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VERDES ANOS. 23
10-06-2017 00:19Afonso Botelho e a estética e enigmática dos Painéis[1]
Quem acompanhou, nestes últimos anos, os protestos da pátria contra o ensino de filosofia estrangeira nas Faculdades de Letras leu, com certeza, o Drama do Universitário, livro em que Afonso Botelho denuncia o erro articulado e fechado que é a organização positivista do ensino. Com a Angústia do Nosso Tempo a Crise da Universidade de António Quadros tal livro representa e defende as reivindicações dos intelectuais dos nossos dias a favor dum ensino que corresponda à comum e geral ansiedade. Todavia, até hoje, nunca nenhum dos professores universitários das Faculdades de Letras apareceu a apoiar publicamente a crítica das novas gerações, pelo que é lícito concluir que consideram perfeita a organização do ensino tal como resultou da orientação positivista do professor Matos Romão.
Este novo livro de Afonso Botelho, que se insere no buliçoso debate à volta dos painéis de Nuno Gonçalves, no qual participam alguns pintores e muitos críticos e historiadores de artes plásticas, constitui admirável meditação dos problemas, métodos e fins da estética. Não rompe, porém, o autor a continuidade da campanha intelectual em defesa da filosofia, porquanto inicia o livro com algumas páginas de crítica aos estudiosos de artes plásticas que receberam uma formação universitária, isto é, aqueles que, incapazes de ler nas figuras, nos símbolos e nas imagens o único pensamento legível, desculpam o seu analfabetismo na falta de documentos para ler. Pena é que tal crítica não incida também sobre os plásticos, mais ou menos comprometidos com o ensino universitário, na medida em que repudiam a verdade estética de que a cada forma de actividade artística corresponderá uma doutrina que, no caso explícito da pintura, desenvolverá o hermetismo das figuras, das formas e das cores. O preconceito de que a pintura é só para ver-se e não para pensar-se também, de que o artista não deve conhecer a legenda, patente ou oculta, que integra a obra plástica numa tradição de pensamento, constitui evidentemente a consagração da estupidez, visto que estúpido é quem não pensa. Almada Negreiros merece, por isso, os elogios do autor da Estética e Enigmática dos Painéis, pois é dos nossos pintores um dos raros que não ignora as relações da arte com a filosofia, embora o pitagorismo o conduza a explicações classicistas e passadistas da pintura, incompatíveis com a teoria «estética, ética e profética», tão luminosamente expressa no livro que comentamos.
Perante este quadro, a Estética e Enigmática dos Painéis aparece como uma obra singular, excepcional e diríamos inédita nos nossos dias, se não existisse a Estética Existencial de António Quadros. Estes dois livros constituem hoje, com efeito, o único ensino português de estética no nosso país, abrangendo na palavra ensino não só o que se divulga por meio de livros, como o que se transmite por meio de instituições. Referimo-nos à Escola de Belas Artes e às Faculdades de Letras. A verdade porém, é que a primeira nem sequer apresenta uma cadeira de estética, como seria primacial numa escola criada para formar artistas, e as segundas incluem no curso de Ciências histórico-filosóficas uma disciplina cuja designação de Estética e História da Arte logo nos esclarece quanto à sua finalidade anti-filosófica.
Pode dizer-se ensino de estética aquele que nos dá os nomes dos reis ou dos arquitectos que construíram este ou aquele Templo, ou as datas em que este ou aquele Templo foram construídos.? É licito considerar ensino de um curso de filosofia aquele que se limita a classificar as obras de arte pelos estilos e a designar as partes componentes dum edifício, como em mecânica se descrevem as peças duma máquina? Constitui uma lição magistral a descrição dos estilos na sua sucessão cronológica ou na sua disposição espacial?
Tal ensino, certamente, não é de filosofia, pela simples razão de que é inteiramente possível ministrá-lo sem a luz duma ideia, sem qualquer espécie de esforço intelectual. É apenas História da Arte, e mesmo assim só de história externa da arte.
Um livro como o de Afonso Botelho representa, por isso, com o já citado livro de António Quadros e a Tradução da Estética de Hegel o maior acontecimento dos últimos anos no domínio das artes plásticas em Portugal.
Quem leu a Catedral de Huysmans e seguiu com atenção, simpatia e inteligência a meditação simbólica que o escritor francês exara ao longo de trezentas páginas está habilitado a prever o que deve constituir o autêntico ensino de Estética. Lícito é lembrar este livro magistral no momento em que lemos a Estética e Enigmática dos Painéis. E tanto mais lícito quanto Afonso Botelho é um escritor de pensamento redentorista, o que, de certo modo explica a sua admiração por Pascoais e Leonardo. Indiferente às disputas dos historiadores, projecta sobre os painéis a luz especulativa duma doutrina pensada na tradição paracletista portuguesa. Isso permite-lhe ver um sistema infinito de significações na pintura, da qual outros apenas recebem a luz baça de um quadro histórico. Pelo estudo do movimento chega a conclusões que culminam na interpretação dos painéis como representação do Espírito Santo servindo-se da analogia para por fim identificar a dupla figura central com Jano ou o novo Adão.
Impossível se torna resumir o pensamento formado num estilo aprendido na escola de Aarão de Lacerda. Convidamos, por isso, o leitor, desgostado, pelo ensino universitário de estética a ler o livro no original.
Antes de terminar esta recensão não resistimos, porém, a transcrever algumas linhas que, aliás, comprovam certa proposição que exarámos atrás:
«A cruz é flor e espalha o seu suave perfume por toda a criação redimida; «árvore, entre todas nobilíssima, que em parte nenhuma tem igual na beleza dos ramos, das flores e dos frutos», como se diz no cântico de Sexta-Feira Santa. Ed. Cidade Nova, 1957.
António Telmo
VERDES ANOS. 22
09-06-2017 23:49Futuro do romance português[1]
Houve sempre quem apresentasse a tese do essencial lirismo da tradição poética portuguesa, desde Oliveira Martins a Gaspar Simões. Quando Sampaio Bruno afirma que nunca tivemos teatro, nem romance, nem filosofia põe em alarme o leitor que, menos perspicaz, não perscrutar o silogismo oculto. Efectivamente, o nosso teatro, desde a Castro de António Ferreira, uma imitação dos gregos, ao Frei Luís de Sousa, uma imitação dos franceses; o nosso romance, desde os Lusíadas, uma imitação da Eneida, aos livros de Eça de Queiroz, imitações de Flaubert; a nossa filosofia, predominantemente escolástica, desde as obras de Pedro Hispano aos ensaios de Amorim Viana e António Sérgio, – não podiam ser senão o que foram, dada a nossa inibição em exprimir o que nos é original.
