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VOZ PASSIVA. 82
13-05-2018 13:09A palavra perdida[1]
Afonso Botelho
Foi Álvaro Ribeiro – sabemo-lo bem – quem se preocupou em acentuar que o positivismo não se constituiu em escola filosófica.
A minha geração, que comprovou a função intermédia deste movimento, não terá ainda hoje dificuldade em verificar que a sua intervenção no desenvolvimento doutrinário, na edificação institucional, na argumentação filosófica persiste em se insinuar no pensamento como uma lei redutora, tal qual a que Leonardo Coimbra definiu por coisificação.
Se o positivismo possui este poder de infiltração e persistência não foram suficientes os esforços os nossos Mestres nem o respaldo da doutrina criacionista para libertar o pensamento da acção entrópica. Aliás, a intervenção do pensamento essencialmente positivista faz-se sentir no acto poético de pensar e na própria raiz da livre criação.
Ora na refutação das teses e normas positivistas, sistematicamente feita de Leonardo Coimbra ao movimento do 57, só a obra superiormente inteligente de António Telmo erradica aquela perversa acção anti-poética. Com efeito, desde 1963 e com a Arte Poética que este filósofo percorre os caminhos sempre iluminados da imaginação e da intuição na procura das energias espirituais transmitindo realidade àquelas coisas «que o positivismo relegou para o campo da superstição».
O pensamento adormecido dos portugueses necessitava deste despertar do sono plúmbeo de modo a reconhecer o que lhe tem estado oculto nas formas históricas, na génese da língua, nos sinais da religião e na própria tradição filosófica.
Ao longo de trinta anos António Telmo tem pensado por nós e para nós, desvelando o secreto em tudo o que esquecidamente tomávamos apenas por oculto.
[1] Publicado em Arca do Verbo, Ano III – 1.ª Série, n.º 110, in O Setubalense, de 20 de Fevereiro de 1991.
INÉDITOS. 75
06-05-2018 18:40Uma prancha do grau de Aprendiz[1]
À partida, para que as minhas palavras fiquem bem claras nesta Loja perfeitamente iluminada, devo dizer que não pretendo com elas ensinar o que quer que seja, pelo que as afirmações que pareça fazer são, na realidade, proposições ou propostas, mais dirigidas a mim próprio do que a quem me queira ouvir.
No dia em que fui recebido na Loja Quinto Império e em sessões ulteriores, vieram do Venerável Mestre e de outros respeitáveis Mestres palavras que destacavam uma sabedoria que me é atribuída, com maior ou menor verdade, só porque sou autor de alguns livros em que procurei dar da língua, da literatura e da história portuguesas uma nova visão à luz do esoterismo. Tal sabedoria, dado que seja lícito designar assim o que é um mero saber teórico, deixei-a lá fora no momento em que me despojei de todos os metais. Ela foi-me restituída, mas para que faça dela um uso diferente do que fazia antes.
E, dentro desse uso, está a atenção que devo prestar ao que se passa na Loja, de modo a tomar perfeita consciência do que é o meu lugar, um lugar situado ao Norte e que devo compreender pelas seguintes palavras de Dante, no primeiro canto do Purgatório: «Ó gentes que habitais o Norte, como lamento a vossa viuvez por não poderdes contemplar as estrelas flamejantes do Cruzeiro do Sul.»
É que o meu saber, se algum tenho e se alguma coisa vale, foi todo adquirido lá fora, no mundo profano, e aqui só terá algum sentido no dia em que o saiba transformar num saber iniciático, o que equivale a uma completa transubstanciação da sua natureza. Tal só é possível ascendendo pelos degraus da escada que conduz ao Templo. Segundo me parece e se me afigura certo, neste lugar onde por entre trevas imagino a luz total, as iniciações que abrem acesso aos superiores graus conferem pelo rito em cada um deles uma qualidade que nenhuma sabedoria profana pode superar, até porque, como disse, a sabedoria que lhe corresponde é de uma natureza inteiramente diferente da que podemos adquirir por caminhos profanos. Se assim não fosse, nada do que aqui se passa teria qualquer sentido.
Isto significa que o saber que alguém tenha adquirido por esses caminhos lá de fora, como é o caso, para dar exemplos, de um professor universitário ou de um cientista laureado, não só nada tem que ver com o que aqui se aprende como constitui até um impedimento, por ser uma falsa luz, à iluminação pela luz verdadeira. Para o conseguir, a alma teve de se adaptar àquelas condições sem as quais não se trepa no mundo exterior social, condições sobretudo de ordem mental, onde se criam vícios do entendimento muitas vezes difíceis de extirpar. Nessa adaptação a alma sofre múltiplas deformações, uma das quais é a convicção de que está mais apta do que outras, menos cultas, de compreender o mundo misterioso em que foi recebido. Ora todos nós sabemos que para esta recepção se foi previamente reduzido à condição de nem nu nem vestido. A iniciação, pelas viagens simbólicas, operou nova redução, que teve por resultado pôr a alma do recipiendário num estado comparável ao da matéria pura e indiferenciada, que a fizesse sensível à influência transcendente da luz. Assim um espelho deve oferecer uma superfície lisa e polida para que nele se forme a imagem que a luz transporta.
Como observou o Venerável Mestre que presidiu no Oriente à minha iniciação, aos graus que se realizam na ordem do ser e às funções que se assumem na ordem do aparecer não é necessário que corresponda na ordem mental qualquer distinção ou privilégio, pois, ensinava ele, aquilo de que se trata é de conservar e de transmitir uma influência espiritual e de tornar presentes os grandes significados pelos quais se manifesta a sabedoria do Grande Arquitecto do Universo. Perante esta presença supranormal o que é que vale o nosso demasiado humano saber? Perante ela não somos todos demasiado humanos?
Eu observo do Norte o “quadrado longo”, que nos situa aqui, distribuindo-nos por graus e funções. Vejo que, no domínio das funções, o Venerável Mestre, o Irmão Secretário, o Irmão Tesoureiro e os dois primeiros Vigilantes, compõem a figura do pentagrama e que o Irmão Orador, pela palavra, e o Irmão Mestre de Cerimónias, pelo movimento do corpo, criam as ligações e as correntes que tornam esse pentagrama um símbolo vivente. Verifico que os Aprendizes estão colocados no Norte, os Companheiros no Sul e os Mestres no Oriente. Os dois Vigilantes, situados a ocidente, fazem, enquanto guardiões, a cobertura da Loja por onde ela poderia estar sujeita às influências profanas e dirigem o trabalho dos obreiros menores.
O indivíduo que assume transitoriamente esta ou aquela função é comparável ao actor que desempenha um papel no teatro. Desde que represente bem esse papel, para o que evidentemente terá de ter certas qualidades excepcionais, nele veremos Hamlet ou o Rei Lear e a carga de significação que estas personagens transportam nada tem que ver com a qualidade do indivíduo que lhes dá forma.
No catecismo para o grau de Aprendiz, não está dito que os três primeiros degraus, que o neófito teve de subir durante a iniciação, correspondem à Poesia, à Música e à Arte do Desenho como as artes que ele deve praticar para se poder libertar das escabrosidades da pedra bruta que arrastou durante a vida enquanto profano. Não está dito, mas julgo ser bom que ele o saiba, sem o que o seu trabalho de desbaste não se pode efectuar eficazmente.
Fazer versos, compor músicas ou tocá-las e desenhar são actividades ao alcance de qualquer profano que tenha aptidão para tal. Também aqui não devemos confundir o que se ensina nas escolas públicas com o que constitui a intimidade dos nossos mistérios. Os exemplos de homens como Teixeira de Pascoaes, Wolfgang Mozart e Albrecht Dürer não devem enganar-nos. Por este ou aquele modo estiveram ligados a uma organização iniciática, sabendo-se para os exemplos citados que essa organização era a Maçonaria. A poesia de Fernando Pessoa não se explica em uma relação análoga e, por isso mesmo, os investigadores que estudam seriamente a sua obra, (…)[2], se interrogam sobre a natureza exacta dessa relação. A ligação a uma organização iniciática permite explicar a universalidade das respectivas obras, mas isso não quer dizer que tenha sido ali que tenham aprendido a fazer versos, a compor músicas e a desenhar ou pintar.
