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UNIVERSO TÉLMICO. 52
19-04-2017 12:00A explicação que nada explica e a Associação da furgoneta
Pedro Martins
Tardiamente, com jeito atrabiliário e modo tímido, a Direcção da AAS veio agora apresentar, na sua página oficial no facebook, uma explicação – que, na verdade, nada explica mas algo esclarece – com respeito à partilha e promoção do artigo de Paulo Trigo Pereira (PTP) naquela página oficial, os quais, artigo e promoção, manifestariam apenas a iniciativa e a posição pessoal de PTP, pois na Direcção da AAS existiriam perspectivas plurais sobre a referida biografia.
De tudo isto, que é poucochinho, retiram-se, essencialmente, duas conclusões:
1 - A Direcção da AAS foi desautorizada intelectualmente pelo Presidente do órgão representativo do plenário dos sócios, economista e político a quem ninguém reconhece qualquer autoridade intelectual (ter autoridade é ser autor) no tocante a Agostinho da Silva.
2 – Não obstante, a assim desautorizada Direcção franqueou a PTP a página oficial da AAS para que este, forçosamente em nome desta mesma Associação à míngua de uma ressalva, exprimisse um ponto de vista meramente pessoal, que precisamente a desautorizava e agravava um dedicado e generoso consócio.
Acompanha agora a Direcção da AAS esta sua tíbia explicação da publicação da resposta que em tempos foi dada por António Cândido Franco a António Araújo. Fá-lo, segundo proclama, em nome de uma «saudável pluralidade, conforme ao espírito de Agostinho».
Essa «saudável pluralidade» pode ser aferida pelos mais recentes processos eleitorais da AAS, conforme se verifica pelo seu boletim oficial, Folhas à Solta. A prática tem sido esta: 1) o Presidente da Assembleia Geral convoca formalmente eleições; 2) o dito boletim, escassos dias depois, ao mesmo tempo que publica e divulga a convocatória eleitoral, publica e divulga a «lista proposta» (2015) ou a «lista candidata» (2017), as quais, com ligeiríssimas nuances, replicam nominalmente a composição dos órgãos sociais cessantes. No acto eleitoral mais recente, a «lista candidata» para o biénio 2017-2018 foi anunciada urbi et orbi em 17 de Março, apenas três dias depois da data (14 de Março) aposta na convocatória pelo Presidente da Assembleia Geral, e ao mesmíssimo tempo em que esta era publicitada perante os sócios por via electrónica. Não terá previsto a Direcção da AAS a possibilidade de outros sócios pretenderem apresentar uma lista alternativa? E não terá previsto que, se isso sucedesse, a lista da Direcção cessante levava já uma considerável vantagem sobre a lista que eventualmente surgisse em segundo lugar?
Não quero, porém, nem por um momento, duvidar da saudável pluralidade da AAS. E, por isso mesmo, serei antes forçado a concluir que à AAS não lhe restam já sócios suficientes para a formação de uma segunda lista, que concorra em alternativa a um acto eleitoral interno. A menos que os Estatutos, que desconheço, consagrem nesta matéria a figura do plebiscito.
Já tivemos o partido do táxi. Lamentavelmente, teremos agora a Associação da furgoneta.
UNIVERSO TÉLMICO. 51
12-04-2017 00:00
Amor e maus-tratos, O estranhíssimo paradoxo
Risoleta C. Pinto Pedro
(A propósito de um artigo do senhor Paulo Trigo Pereira)
Dizem alguns psicólogos, no que ao relacionamento amoroso se refere, que ignorar o outro é uma das mais eficazes formas de maltratar.
Escreve o senhor Paulo Trigo Pereira um lamento sobre o estado em que se encontra a vida amorosa de Agostinho com o poder instituído em Portugal. Ou vice-versa... digo eu.
Pelo caminho faz referência a uma biografia que afirma «falhada».
Nem um nem outro assunto são novos.
O Projecto António Telmo. Vida e Obra (PAT.VO) e o Gabinete de Estudos Agostinho da Silva (GEAS) que não devem ser confundidos com a Associação que usa o nome de Agostinho e a que o senhor Paulo Trigo está ligado, lamentando, repito, o referido GEAS, mas de forma activa, não propriamente o estado em que se encontra o amor das instituições por Agostinho, mas o ocultamento em que se encontra a sua obra, o que inviabiliza dramaticamente a comunicação amorosa com todos aqueles para quem escreveu, tem levado a cabo uma série de iniciativas (publicações, colóquio, conferências… a continuar...) fazendo a parte que, institucionalmente não lhe cabendo, acaba por substituir-se a quem, institucionalmente lhe cabendo, não o faz. Quanto a isto, estamos conversados. Uns escrevem lamentos, outros operam, assim contribuindo todos para o equilíbrio no mundo. Agostinho teria achado perfeito.
Quanto à tal «falhada» biografia de Agostinho, como por enquanto só existe uma, apenas poderia o senhor Paulo Trigo estar a referir-se ao magnífico e belíssimo trabalho de António Cândido Franco, O Estranhíssimo Colosso. Aqui temos um paradoxo.
Sabemos que o livro tem setecentas e tal páginas, apesar de tudo recomendamos a sua leitura. Não por ser um livro perfeito (haverá algum?), mas para cada um poder avaliar por si, sem ficar sujeito àquilo que os outros decidem dizer. Agostinho teria gostado igualmente disto. Também por ser um interessante modo de actualizar criativamente o cânone de Agostinho no que se refere às biografias. Com um sorriso ora irónico, ora triste, mas sempre amoroso, apaixonado pelos factos e pela humanidade e grandiosidade do seu biografado, assim escreve António Cândido Franco, tal como Agostinho escreveu as suas biografias. No caso do seu biógrafo, em versão macro, como não poderia deixar de ser, por se tratar de um Colosso. O livro é grandinho e não alberga banalidades. Não alimenta vícios.
É um livro colossal em todas as suas dimensões.