Sampaio Bruno interroga, por isso, as causas da nossa inibição, para, ao mesmo tempo que combate Oliveira Martins e a sua tese de que essa inibição é racial, oriunda do nosso fundo céltico, sonhador, melancólico, resignado e esperançoso, afirmar, paradoxalmente em relação ao aparente contexto dos seus livros, que tais causas não se devem confundir com as influências de ordem religiosa. E isto porquê? Porque fomos sempre substancialmente católicos, se a substancialidade dum povo reside na massa colectiva da nação. Quanto ao escol, pelos seus melhores representantes, aceita toda a dogmática católica: o trinitarismo, o Deus criador, a queda do homem, a regeneração pelo verbo. Assim, enquanto Oliveira Martins vê um fundo constante de etnicidade, caracterizada pelo lirismo, reagindo, por vezes, contra a opressão exterior, Sampaio Bruno vê, pelo contrário, nas nossas formas de expressão literária, política e religiosa o sinal duma dependência – um acidente, não uma substância. Eis porque, entre nós, o problema religioso, como o explicou Orlando Vitorino no Diário Popular, (21-3-57), não se deve nem pode pôr em termos de teísmo e ateísmo, mas de ortodoxia e heterodoxia. O Encoberto não será, portanto, para Sampaio Bruno, um ser que metafisicamente nos é exterior, projecção ideal do nosso lirismo céltico, mas todo o mistério interior dum povo, que a história enovela e envolve e a filosofia desenvolve e revela.
Esta demorada referência a Sampaio Bruno, o pensador nascido em 57 do século passado, serve-nos de introito à reflexão que vamos fazer sobre a possibilidade dum romance português e as suas relações com o lirismo. O lirismo é a poesia dos sentimentos, da angústia, do temor, do pavor, da alegria, etc. Os sentimentos, contrariamente ao que ensinam as psicologias de sinal atomista, são existência. Como demonstrou Henrique Bergson é uma construção intelectualista, isto é, de paradigma geométrico, a noção dum eu fixo e imóvel sob a mobilidade de sentimentos que se compõem entre si. Cada sentimento surge como um ponto que, gradualmente, vai aumentando, até avassalar e apoderar-se de todo o nosso ser. Assim nasce o que se designa por paixão, que é uma forma de exprimir a indefinida potenciação do sentimento. Sentir, sofrer, tornar-se passivo são vários graus, etimologicamente encadeados, para os quais o poeta procura a expressão verbal. O lirismo atinge a sua forma suprema quando o poeta se entusiasma com a própria paixão, como é o caso de Guerra Junqueiro e Teixeira de Pascoais, mas então torna-se discutível se não estamos já no domínio épico. O romance surge quando é menos a expressão do que a motivação verbal aquilo que o artista visa descobrir e realizar, em relação aos sentimentos. Quer isto dizer que tal género literário tem como conteúdo o homem em sociedade, – no amor, no trabalho, na vida familiar – mas também quer dizer que, sendo sobretudo interior a motivação verbal, o romance se aproxima da filosofia, cuja forma é o pensamento. É lícito, por isso, esperar com alvoroço o aparecimento do romance português, de que existem apenas leves avisos nalguns livros de Camilo, Domingos Monteiro e José Régio. Verifica-se, em Portugal, que, se a dramaturgia é, na generalidade, cultivada pelos poetas líricos, como é o caso, por exemplo, do último escritor citado, os novelistas mais notáveis, são aqueles que seguem o materialismo sociológico, como Alves Redol, Ferreira de Castro, Fernando Namora, etc. E como se sabe, o materialismo sociológico é uma derivação da filosofia de Hegel.
O interessante, porém, é que tal doutrina hegelista, ao postular a irredutibilidade dos contrários, uma vez transferida para o plano dos sentimentos, aparece em correspondência com o lirismo. Perante a novelística da Alemanha, país de músicos e de técnicos, convém lembrar e afirmar a superioridade da novela francesa, com Huysmans, André Gide, Camus, François Mauriac, e, sobretudo, da novela inglesa, em que sobreleva o talento artístico inigualável de Somerset Maugham. Estes países, já disseram, porém, a sua última palavra em filosofia. No seu livro, O Romance e os seus Problemas», a pág. 202, Adolfo Casais Monteiro defende tese análoga à nossa, ao fazer depender o romance da filosofia.
Três revistas literárias, a «Águia», o «Orfeu» e a «Presença», que representam impuramente as três tradições portuguesas, – cristã, hebraica e islâmica, – dominaram sucessivamente o nosso panorama cultural nos últimos 40 anos. Das três foi a «Presença» aquela que mais romancistas produziu: Branquinho da Fonseca, Gaspar Simões., etc. A «Presença» foi, porém, uma revista contrária a qualquer doutrinação filosófica, e a isso se deve atribuir a frustração dos seus romancistas. Os seus vários colaboradores dividiram-se entre o lirismo e a crítica literária.
A crítica literária é, com efeito, a prosa azeda do doce lirismo. Estes dois fenómenos da literatura costumam ser interpretados pelos psicólogos a partir da vontade de afirmação, do desejo invencível de gritar «presença», que caracteriza o adolescente. O adolescente ergue a voz para se fazer ouvir, afirma-se negando, mas, como a negação é um acto da vontade e não da inteligência, nos verbos que constituem o logismo do que diz está sempre ,..de acordo com aquilo a que julga opor-se. Há, por isso, sempre sociedades de velhos que estimulam o espírito adolescente, acolhem e acarinham as suas revistas literárias, fomentam reuniões em que seja livre a discussão dos problemas. Esta palavra problema tem sobre a mentalidade jovem uma grande influência. Todos os adolescentes querem resolver problemas, literários, políticos, morais, psicológicos, religiosos. Mas quem os apresenta guarda sempre uma solução, que, previamente e ao longo de toda a discussão, funciona como doutrina condutora. Assim, a independência do adolescente é puramente fictícia e ilusória: ele é fundamentalmente um ser gregário. Assim cai o descrédito sobre uma geração de literatos.
Tal descrédito é um bom prenúncio do aparecimento do verdadeiro romance português. Na medida em que as novas gerações se começam a compenetrar de que «a literatura é expressão do sobrenatural», segundo a fórmula de Teixeira Rego, começam também a entender que na viagem ou na iniciação está o arquétipo do romance.
Efectivamente, no panorama actual da literatura nota-se que o romance aparece com pobreza de matéria sociológica e assim se disse já que não é possível escrever romances nas condições actuais da sociedade portuguesa. A sociologia católica de um Francisco Costa, a sociologia burguesa de um Paço d'Arcos, ou a sociologia rural de um Fernando Namora, não nos podem dar mais do que a sedução da virgem que cai na triste condição de gravidez, a dissolução do contrato conjugal pelo adultério do homem e da mulher, e enfim a luta social entre explorados e exploradores. Esta temática, que é de todos os povos de civilização ocidental, enfada e aborrece o leitor português. Lembramo-nos das críticas de Huysmans a todas as formas de romance sociológico.
Se, pelo contrário, os nossos escritores passarem a estudar o problema da personalidade e as ciências que constituem a antropologia, nomeadamente a grafologia, a fisiognomia e a psicologia, é de esperar que formem do romance um conceito mais artístico, segundo o qual a evolução da humanidade se opera aos nossos olhos de harmonia com a doutrina expressa da reintegração dos seres nos seus princípios e nas suas virtudes. A projecção da filosofia na literatura, a que estamos assistindo, bem contra vontade de literatos mais ou menos académicos, é sinal de esperança no aparecimento do verdadeiro romance português.