Por Poesia, por Música e por Arte de Desenhar teremos de entender outra coisa, precisamente o que não está ao alcance do profano. Ora, o que é que não está ao alcance do profano? Precisamente o rito, com tudo o que nele se inclui e por ele se anima de uma significação activa na relação do estar com o ser, de estar aqui com o ser no mundo sobrenatural, enigmático e misterioso que é o domínio transcendental do Grande Arquitecto do Universo. Eu digo o rito e não os símbolos, porque estes só são verdadeiramente símbolos quando nele integrados. Por isso mesmo, eles podem ser postos lá fora, aparecerem em livros ou me fotografias onde dificilmente deixarão de ser mais do que letra morta. Poder-se-á objectar que também o rito pode ser transposto para o exterior por alguém que se tenha suficientemente informado de todo o processo que o constitui. Não será um rito, mas uma paródia de rito, porque lhe falta a transmissão da Baraka, fundado no poder que, de cadeia em cadeia, o Venerável Mestre recebe do Grande Arquitecto do Universo.
António Telmo
[1] Nota do editor – Texto encontrado inédito no espólio de António Telmo. O título é da nossa responsabilidade.
[2] Nota do editor – Suprimimos uma brevíssima passagem do texto, no estrito respeito pela reserva da identidade de um maçon que nela é referido.
INÉDITOS. 74
02-05-2018 09:38No dia em que celebraria 91 anos se ainda estivesse fisicamente entre nós, assinalamos o aniversário do nosso patrono com a publicação de um excerto inédito de Uma Loja de São João, estudo que fará parte integrante do Volume IX das suas Obras Completas, A Aventura Maçónica e outros textos sobre a Arte Real, que será lançado, com a chancela da Zéfiro, no próximo dia 20 de Junho, pelas 18:30, no Museu Maçónico Português. Prefaciado por Risoleta C. Pinto Pedro, este novo volume será apresentado, no seu lançamento, por António Carlos Carvalho.
Uma Loja São João: Entrada ou intróito
Estremoz é, no seu traçado medieval, uma cidade rodeada por muralhas, aberta para o exterior por quatro portas, a dos Currais, a de Évora, a de Santo António e a de Santa Catarina, a padroeira da filosofia. Há, porém, uma quinta porta, que não se vê, no centro da cidade. Dela só se lhe conhece o nome: a Porta Nova. Contíguo ao Rossio, o vasto largo, hoje de Marquês de Pombal, outrora de São João, como se vê pela lápide que o identifica, está o Largo da Porta Nova, mas em vão procuramos; de porta antiga, destacada nada vemos. O seu maior edifício e o mais antigo é o que parece ter sido um convento, com um claustro e belos azulejos lá dentro. De uma das suas janelas, no primeiro andar, foi anunciado ao povo de Estremoz a queda da Monarquia e por isso o largo recebeu o nome oficial de Largo da República. No rés-do-chão é hoje a sede da Sociedade Recreativa Popular Estremocense, conhecida precisamente por Porta Nova. Há, de facto, lá dentro, habitualmente fechada para o exterior que não nos diz nada, uma grande e magnífica porta, aquela mesmo que poderia ilustrar a capa deste livro. Mas ninguém liga o nome à coisa, talvez porque cada um tem na ideia uma porta do tipo das quatro que se abrem nas muralhas.
Por ela se entrava para um santuário numa vasta sala, hoje utilizada para jogar o bilhar e as cartas, ler os jornais e, ocasionalmente, para ver na televisão um desafio de futebol. Do santuário restam os belos azulejos do século XVIII que cobrem parte da abóbada e das paredes.
A Porta Nova é, pois, uma porta para o interior, o que condiz admiravelmente com ser a quinta. O interior é, como se disse, um santuário, o que só há alguns anos se tornou possível imaginar. Durante mais de uma centena de anos, os azulejos estiveram tapados por uma espessa camada de caliça que o acaso de umas obras de restauro levantou, pondo à vista uma das maiores maravilhas da nossa arte simbólica. Quis o Desígnio que o sócio n.º da Sociedade Recreativa Popular Estremocense estivesse lá quando se deu o descobrimento dos azulejos. Eu mesmo, o autor deste livro, filósofo nas horas livres, praticante de bilhar e professor de língua portuguesa nas horas presas.
O espantoso é que, onde outros vêem com razão uma igreja, ele veja uma Loja de São João do século XVIII e, mais extraordinário ainda, o lugar sagrado onde celebrava os seus ritos um ramo da misteriosa Ordem Templária ou Ordem da Serpente ou Ordem Sebastianista, nas três designações pelas quais a fez conhecer ao mundo o misterioso poeta Fernando Pessoa. Isto ir-se-á mostrando à medida que estas páginas vão sendo escritas. Claro que não escrevo para historiadores, mas para poetas. “A poesia é mais verdadeira do que a história”, ensinou Aristóteles, mas para tanto é necessário que a poesia esteja fundada numa verdade superior à da história, pois só esta é digna do seu nome. A história deverá servilmente encontrar e apresentar os documentos provativos de uma verdade que, por si mesma, não seria capaz de conceber. E aqui fica bem citar Agostinho da Silva quando diz que primeiro faz-se a teoria, depois logo se arranjam os documentos.
Eu sei que me vão dar por um espírito de imaginação desvairada e que, se me tomarem outros minimamente a sério, aparecerão a afirmar, com documentos ou sem eles, que, diga-se o que se quiser dizer, do que se trata é de uma antiga igreja, católica, apostólica, romana, como se, a ser assim, fosse impossível conciliar este facto com o de serem as imagens impressas nos azulejos a simbólica de uma Loja de São João. A coisa admirável é que, aqui, estão maravilhosamente associadas Igreja Católica e Maçonaria.
Neste sentido, o que importa desde logo ver é se, nessa simbólica se exprime o pensamento de uma Fraternidade, deixando para depois saber que tipo de Fraternidade, na relação do exotérico com o esotérico. Nada mais fácil. A obra está assinada. Podem ver-se na parte inferior do manto da segunda personagem, ao lado esquerdo de São João Baptista, três letras bem visíveis, F. MI, que são a abreviatura de Fraternidade da Misericórdia. A personagem tem sobre o peito uma cruz semelhante à templária. Não devemos atribuir ao acaso a sua escolha para portador da assinatura.
Tudo está em saber o que eram eram, em toda a sua extensão e em toda a sua profundidade, as Misericórdias fundadas por D. Leonor. Recordo o seguinte: A Rainha (representada à direita de São João nos azulejos) era irmã do Duque de Viseu, assassinado pelo Rei, D. João II; era também irmã de D. Manuel I; pertencia, pois, àquele grupo de nobres ligados à memória de D. Afonso V que D. João II desbaratou, matando e prendendo. Alguns deles conseguiram fugir para Espanha, entre os quais Isaac Abarnabel. Quem era Isaac Abarnabel? O Hermes Trimegisto, segundo os judeus. Cabalista e sábio tinha sido o conselheiro de D. Afonso V e o seu mestre espiritual. Era pai de Bernardim Ribeiro, o da Menina e Moça, o Leão Hebreu italiano.
Estes factos sugerem curiosas hipóteses. Mas não há nada tão incerto como a história. Pois se nós não sabemos o que se passa detrás dos acontecimentos políticos de hoje, que garantia oferecem as explicações dos historiadores com seus métodos científicos pretendendo indicar as causas de acontecimentos remotos? Os documentos só falam do que está à vista. Contra os documentos há todos os argumentos. Tudo o que do passado interessa verdadeiramente saber só o pode revelar o estudo daquilo que os historiadores põem de parte: a literatura, a arquitectura, a pintura, as lendas, desde que a mesma luz nos ilumine a decifrar o que foi cifrado.