Tal como escrevi na altura, quando fiz a recensão do livro de António Cândido, recensão posteriormente publicada no meu livro A Literatura de Agostinho da Silva, essa alegre inquietação (publicado pela Zéfiro, na colecção Nova águia, em 2016 e lançado durante o Colóquio do GEAS dedicado à sua literatura, o terceiro livro de uma série recente dedicada ao nosso escritor filósofo):
«Um estilo pessoalíssimo, um ‘dolce stil novo’ que, se não se inspira, é certamente inspirado pelo biografado na sua faceta de biógrafo.
Vejamos:
‘Sem pudor, que era escusado, pegava de conversa com o seu escolhido e ia com ele de passeio, a céu aberto, […] de modo que o leitor pudesse seguir a sua presença. Dito doutro modo: a biografia era o modo de dizer que Montaigne estava vivo e respirava.’
Refere-se este trecho a Agostinho biógrafo. Mas se experimentarmos substituir os tempos verbais pelo presente e ‘Montaigne’ por ‘Agostinho’ não há aqui nada que não se ajuste ao biógrafo António Cândido. Na biografia, Agostinho está vivo e respira, neste passeio a céu aberto com António Cândido.
E aqui temos o que poderíamos designar como uma Arte Poética aplicada à biografia, de que ambos comungam. Fazer biografia é restituir o sujeito à vida, para o leitor. Um trabalho… colossal! E, provou-se … possível!»
Mais à frente:
«Um biógrafo apaixonado pelo biografado (não seria possível escrever uma biografia assim sem essa condição…): ‘O meu doido’, de onde extravasa todo o amor, ternura e admiração que cabem num coração.
Agostinho, lendo esta biografia, teria posto de lado a admiração, como a carne que não comia, mas não teria sido insensível ao amor, ele que toda a vida o respirou e recriou. Nem ao humor. Acima de tudo ter-se-ia divertido com a sua própria imagem, com o riso refletido dela, ele que nunca se levou demasiado a sério.»
Escrevi também:
«Não consigo imaginar alguém lendo este livro a espernear. Embora já tenha havido quem o fizesse. Deve ser um enorme sofrimento. Como se nos pusessem à frente a melhor e mais divina das iguarias, mas por razões obscuras não pudéssemos mostrar o nosso prazer e fôssemos obrigados a deliciar-nos, mas ao mesmo tempo fazendo caretas e contorcendo-nos obscenamente de agonia a fingir que não gostamos. Deve ser doloroso. Mas é possível, porque já aconteceu. Mistérios. Ou talvez não.
Não vou esmiuçar, o ambiente está perfumado de Agostinho e seu biógrafo, não quero estragá-lo, mas quem tiver curiosidade sobre a explicação para um ou outro feroz ataque com que o livro foi recebido, explicações não faltam. Bastariam [certas] páginas [...] para, numa certa óptica, ajudar a compreender acicate tão cerrado a esta biografia. Que aliás, não é ela, a biografia, que incomoda, mas flashes de biografias outras que, em nome da verdade, aqui aparecem. Como diria o Garrett das Viagens¸ ele poderia descrever a estalagem desta ou daquela maneira, ao gosto da época, dos leitores, dos críticos, o problema é que nada disso lá estava…»
Para se escrever e falar sobre a obra de Agostinho não chega ter-lhe apertado a mão. Para se escrever sobre o livro de António Cândido Franco não é suficiente ter-lhe folheado as páginas.
É preciso ler um e outro. Ler leva tempo, é certo. São escolhas que se fazem.
Quanto a Agostinho, há que divulgá-lo. Por isso alertei também, noutra parte do referido livro, para a moda das citações a que se vem resumindo, tão injustamente, a divulgação do seu pensamento e da sua obra:
«deste culto superficial das citações mastigadas, digeridas, cheias da moleza do prêt-à-porter, de um Espírito Santo liofilizado de pacotilha que não celebra a santidade do Espírito na santidade do corpo, de meia dúzia de expressões memorizadas e mecanicamente expandidas até à auto-extinção pela fuga da alma.
Tenhamos a esperança, que ele nos deixa, de que este veneno da simplificação, este macaqueio obsceno a que corajosamente se expôs, não nos faça mal e não o mate. Na vida, como na morte.»
Um dos venenos foram as referidas entrevistas televisivas, de que viria a arrepender-se. Compreende-se.
"Há um outro Agostinho da Silva", afirma o senhor Paulo Trigo.
De acordo. Só que neste momento está escondido nas bibliotecas particulares e alfarrabistas.
"E há outras leituras", acrescenta o senhor Paulo Trigo.
Pois há. Mas para isso precisamos dos livros. Que estão esgotados há anos, que não são reeditados. E os manuscritos, tantos deles transcritos em labor, esse sim, de amor, por que razão não podem ser publicados, divulgados? Talvez o senhor, pela sua ligação à Associação, possa esclarecer-nos. Quer?
Este é o verdadeiro paradoxo actual de Agostinho. Venham os livros. O amor virá naturalmente, por atracção. Com ou sem "inteligentzia nacional", com ou sem "instituições públicas". Uma designação muito vaga que mais oculta do que revela. O que se compreende. Quem quiser pensar um pouco. Atravessando superficialidades e paradoxos.