António Telmo
EDITORIAL. 12
30-05-2017 11:41Agostinho, o deserto e a miragem
Quando ainda não deixaram de ecoar as palavras que sobre ele soaram, no sábado passado, no Museu do Aljube, e quando a Fortaleza de Santiago, em Sesimbra, se prepara para acolher, no próximo sábado, o lançamento da edição revista e muito aumentada de Agostinho da Silva em Sesimbra, de Pedro Martins e António Reis Marques, o estranhíssimo colosso promete continuar a dar que falar. Em Junho, mês das festas da cidade de Lisboa, Agostinho será o centro das atenções em dois ciclos de palestras a realizar em outras tantas livrarias. Nos dias 1, 8 e 15, Renato Epifânio falará, na Livraria Europa-América da Avenida Marquês de Tomar, sobre as 3 vidas de Agostinho. Depois, a partir de 17, e até ao final do mês, vários serão os oradores, alguns cá da casa, que irão passar pela Tigre de Papel, livraria a quem o GEAS se associa para esta iniciativa.
Agostinho da Silva não precisa que sobre ele venham carpir mágoas quando as lágrimas são de crocodilo e as lamúrias de falsete. Precisa, sim, de uma constante, efectiva e afectiva dedicação, que, com coragem e persistência, transforme o deserto numa miragem. Seja com os poderes públicos, seja com os agentes privados, a travessia é possível. Assim haja vontade.
VERDES ANOS. 21
21-05-2017 17:02Psicologia e sociologia do trabalho[1]
Só em data recente é que a psicologia e a sociologia do trabalho alcançaram aquela precisão de métodos e clareza de fins, qualificadas de científicas. Como todo e qualquer ramo de ciência, têm, todavia, a sua história. Assim, os seus inícios podem talvez situar-se no estudo de Paracelso Doenças e Males dos Mineiros, o qual, contudo, escassamente prenuncia a orientação geral das modernas investigações. O mais antigo livro que se pode legitimamente situar na linha da psicologia e sociologia do trabalho, tais como hoje se estudam, é Examen de Ingenios para las Ciencias por Juan Huarte de San Juan. A partir do século dezassete, o desenvolvimento das ciências físico-matemáticas distraiu os estudiosos da antropologia. Sobretudo, aos Americanos e Ingleses se deve que, mais tarde, o problema da indústria, em grande parte derivado daquele desenvolvimento, fosse posto em termos de autêntica antropologia, pelo estudo psíquico do comportamento individual e colectivo perante o trabalho. Nesta linha de ideias, é justo lembrar o nome de Frederico Winslow Taylor, cujo contributo para o progresso da psicologia e sociologia do trabalho é, a todos os títulos, notabilíssimo.
Em Portugal, no século dezanove, eclodiram movimentos políticos, atacando, em nome do operariado, a sociedade tradicional. Os trabalhadores viviam descontentes e tal descontentamento era explicado por razões políticas, que se exprimiram em doutrinas, como o anarquismo, o sindicalismo e o comunismo. Não era, porém, crível que multidões de trabalhadores analfabetos ou quase iletrados se afirmassem sequazes de doutrinas tão complexas, cujas teses e cujos conceitos pressupõem longas e difíceis lucubrações filosóficas.
Tais doutrinas eram, assim, apresentadas e propostas em livros, brochuras e jornais, como, por exemplo, as edições de A Batalha, e defendidas por escritores, jornalistas e estudantes. O operariado seguia apenas, e cegamente, sem reflexão intelectual, as palavras de ordem dos doutrinadores. A imprensa operária – quinzenários, semanários e diários – publicava também as notícias das lutas sociais, incitando pelo exemplo os sindicatos portugueses a usarem dos mesmos actos de violência que pareciam normais no estrangeiro.
Concluir-se, daí, que o operariado português na sua totalidade, ou na sua maioria, professava conscientemente as doutrinas anarquistas, sindicalistas ou comunistas seria cometer um erro que posteriores acontecimentos históricos felizmente desmentiriam. O descontentamento individual ou colectivo perante as condições do trabalho deveria ser explicado muito mais por motivos psicológicos e sociológicos, do que pela aceitação de ideologias estrangeiras ou internacionais.
Alguns autores distinguem entre fisiologia e psicologia do Trabalho. J. A. C. Brown observa:
«Ainda há quem suponha que a maioria dos indivíduos não sentem inclinação natural para o trabalho, que o salário é o mais poderoso estimulante, que, em suma, a função do psicólogo que estuda o trabalho consiste em determinar quanto influem sobre o trabalhador factores como temperatura, ruído, humidade, boa ou má iluminação. Assim, a eliminação de movimentos ineficientes transformaria o operário numa máquina mais eficaz. Tão certo é que muito do que corre com o nome de psicologia do trabalho com mais propriedade se chamaria fisiologia do trabalho.»[2]
Posta claramente esta distinção, podemos dizer que todos os problemas de higiene e medicina do trabalho se encontram ainda sem codificação, para cuja resolução bem poderia contribuir a Direcção-Geral de Saúde. Entre eles, avultam os das condições de higiene dos locais de trabalho – ventilação, iluminação, aquecimento, humidade, isolamento de ruídos, afastamento de exalações infectas, etc.. Estes problemas afectam principalmente a conservação dos locais de trabalho e a adaptação de edifícios a locais de trabalho. Como diz o Sr. Dr. João Manuel Cortês Pinto:
«As questões de higiene dos locais de trabalho assumem hoje uma importância excepcional, depois de os psicotécnicos terem demonstrado a sua influência na produtividade e até nos acidentes.
«Nessas questões se compreendem as do meio físico onde o trabalho se exerce e que se procura que assegure a mais perfeita adaptação do trabalho ao homem, tanto por evidentes razões morais como por razões individuais menos manifestas.
«É que, além de humanizar o trabalho, a realização de um meio físico óptimo vem ainda diminuir grandemente a fadiga do trabalhador e aumentar assim a sua produção.»[3]
Outro aspecto importante da fisiologia do trabalho é o da construção e da aquisição de utensílios e máquinas que se adaptem ao corpo humano, de modo a não exigirem esforço doloroso ou cansativo. Este assunto suscita problemas para cuja resolução poderia contribuir também a Direcção-Geral dos Serviços Industriais.
Assim, os movimentos dos braços devem ser curvilíneos e a máquina deve estar colocada em frente do busto, entre a altura do ombro e a da cinta. Vários autores se têm ocupado deste aspecto. May Smith, por exemplo, afirma:
«Os movimentos rítmicos são menos fatigantes do que os irregulares ou desarmoniosos. Um movimento em que a mão se move segundo linhas curvas e não segundo linhas rectas, quando exercido pelos principiantes reduz consideravelmente o período de aprendizagem, dentro dum processo industrial estudado minuciosamente.»[4]
Há que considerar também as diferenças fisiológicas dos sexos. O homem pode trabalhar várias horas de pé, mas a mulher não suporta esse esforço por longo tempo. Um simples inquérito às empregadas de balcão demonstraria essa verdade.
Encerrando estes tópicos sobre fisiologia do trabalho passamos propriamente à psicologia.