Na Misericórdia de Sesimbra, há um quadro de Gregório Lopes (século XVI), contemporâneo da sua fundação, com Nossa Senhora de largo manto azul, aberto a abraçar o mundo e, de um e de outro lado, o clero e a nobreza, tudo como aqui, até à figuração das sete virtudes na peanha acima da qual se eleva. Aliás, este arquétipo parece ser comum a todas as Misericórdias do país. Mas, no quadro de Gregório Lopes, há um pormenor inquietante para o beatério, não para os que ainda sabem o que é o catolicismo e a sua sabedoria. A figura mais próxima de Nossa Senhora da Misericórdia é um homem do povo, entendendo por povo a terceira classe medieval. Está ajoelhado sobre o joelho esquerdo; a perna direita, em postura de esquadro, tem a calça arregaçada acima do joelho. É o que, ainda hoje, se pode observar na Maçonaria: o modo de ajoelhar, a altura da calça, a adoração da aurora que se levanta no Oriente. O candidato a Aprendiz ajoelha assim perante o altar do Venerável.
A Maçonaria em Portugal no século XVI! Como é isto possível?
Mas a Maçonaria em Portugal no século XVIII é um facto que não pode ser escamoteado. Abriram-se-lhe as portas com o Marquês de Pombal. Porque não haveria, então, uma Loja em Estremoz?
Houve, de facto, em Estremoz, uma Loja a funcionar no primeiro andar do edifício da Porta Nova, mesmo por cima da sala dos azulejos no segundo piso, mas nos fins do século XIX e princípios do século XX. Era conhecida exteriormente por Centro Revolucionário Republicano. Foram os maçons que anunciaram ao povo a implantação da República.
Isto, porém, pouco tem que ver com o que me proponho mostrar. A Maçonaria inspiradora do Centro Revolucionário Republicano é uma Maçonaria importada de França. A ideia que lanço é a da existência no século XVIII, senão até hoje, de uma Maçonaria caracterizadamente portuguesa e é para isso que servem os azulejos. Os mesmos símbolos, de um modo geral, devem, porém, aparecer numa e noutra, porque ambas derivam, embora por caminhos diferentes e diferentes paisagens de alma, da mesma origem remota. Adiante se tentará explicar por que misteriosas razões a nossa ficou até agora coberta ou encoberta.
Não é apenas um pormenor, como no quadro de Gregório Lopes, que dá força àquela ideia. Todas as indicações simbólicas apontam para a hipótese de que, em Estremoz, estamos perante o que foi uma Loja de São João, na linha das Misericórdias fundadas por D. Leonor.
António Telmo
UNIVERSO TÉLMICO. 58
27-04-2018 12:34Um fragmento da II parte de Vida Conversável, obra ainda inédita que resultou do registo de uma longa conversa de Agostinho da Silva com Henryk Siewierski, antecedido de uma nota introdutória assinada por este amigo polaco de Agostinho, é uma das valiosíssimas colaborações que vão integrar o próximo número da revista de cultura libertária A Ideia, especialmente dedicado à vida e à obra do autor de Conversação com Diotima e que será lançada no final do ano em curso, com coordenação editorial de António Cândido Franco, Pedro Martins, Risoleta C. Pinto Pedro e Rui Lopo. Em pré-publicação, antecipamos hoje aos nossos leitores um excerto dessa notável peça.
Vida Conversável
Fragmento da II parte (inédita)
Agostinho da Silva
com Henryk Siewierski
NOTA INTRODUTÓRIA
O texto aqui reproduzido integra segunda parte, ainda inédita, do livro Vida conversável, uma longa entrevista com Agostinho da Silva, conduzida e gravada nos últimos meses de 1985 e primeiros de 1986, em Lisboa. A primeira parte foi publicada pelo Núcleo dos Estudos Portugueses da Universidade de Brasília, em 1994 e, logo em seguida pela editora Assírio & Alvim, de Lisboa. Somente em 2014 apareceu perdido na passagem dos séculos e nas desventuras editoriais o texto datilografado da segunda parte. Atualmente a Vida conversável aguarda a sua publicação na íntegra.
Concluída a gravação, na primavera de 1986, Agostinho da Silva quis que o seu interlocutor dispusesse do texto das conversas de forma que acharia melhor. Tomei a liberdade de retirar do texto as minhas perguntas, comentários, provocações, já suficientemente presentes nas respostas, e dessa forma deixar correr a fala do Professor, não interromper nem fragmentar o seu fluxo, preservar ao máximo o caráter oral e o estilo individual do discurso que resiste a quaisquer interferências na sua exigente e envolvente sintaxe. Espero que desta forma o Leitor possa presenciar, também como o ouvinte, esse discurso inacabado e indisciplinado sobre tudo, em que a retrospecção da vida, a reflexão e a experiência revivida de busca do saber se confundem e complementam, e talvez o mais importante aconteça entre os domínios da ciência e da poesia, da física e da metafísica, em diálogo com o mundo e com o outro, além dos sistemas limitados pelos dogmas e preconceitos.
Brasília, 25 de março de 2018.
Henryk Siewierski
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47.
Seriedade com que uma criança brinca. No templo budista em Tóquio. Toynbee e o futuro do mundo. Herdeiros do Cristo e do Maomé. Entender os outros no Oriente e no Ocidente. A busca da unidade fundamental pelo europeu. China, Brasil, Japão. Fernando Pessoa – a unidade e a pluralidade. O fenômeno e o numeno. O verbo ser. Tempo e eternidade. Homem – filho de Deus.
A começar da tal história de Tóquio, neste livrinho do Nietzsche reencontrei uma frase que eu já conhecia de qualquer outro lado e que me parece muito importante, na qual ele diz que um homem atinge o máximo de maturidade na sua vida quando tem a seriedade com que uma criança brinca.
Ora, muito bem. Eu estava a ouvir uma história de Tóquio e estava a pensar naquilo que me contou do seu Miguel brincar em português. Quando o Miguel está inteiramente sério, segundo Nietzsche, isto é, quando não é um heterônimo na casa onde fala polaco, quando é ele mesmo no máximo da sua maturidade de 6 anos, no máximo de sua seriedade, o nosso amigo fala português, não aquele português do diálogo com que ele fala com os meninos da escola, mas um português do monólogo consigo próprio. Esse é um ponto muito importante. Quer dizer, se quando estamos plenos na vida, nós não estamos a ter uma linguagem connosco. Por enquanto, o menino está tendo uma linguagem falada, ele fala em português. Provavelmente, um pouco mais tarde, o menino brinca sem falar, possivelmente é o que vai suceder. E, quando ele for homem e estiver no máximo da seriedade, ele porventura não fala, ele vai abolir todos os heterônimos, porque ele falar quando brinca ainda é de certo modo um reflexo do heterônimo que ele é na escola. Um dia, quando ele estiver inteiramente sério, apaga todos os heterônimos e fará uma coisa que não tem linguagem para ele.
Quando eu estava na tal história do templo em Tóquio, eu realmente estava a falar alguma linguagem ou estava a ser mudo numa verdadeira linguagem? Eu estava realmente a ser dois ou três heterônimos. Estava ser um português ou brasileiro, um brasileiro em Tóquio, num país estrangeiro e, portanto, vendo as coisas com certa estranheza, achando muito interessante o som do sino e o som da moeda batendo na madeira. E ao mesmo tempo estava com as lembranças das minhas origens. Era um brasileiro em Tóquio, mas era também um português, pequeno, rezando as orações que a mãe em Barca d’Alva me tinha ensinado. Mas, na realidade, eu porventura estava silencioso. O íntimo de tudo não era eu estar a dizer as orações – até não sei se as dizia em voz alta se não –, nem tocar o sino, nem lançar a moeda. Eu estava de fato sendo ali plenamente religioso com o íntimo de cada uma daquelas coisas tão diferentes. Porque naquele templo já devia estar misturado culto dos antepassados e religião do Buda – primeira mistura. E a outra mistura que eu estava fazer era realmente a de uma religião que não era nem sequer um catolicismo ocidental, que era um catolicismo da minha mãe que porventura não seria um catolicismo muito ortodoxo, porque não me lembro por exemplo de ela ir à missa, de maneira que já devia ser um catolicismo meio avariado pelos mouros lá de baixo porque ela era originária do Algarve. Não nasceu no Algarve, nasceu em Lisboa, mas a minha avó, mãe dela, era realmente do Algarve, de maneira que aquele catolicismo dela já devia estar temperado. Além disso ela tinha tido uma experiência de Brasil, onde também não podemos garantir que o catolicismo seja perfeitamente ortodoxo. Bem, era, portanto, uma coisa qualquer que, no entanto, ela exprimia pelas orações que fazem parte do breviário, fazem parte da catequese de qualquer católico, mas provavelmente havia um silêncio interno fundamental.