11-04-2017
UNIVERSO TÉLMICO. 50
11-04-2017 21:24A estranhíssima Associação: Reflexão à margem de um artigo do deputado Paulo Trigo Pereira
Pedro Martins
Em tom lamentoso, o senhor deputado à Assembleia da República, Dr. Paulo Trigo Pereira, que, por acaso, é também o Presidente da Assembleia Geral da Associação Agostinho da Silva, vem, em artigo publicado hoje no Observador, interrogar-se como é possível que Agostinho esteja actualmente tão mal tratado em Portugal, pelo poder instituído e instalado. Cito a parte final do seu texto:
«5. O paradoxo de Agostinho hoje, é que ele é simultaneamente amado e mal-tratado. Amado e querido por muitos dos que o leram, que viram as suas entrevistas televisivas, que privaram com ele e foram amigos dele. Mal-tratado, quer por parte de certa “inteligentzia nacional” (a que já estamos habituados), mas sobretudo pelas instituições públicas. A entrada sobre Agostinho da Silva no “Camões – Instituto da Cooperação e da Língua” é desequilibrada (há apenas um lado de Agostinho na mente do autor). Não tem as referências bibliográficas de Agostinho, nem as obras de referência sobre ele que têm vindo a sereditadas sobretudo pela Associação Agostinho da Silva (AAS). O espólio, sobretudo literário, de Agostinho está ainda em condições precárias de sustentabilidade física futura. Deveria ser assumido com a brevidade possível pela Biblioteca Nacional em condições de acessibilidade para estudiosos e interessados. Ainda há pouco tempo, o Museu de Marinha retirou, sem nenhuma informação para herdeiros ou a AAS, um pequeno mas nobre memorial a Agostinho com parte do seu espólio. Não existe, que eu saiba, nenhuma instituição pública (nacional, regional ou municipal) onde seja possível tomar contacto com a vastidão da vida e obra deste personagem maior da cultura portuguesa. Urge cuidar do seu património, em Portugal e no Brasil. Saibamos nós, seus familiares amigos ou admiradores, ajudar a corrigir estas injustiças.»
Não posso deixar de estranhar as afirmações do senhor deputado. Quais são «as obras de referência sobre ele [Agostinho] que têm vindo a ser editadas sobretudo pela Associação Agostinho da Silva (AAS)» a que se refere? Aqui exorto o senhor deputado a apresentar um título de bibliografia passiva agostiniana que na última década tenha saído a lume com a chancela da AAS, ou com o apoio desta.
Há, é certo, a biografia de Agostinho da Silva que António Cândido Franco publicou em 2015, com algum apoio da AAS, que sobretudo se mostrou muito empenhada em promover sessões públicas de lançamento da obra, mas a essa mesma biografia considera-a o senhor deputado «uma larga “biografia falhada” (de não recomendável leitura)». Tendo em conta o cargo que o senhor deputado vem mantendo nos órgãos sociais da AAS, e que já em 2015, quando O Estranhíssimo Colosso – Uma Biografia de Agostinho da Silva saiu a lume, detinha, e tendo ainda em conta que António Cândido Franco será, ao que sabemos, dedicado sócio daquela associação, não se poderá deixar de estranhar a oportunidade e a adequação desta afirmação. Mas quanto ao funcionamento institucional da dita associação, do qual, de resto, talvez o senhor deputado esteja longe de estar inteiramente ciente, já nada verdadeiramente poderá surpreender.
Já agora, poderá o senhor deputado explicar por que não há vislumbre de actas do colóquio agostiniano que em Fevereiro de 2016 se realizou na Faculdade de Letras de Lisboa com o apoio da AAS? Por que não se disponibilizam, pelo menos, os vídeos desse colóquio, que teve emissão em live streaming?
Quem ler o escrito de senhor deputado Paulo Trigo Pereira, pode ser levado a pensar que continuamos hoje a assistir a um pujante, ou pelo menos efectivo, movimento editorial tendo por objecto a obra agostiniana. Não é assim. A verdade é que há onze – onze!!! – anos não é publicado, seja a que título for, mormente no âmbito da actividade da AAS, qualquer livro de Agostinho da Silva, com excepção das Cartas de Agostinho da Silva para António Telmo e de Agostinho da Silva – A Última Entrevista de Imprensa, ambos com os selos do Projecto António Telmo. Vida e Obra e do GEAS – Gabinete de Estudos Agostinho da Silva. Conhece, senhor deputado?
O assunto é deveras misterioso, tendo em conta a legião de admiradores que Agostinho concita, mas não parece que se tenha alguma vez cruzado com a curiosidade do senhor deputado.
Já que o senhor deputado fala no espólio do filósofo, será capaz de nos explicar por que não vêm a lume quaisquer inéditos de Agostinho? Por que parou, de todo, o trabalho de investigação que sobre esse espólio vinha sendo feito no seio da AAS até há alguns anos? E estará realmente o senhor deputado em condições de explicar o que na verdade se passa com o espólio de Agostinho? Sabendo-se que, há dois anos, a Assembleia Geral da AAS decidiu entregá-lo à BNP, conviria que o senhor deputado esclarecesse quem está em falta: se a AAS, se a BNP. E porquê. Os cidadãos agradeceriam.
Diz o senhor deputado que os poderes públicos não querem saber de Agostinho. Quem cedeu à AAS a sua actual sede, numa zona histórica e central de Lisboa? Uma autarquia local. O protocolo, esse, é do conhecimento público. Estranho é que, nestas condições, seja uma outra autarquia, noutro distrito, a dezenas de quilómetros de distância, a principal destinatária da escassa actividade pública que a AAS ainda desenvolve.
Louvavelmente, o senhor deputado pôs a fasquia muito alta, como Agostinho aliás merece. Erigiu-o à condição de problema nacional. Talvez devesse, por isso, começar por olhar para a sua própria casa – aquela que tem Agostinho por patrono – e explicar ao país o que por esta tem, ou não, sido feito em prol da posteridade agostiniana. Estou em crer que isso conferiria legitimidade acrescida às suas reivindicações. Receio, todavia, que lhe seja difícil explicar a decadência. Aí, porém, importará lembrar que foi o senhor deputado que começou esta conversa.
DOS LIVROS. 57
09-04-2017 12:35Da Introdução a Autobiografia e Sobrenatural em Luís de Camões
«Os Portugueses somos do Ocidente.
Imos buscando as terras do Oriente.»
