nos baixos caminhos da noite? Se és capaz de, com um grupo de amigos, consultar os espíritos à volta de uma mesa de três pés, terás porém a coragem de o fazer sozinho num cemitério? Afastas a ideia da morte e julgas que não morrerás nunca. A morte para ti é uma ideia matemática. O que tu receias é o teu próprio ser, esse mistério que trazes contigo, que, por vezes, tornas consciente, mas que logo afastas para “poderes ser feliz”.

Então, não me venhas falar de política, de evolução da humanidade porque o que no fundo queres é a tua tranquilidadezinha na convicção de que isto – o mundo dos homens – continuará sempre como o encontraste ao nascer, pelos séculos dos séculos, com pior ou melhor distribuição da riqueza.

Claro que para quem pense que a humanidade evolui para que o mundo evolua, dentro de um grande e misterioso plano em que todo o Universo colabora, a Pátria aparece como um elemento criado para ajudar a evolução da humanidade. Quando um homem como Agostinho da Silva diz que Portugal é um dos nomes de Deus e D. Manuel Primeiro pede ao Papa que reconheça o Arcanjo São Miguel como o Anjo Portugal é então que a mais perfeita e verídica ideia de Pátria se encontra nestes dois espíritos régios e se, no primeiro, pode ser dada por uma ideia poética, no segundo, foi um acto de profundas consequências políticas.

Na casa de Portugal, antes da conversão obrigatória ao cristianismo, não havia uma Pá[tria.]

 

_/_

 

Não há pátria, há Portugal.       

 

É o não haver pátria nesta terra que explica a sua história, a sua política, a sua cultura.

 

De início e até D. Manuel Primeiro, houve, não uma, mas três pátrias: a judaica, a muçulmana e a cristã. Se queremos falar com propriedade, por “pátria” há-de entender-se uma comunidade referida a pais comuns ou a antepassados comuns. Moisés, Maomet e Cristo tivera, entre nós, desde o início do que se chama nacionalidade as suas três “nações”. Não era apenas uma diferença de religião. Cada Nação tinha tribunais próprios, administração própria, costumes próprios, representantes seus junto do Rei das três nações. Embora historiadores como o português Paulo Mereia e o espanhol Américo Castro tenham mostrado o que foi Portugal até à obrigatoriedade da conversão ao cristianismo de todos os portugueses, o facto é que com a vitória da casta cristã a história passou a ser contada como se fôssemos “ab initio” um povo de Cristo. O país estava cheio de sinagogas e de mesquitas e não só de igrejas. A grande maioria das sinagogas foram destruídas e as mesquitas transformadas em igrejas. Depois, judeus e mouros que não tiveram a coragem de partir, cruzaram-se com os cristãos, fizeram-se “mais papistas que o papa”, “vestiram a pele do lobo”, ou o “hábito do monge”, ensinaram os filhos a ser hipócritas.

D. Manuel Primeiro, consciente talvez de que o sentimento da Pátria estava para sempre aniquilado, pediu ao Papa que reconhecesse no Arcanjo São Miguel o Anjo Portugal. É aqui que Portugal se transcendentaliza, o que leva o poeta Fernando Pessoa a chamar-lhe São Portugal e Agostinho da Silva a tê-lo por um dos nomes de Deus.

Eis pois que nunca houve pátria, mas pátrias. Eis que passa com D. Manuel Primeiro a haver Portugal.

No portal sul dos Jerónimos, o Arcanjo São Miguel está no alto de uma linha vertical representativa do eixo do mundo, tendo em baixo primeiro Santa Maria e depois o Infante. Há aqui a adesão ao Mistério essencial, o Mistério do Espírito Santo, que se revelará inteiramente aos homens através de um Imperador que é o Infante ou a Criança. Os católicos gostarão de verificar como em Fátima às três crianças apareceu Santa Maria, antes anunciada pelo Anjo Portugal, mas já nos Açores, onde estão as ilhas de São Miguel, de Santa Maria e a Terceira (também chamada do Menino Cristo) se celebrava o culto do Espírito Santo.

Claro que esta ideia de uma criança ser o Imperador do Mundo, de ser ela a soltar os presos e a distribuir o pão por todos, faz “encolher os ombros a políticos e a sociólogos e até a religiosos demasiado ciosos da sua fé política. É um sonho bom para ser sonhado por poetas como aconteceu ao Alberto Caeiro a quem uma criança, a Criança Divina, ensinou a pensar, sentir e viver.

Oremos! Quer dizer, reflictamos!