Então, quando nós falamos desses homens todos que cita o nosso amigo Toynbee – nesta parte do Civilization on Trial que citou, em que ele diz que os nossos próprios descendentes não vão ser simplesmente ocidentais como nós, mas vão ser os herdeiros de Confúcio e Lao Tse, de Cristo e Maomé, de Lenine e Ghandi, etc. –, nós vemos evidentemente que não é aquilo que ele diz pelas suas palavras o que tem importância. Quando nós pensamos nas guerras que houve entre cristãos e mouros, entre muçulmanos e cristãos, as mais violentas que têm havido no mundo, e evidente que nós não pensamos que sejamos ao mesmo tempo herdeiros duma contradição. Mas é possivel que, à medida que nós nos vamos afastando no tempo, que vamos vendo a história mais longínqua se comecem esbatendo aquelas coisas que caracterizam cada uma dessas personalidades, para ficar apenas o fundamental. Exatamente como há diferença quando nós estamos junto dum homem e ele nos aparece com todas as suas características agradáveis ou desagradáveis, mas, à medida que nos afastamos dele, à medida que ele se afasta de nós e aquilo que é propriamente individual nele se vai esbatendo, fica apenas um pouco mais longe um ser humano, homem ou mulher, depois alguma coisa que era um vulto que sabemos não é um leão nem um elefante, é realmente uma pessoa, é um homem, e isso pode ser uma tranquilidade quando ele está misturado noutros seres… Se eu estou perdido no deserto e me aparecem bichos que não me interessam nada porque podem atacar e de repente aparece uma silhueta de homem lá no horizonte, a vida nova entrou imediatamente em mim. Eu não sei se aquele homem é mouro, se não é mouro, se me vai bater, se me vai matar, se me vai roubar, não sei absolutamente nada, mas pode haver uma esperança porque apareceu uma figura humana. Então, é possível que, à medida que nós nos afastamos do ponto da história em que eles estiveram, as coisas mudem. Quer dizer que nós tínhamos o homem fundamentalmente e não a sua circunstância. Quando se diz que cada pessoa é o que é mais a sua circunstância por adaptação, por harmonia ou por combate, não importa, ele e a sua circunstância, é possível que, à maneira que a história vai estando longínqua para nós, a circunstância desapareça ou apenas sirva para pôr em relevo umas determinadas características que nos dizem mais que as outras características que foram simplesmente o tempo dele.
UNIVERSO TÉLMICO. 57
17-04-2018 15:43Em pré-publicação, antecipamos aos leitores o prefácio que António Cândido Franco escreveu para Uma Vida de Herói: Morte e Transfiguração de Jaime Cortesão, de Pedro Martins, que será lançado no próximo dia 4 de Julho, no Museu Maçónico Português, em Lisboa.
Prefácio a Uma Vida de Herói: morte e transfiguração de Jaime Cortesão, de Pedro Martins
António Cândido Franco
Pedro Martins neste seu novo trabalho não se afasta da sua linha anterior – ler o que há de mais vital e vivo nas manifestações da cultura portuguesa a partir dum estrato iniciático, que é anterior às religiões e que lhes sobreviveu muitas vezes à margem ou mesmo em franco antagonismo.
Isto deu já proveitosos frutos na leitura duma pintura ainda tão mal conhecida como a de Vasco Fernandes, o autor dos painéis do Retábulo da Sé de Viseu, coevo de Gil Vicente e de Bernardim e sobre o qual tão pouco se sabe.
Com idênticas chaves de leitura – experiência e saber iniciáticos – ele consegue agora uma cerrada e prodigiosa interpretação de parte da obra de Jaime Cortesão e que fica desde já a ser, pela inteligência, finura e teimosia com que cinge as letras, um marco assinalável de progressão nos estudos sobre a poesia e o teatro do autor.
Só agora, após este trabalho, estamos em condições de começar a vislumbrar as verdadeiras dimensões duma obra poética e dramática que sem a simbologia iniciática ficava amputada dum espírito essencial que em muito contribui para a sua altura e o seu desmedido valor.
Cortesão é um dos grandes escritores do século XX português e este livro de Pedro Martins, escrito numa era sombria de morte e de esquecimento, contribui como nenhum outro até hoje para lhe restituir a aura de grandeza e de luz que tem.
UNIVERSO TÉLMICO. 56
11-04-2018 10:47Uma entrevista a José Flórido, conduzida por Risoleta C. Pinto Pedro e tendo Agostinho da Silva como pano de fundo, é uma das peças notáveis que vão integrar o próximo número da revista de cultura libertária A Ideia, especialmente dedicado à vida e à obra do autor de Conversação com Diotima e que será lançada no final do ano em curso, com coordenação editorial de António Cândido Franco, Pedro Martins, Risoleta C. Pinto Pedro e Rui Lopo. Em pré-publicação, antecipamos hoje aos nossos leitores um excerto dessa entrevista.
José Flórido, um dos seus livros tem por título Reencontrar Agostinho da Silva, sabendo-se que o encontro inicial se deu através de José Marinho, no IADE. Em que ano aconteceu e que impressão lhe fica desse primeiro momento?
Não costumo ser muito preciso no que diz respeito a datas... Mas, o encontro inicial aconteceu por volta de 1969 ou 1970, no IADE, onde se realizaram colóquios em que participaram diversos filósofos, entre eles, evidentemente, o Agostinho da Silva e o José Marinho. Antes da realização do primeiro desses colóquios, vi, a determinada altura, entrar na sala um homem de aspecto muito modesto. Parecia até um campónio. Mas irradiava simpatia e serenidade. Era o Agostinho. Cumprimentou as pessoas... e, depois, dirigindo-se a mim, perguntou: "E este senhor, quem é?" O Marinho fez a apresentação. E o Agostinho, que não me conhecia de parte alguma, fixou-me durante alguns instantes, com aquele seu ar contemplativo e misterioso, e saiu-se com esta: "Tem graça. Era mesmo consigo que eu queria falar...
Houve de facto entre nós uma empatia imediata. E nesse momento, senti-me, talvez, na presença de um irmão mais velho... E, a partir daí, creio que muitas coisas interessantes na minha vida foram acontecendo... Talvez fosse a intervenção do "Espírito Santo"... como ele costumava dizer.
Como era, na sua visão, a relação de Marinho com Agostinho e vice-versa? Recorda algum episódio digno de registo?
Tinham grande respeito e admiração um pelo outro. Eram duas figuras ímpares da nossa cultura. O Agostinho punha sempre em evidência a dimensão intelectual e espiritual do José Marinho."O José Marinho é indispensável", dizia. E o José Marinho procedia do mesmo modo, não deixando, às vezes, de reconhecer em Agostinho "um certo orgulho"... E houve até quem visse neles uma certa rivalidade... Mas, são pontos de vista... Eu não acredito nisso. Não me parece correto falar de rivalidade entre pessoas desse nível superior de inteligência e de cultura... Porém, no dia em que se realizou um desses colóquios, recordo o profundo diálogo que se estabeleceu entre eles, creio que a propósito da missão de Portugal no Mundo... Como houve alguns pontos de discordância, o Marinho, então, delicadamente, para não prolongar demasiadamente o diálogo, rematou deste modo: "Muito bem muito bem. Não há dúvida que argumentou muito bem... Eu respondo-lhe para a semana."