Entre os factores psicológicos da atitude perante o trabalho convém estudar:
1) O interesse ou desinteresse pelo trabalho: o gosto ou desgosto pela profissão.
2) As habilitações do trabalhador, sabido que a falta de habilitações dificulta o trabalho, que o seu excesso torna aborrecido o trabalho.
3) O aborrecimento, pela monotonia.
4) O cansaço ou fadiga, muito estudado pelos fisiologistas.
5) A falta de estímulo de aperfeiçoamento, na forma de louvores, prémios ou participação nos lucros.
6) E, em último caso, o salário ou vencimentos insuficientes.
O interesse ou desinteresse pelo trabalho, o gosto ou desgosto pela profissão têm causas naturais sabido que cada indivíduo, por genealogia, temperamento, idade, sexo, etc., prefere, consciente ou inconscientemente, um determinado tipo de expressão da personalidade. Descobrir a inclinação natural é função dos Institutos de Orientação Profissional.
Não é aconselhável, dentro do propósito deste estudo, discutir os métodos de descoberta da vocação, usados nos vários institutos. Não deixaremos, todavia, de nos referir a um dos principais problemas epistemológicos da vocação. Afirmam alguns psicotécnicos que muitas vezes as tendências reveladas durante os questionários e as provas são de origem patológica, isto é, representariam um desvio na natureza normal do homem, não corresponderiam, portanto, à verdadeira inclinação natural do indivíduo sujeito a exame. Conviria, nestes casos, interrogar em que medida, eliminadas as diferenças patológicas, subsistiriam diversos tipos de vocação. Neste debate seria de considerar a evolução semântica de palavras como «patológico» e «patologia».
Tal interesse ou desinteresse pelo trabalho, tal gosto ou desgosto pela profissão também existem em função de factores que surgem durante a prática do trabalho ou o exercício da profissão preferidos. Repare-se, por exemplo, que as faltas ao trabalho, incluindo as faltas por doença, até mesmo por doença simulada devem ser consideradas como incitamento a um estudo psicológico e não como actos de transgressão a um regulamento que exijam correspondentes sanções. Assim transitamos para os problemas indicados nas alíneas seguintes.
May Smith deste modo se exprime quanto ao problema das relações da inteligência com o trabalho:
«Quanto mais inteligente é o operário, mais sujeito está ao aborrecimento. Visto que existem centenas de pessoas que possuem baixa ou medíocre inteligência, é uma pena empregar em trabalhos baixos os espíritos bem dotados. Dever-se-ia seleccionar os trabalhadores inteligentes para trabalhos mais elevados; não há dúvida que isso nem sempre acontece. Ocasionalmente encontra-se alguém que, embora inteligente, gosta da rotina, e isso porque o trabalho, enquanto aborrecido, não é exaustivo; por meio dele a vida pode ganhar-se e despender-se o tempo de ócio num esforço criador. Contudo estes são poucos e não afectam a corrente geral.»[5]
Por outro lado, a falta de inteligência também torna mecânico o trabalho, como é óbvio. Não se realiza a adequada relação do espírito com o trabalho.
A rotina é um movimento em que não participam activamente nem a fantasia, nem a imaginação, nem a inteligência. Assim surge o aborrecimento.
«De uma forma geral a luta contra a monotonia de trabalho» – escreve o Sr. Dr. João Manuel Cortês Pinto – «é luta contra a fadiga industrial, que a monotonia, mais do que qualquer outro factor, provoca e agrava.»[6]
Do mesmo autor citamos um parágrafo esclarecedor:
«A influência das cores no estado psíquico do trabalhador é manifesta, e tem sido diminuída a fadiga, e aumentado o rendimento, só com a pintura de oficinas. As cores óptimas variam de trabalho para trabalho, desde os que exigem cores quentes aos que se acomodam melhor com cores frias. A influência das cores é das mais profundas porque o estado psíquico para que contribuem, mantém-se fora da oficina, e muitas vezes não desaparece até à nova entrada no trabalho.»[7]
A falta de variedade nos movimentos, nas figuras, nas imagens, falta de variedade que se designa por monotonia, é a causa principal do aborrecimento. Experiências feitas com a iluminação na América do Norte vieram demonstrar que a mudança de visualidade é um factor mais poderoso, relativamente ao acréscimo de produção, do que as condições de visibilidade, dado que muitas vezes se verificou um maior rendimento no trabalho, não obstante se terem piorado estas condições. Sem dúvida, porém, que, nestes casos, há que estabelecer uma função, com constante e variável movendo-se dentro de certos limites.
Importa distinguir cuidadosamente o aborrecimento da fadiga. Alguns autores estabelecem a distinção entre fadiga psicológica e fadiga física, como, por exemplo, F. Maier:
«Usamos o termo fadiga psicológica para designar os mais variados tipos de factores com consequências negativas no poder do rendimento do operário. Neles se incluem a quebra de eficiência no trabalho comummente designada como fadiga mental, além dos fenómenos conhecidos como monotonia e aborrecimento.»[8]
O que precisa bem a distinção em causa é o exemplo seguinte: o operário aborrecido retoma com gosto um trabalho diferente, enquanto que o operário cansado se mostra incapaz de prosseguir qualquer espécie de esforço. O aborrecimento, tornando mais penível o esforço, contribui em grande parte para o aumento de fadiga, com suas consequências no rendimento e na produção. É, porém, impossível eliminar a fadiga porque isso equivaleria a eliminar o trabalho. O que se pode é levá-la até aos limites mínimos.
Surge assim o problema dos estímulos, problema muito discutido sobre o qual se têm tecido as mais variadas ideologias. Ouçamos o que diz o Sr. Dr. Adérito Sedas Nunes:
«É evidente que o trabalhador deve ser interessado, por uma forma de participação nos lucros ou outra semelhante, na prosperidade da empresa: não ponho aqui o problema do direito; afirmo apenas que dificilmente o operário se sentirá estimulado a trabalhar a pleno rendimento, se do seu maior esforço e diligência não lhe advier um ganho monetário acrescido. Mas, tal como para o chefe da empresa, esse estímulo não é o único e nem sequer opera bem, isolado. O operário tem de sentir que a empresa também é sua, que a empresa é uma obra comum que ele ajuda a construir, que precisa dele, que depende dele, que conta com ele, em que ele colabora como homem livre e não como servo.
«Ser colaborador, e não servidor, eis aquilo a que o operário aspira e a que, como homem, tem direito.»[9]
Só em último caso se deve considerar a acção do salário ou do vencimento, como estimulantes. A psicologia mostra que, muitas vezes, a incessante exigência de mais salário é uma forma indirecta e até inconsciente de protesto contra as más condições psicológicas do trabalho. Muitas vezes, o operário troca um trabalho mais remunerado, por outro, com maiores estímulos. Muitas vezes, atingida a idade de reforma, ele sofre, não por ganhar menos, mas por não poder trabalhar. J. A. C. Brown, no livro já citado, refere o caso de operários que à hora de saída esperam os antigos colegas e procedem exactamente como se estivessem empregados.