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, 50, 7-8
3
Já o disse uma vez e volto a dizê-lo para que eu próprio me ouça e não me deixe estar adormecido: se desaparecesse a Lua do Céu e o mundo continuasse a correr pelo mês adiante, muito poucos dariam por isso, sobretudo entre os habitantes das cidades. Por igual razão, (que o leitor não necessita, espero-o, que lhe digam qual) o Oriente e o Ocidente, o Norte e o Sul, enquanto pontos cardeais, são apenas meros pontos de referência quando se vai por exemplo de viagem até ao Porto, não ao Porto Oculto de Sampaio Bruno; deixaram de ser sentidos como forças viventes ou como grandes significados, coisa que a língua não esquece ao conotar direcção e sentido, sentido e significação. Mas esquecemo-nos nós, apesar de sabermos como os selvagens e por instinto qual é a nossa mão esquerda e qual é a nossa mão direita. Dizer que o mundo, com sua terra, seu céu e suas estrelas e no meio sua atmosfera, pode obedecer a uma ideia que seja como aquele instinto, tendo de si uma percepção análoga à que temos do nosso próprio corpo com esquerda e direita, costas e rosto, significará mais do que uma simples metáfora poética. O citadino ignorante de que há uma lua no céu, com que a natureza julgou talvez poder dispensar a electricidade, verá nessa metáfora um falso raciocínio próprio da fase mitológica da humanidade, pois para ele, na verdade, as direcções do espaço são apenas o resultado de uma construção mental imaginária, cómoda para o indivíduo, que, onde quer que se encontre, ocupa idealmente o centro do Universo. Por isso mesmo, podemos prescindir desses pontos de referência, se os substituirmos por outros ou por nenhuns no grande mar tumultuoso das cidades.
António Telmo
(Publicado em A Aventura Maçónica - Viagens à Volta de um Tapete, 2011)
DOS LIVROS. 56
01-04-2017 14:47Da Introdução a Autobiografia e Sobrenatural em Luís de Camões
«Os Portugueses somos do Ocidente.
Imos buscando as terras do Oriente.»
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, 50, 7-8
2
A ilha é como um ponto na imensidade do Oceano.
Para lá ou para cá da identidade da Ilha dos Amores, imaginada por Camões, com a paisagem de Xvarnah, imaginada pelos persas, não é difícil, sem deixar de ser surpreendente como algo que nos colhe do íntimo, observar que os três outeiros que se levantam na Ilha, a corrente que desce do alto e o lago onde vogam os cisnes estão de acordo com outra, análoga, forma de imaginar, esta hebraica, que é a da árvore das sephiras. As três colunas correspondendo aos três outeiros; o lago aparecendo como Malcuth onde se recebem e guardam as energias sagradas que vêm do alto.
António Telmo
(Publicado em A Aventura Maçónica - Viagens à Volta de um Tapete, 2011)
CORRESPONDÊNCIA. 41
21-03-2017 09:28ANTÓNIO QUADROS, 24 ANOS DEPOIS
Comemora-se hoje o vigésimo quarto aniversário da partida de António Quadros, inseparável amigo e condiscípulo de António Telmo no magistério filosofal de Álvaro Ribeiro e José Marinho. Assinalamos a efeméride com a publicação de uma carta do autor de Portugal, Razão e Mistério para Telmo, motivada pela leitura, então muito recente, da História Secreta de Portugal, o célebre livro télmico que no ano em curso completa quarenta anos de publicação.
22.6.77
Meu caro António Telmo:
Como deve calcular, li o seu livro com entusiasmo. É uma obra antes de mais nada corajosa, susceptível de abrir perspectivas a muitas pessoas que de nada “suspeitavam”. Você foi, como costuma dizer-se, para a cabeça do touro, abordando de frente e coerentemente, toda uma problemática oculta, mas sem a consideração da qual é de facto impossível começar a compreender satisfatoriamente a nossa história.
A sua maior vantagem é aliar conhecimentos esotéricos a uma reflexão filosófica sempre de qualidade, quer na fundamentação, quer no raciocínio.
Há no seu livro intuições e análises magníficas, em especial as questões relacionadas com as ordens do Templo e de Cristo, com os Jerónimos, Boitaca – sendo de realçar a sua “descoberta” da referência simbólica, nos Jerónimos, à iniciação de Nicolau Coelho, bem como a conotação estabelecida com Camões.
Ficamos a dever-lhe, pois, algumas contribuições essenciais para o conhecimento do Portugal profundo e do projecto ou dos projectos que assumiu, viabilizou e acabou por frustrar.
Pessoalmente, o seu livro suscitou-me interrogações e até o que diria serem objecções, não fosse admitir, por um lado a superficialidade da minha 1.ª leitura, e por outro lado, o escopo das suas intenções (não-histórico).
Por exemplo: a sua “História…” parece-me demasiadamente limitada no tempo; e antes do século 16? e antes da Ordem de Cristo? E antes da fundação da nacionalidade? É que há talvez (decerto) história secreta, com a civilização dolménica, com Tartessos e Creta, com os lusitanos, celtas e visigodos (os godos sábios), com a aliança dos príncipes borgonheses com a Ordem de Cister e a do Templo (S. Bernardo, confrarias de pedreiros, etc.)…
Parece-me que você também silencia em excesso as questões do Culto do Espírito Santo, dos “espirituais”, de Joaquim de Flora e dos Franciscanos portugueses, de D. Dinis e D. Isabel de Aragão, da transformação do Templo na de Cristo – e em especial nos problemas de interpretação iconográfica dos símbolos de Tomar; a Teodomar dos visigodos é um centro marcado e note a importância do triângulo Tomar – Santarém – Batalha / Alcobaça, dentro do qual se situa Fátima.
A sua divisão da história portuguesa em ciclo dos Reis, do Clero e do Povo – que é sem dúvida muito fecunda, ganharia a meu ver (até sob os pontos de vista que você defende) em ser enriquecida com um outro ciclo – Templários / Ordem de Cristo, qualitativamente diferente dos restantes; seria balizado por D. Dinis e D. Manuel, tendo como coordenadas principais o templarismo e o paracletismo. Antes 4, pois, do que 3 ciclos.
Não sei se concorde com a sua data-limite de 1513, para além da qual o projecto manuelino teria mudado de rumo; algumas das referências em que você se baseia não me parecem muito sólidas: assim, por exemplo, o Convento e Igreja de Belém foi doado aos Frades Jerónimos antes do início da construção – e é muito curioso observar que, em troca, o Rei ofereceu à Ordem de Cristo um edifício de Lisboa que tinha antigamente pertencido aos Templários… Por outro lado as razões para retirar Boitaca dos Jerónimos não têm a meu ver relação com qualquer decisão de tipo secreto, já que ele continuou a trabalhar no mesmo sentido noutros lugares. E… tem você a certeza de que as Capelas Imperfeitas foram interrompidas antes da morte de D. Manuel? Tenho de estudar o assunto, mas julgo que foi na verdade a morte do Rei que as interrompeu.