Marinho disse que o senhor (na altura muito jovem) «soube demasiadamente cedo certas coisas». De Álvaro Ribeiro recebeu uma advertência por alguma irreverência da idade. E Agostinho, alguma vez lhe dirigiu algum comentário desse tipo? Ou de outro?
Sim... na verdade, o Marinho considerou que haveria um preço a pagar pelo facto de eu, sendo ainda muito jovem, ter intuído certas verdades metafísicas, que me permitiram fazer uma leitura, ainda que incompleta (mas que ele, até certo ponto, aceitou) do seu célebre livro, "A Teoria do Ser e da Verdade". Naquela altura, não compreendi essa advertência... Mas, hoje, compreendo que tudo deve ter o seu tempo certo...E talvez a minha idade não fosse ainda a idade própria da metafísica... E o preço a pagar por essa antecipação, seria talvez o desinteresse ou mesmo o alheamento por determinados aspectos da vida, (e mesmo da cultura), necessários, e habitualmente mais próximos da idade que eu tinha nessa altura. Reconheço agora que o Marinho sabia o que estava a dizer... Quanto ao Álvaro, embora nunca me tenha sentido em muita sintonia com o seu pensamento... foi muito importante o contributo que ele deu à língua portuguesa. Mas, quando conheci o Agostinho já tinha um pouco mais de maturidade... O que não quer dizer que não merecesse da sua parte alguns reparos... Porém, o Agostinho, ainda que estivesse atento às nossas insuficiências, preferia sempre evidenciar os aspectos positivos das pessoas, afirmando mesmo que se o que há de superior em nós for estimulado e desenvolvido, o que possa haver de inferior acabará por ser a pouco e pouco eliminado... Por isso, o Agostinho, ainda que fosse um Mestre, nunca se quis assumir como tal. Por diversas vezes, assumiu, ou pareceu até assumir, o papel de discípulo, agradecendo as nossas intervenções e partindo delas para chegar a um maior aprofundamento das suas ideias. Chegou até a dizer que "tinha aprendido muito com os analfabetos"... Afinal, como diz um provérbio latino, Homo bonus semper tiro (o homem bom é sempre recruta).
INÉDITOS. 73
07-04-2018 17:31
Igreja Matriz de Arruda dos Vinhos
O Sagrado na Arquitectura[1]
Dado que o tema que me coube é O Sagrado na Arquitectura, parece-me um bom começo ver do que vou falar, perguntando à palavra sagrado e à palavra arquitectura o que é que significam.
Vejamos, pois, o que nos diz a primeira delas. Sagrado provém de uma raiz antiquíssima, a raiz sec, que, pelas duas consoantes que a constituem, combina em si a ideia de separação e a ideia de ocultação. A ideia de separação está bem clara em secção e sectário. O génio fonético que formou a língua portuguesa, o génio do povo a que pertencemos, transmutou o som c em som g para criar outra palavra que é como que a sua irmã gémea. Falo da palavra segredo. Entre sagrado e segredo há só a diferença das vogais. Mais erudito, porque mais fiel ao formalismo do étimo, é o adjectivo secreto. Dizer o sagrado na arquitectura é quase o mesmo que dizer o secreto na arquitectura. A diferença de vogais. É como se estivessem referidas uma ao exotérico, a outra ao esotérico, neste caso da arquitectura.
O que é que nos diz a segunda palavra significativa do meu tema? Diz-nos, desde logo, que é formada de duas: arquê e tectura. Ali, interrogando a palavra sagrado tivemos de saber algum latim, tivemos de relacionar, através do português, sacratum e secretum. Aqui, agora, temos de saber algum grego. Como as duas línguas são de origem indo-europeia, entendem-se bem uma com a outra e a nossa com elas, que de ambas deriva.
A primeira parte da palavra é o substantivo arquê, o primeiro a aparecer no Evangelho de São João, que, como sabeis ou não sabeis, começa assim: En arquê sên Lógos, in Principio erat Verbum, no Princípio era o Verbo ou o Lógos. Arquê significa, pois, Princípio, mas, notemo-lo bem, não no sentido de começo, porque a história só aparece ontologicamente depois. É como se lêssemos: no secreto do secreto se originou o Verbo, porque arquê, muito longe de significar começo, é propriamente o arcano dos arcanos, a arca que encerra todas as possibilidades que, postas em acto, formam ininterruptamente o Universo, o arco que lança a flecha de luz.
Só nos falta ver o que é “tectura”. Não existe como vocábulo independente em português, mas vê-se logo a sua afinidade com outras que têm essa existência como textura e tessitura. Deriva do verbo tectainô cujo sentido é este: a arte de construir em madeira.
Assim, a arquitectura, pensando a palavra como um todo, será a arte de construir em madeira segundo o Princípio.
António Telmo
[1] Nota do Editor – Esse texto, que se encontra inédito no espólio de António Telmo, consta de uma folha A4 por si dactilografada e corresponde, seguramente, ao início da comunicação que, sob o mesmo título, o filósofo apresentou à VII Semana de Estudos das Religiões, realizado em 12, 13 e 14 de Novembro de 1997 na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. A organização do evento foi do Instituto de Sociologia e Etnologia das Religiões daquela Universidade. Na edição do Diário de Notícias de 15 de Novembro daquele ano, a jornalista Antónia de Sousa, também ela oradora naquele encontro com uma comunicação sobre “A Iniciação feminina”, publicou uma reportagem sobre o mesmo, referindo-se à comunicação de Telmo numa caixa, cujo texto transcrevemos:
«O manuelino é uma arquitectura feminina
As igrejas portuguesas foram sempre orientadas de nascente para oriente [sic]. “Na arquitectura manuelina dá-se um acontecimento espantoso! Há uma orientação para sul. Verifica-se isso na Torre de Belém, na porta sul da Igreja dos Jerónimos e no Convento de Cristo em Tomar”, afirmou António Telmo, ligando a arquitectura sagrada portuguesa à iniciação feminina.
“Há três imagens femininas de Nossa Senhora, nesses três locais, que estão a olhar para o sul. O sul é a orientação esotérica que permitiu os Descobrimentos. Camões situa a ilha dos Amores no Sul. O manuelino é a arquitectura feminina por natureza”, disse.»
VOZ PASSIVA. 81
03-04-2018 12:35
António Telmo e Fernando Pessoa: Vanguarda e Tradição ou o direito do avesso
Pedro Martins
1. Portugal Futurista foi entre nós um marco miliário da Vanguarda e, simultaneamente, o seu canto do cisne. Move-me, a respeito desta revista, uma aparente perplexidade: a coexistência (ou talvez, melhor dizendo, a convivência), nas suas páginas, do Ultimatum de Álvaro de Campos e de A Múmia, poema esotérico e maçónico de Pessoa ortónimo, conforme a leitura que dele fez António Telmo, no capítulo “Fernando Pessoa, rectificador da Maçonaria” da sua História Secreta de Portugal, obra que aqui consideraremos na versão definitivamente estabelecida em O Horóscopo de Portugal. Como compaginar a Vanguarda, por definição anti-tradicional, com a tradição iniciática, que é a Tradição por antonomásia? O que proponho, ou predisponho, como princípio de uma investigação a aprofundar, é a tese da existência de um contacto estrutural entre as duas realidades, em termos tais que a primeira seja o convexo, ou o direito, do que na segunda será o côncavo, ou o avesso, ambas formando uma só e a mesma realidade, como uma medalha com o seu anverso e o seu reverso. A relação, no quadro da heteronímia, entre Álvaro de Campos e o Pessoa ortónimo, tal como António Telmo a entendeu, permitirá, a final, assim o espero, iluminar o insólito desta minha proposição, porventura audaz.