Todos nós nascemos não para sermos os homens que somos; o de que a criança é embrião é outra coisa, mas a “educação”, não só do Estado mas também essa, transforma esse embrião de poder e de conhecimento no pobre ser frágil do adulto, num ser poltrão, vaidoso, superficial, movendo-se pelas impressões exteriores como um mecanismo, completamente dependente dos outros. Pelo contrário, se a criança recebesse o ensino que convém, aquele que soubesse tornar adulta a sua essência, teríamos nela finalmente o ser que em si tem o seu princípio, de que o Infante é o mais alto símbolo.

É evidente que quando se fala no reino da Criança, não é da criança que se fala tal como a vêem os adultos, um ser imaginoso, criativo, ignorante ainda da realidade, que confunde a lua com uma fada (assim ao jeito dos contos de Afonso Lopes Vieira, ridicularizados por Pessoa, ou de Sophia de Mello Breyner, consagrados nas nossas selectas). A criança é o ser que cresce e o Infante é o ser que não fala. A criança é, porém, desviada no seu crescimento e ensinada a falar pelos adultos que nas palavras a que a habituam transmitem a sua “representação do mundo”. Um dos aspectos dessa representação está em não ver a criança como uma potência, mas como uma deficiência. Claro que a lua não é uma fada, nem a criança pensa que seja uma fada, tal como esta se representa na cabeça dos adultos. Mas que a lua é qualquer coisa que os adultos ignoram isso se o não sabe a criança, tem em si a virtualidade de o saber.

É possível que, por circunstâncias excepcionais, alguns tenham escapado ao destruir de todas as suas virtualidades de conhecimento e de poder. E que, num país sem pátria, mas com um “nome” encontrem o segredo de fazer o que não pode ser dito. Nem a todos pode já ser comunicado o Graal e o Galo que o detém no Porto de onde sempre se parte, até quando se perdeu já o gosto de “viajar”.

O Graal? O Galo? Mas porque é que o Infante não fala, tal como o nosso Pai Rosacruz dos sonetos de Fernando Pessoa?

Entretanto, reflectindo, oremos.                     

 

António Telmo


[1] Título da responsabilidade do editor.

 

CORRESPONDÊNCIA. 34

13-01-2017 23:26

CARTAS DE ANTÓNIO CARLOS CARVALHO PARA ANTÓNIO TELMO. 03

 

9/2/77

 

… de facto a epistolografia pode remediar em parte os males do afastamento entre nós. Desde que consigamos vencer a nossa preguiça natural e passar ao papel pelo menos um resumo daquilo que vamos pensando, desejando, sonhando…

Tenho já escrita e entregue a apresentação do seu livro[1]. Assim que tiver provas dessa parte, pelo menos, mando-lhas para dizer de sua justiça. Aproveitei a oportunidade para explicar um pouco melhor o que se pretende com a colecção “Janus” e salientei, a propósito do seu livro, o significado da História como símbolo e mito, conceitos tradicionais.

Logo que puder mande as fotografias.

Entretanto, soube-se que a ACER, representante espanhola dos livros de Evola, teria cedido os direitos da “Metafísica do Sexo” a nós e às Edições 70… Efectivamente, o editor Soares da Costa apareceu na Quadrante, distribuidora da edição Ribeiro de Mello, a protestar porque também ele tinha os direitos do livro… Esperamos agora resposta da ACER para esclarecer toda esta embrulhada…

Esperamos também que eles nos digam quanto valem os direitos de “O Mistério do Graal” para podermos avançar. O ideal seria que houvesse sempre dois livros na forja, um na tipografia e outro na linha de montagem.

Aguardo, igualmente, resposta da Gallimard cerca dos direitos de “A crise do mundo moderno” e de “O Esoterismo de Dante”. No caso de estarem livres seria possível contar consigo para traduzi-los? Pessoalmente, desagrada-me traduzir coisas – faltam-me a paciência e a resistência física para esse fim…

Já agora, que novas me dá do projecto do seu livro sobre “Os Lusíadas”?

A respeito de Gustav Meyrink, dele conheço apenas “A Noite de Walpurgis” e passagens de “O Golem”, o que é pouco. Mas percebi já que se trata de um autor importante pelo que diz e pelo que sugere. Além dos outros livros gostaria de ler uma biografia ou um estudo sobre ele. Conhece algum?

Quando vem cá outra vez?

Continuo à espera de notícias de Coimbra.

“The Man and the Nature” está na lista de espera[2].

Diga coisas – cada carta sua é um estímulo – dos poucos que ainda vou tendo.

Madalena recomenda-se e diz que o não esquece…

 

Um abraço 

           António Carlos Carvalho



[1] António Carlos Carvalho prefaciou a primeira edição da História Secreta de Portugal.

[2] Referência ao livro, com este título, de Seyyed Hossein Nasr.

 

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