Como se vê, este estudo de psicologia do trabalho incide principalmente sobre os aspectos emotivos e afectivos. É a tendência da psicologia inglesa e americana, oposta à tendência alemã que incide sobre os motivos da vontade. Os aspectos intelectivos ou ideológicos só aparecem em último lugar, porque variam e dependem da cultura do trabalhador. A psicologia americana tem por método o estudo do comportamento, de que é típico exemplo o livro de F. Maier, A Psicologia na Indústria.
Antes de terminar a primeira parte do nosso estudo, a parte relativa à psicologia do trabalho, não podemos deixar de referir uma importantíssima distinção, que convém introduzir e desenvolver nos estudos de psicologia.
Queremos falar da distinção entre psicologia feminina e masculina. Tal distinção é já reconhecida pelas pessoas que determinam os trabalhos impróprios para mulheres e que lhes devem ser vedados, embora a lei não tenha atingido ainda aquela precisão que seria de justiça. Além disso, a lei reconhece e concede privilégios à mulher casada, quando atende à sua função maternal.
Tal diferença psicológica dos sexos terá também de ser tomada em conta nos estudos de sociologia do trabalho, de que nos passamos a ocupar.
Por sociologia do trabalho não se entende qualquer divisão, ramo ou espécie de sociologia política, mas apenas o estudo dos fenómenos sociais das e nas relações de trabalho.
É útil começar esse estudo pela família, porquanto aqui nos é dado surpreender as relações de trabalho na sua origem. O trabalho doméstico, concentrando e orientando a vida afectiva para um fim comum, não só conserva e desenvolve as boas relações de parentesco, como contribui para formar um ambiente de convívio espiritual, profundamente educativo.
É a mulher a força que mais e melhor actua no sentido de manter o trabalho na família. As características masculinas de trabalho encerram, pelo contrário, uma força de expansão que se tem de considerar na base de todas as transformações industriais que se deram no decurso da história. A característica fundamental do trabalho masculino é a relação de exterioridade entre o operário e a máquina. O homem movimenta-se, desloca-se em torno da máquina. Necessita dum espaço diferente daquele que lhe proporciona o lar para exercer a sua actividade masculina. Nasce assim a oficina, construída no lugar mais exterior da habitação. Por seu lado, a mulher cose, borda e tece, sentada, ou se move, como no cozinhar e no arranjo da casa, dir-se-á que se coloca, perante os objectos, de dentro para fora, como quem de si prolongue os utensílios de trabalho. Isso manifesta-se também no carácter orgânico do ensino materno às filhas, iniciando-as e educando-as numa tradição secular.
A autoridade paternal transforma-se na autoridade patronal. Entre os artesãos da mesma arte, entre «os oficiais do mesmo ofício», sempre se estabeleceram relações de sociabilidade e solidariedade, que não só aumentam o interesse, o amor e o aperfeiçoamento no trabalho, como contribuem para formar e fortalecer a dignidade social do trabalhador. Neste mundo associativo, o trabalho, tornando-se mais amado, em virtude da afectividade e a afectividade, enriquecida em virtude do trabalho, dificilmente degeneram no mecanismo da produção em série e no colectivismo do pessoal em massa. Tal ímpeto associativo mantinha-se por relações de parentesco entre os vários artesãos, relações de parentesco que os casamentos vinham reafirmar.
Da oficina proveio a fábrica, com a sua complexidade de técnicas e processos de trabalho. A estruturação deste que dominou nos séculos XVIII e XIX, construção idealista da razão em que o operário funcionava como simples produtor de energia muscular, era uma violência, impossível de perdurar sem que as formas materiais e artísticas de exercício da actividade humana surgissem de novo, como quem espera só o tempo necessário para se adaptar às modernas condições técnicas e económicas em que o trabalho passou a desenvolver-se.
O artesanato foi muito combatido e com ele a corporação, depois da Revolução Francesa. Alguns sociólogos o julgaram postergado com o processo das novas técnicas de aplicação da energia muscular. Era, porém, o novo tipo de organização do trabalho sobre as novas técnicas e não estas – tipo de organização e técnicas que sociólogos mal doutrinados julgaram indissolúveis – a causa de que um abismo cada vez mais fundo se cavasse entre o trabalho e a família, da qual, como vimos, surge naturalmente o artesanato. Na verdade, qualquer que seja a técnica, sempre o homem, integrado por nascimento ou adesão instintiva numa associação, trabalhará os dados naturais com dons de artista. O artesanato subsiste sempre onde se mantém uma atmosfera de íntima e calorosa sociabilidade.
É este o parecer do Sr. Dr. João Manuel Cortês Pinto, ao atribuir ao artesanato uma fundamentação sociológica. Muito, com efeito, se tem discutido para decidir se o artesanato é uma categoria sociológica ou uma categoria económica. Se, como crêem em grande parte os sociólogos, não é uma categoria económica, tudo depende da organização social que informa a indústria fabril. Constitui um grande mérito do nosso tempo ter-se demonstrado errado o pensamento que aceita por guia de estudo a legislação e a estrutura fabril dos séculos XVIII e XIX, – com a produção em série e o pessoal em massa. Neste sentido aconselha-se a leitura de J. A. C. Brown, o qual é a demonstração de que convém, mesmo na grande indústria de laboração contínua, regressar a estruturas de tipo artesanal.
O Sr. Dr. Adérito Sedas Nunes, depois de ter referido como a indústria moderna, nos seus vários momentos de evolução, encarou o operário, desde a sua identificação à máquina, cujo ponto crítico se encontra na aplicação dos princípios de Taylor, até à consideração deste como ser físico, orgânico, psíquico, moral, confirma este ponto de vista, ao escrever:
«Mais recentemente descobriu também o seu aspecto social. Descobriu que o operário trabalha melhor em equipa do que isolado; melhor junto de camaradas que estima, do que junto de outros a quem é indiferente ou hostil; melhor em grupos em cuja organização participa, do que em grupos cuja organização lhe é dada; melhor com chefes que o esclarecem e orientam, do que com chefes que simplesmente ordenam; melhor ainda com chefes que ajudou a escolher, do que com chefes impostos. Descobriu, em resumo, que o rendimento do trabalho depende do ambiente social, das relações humanas dentro da empresa.»[10]
Ainda o Sr. Dr. Adérito Sedas Nunes, após ter afirmado que a regra fundamental do cumprimento do engenheiro e do técnico em geral para com o trabalhador é o respeito da sua inteligência, conclui:
«Este princípio de liberdade do operário na execução do seu trabalho encontra a melhor expressão na fórmula das equipas semiautónomas. Consiste no seguinte: a empresa é dividida segundo os grupos de serviços de que se compõe, e aos trabalhadores ocupados em cada um desses grupos de serviços concede-se certo grau de autonomia. Concretamente, os trabalhadores recrutam e escolhem (de acordo com o chefe da empresa) os seus próprios companheiros e chefes imediatos (contramestres, etc.), acordam entre si a distribuição das tarefas a realizar, ajudam-se mutuamente no trabalho, estudam em conjunto os problemas de pormenor da organização do trabalho e da execução de cada uma das operações fabris, e, em geral, recebem uma remuneração global, calculada em proporção à produtividade obtida, a qual têm toda a liberdade de partilharem como quiserem. Parece talvez um princípio de anarquia e desperdício, mas os resultados colhidos em numerosas e muito variadas aplicações práticas revelam exactamente o contrário: o rendimento da produção cresce notavelmente, o operário sente-se mais vivamente integrado na empresa, as relações entre patrões e assalariados melhoram, a disciplina é mais perfeita.»[11]
Nas oficinas, nas fábricas e nos escritórios, a sociologia do trabalho defronta graves problemas, tais sejam os que resultam do convívio dos colegas entre si. As dificuldades que o trabalhador encontra nesse convívio é uma das causas mais importantes e frequentes de despedimento. Num recinto em que se trabalha e onde, por isso, uns necessariamente hão-de mostrar superioridade sobre os outros é difícil impedir que surjam as invejas, os ressentimentos e a maledicência. É curioso notar que pessoas, capazes de fazer melhor, por vezes preferem ficar no nível comum para evitar a inveja, e, em consequência, o combate.