A sua indicação sobre o papel secreto de Boitaca, como um iniciado, parece-me no entanto uma descoberta importantíssima. O enigma da sua nacionalidade ainda se mantém; mas, sendo o iniciador da arquitectura manuelina, com a Igreja de Jesus em Setúbal, pode ter sido o pontífice de dois caminhos: o do passado cisterciense-templário, e o do novo mundo português-imperial e templário renovado. O seu estudo ficaria mais completo se você tivesse podido descobrir alguma coisa sobre Diogo de Arruda, a quem, afinal de contas, foi confiada arquitectura não menos importante do que a de Belém: a transformação da Charola de Tomar, a sua abertura para a nova Casa do Capítulo, e as famosas Janelas.
Agradeço a referência à “Estética Existencial”; no entanto, retomo o assunto de um ângulo mais profundo em “O Movimento do Homem”, apontando os Jerónimos como o novo Templo de Salomão, o Templo Universal, situado em Belém, sob a estrada ou a estrela condutora desta vez para o Ocidente e tendo como orago os Magos.
Outro ponto que seria fecundo considerar, seriam as relações, até arquitectónicas, entre o Manuelino do sec. 16 e o nosso Barroco dos séculos 17 e 18, pois há tão fundas relações entre eles, como há entre o sebastianismo projectual de Camões e o sebastianismo mitológico de A. Vieira.
Temo estar a ser insuportavelmente pedante, mas espero que não me leve a mal. É que o seu livro avivou uma das minhas preocupações mais constantes e antigas, fazendo emergir um tropel de ideias e reflexões. Vou relê-lo com redobrada atenção e talvez descubra que tem uma unidade não compatível com as minhas divagações!
Também li e apreciei, os seus artigos em “Escola Formal”.
Até qualquer dia,
Seu velho amigo,
António Quadros
DOS LIVROS. 55
19-03-2017 18:28Da Introdução a Autobiografia e Sobrenatural em Luís de Camões
«Os Portugueses somos do Ocidente.
Imos buscando as terras do Oriente.»
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, 50, 7-8
1
A palavra ar é a palavra aur (luz, em hebraico) sem a semivogal u, relação esta entre as duas palavras que podemos fundar na intimidade que há entre a propagação da luz e a atmosfera. É certo que se pode objectar que ar é uma palavra latina e aur uma palavra hebraica, o que tornará ilícito, do ponto de vista linguístico, a relação que proponho. Sê-lo-á do ponto de vista linguístico, mas então é preciso explicar como é que a mesma raiz hebraica aur se encontra noutras palavras latinas relativas a luz, como aurum (“ouro”) e aurora ou auréola.
Por outro lado, observe-se como, em combinação com a ideia de luz, há uma imediata relação com o som. É Henry Corbin quem chama a atenção para a conotação de aurora com aures (e digamos nós, com “auriculares”), que, como sabemos, significa ouvidos. A atmosfera não é só o meio de propagação da luz; é, ao mesmo tempo, o meio de propagação do som. E o que é espantoso é que a palavra grega atmosfera significa — em consonância com o sânscrito em que atmos é o nome para o espírito — a esfera do ar ou do sopro. Parece que há uma língua primordial presente, na forma de inúmeros vestígios, nas diversas línguas e é isso que funda as relações que se vêm mostrando.
Sem o ar não haveria respiração e, portanto, vida; não haveria também audição nem visão e nem sequer a possibilidade de cheirar. A palavra aroma tem a mesma raiz ar. E, no domínio do tacto e do paladar, o amor nos ensina que não há verdadeira relação sem a recíproca conversão pelo homem e pela mulher do sopro vital, o que é bem evidente na união pelo beijo.
Considerando a relação dos elementos com os pontos cardeais, temos, pela mesma relação linguística, que referir ar a oriente. É sabendo onde está o oriente que nos orientamos. Há, porém, um oriente que não é o espacial. Não se oferece ao sentido da vista. É qualquer coisa de íntimo, mais ligado com o ouvido do que com qualquer outro sentido. Por essa sensação íntima, temos esquerda e direita, rosto e occiput. Todo o nosso equilíbrio físico depende do ouvido. Sabe-o a medicina. A tradição sófica hindu ensina que o ar, sem o qual não há vibração sonora, é o que produz a determinação das direcções. É o que está bem manifesto na designação do símbolo sintético das direcções espaciais: a Rosa dos Ventos.
Os ventos vêm e vão. Vêm das regiões marcadas por oito pontos no horizonte. O símbolo da Rosa inverte essa perspectiva. As direcções dos ventos têm a sua origem no ponto central donde irradiam para todas as partes do Universo. Esse ponto é que é a verdadeira origem ou o verdadeiro Oriente dos ventos ou das oito energias que compõem o mundo subtil. Ele mesmo é que determina todas as direcções, ele mesmo é que situa, sendo o insituado, como o Espírito (Sopro) Santo para com as almas no ensino de São João.
António Telmo
(Publicado em A Aventura Maçónica - Viagens à Volta de um Tapete, 2011)
DOS LIVROS. 54
15-03-2017 09:35
Explicação
Vinte anos depois, venho retomar a História Secreta de Portugal no ponto em que a deixei. Do horóscopo que fez Fernando Pessoa apenas uma data, o ano de 1978, foi motivo de incertos vaticínios, mentidos ou desmentidos, depois, pelos acontecimentos. Esperei em vão que outros, mais versados em astrologia do que eu, fizessem o que não fiz então: ler toda a sina do nosso país nas linhas traçadas pelo vate.
Em vinte anos, passou-se muita coisa. Estamos, hoje, em posição de ver melhor, estudando a história do futuro pela história do presente e a história do presente pela história do passado. O horóscopo de Portugal é um documento impressionante. Tudo está aí, assim haja quem o veja.