2. Há uma essencial identificação do Modernismo com a Vanguarda. Lembra, a propósito, Fernando Cabral Martins que «o Modernismo, segundo Almada Negreiros, designa a arte e a literatura em torno da Vanguarda portuguesa» (MARTINS, F. C., 2014: 17). O mesmo Almada que, em 1965, afirmara: «Toda modernidade nasce vanguarda» (apud MARTINS, F. C., 2014: 18). Na senda de Cabral Martins, poderemos olhar para a Vanguarda como exemplificação e coração do Modernismo, movimento a que, no caso português, se não deixa de assinalar aspectos contraditórios (cf. MARTINS, F. C., 2014: 19). Almada, por exemplo, como observa ainda o autor citado, «situa-se entre Vanguarda e tradição, entre a busca do original e da origem, do futurista e do arcaico» (MARTINS, F. C., 2014: 20). Em 1957, num artigo sobre Amadeo, revelará que «o “grande pacto” da Vanguarda – Amadeo, Santa-Rita, Almada – foi proferido perante o Ecce Homo, que é uma pintura do Renascimento» (apud MARTINS, F. C., 2014: 20).
Num texto de Fernando Pessoa sobre Orpheu podemos ler: «O termo “futurista” não é aplicável ao conjunto dos artistas de Orpheu, nem, até, a qualquer deles individualmente, ressalvado o caso do pintor Guilherme de Santa-Rita, e lamentáveis episódios de José de Almada Negreiros» (apud MARTINS, F. C., 2014: 22). O mesmo fará valer, com respeito ao conjunto, para os termos “sensacionista”, “interseccionista” e “modernista”, ressalvando somente Pessoa a propriedade desses adjectivos nalguns casos individuais. E conclui: «Os artistas de Orpheu pertencem cada um à escola da sua individualidade própria, não lhes cabendo portanto, em resumo do que acima se disse, designação alguma colectiva.» (apud MARTINS, F. C., 2014: 22)
Numa entrevista a O Dia, de 4 de Dezembro de 1916, Amadeo de Souza-Cardoso dirá afinal o mesmo: «Eu não sigo escola alguma. As escolas morreram. Nós, os novos, só procuramos agora a originalidade. Sou impressionista, cubista, futurista, abstracionista? De tudo um pouco. Mas nada disso forma uma escola.» (apud MARTINS, F. C., 2014: 23) E lembremos ainda Álvaro de Campos, no Ultimatum: «Passae, frouxos que tendes a necessidade de serdes os istas de qualquer ismo!» (CAMPOS, A. de, 1982: 31).
3. Passarei agora em revista algumas características nucleares da Vanguarda, seguindo de muito perto o magnífico ensaio – “Para o Estudo do Futurismo Literário em Portugal” – que Teolinda Gersão elaborou para a edição fac-similada do Portugal Futurista (cf. GERSÃO, T., 1982: XX-XXXIX) e problematizando a relação do Futurismo com a Tradição.
a) O antitradicionalismo. O passado está morto e contra ele, em todas as suas formas, se dirige o gesto agressivo de destruição e de recusa. Todavia, no Ultimatum, Álvaro de Campos pergunta: «Onde estão os antigos, as fôrças, os homens, os guias, os guardas?» Para logo responder: «Vão aos cemitérios que hoje são só nomes nas lápides» (CAMPOS, A. de, 1982: 31). Dir-se-ia que Campos proclama precisamente a morte do passado. Mas parece fazê-lo em tom lamentoso. A invectiva que, no texto, se seguirá, e que visa Fouillée, Rodin, Barrès ou Bourget, dirige-se essencialmente ao presente (Rodin morrerá em Novembro de 1917, mês da publicação do Portugal Futurista; dos restantes, só Fouillée tinha já partido).
b) A superação do espaço e do tempo. O automóvel e, sobretudo, o aeroplano, elevando-se acima da terra, superando – negando – o tempo e o espaço, serão temas centrais do Futurismo. Escreve Teolinda Gersão: «O homem futurista sonha ser ubíquo, da mesma forma que sonha superar (dominar) o tempo: num universo em movimento, o passado não existe e o presente que corre é já futuro.» (GERSÃO, T., 1982: XXII)
Deve notar-se que, no termo da realização espiritual própria dos pequenos mistérios, consubstanciada na restauração do estado primordial do Adão terrestre, na regeneração psíquica que o há-de restituir ao glorioso corpo de luz anterior à queda, a experiência do tempo se aproxima já da experiência da eternidade: é feita em termos de simultaneidade, não de sucessão. E Pascoal Martins, no seu Tratado da Reintegração, a propósito do paraíso terrestre, fala-nos misteriosamente de «uma terra erguida acima de todos os sentidos». (PASQUALLYS, M. de, 1979: 46)
Não nos iludamos, porém. Para o Futurismo, deverá o homem transformar-se em máquina. É Marinetti quem ambiciona um homem mecânico com partes substituíveis. Lapidarmente, observa Teolinda Gersão: «inverte-se deste modo a tradição milenar de animização da matéria» (GERSÃO, T., 1982: XXII), que é justamente, acrescente-se, aquilo que, do ponto de vista iniciático, visa a realização espiritual dos pequenos mistérios. René Guénon considera a este respeito uma «regeneração psíquica» (GUÉNON, R., 2002: 210).
c) A abolição do “eu”, da subjectividade, da psicologia. A psicologia humana deverá ser substituída pela «obsessão lírica da matéria», pela «psicologia intuitiva da matéria» (apud GERSÃO, T., 1982: XXIII). O Ultimatum dá-nos vivo eco dessa aspiração, ao proclamar, mediante uma intervenção cirúrgica anti-cristã, três desígnios:
- a abolição do dogma da personalidade;
- a abolição do preconceito da individualidade; e
- a abolição do dogma do objectivismo pessoal. (cf. CAMPOS, A., 1982: 33-34)
A respeito do primeiro desígnio, escreve Campos: «Devemos, pois, operar a alma, de modo a abri-la à consciência da sua interpenetração com as almas alheias, obtendo assim uma aproximação concretizada do Homem-Completo, do Homem-Syntese da Humanidade.» (CAMPOS, A., 1982: 33)
E a propósito do segundo, começará por afirmar: «É outra ficção teológica – a de que a alma de cada um é una e indivisível.» (ibid.)
É interessante aproximar estas proposições de uma caracterização sumária dos grandes mistérios, os quais, numa primeira fase, visam a realização dos estados superiores do ser: estados supra-humanos e supra-individuais (cf. GUÉNON, R.: 2000: 248), que se diriam o côncavo do convexo que é a abolição da personalidade e da individualidade proposta por Campos.
Nesta fase inicial dos grandes mistérios, o homem, superando a sua individualidade, procurará identificar-se com o Universo, ou seja, com o conjunto dos mundos, que a iconografia tradicional identifica com o Adão Qadmon, o Adão Celeste (cf. BENZIMRA, A.: 2013: 10). Não poderemos ver neste último o avesso de que o Homem-Syntese da Humanidade de Campos constituiria o direito?
Dir-me-ão que as propostas que Campos, partindo daqueles três desígnios, deduz em política, em arte e em filosofia nada têm de iniciático, tantos e tais os apelos que faz à ciência, garantindo absolutamente a vinda da Humanidade dos Engenheiros e proclamando, para um futuro próximo, a criação científica dos Superhomens (cf. CAMPOS, A., 1982: 34).