Quando trabalham em comum os dois sexos, surge outro motivo de conflitos. Tecem-se as intrigas femininas e é raro não haver maledicência acerca do comportamento moral das mulheres, dentro e fora dos locais de trabalho. Todas se esforçam por adular o chefe, cada uma pretende ser a preferida. Este mau ambiente de trabalho, criado pelas intrigas, pela maledicência e pela adulação, suscita problemas difíceis de resolver, pois, por outro lado, os homens que trabalham com mulheres fazem-no com muito mais agrado. O que está verificado é a inconveniência de elevar as mulheres a lugares de chefia. Consultando pessoal feminino sobre se prefere ser dirigido no trabalho por homens ou por mulheres, a estatística respostas confirma a observação dos sociólogos.
Muitos sociólogos foram, por isso, levados a estudar com a maior atenção o problema da chefia. Com efeito, do chefe, do vigilante e do capataz, em grande parte, depende a boa ou má atmosfera social em que exerce o trabalho.
«Três tipos gerais de procedimento», escreve J. A. C. Brown, «caracterizam as investigações sobre o problema da chefia. Primeiramente os traços daqueles que foram reconhecidos como grandes chefes no passado e no presente, foram analisados de modo a descobrir o que de comum existe nesses homens. Em segundo lugar, foram formados grupos experimentais, a cada um dos quais se pediu a nomeação de um dos seus membros para o cargo de chefe, e estudaram-se, depois, os escolhidos, segundo aquela directriz. Em terceiro lugar, examinou-se uma grande quantidade de listas com as qualidades dos chefes e concluiu-se que, na sua maioria, obedecem a um critério subjectivo em que as qualidades apresentadas representam apenas a própria concepção que o escritor faz do «Grande Chefe». Mais adiante, o mesmo autor escreve: «Qualidades tais como «sentido da justiça», «sentido do humor», «sentido das responsabilidades» são tão complexas que não podem apresentar-se como uma característica simples que uma pessoa possua ou não possua.»[12]
O Sr. Dr. Adérito Sedas Nunes, como se vê pela citação que inserimos linhas atrás, é de opinião que os chefes devem ser escolhidos de acordo com a vontade dos chefiados e não impostos. Neste sentido, importa considerar a motivação psicológica da escolha. W. J. H. Sprott escreve:
«Do ponto de vista dos chefiados, o chefe pode realizar uma grande variedade de funções. Ele pode simplesmente conhecer o caminho. Da maior importância são os casos em que o chefe é o centro de fixação das emoções. A pressão dos sequazes junto do chefe, e a adulação foram frequentes vezes notadas. Le Bon, por exemplo, escreve: «Homens reunidos num grupo perdem toda a sua força de vontade, e voltam-se instintivamente para a pessoa que possui as qualidades que lhes faltam». Todavia, a escolha do chefe nem sempre é acertada. «Os chefes são com mais frequência homens de acção, do que pensadores... são especialmente recrutados das linhas dos neuróticos, irritáveis, pessoas desequilibradas, estrei-tas ou loucas». Michels, também, como já mencionámos, nota a importância dos chefes. «A necessidade que as massas sentem, mesmo as massas organizadas, de serem dirigidas por chefes, acompanhada por um vivo culto dos heróis, é ilimitada.»[13]
Por estas citações, pode o leitor calcular a influência dos chefes no bom funcionamento dos serviços. Numa vasta organização de trabalho, o chefe actua como intermediário, que, integrando os meios nos fins, pode, pela sua influência pessoal e inteligente orientação, dar a cada trabalhador a consciência de uma personalidade activa e criadora, na sua dependência. De aqui se aconselha o exigir-se aos futuros chefes provas suficientes de conhecimento dos homens e de psicologia do trabalho.
É o chefe quem conhece o valor dos seus subordinados, pelo que seria aconselhável atribuir-lhe total competência quanto à disciplina de faltas, licenças e férias, ao contrário do critério geralmente adoptado que relega para um director afastado a resolução abstracta desses problemas burocráticos.
Até aqui consideramos as relações de trabalho dentro dos locais em que este se exerce. Concluir-se-á da nossa exposição que o princípio associativo, de que a família é a representação mais imediata, deve presidir a essas relações, sem o que o trabalho e a sociedade dos trabalhadores degeneram em formas contrárias não só à elevação espiritual do homem como à utilidade pública. Agora, e por fim, vamos rapidamente considerar aquelas relações de trabalho fora dos locais em que ele se exerce. Nesse âmbito, destaca-se a vida sindical, que tão largo papel ocupa na organização hodierna do trabalho. É evidente que tal vida se reveste dum carácter abstracto e ilusório. O trabalhador inscreve-se, paga as quotas, recebe os benefícios, vai às assembleias gerais, mas afasta-se do convívio sindical. Mal conhece os dirigentes, porque lida só com os funcionários de secretaria e tesouraria. Quando o sindicato atinge milhares de sócios, o trabalhador vota numa lista, cujos nomes designam pessoas que ele nunca viu.
Que diremos das cantinas, dos balneários, dos recintos desportivos, das colónias de férias? Neste ponto, cabe ouvir o Sr. Dr. João Manuel Cortês Pinto, quando escreve:
«A principal, a mais profunda e a mais útil acção da empresa no terreno social, será de contribuir para a desproletarização do trabalhador, auxiliando-o sempre que as circunstâncias o permitam, a construir a sua casa em vez de lhe ceder casa no bairro operário; facilitando-lhe a aquisição de bicicletas, ou bicicletas motorizadas, que lhe permitam ir almoçar a casa, era vez de criar a cantina; concedendo subsídios para férias, em vez de manter colónias de férias, etc. Sempre que estas realizações sejam economicamente possíveis, ainda que com maiores dispêndios, elas são muito preferíveis e para aí se devem orientar as realizações de um sistema eminentemente personalista como é o corporativo.» [14]
Do mesmo autor é também digna de nota a crítica que faz aos bairros de habitação para operários:
«Quer-nos parecer que o problema da habitação ganharia em ser visto a uma luz menos técnica de facilidade de construção e mais social. O bairro económico perverte o fim da casa económica, que é dar um abrigo à própria família. Ora, para se ter a sensação de casa própria, a primeira condição é que ela seja diferente, que não seja de série. A intimidade do lar está violada quando se sabe que esse lar é precisamente igual aos que se encontram à sua volta, está como que devassada pela sua reprodução em série. Por outro lado, o bairro económico, como o bairro residencial, vem fixar uma estratificação que nos parece altamente inconveniente para a educação social. Para amar é preciso conhecer, e estas separações de classes, impedindo-as de se conhecerem, não são próprias ao entendimento nem à solidariedade social.»[15]
Como se vê, autores portugueses e estrangeiros, da maior notoriedade, concordam nas linhas gerais das modernas psicologia e sociologia do trabalho. É de notar a falta destas disciplinas nas Faculdades de Engenharia, no Instituto Superior Técnico, no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras e na Faculdade de Direito. Se as relações humanas que mais interessam para fins sociais são as relações do trabalho, ou profissionais, justo seria habilitar com tais conhecimentos aqueles que destinam a ser directores, chefes ou técnicos das empresas.