Juntei a esta republicação das minhas ideias sobre a história de Portugal umas cinquenta páginas de aprofundamento. Elas constituem um novo livro, em modo sintético. Sendo esse livro, como é, a apresentação de um destino, deixará certamente perplexo o leitor para quem, por ventura, a história seja o domínio do imprevisível. No pensar de Fernando Pessoa há, como se verá, um primeiro, um segundo e um terceiro Portugal. Sabemos só, pelo horóscopo, que haverá, em tempo marcado, um quarto e um quinto que serão, em planos sucessivos, a manifestação gloriosa da alma portuguesa depois da viagem milenária pelo céu e pelo inferno da sua história. Imprevisível de todo é a forma dessa manifestação, mas sem a consciência do que fomos e do que somos não estaremos presentes no que quer que seja que viermos a ser.
O horóscopo trouxe-nos de novo ao Templo, em Belém, da Senhora dos Reis Magos. Continuo a pensar, vinte anos depois, que não foi em vão que os Boitacas deixaram escrita na pedra a transcendente mensagem. Não tem sentido pensar que edificaram o Templo para gozo dos turistas e dos historiadores de arte antiga ou para lugar de solenidades públicas de efémera repercussão. Quem morreu não foi Deus, como pensou o alemão ateu, quem morreu foram os monges e o que foi criado para lugar de oração é, mesmo sem monges e invadido por uma multidão informe ou por políticos sem Pátria, uma oração de pedra, que a excede infinitamente.
Valete Fratres
António Telmo
(Publicado em O Horóscopo de Portugal, 1997)
CORRESPONDÊNCIA. 40
15-03-2017 09:26Publicamos hoje uma carta de António Telmo para Risoleta C. Pinto Pedro, escrita nas semanas que antecederam a apresentação, pelo filósofo, do livro Venite In Silentio, da autoria da escritora, no Convento de São Paulo, na Serra d’Ossa, no Outono de 2004.
Carta de António Telmo para Risoleta C. Pinto Pedro, de 24 de Agosto de 2004
Estremoz
24 de Agosto
de 2004
Estimada Amiga
Demorei alguns dias a responder, porque tencionava ler o livro antes de o fazer. Deixei a leitura para mais tarde, na semana anterior ao lançamento, até porque assim vou estar na Serra d’Ossa junto a vocês e dentro da nova atmosfera espiritual que é a que me há de, estou certo, trazer o livro.
Acho muito bem o lugar e o dia, 1 de Outubro. Diga-me então a hora, quando estiver certa dela. Fico à espera.
Um abraço do
António Telmo
P. S. Afinal comecei a ler o livro. Estou encantado.
UNIVERSO TÉLMICO. 49
07-03-2017 15:33
Agostinho e o triunfo da entrevista
Risoleta C. Pinto Pedro
Este livro é um pequeno grande objecto de recordação, uma pedra de desagravamento, que não corrigindo nem substituindo o que deveria estar a acontecer, isto é: a edição e reedição da obra de Agostinho da Silva, como Renato Epifânio muito bem alerta no seu importante e sintético prefácio, importante pela frontalidade, contudo ajuda a tirar da sombra esta paralisação, e contribui para um apesar de tudo impossível consolo pela situação lamentável em que se encontra a monumental obra...
O livro lê-se com muito agrado, como todos os textos de Agostinho, e para além da entrevista propriamente dita, os textos complementares (prefácio, nota editorial e posfácio) também são de assinalar. É, por diversas razões, um livro histórico. Porque retoma uma entrevista histórica, a última dada à imprensa, em 93, ao Jornal Raio de Luz de Sesimbra, na pessoa de três entrevistadores: José Pedro Xavier, na altura director do jornal, e dois então jovens jornalistas: António Ladeira, actualmente poeta e professor de literatura nos EU; e Pedro Martins, escritor na área da reflexão filosófica, criador e coordenador do PAT.VO e do GEAS. A acrescentar a essa anterior razão, o livro apresenta informação importante que a peça jornalística, naturalmente, omitia, para além de integrar uma série de publicações da colecção Nova Águia, da editora Zéfiro, série com evidentes sinais de tendência para crescer.
Esta entrevista, na sua versão original, gravada, permaneceu entre 1993 e 2014 em hibernação nas cassetes que viajaram com António Ladeira para o seu êxodo no Texas e lá repousou arquivadamente todos estes anos, até ao momento que os astros desenharam para o seu desocultamento. Nelas, os dois jornalistas de então, Pedro Martins e António Ladeira, aos quais se juntou Rui Lopo na preciosa tarefa de transcrição, aperceberam-se que uma grande percentagem do material gravado não fora publicada. Assim nasceu o segundo livro gerado no seio do GEAS, acarinhado pelo mesmo jornal Raio de Luz e seu actual director António Marques, que em breve texto chama a atenção para a forte ligação de Agostinho da Silva a Sesimbra.
Na nota editorial, Pedro Martins, António Ladeira e Rui Lopo evocam o título da entrevista original que é uma citação de Agostinho: «A Península Ibérica deveria ser guia do mundo». Isto recorda-me uma conversa recente com um amigo de Marselha com quem Agostinho teria gostado de conversar. Dizia-me ele que estava a pensar vir viver para Portugal e aqui fazer durar a sua vida até ser chamado para o Eterno, por aqui ser ainda o único país onde é possível ser patriota e nacionalista sem se ser nazi ou de extrema direita.
Este título, esta primeira publicação em jornal, é a primeira etapa de um percurso que viria a revelar-se muito mais longo do que os intervenientes de 93 teriam imaginado. Numa segunda fase, a entrevista saltou do jornal e voltaria a ser publicada na terceira parte do livro Agostinho da Silva em Sesimbra, de Pedro Martins e António Reis Marques, em 2014. Mas Agostinho foi um cruzador dos mares e dos ares, e a viagem da entrevista não terminaria aqui. Voaria do Texas novamente para Lisboa, o Atlântico estava-lhe na vocação. Mostraria, na chegada, que quatro quintos do que fora gravado permanecia inédito. É a terceira etapa, a descoberta. Ou redescoberta. Culminando num quarto passo: a publicação autónoma em livro. Acrescentado o prefácio de António Cândido Franco e o posfácio de João Ferreira. Diferentes latitudes, diferentes gerações, a mesma amizade pela personalidade, a mesma admiração pelo carácter, o mesmo respeito pela obra.