Mas quando, por exemplo, e como consequência da operação que conduzirá à abolição do dogma da personalidade, propõe em filosofia a abolição do conceito de verdade absoluta para defender que a maior verdade será a soma-síntese-interior do maior número das opiniões verdadeiras que se contradizem umas às outras (cf. CAMPOS, A., 1982: 33), estará ele assim tão distante dos iniciados, que reconhecem uma parte da verdade em cada uma das diversas formas tradicionais? (cf. GUÉNON, R.: 2002a: 65)
d) O primado do objecto. Esta proposição decorre forçosamente da implosão da subjectividade e implica a ruptura com a sintaxe e com a lógica, a supressão do discurso do logos, a eliminação de toda a mediação. Prevalece o substantivo, que traduz o objecto de modo imediato, exprimindo-o em toda a sua força, e o verbo não flexionado, isto é, dado no infinito (cf. GERSÃO, T., 1982: XXIII). Esta atitude é anti-iniciática, se por iniciação pressupusermos, com António Telmo, o exercício operativo de uma razão poética, ou seja, a acção da razão que verbaliza, pensa e confere expressão à experiência do mistério. A tal propósito, escreve o filósofo:
(…) onde quer que o homem escreva, fale ou pense, logo surge o adjectivo e o verbo, sob pena de se ficar mudo ou fascinado pelas imagens fixas que compõem o ser. Este envoûtement corresponde ao que, num plano mais profundo, Pascoal Martins chamou o êxtase de Adão. (TELMO, A., 2015: 86)
Para o futurismo, todavia, o “eu” cede o seu lugar ao objecto. O homem deixa de ser o centro do mundo. A introspecção autognósica, condição no microcosmo de toda a iniciação, é postergada. Mas, ainda aqui, seria eu tentado a ver uma projecção invertida, pela extrema imersão na matéria, desse máximo de realização espiritual que constitui, no termo dos grandes mistérios, a Libertação Final ou a Identidade Suprema: o pleno restabelecimento da união do homem com a Divindade. (cf. GUÉNON, R.: 2000: 248-249)
e) A analogia. Anote-se, por fim, neste âmbito, a importância de que esta se reveste para um Marinetti: «A analogia», diz ele, «não é mais do que o amor profundo que une as coisas distantes, aparentemente diversas e hostis» (apud GERSÃO, T., 1982: XXIV). Ora, a analogia constitui o método de conhecimento iniciático por excelência; e um esoterista como André Benzimra, a propósito da analogia e das correspondências como métodos de conhecimento hermético, lembra que elas são «o que subsiste da Unidade principial neste mundo da dualidade» (BENZIMRA, A., 2012: 8) E isto
porque a semelhança é uma sequela da Unidade de cada vez que dela nos afastamos e torna-se uma simples correspondência, quer dizer, uma semelhança quase apagada quando nos afastamos ainda mais da fonte de todas as coisas. Dito por outras palavras, a lei da analogia afirma que o mundo e o homem – o macrocosmo e o microcosmo – são filhos de Deus e a lei da correspondência diz que os seres e as coisas são irmãos e irmãs. (ibid.)
4. Será agora mister que projectemos o nosso olhar sobre o exercício hermenêutico que o poema A Múmia, de Pessoa, suscitou a António Telmo. Para tanto, torna-se conveniente não perder de vista a premissa de que o filósofo parte: nesta, como noutras composições do poeta, estaremos perante «a transposição poética da experiência de determinado ritual» (TELMO, A., 2017: 166). Acto contínuo, Telmo propõe-se «fazer a demonstração deste último ponto» (ibid.), o que irá lograr ao relevar topicamente o que o poeta re-velou nas estrofes do poema. Reincidir na condensação da paráfrase seria dar pálida imagem do labor magistral depositado na desocultação. Daí que a transcrição, bem que extensa, se imponha:
Em A Múmia se rectificam as interpretações sobre o que fosse a “câmara das reflexões”, correntes entre os maçons, a que aludimos no início deste capítulo. Fernando Pessoa restitui-lhe o significado iniciático e imemorial, “que de per si se não explica”, mas paira acima dos novos preconceitos e preocupações. Usa o termo de substituição “alcova”, como Dante usara o termo de «quarto» na Vida Nova. A reflexão tem como tema a morte iniciática:
Na alma meu corpo pesa-me
Sinto-me um reposteiro
Pendurado na sala
Onde jaz alguém morto.
A repetição da palavra “chove”, senha maçónica que transmitia o significado de uma interdição, exprime a natureza secreta do conteúdo do rito:
Na sombra Cleópatra jaz morta
Chove.
Embandeiraram o barco de maneira errada.
Chove sempre.
Para que olhas tu a cidade longínqua?
Tua alma é a cidade longínqua.
Chove friamente.
O neófito, encerrado na “câmara”, onde se apagaram as lâmpadas e há apenas “como uma suspeita de luz”, sente realizar-se em si a passagem da horizontal à vertical, isto é, do esquadro ao compasso. Altera-se o tempo, o espaço e o mundo:
Deixo de me incluir
Dentro de mim
A última parte do poema está referida à viagem simbólica pelo Templo. Leva, segundo o rito, os olhos vendados. Tudo no contorno de treva adquire vida e olhar; não há objectos e alguém espreita dentro de si e de tudo. O momento final do rito de recepção no grau de aprendiz, em que a espada é apontada ao neófito, é posto em correspondência com a espinha, de que já conhecemos o significado iniciático:
A sensação de ser só a espinha.
As espadas. (id., 166-167)
5. No termo desta digressão, como entender a coexistência, ou a convivência, do Pessoa ortónimo e de Campos nas páginas do Portugal Futurista? Como entender que Vanguarda e Tradição se assemelhem assim ao direito e ao avesso, ou ao convexo e ao côncavo, de uma mesma realidade, conforme as imagens que propus? Sem pretender avançar uma resposta definitiva, devolvo a palavra a Telmo, na esperança de que nos possa iluminar:
Nasceu Álvaro de Campos da “necessidade” de dar sentido ao mundo moderno, que, como já foi lembrado, constituía um obstáculo, em Fernando Pessoa, ao nortear do espírito para a luz, para a luz secreta da vida em direcção à qual se esforçava por fazer convergir todos os elementos e energias da alma. E a alma esquece-se e distrai-se de tudo quanto há de «poético», no exacto sentido da palavra, de todo o naturalmente simbólico, na medida em que, por uma necessidade social, entra para se dissolver na corrente convencional da vida moderna. O Sol e a Lua e todas as estrelas, símbolos nítidos pela exacta relação com Deus e com o grande mistério do abismo, que um Alberto Caeiro podia ainda contemplar na sua quinta do Ribatejo e que um Fernando Pessoa, todo recolhido para dentro, podia ainda pensar na caverna cabalística do espírito, apagam-nos as luzes da cidade, diluem-se no céu fosco e industrial. O comércio, os grandes hotéis cosmopolitas, a dobrada à moda do Porto, os guindastes e os transatlânticos, os grandes salões, as fábricas, os escritórios, os cafés, a literatura, tudo isso e muito mais abrem um abismo entre nós e o cosmos, na sua evidência natural, simbólica e divina, cosmos no qual, antes de tudo isso, o homem se inseria por meio de ritmos e ritos certos como o instinto primitivo da alma. Irrompe dos interstícios fundos da terra o ferro, donde a natureza o elaborava lenta e subtilmente. Arrancado do subsolo, seu lugar natural, quer seja alumínio, zinco ou aço a forma em que o concebamos, tudo invade e subverte. A rotina de hoje substitui o rito de ontem. No caos de sons estrídulos dos atritos fabris ouve-se o coração do ferro batendo, no íntimo mais íntimo do que nos sentimos ser, a grande cadência sinistra de um imenso martelo que nos prega a alma à cruz da vida moderna.
Tal o quadro tantas vezes descrito pelos passadistas. Mas há um Pessoa qualquer que não é uma qualquer pessoa e diz para si: Entrar na rotina e esquecer-se é perder-se; sair dela para um convento, para um deserto, para a morte, é desistir e renunciar. Não se nasce por acaso. “O lugar e a hora são um só” com o astro interior e exterior dominante no horóscopo. E então há que não fugir da corrente actual do tempo, há que montá-la como se monta um tigre e dar-lhe um sentido positivo. Desviar-lhe o curso, como se fosse um Nilo.
O heterónimo Álvaro de Campos nasce dessa necessidade.