António Telmo
[1] Mensário das Casas do Povo, ano XI, n.º 127, Janeiro de 1957, pp. 6-7 e 16, e n.º 128, Fevereiro de 1957, pp. 10-11 e 22.
[2] J. A. C. Brown, The Social Psychology of Industry, London, 1956, p. 186.
[3] João Manuel Cortês Pinto, A Corporação, Coimbra, 1955-1956, p. 285.
[4] May Smith, An Introduction to Industrial Psychology, London, 1952, p. 44.
[5] May Smith, livro citado, p. 92.
[6] João Manuel Cortês Pinto, A Corporação, Coimbra, 1955-1956, 2.º vol., p. 294.
[7] Idem, p. 286.
[8] Norman R. F. Maier, Psychology in Industry, Cambridge, 1955, p. 457.
[9] Adérito Sedas Nunes, Situação e Problemas do Corporativismo, Colecção de Estudos Corporativos, Lisboa, 1956, p. 162.
[10] Adérito Sedas Nunes, Situação e Problemas do Corporativismo, Lisboa, 1954, pág. 161.
[11] Adérito Sedas Nunes, livro citado, p. 164.
[12] J. A. C. Brown, livro citado, p. 220.
[13] W. J. H. Sprott, Social Psychology, London, 1956, pág. 85.
[14] João Manuel Cortês Pinto, A Corporação, Coimbra, 1956, vol. II, pág. 158.
[15] João Manuel Cortês Pinto, livro citado, pág. 75.
EDITORIAL. 11
02-05-2017 00:05Uma sóbria, sublime e soberana inquietude
Comemora-se hoje o nonagésimo aniversário do nascimento de António Telmo. A efeméride, que tem vindo a ser assinalada desde Dezembro de 2016, conjuga-se com os quarenta anos da edição da História Secreta de Portugal e os vinte da publicação de O Horóscopo de Portugal, livro que será reeditado no Volume VII das Obras Completas de António Telmo, com lançamento previsto para o solstício de Verão, no próximo dia 24 de Junho, na Biblioteca Municipal de Sesimbra, na segunda sessão das Tardes Télmicas deste ano. O ano de 2017 é, assim, um ano télmico por excelência!
A uma década de se assinalar o centenário do filósofo, o Projecto António Telmo. Vida e Obra continua a lançar os alicerces da sua posteridade, prestando apoio científico e institucional à publicação da sua opera omnia, em curso de edição na Zéfiro. Até ao final deste ano, ficará praticamente disponível no mercado livreiro toda – ou quase toda – a obra que o filósofo publicou em vida, incluindo os escritos dispersos da primeira fase, até hoje por reunir em volume, e isto a par da publicação constante de centenas de páginas inéditas provenientes do seu espólio, seja nas Obras Completas, seja em revistas como A Ideia, Devir e Nova Águia.
António Telmo é hoje um autor estudado em iniciativas de investigação académica, de que são exemplos o projecto Redenção e Escatologia no Pensamento Português, da Universidade Católica Portuguesa, coordenado por Samuel Dimas, e A Dinâmica dos Olhares. Cem Anos de Literatura e Cultura em Portugal, do CLEPUL, coordenado por Rui Sousa. A sua obra e o seu pensamento têm ainda sido motivo expresso de diálogo frequente em congressos internacionais dedicados a temas como os “Judeus e Cristãos Novos no Mundo Lusófono” e a nomes como Verney, Bruno, Bocage ou Pascoaes.
Na semana que agora se inicia – hoje mesmo, no dia do seu aniversário –, Risoleta C. Pinto Pedro irá evocá-lo, a par de seu mestre Agostinho da Silva, no pólo de Sacavém da Universidade Sénior de Loures. No próximo sábado, em Lisboa, Pedro Martins falará sobre o seu pensamento maçónico, na abertura do primeiro Salão do Livro Maçónico.
Em Espanha e em França colhem-se hoje indícios seguros de que, dentro de alguns anos, a Europa poderá descobrir o singular pensador de Arte Poética.
Ainda este ano, no segundo semestre, será publicado, na Colecção Thomé Nathanael – Estudos sobre António Telmo, um livro de Risoleta C. Pinto Pedro sobre a sua obra e o seu pensamento. Outros se seguirão.
A par do segundo ciclo de As Artes da Misteriosofia, que decorre, desde Dezembro último e até ao fim do ano, na sede da AMORC, em Lisboa, iniciar-se-á, no próximo dia 3 de Junho, em Sesimbra, a quarta edição das Tardes Télmicas. E ainda este ano, em data a anunciar, será organizado um Colóquio de encerramento das comemorações do 90.º aniversário do nascimento do nosso patrono.
No passado mês de Abril, num registo por certo invulgar, esta página superou a fasquia dos 10.000 visitantes mensais, sendo assim possível que, até ao fim do ano, se aproxime dos 100.000 visitantes anuais.
Tal como sucede com António Telmo, 1927 é o ano do nascimento de dois insignes membros do nosso Projecto. Referimo-nos ao Professor João Ferreira, que recentemente – a 17 de Fevereiro – comemorou o seu 90.º aniversário em Brasília, e a António Reis Marques, que o comemorará no próximo dia 23. Daqui saudamos, pois, efusivamente estes dois nossos companheiros, mestres e amigos!
Saudamos também, com gratidão e carinho, nesta hora dominada pelo signo do nove, e por isso do novo, que há em noventa, a família de António Telmo, na pessoa de Maria Antónia Braia Vitorino!
Pela nossa parte, gratos a todos – e são muitos – os que connosco têm colaborado nesta aventurosa caminhada, continuaremos a procurar honrar esse legado de sóbria, sublime e soberana inquietude que é o de António Telmo!
DOS LIVROS. 59
01-05-2017 17:42Da Introdução a Autobiografia e Sobrenatural em Luís de Camões
«Os Portugueses somos do Ocidente.
Imos buscando as terras do Oriente.»