É, assim, um livro que alia a didáctica dos estudos à evocação da figura, a fluência da conversa e a sedução do pensamento.
Na sua reflexão, António Cândido chama a atenção para um muito significativo acréscimo de dramatização do texto publicado em 93 para o livro. O que é natural, dada a extensão significativa de texto acrescentado.
Acentua também, e isto é muito importante, relativamente à literariedade da escrita de Agostinho, a sua habilidade e domínio de vários registos, entre o oral e o escrito, não se limitando a um estilo.
Assinala igualmente a importância que o género entrevista foi progressivamente adquirindo na expressão de Agostinho, possibilitando a este conversador, com o passar dos anos, manter o ritmo de comunicação com as pessoas.
A entrevista permite-lhe, parece-me, acentuar, pela oralidade, uma já característica do seu estilo de escrita que é a coloquialidade e a vivacidade. Não surpreende pois, que num conversador por excelência, a entrevista floresça.
Faz lembrar a importância de algumas entrevistas do seu amigo e compadre António Telmo, mas no caso deste por razões de conteúdo, não de frequência ou estilo.
Em Agostinho são tantas que, como diz António Cândido, «chegam bem para criar […] um compartimento próprio» onde alterna a narração com o discurso directo, formando «quadros poéticos vivos, embutidos em conversas».
Discurso directo que frequentemente não constitui uma resposta ao entrevistador, pois a partir das perguntas, o que muitas vezes faz é discorrer, com constantes digressões, voltando sempre a apanhar o fio. O discurso directo é o diálogo que reproduz/cria/inventa, daqueles de quem fala, ou entre eles. Antecedido e seguido do discurso do narrador, como é o caso, a propósito de a Espanha se ter apropriado da designação que partilhávamos como habitantes da península, o protesto de D. João II:
«D. João II protestou. Disse: Espanha não é um país. Espanha é a Península. Nós, portugueses, somos “portugueses da Espanha”. Que ideia é essa de vocês arrebatarem o nome e ficarem sozinhos com ele? Larguem o nome! Eles nunca largaram o nome.»
O início ainda é antecedido pela marca do narrador «disse» seguido de dois pontos, mas a passagem do final do discurso de D. João II para o do narrador é feita de modo imediato, quase abrupto. O «colosso» no seu melhor.
Na alternância entre as perguntas e as respostas, o que ressalta é, ainda que respeitoso do lado dos entrevistadores e coloquial do lado do entrevistado, um tom de companheirismo, demonstrando sintonia que não é propriamente concordância, mas que surge da empatia. Igualmente passa, pelas entrelinhas das perguntas, uma boa preparação; um conhecimento implícito e não superficial dos temas, o que é de salientar; uma prontidão na articulação entre a resposta e a pergunta seguinte.
Mas também é divertido ver a forma habilidosa como, por vezes, o entrevistado se desvia da pergunta, caso a questão não lhe interesse ou desencadeie algum outro tema sobre que considere mais apaixonante discorrer. É o caso da pergunta acerca da Universidade enquanto elite intelectual, que quase ignora, para falar de tema mais da sua preferência, como o estudo das tartarugas.
O que é encantador nele e cativa e conquista o mais duro e sério racionalista é a candura, a inocência, o atrevimento com que profere heresias, a ponto de desarmar qualquer um, abrindo brechas no pensamento dito normal, lógico ou comumente aceite.
Um dos seus temas de eleição é o divino, embora não o trate a partir de nenhuma religião em particular, mesmo quando manifesta simpatia por uma ou por outra, como é o caso do cristianismo, mas o pensamento de Deus é desenvolvido frequentemente a partir do pensamento de Portugal, que vê na sua dimensão eterna, para lá do espaço que ocupa:
«Porque eu digo, podia ser que Portugal, numa catástrofe geológica qualquer, ou antropológica, sumisse. O que não sumia era esse pensamento. O que não sumia era o pensamento defendido por eles na vida da plenitude do Divino, a plenitude de Deus».
Fala de tudo: desde as tartarugas, a temas de um altíssimo grau de complexidade, e o tom é didáctico. Acima de tudo, é um professor a explicar coisas complexas de modo natural, porque profundamente interiorizadas. Nunca se preocupa em, e até evita, passar por erudito. Assim como não distingue temas através da gala ou da sumptuosidade da palavra. A sumptuosidade é mais criada pela vivacidade e por vezes quase gongorismo das imagens. Também não distingue personagens pelo seu estatuto, nem mesmo pelo grau de admiração que por elas nutra. A familiaridade é o modo com que trata todos, mortos ou vivos, socialmente desvalorizados ou o contrário. É o caso da mais que insuspeitamente admirada rainha Santa Isabel, que trata por «Isabelinha». É a ternura. Mas também a fraternidade. Todos os homens são irmãos e não há nenhuns acima dos outros. Aprendamos com ele.
Apesar das frequentes alusões do seu discurso ao divino, o foco é, sempre, a vida. A sua inspiração são os portugueses do passado, os portugueses das aventuras, os portugueses da História, os portugueses de sempre, com destaque para os das viagens das descobertas, cujas palavras inventa, ou melhor, cita como se estivesse em comunicação directa com eles e os ouvisse dizer: «Não basta viver no divino. É preciso também viver no concreto, no real, naquilo de todos os dias», rematando com a sua já retórica interrogação que não pressupõe uma negativa: «não é?». Porque o argumento vem de autoridades, que são «os portugueses».
A entrevista, propriamente dita, inicia-se com um tema muito caro a Agostinho da Silva: a missão de Portugal no Mundo. Mas não é com pompa que trata tão pomposo tema. São expressões coloquiais e metáforas do quotidiano que este pedagogo usa para falar de temas considerados importantes. É o caso da expressão varrer a casa, a propósito da União Europeia. Fica tudo dito e os pontos colocados sobre os ii, sobre quem varre e sobre o estado da casa a necessitar de grande varridela. Ou limpeza. Para bom entendedor…
E sempre presente a lembrança da poesia, que para ele não se limita canonicamente aos textos poéticos, mas é muito mais ampla: um espírito e um estilo e uma forma extensa e extensível de viver a vida.