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, 50, 7-8
5
Sentir-me a mim próprio como o mistério, eis o princípio da sabedoria. Se a minha existência me aparece como indiscutível pelo facto de a não ter pedido e se ela se me representa como qualquer outra existência, a de uma cadeira por exemplo, como um facto e nada mais do que um facto, a crença em Deus, se porventura a julgo ter, é apenas uma superstição, fácil de socializar em qualquer Igreja, mas que deixa tudo como antes sem Deus. Por isso mesmo, o ateu, que porventura se sinta emergir do seio do mistério como um fiat inexplicável, está em melhores condições do que o iludido crente para compreender que símbolo é a palavra do inefável. Emergir do mistério é emergir do Oriente e é, quando se tem consciência disso, imaginar o Oriente geográfico como a fonte de toda vida, sempre presente, sobretudo onde o espaço já não conta.
Não obstante tudo isto, constitui uma grande vantagem, quando se torna evidente o mistério que o meu próprio ser é tal como é, reconhecer na afirmação “eu creio em Deus” as palavras que abrem o acesso àquele cântico profundo que anima todo o Universo. Porque o ateu é, mais tarde ou mais cedo, desviado para qualquer explicação científica que tranquilize a sua inquietação. Mas a crença em Deus no seio do sentimento do próprio mistério que eu sou ou que tu és fará, porventura, ver o que antes nos aparecia como uma metáfora: que o próprio Universo é um homem maior que existe pelo milagre da música profunda que nasce da vibração das sete cordas essenciais.
António Telmo
(Publicado em A Aventura Maçónica - Viagens à Volta de um Tapete, 2011)
CORRESPONDÊNCIA. 44
01-05-2017 15:47CARTA DE ANTÓNIO TELMO PARA ÁLVARO RIBEIRO, S. D.
Sr. Dr. Álvaro Ribeiro
meu amigo
A minha vinda para Beja foi decidida e executada tão ràpidamente que não pude despedir-me, nem sequer anunciar êste novo rumo da minha vida. Peço-lhe, por isso, desculpa e à sr. D. Angelina e à Conchita. Não sei se fiz bem, se mal. Tenho grandes dificuldades em ensinar o francês, que aqui exigem falado, segundo os preceitos de um programa que elimina a gramática, a traducção e a retroversão, as únicas coisas de que sei um pouco. Está aqui também, como deve saber pelo Avelino, a Mimi. Beja, não sei se conhece a cidade?, é sobretudo notável pela doçura e harmonia das vozes femininas, umas vozes naquela toada que leva a água ao moinho. Não tenho lido, nem escrito e sinto que se quebrou a minha carreira literária, para a qual aliaz nunca senti nítida vocação. Envolvido já numa aventura curiosíssima, de carácter estranho e simultaneamente cómico, cujos elementos concretos mais tarde lhe contarei, cada vez acredito mais que os acontecimentos não são produzidos do exterior e, como a fisiognomia, como a palavra, como os gestos, se ligam intimamente à nossa natureza. Do 57 não ouço aqui ninguém falar e, nesta terra de padres e democratas, guardo o meu humilde anonimato.
O livro do sr. Dr. já deveria ter saído. Não seria capaz de mo mandar? Se isso lhe dá trabalho, por o achar inútil ou substituível, eu aguardo a minha ida a Lisboa para o comprar.
Cumprimentos e saudades a todos do
António Telmo
Morada: A. T. C. V., r. Dr. Teófilo Braga, 35, ao cuidado do sr. Dr. Jorge Coelho.
[Espólios N9/1055]
CORRESPONDÊNCIA. 43
01-05-2017 15:27No espólio de Álvaro Ribeiro, à guarda da Biblioteca Nacional, encontra-se uma carta de Henri Gouhier (1898-1994) para António Telmo, motivada pela recepção, por este filósofo francês e professor da Sorbonne, da primeira edição de Arte Poética, de António Telmo. Gouhier, conhecedor profundo da filosofia francesa, de Descartes e Pascal a Comte e Bergson, é autor considerado por Telmo no capítulo “Os Possessos (Teoria da Tragédia)” do seu livro de estreia, onde cita, por mais de uma vez, a sua obra Le Théâtre et l’Existence, de 1952.
Tudo leva a crer que Telmo ofereceu ao seu primeiro mestre esta carta, preciosa pelo modo como documenta as relações do movimento da Filosofia Portuguesa com os meios universitários franceses na segunda metade do século XX.
CARTA DE HENRI GOUHIER PARA ANTÓNIO TELMO
Université de Paris
Faculté des Lettres
et Sciences Humaines
---- / ----
17, Rue de La Sorbonne
---- / ----
PARIS, Le 18 Oct. 1965
Tél. ODÉ 24-13
21 Boulevard Flandrier [?]
Paris XVI
Cher Monsierur,
Je vous remercie beaucoup de votre intéressant Arte Poetica, si personnel et pourtant si inspiré par la pensée de Bergson. L’ouvrage sera tout à fait à sa place, à côté de ceux de M. Alvaro Ribeiro, dans la Bibliothèque où nous avons réuni tout ce qui concerne le philosophe. Les meubles qui reçoivent les ouvrages sont les bibliothèques qui étaient dans son bureau (Bibliothèque Doucet, Fonds Bergson, place du Panthéon, Paris, V).
Recevez, Monsieur, l´assurance de ma sincère considération,
Henri Gouhier
[Espólios N9/1055]
DOS LIVROS. 58
25-04-2017 13:01Da Introdução a Autobiografia e Sobrenatural em Luís de Camões
«Os Portugueses somos do Ocidente.
Imos buscando as terras do Oriente.»
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, 50, 7-8
4
Não se deve dizer que o templo é uma “miniatura” do Universo visível, com o seu Céu e a sua Terra, o seu Oriente e o seu Ocidente, o seu Norte e o seu Sul, a não ser quando se considere que o Universo visível é também um símbolo. Lembra-se assim ao que celebra seus ritos na intimidade do Templo que não se comporte como um vulgar profano fora das suas quatro paredes e um bom princípio para que se torne efectiva esta nova atitude no exterior ou no que é aparentemente exterior é o de nunca se perder a sensação íntima de onde nasce o Sol, íntima para que nos ponhamos de acordo com o que nos envolve e assim possamos descobrir o essencial que é saber, que, afinal, cada um de nós é que é o próprio Templo.
António Telmo
(Publicado em A Aventura Maçónica - Viagens à Volta de um Tapete, 2011)
CORRESPONDÊNCIA. 42
25-04-2017 12:47CARTAS DE ERNÂNI ROQUE PARA ANTÓNIO TELMO. 04
1/7/77
Telmo:
É urgente o Destino. Como quem diz: é imperioso o horóscopo. Não seja mandrião e mande lá essa coisa, ou terei de consultar um Horus qualquer e deixar-me defraudar na qualidade e no preço.
Vi hoje a “História Secreta” nos escaparates da Portugal. Folheei: havia fotografias melhores na colecção, mas foram bem puxadas as que o Carvalho selecionou.
Tenciono em princípio passar em Sesimbra a “ponte” da próxima semana. O que não invalida mandar-me por esta via – antes! – os zodiacais presságios…
Cumprimentos a sua Mulher e beijos aos gaiatos.
Um abraço amigo do
Ernâni Roque