Um tema que tem proporcionado alguma polémica, a propósito do culto do Espírito Santo, é o menino. Por vezes é o próprio Agostinho o criador do equívoco, pela insistência que coloca na coroação da criança, mas nesta entrevista há um momento em que quase esclarece, quase se demarca do seu próprio discurso, quando diz:
«Então o que é? É porque eles julgavam que o menino era capaz de imperar no mundo, de governar o mundo? Não, de jeito nenhum! O que eles achavam é que é o exemplo melhor que temos do homem, e que o homem é a coisa suprema do Universo. Não há nada no Universo que exceda o humano.»
Aqui mostra que não é literalmente que se deve fazer a leitura, mas pelo símbolo, pela metáfora. O que já não entra em contradição e quase converge, com estudos que mostram que na tradição mais remota o coroado era um adulto. Ele próprio afirma que ali a criança é o símbolo do que existe melhor no humano.
Aproveitando para fazer a ligação às suas preocupações com a escola e seu papel deseducativo. Mais à frente afirma: «as escolas deseducam as pessoas».
Pelo meio destes temas grandes e sérios que ele trata com um misto de naturalidade e entusiasmo, não podemos ignorar o pitoresco, como cores com que vai salpicando a conversa. É o caso, que relata, de Roberto Carneiro, ex-ministro da educação, coroado Imperador aos quatro anos. De Imperador do Espírito a ministro, uma despromoção, digo eu, seja-me permitido o aparte. E talvez uma razão para não se coroarem crianças. É demasiado pesada, a coroa sobre uma cabeça de menino que ainda pode vir a ser ministro. Sabe-se lá que consequências poderá ter…
Tema importante que irá ser magnificamente abordado por João Ferreira no posfácio, é a questão da filosofia, que Agostinho aproxima, como faz em relação a tudo, do quotidiano. Fazer filosofia sobre o requeijão será, para ele, a mais elevada das filosofias. Aquilo que designa como a «atenção ao concreto», a vida material ou o espírito na matéria, ou, melhor ainda, a matéria como expressão do espírito, Deus «inteiro e pleno no mundo». A recorrente ideia de aliar a existência na carne ao anseio de plenitude. O que está, de algum modo, relacionado com a busca do poético com que salva o quotidiano da banalidade. E nenhum tema, nem a regionalização, fica fora desta outra forma de filosofia, ou, como diriam Huxley e Telmo, da «arte de olhar».
Especificamente em relação ao tema da filosofia portuguesa, que como já referido será o centro do texto de João Ferreira no final do livro, Agostinho vai igualmente pôr os pontos nos ii. Para ele, não está em causa a existência da filosofia portuguesa, mas não a situa na Universidade. Os «homens que fazem a Universidade […] não têm filosofia portuguesa.»
E põe a tónica no aspecto operativo da filosofia portuguesa, aquela que se traduz em comportamento, por se impregnar no ser. Dá, então, a sua definição do que é ser filósofo: «olhar a vida e pensar sobre ela»
Não se trata da recusa do pensar, mas da recusa do pensar estéril, sem consequências. Elege um pensar com visibilidade no «comportamento», um conceito muito do seu interesse, nomeadamente quando, a propósito da Seara Nova, afirma que, independentemente de não se ter de concordar com tudo, existe naquele projecto «um plano de comportamento de Portugal». O que valoriza.
Embora não coroando o pensamento como coisa abstracta desligada da vida e do comportamento, são várias as passagens em que, sem que o faça explicita ou deliberadamente, acaba por reconhecer, admitir e admirar … o pensar crítico. Como é o caso da passagem em que fala dos portugueses autores dos primeiros textos sobre a China, como «gente crítica […] gente capaz, e […] gente no fundo da qual há sempre a capacidade de julgar».
Ele próprio é o exemplo vivo do pensamento crítico. Nomeadamente sobre nós mesmos. Sobre cujo tempo lamenta faltar a componente da proeza. E aqui é totalmente coerente com o que defende num texto sobre educação que estudei e sobre que falei recentemente, em que, a propósito de Baden-Powell, exalta o risco e o perigo, e portanto a proeza, como condições necessárias à aprendizagem.
No seu magnífico posfácio, o companheiro de Brasília, João Ferreira, considera esta entrevista «uma peça testamentária» contendo «o fermento principal de todo um discurso elaborado durante uma vida inteira», vendo não apenas nas repostas, mas também nas perguntas, o «discurso essencial arquivado nas principais obras do Mestre», como a ideia de fraternidade e cooperação, uma das preocupações do seu pensamento essencialmente educativo. Liga-se esta ideia à da sua concepção de filosofia, uma «filosofia dinâmica» ou arte de viver. Como não gostava de rótulos, também não queria que lhe chamassem filósofo, mas existe coerência entre a definição que dá de filosofia como «dialéctica da arte de desembaraçar» e a sua própria atitude prática e teórica: «Olhar a vida e pensar sobre ela». No seu caso, «em nome próprio». E ousamos nós, por isto mesmo, aproximá-lo da filosofia portuguesa, que não desconhecendo as filosofias estrangeiras, a elas não se submete, com elas não se emaranha. Como ele, é a filosofia portuguesa «uma filosofia em nome próprio». Desembaraçada.
João Ferreira irá desenvolver, em torno do tema, larga e importante reflexão a que, por merecimento, dedicarei texto à parte. Como A Última Entrevista de Imprensa, talvez por contágio, também eu desdobro e prolongo esta reflexão à margem da Entrevista. A culpa é do insaciável Agostinho, esse doce e alegremente inquieto e feroz colosso.
Biblioteca Municipal de Ponte de Sor
25 de Fevereiro
(texto de apresentação do livro A Última Entrevista de Imprensa, Ed. Zéfiro)