Creio que ninguém confundiu até agora com o marxismo a crítica das formas de vida burguesa exercida por Fernando Pessoa através de Álvaro de Campos.
A poesia do autor da Tabacaria (e também a prosa) actua como um dissolvente, pelo escândalo atirado contra o rosto da hipocrisia burguesa, que mantém do sagrado, na Família, na Pátria e na Religião, aquilo que do sagrado sobrevive para não deixar ver e não deixar ser o que nele é fundamental. E a burguesia procede assim por um instinto de classe ou por um instinto da humanidade na fase especial que corresponde à burguesia, instinto que sabe muito bem que, no dia em que aquele fundamental viesse a afirmar-se, tudo ruiria, nada restando do bem-estar social de que desfruta. Álvaro de Campos podia ter sido marxista, se pensasse o fim da humanidade em termos económicos e até em termos sociais. Ele foi, porém, uma criação de Pessoa, e a natureza em que o fantasma seu encarnava, estava de raiz ligada a fins diversos, que insisto em chamar iniciáticos. A vida moderna, fabril e febril, gigantesca e tecnológica, titânica, segundo os marxistas produto do capitalismo e da exploração do trabalho alheio, afigurava-se-lhe capaz de ser sentida e vivida no plano metafísico ou, em termos poéticos, nas suas origens vulcânicas, se a estabilidade e a solidez das instituições burguesas pudessem vir a ser abaladas. Então, a corrente extravasaria e o grande sentido cósmico da civilização moderna revelar-se-ia na hora da morte e do cataclismo pela vivência duma energia indómita. (TELMO, A., 2015: 204-205)
Para António Telmo, «cada um dos heterónimos é, além de outras coisas, um instrumento de exploração do desconhecido e uma via de realização iniciática» (TELMO, A., 2015: 200). Desta constelação, tal como o filósofo no-la vai apresentar, é indissociável, como sua parte integrante e co-essencial, o próprio Pessoa ortónimo. Já num escrito do seu período formativo, “Notas sobre Teixeira Rego”, publicado em 29 de Setembro de 1955 no Diário de Notícias, havia escrito o autor de Filosofia e Kabbalah:
Descobrir a personalidade e a tradição que se escondem e se revelam ou velam repetidamente, constituiu o fim da investigação literária de Teixeira Rego. Assim aconteceu com o problema da personalidade de Bernardim Ribeiro, que ele dizia ser a de Cristóvão Falcão, apoiando a tese de Delfim Guimarães, como também a do filósofo leão Hebreu. Estes três seriam heterónimos do judeu Abarnabel, nome que é anagramático de Bernardim.
O problema dos heterónimos que, como é sabido, tem ocupado para com Fernando Pessoa os modernos investigadores da literatura, relaciona-se com o problema dos pseudónimos. Se, no caso de Fernando Pessoa, este houvesse sido considerado também um heterónimo, diversa teria sido a posição do problema. De resto, personalidade é conceito somente vivo e fecundo dentro de uma teoria evolucionista e, por isso, não nos surpreendem as posições a este problema dadas pelos passadistas. (Telmo, A., 2017a: 50)
As referências aos termos personalidade e tradição iluminam-se mutuamente. A personalidade constitui o núcleo integrador ou o cerne aglutinador das diversas personas ou máscaras em que a heteronímia se re-vela ou desenvolve. Essas máscaras são logicamente co-essenciais na ordem da simultaneidade, mas só na ordem da sucessão, dentro de uma teoria evolucionista, recobrarão o seu pleno sentido no todo. Sob pena de incompreensão, a evolução (evolutio = acção de desenrolar pergaminhos; evolvere = desenrolar livros ou pergaminhos) assim pressuposta deve ser etimologicamente aproximada da noção correlata de desenvolvimento, num quadro de introspecção autognósica, qual o definido por Álvaro Ribeiro em A Razão Animada:
Ao dizer-se eu, ao distinguir a sua personalidade da sua propriedade. Cada homem reconhece que no desprendimento se dá um desenvolvimento, e que esse desenvolvimento equivale a uma evolução. Alcançaria a nudez essencial ou essente para que tende o movimento evolutivo, se existente não fosse a mediação do meu. As expressões de posse e de propriedade, ainda quando referidas a utensílios e a órgãos, enganam quem não for exercitado pela autognose a levar ao limite a distinção essencial entre o eu e o não-eu. (RIBEIRO, A., 2009: 37)
Deste ponto de vista, a tradição mencionada só poderá ser a tradição iniciática. A sabedoria de que esta é depositária e que justamente constitui o objecto da transmissão, ou da traditio, ao iniciado, explicará operativamente a evolução da personalidade re-velada nas personas da constelação heteronímica. Já por mais de uma vez a figura de Pascoal Martins foi referida nestas linhas e, a este propósito, convirá, de passagem assinalar a forte influência do martinismo no pensamento pessoano. (cf. TELMO, António, 2014: 125-128)
À distância de quase seis décadas, António Telmo, ao considerar o próprio ortónimo como um dos quatro grandes heterónimos de Fernando Pessoa, como que antecipa a leitura hodierna, laboriosa e percuciente, de Fernando Cabral Martins, que integra Pessoa no sistema heteronímico, notadamente pela sua vinculação ao magistério de Caeiro. De entre as várias citações que ilustram esta aproximação, privilegiarei o seguinte excerto:
A relação entre Pessoa e Alexandre Search é de simples pseudonímia, e tem apenas que ver com o facto de ser um poeta em inglês. Mas entre Pessoa e Fernando Pessoa a relação é muito mais complexa, e têm que se ler a propósito, por exemplo, além da carta a Casais Monteiro, as passagens das Notas para a Recordação que envolvem a inclusão do ortónimo no grupo dos heterónimos, a polémica entre Fernando Pessoa e Álvaro de Campos na Athena e, ainda, ao tempo de Orpheu (cf. VI.4), a apresentação de Fernando Pessoa como o chefe do Paulismo e Alberto Caeiro como chefe do Sensacionismo. (MARTINS, F. C., 2014: 128)
Os estudiosos de Fernando Pessoa terão proveito em (re)descobrir a profundidade hermenêutica das leituras a que Telmo submeteu a obra do poeta. Verificarão como é destituído de sentido permanecerem de costas voltadas para uma interpretação que, longe de contrariar as suas propostas, as corrobora em lances de aprofundamento. E talvez assim, futuramente, se previnam injustiças como a que a omissão do nome do filósofo no Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português lamentavelmente representou.
6. Fernando Cabral Martins dá Alberto Caeiro como «o completo avesso de Pessoa» (MARTINS, F. C., 2014: 122). António Telmo já os havia contraposto antiteticamente como os extremos do eixo vertical de uma cruz de que Campos e Reis se constituem, em nova antítese, como o eixo horizontal. Impõe-se, todavia, averbar o esclarecimento do filósofo:
Nesta cruz, os opostos são também complementares. Como Fernando Pessoa suscita por antítese Alberto Caeiro, assim Álvaro de Campos põe Ricardo Reis como necessários.
Quem percorrer o círculo dos quatro detém o segredo da totalidade poética. Pode livremente estabelecer a série de correspondências dos termos da “cruz” com os quatro elementos, as quatro estações, os quatro pontos cardeais, os quatro signos fixos. A cruz funciona como uma chave mágica. Os quatro compõem, na harmonia tensa dos opostos, o Homem Universal: Ricardo Reis, o que há em nós de grego e latino lembrando o oriente; Álvaro de Campos, o do Ocidente fim de ciclo e, portanto, do Futuro; Alberto Caeiro, o do Norte onde parece ter estado o Paraíso e onde sempre tem estado o ponto fixo polar e originário; Fernando Pessoa, o que vive nos Infernos, na África da alma. E assim forma também o misterioso Jano Quadrifronte que a Europa desenha geograficamente.
Poderíamos prolongar indefinidamente as analogias. O leitor, se quiser, que o faça sozinho! Não obstante a beleza das operações com imagens e números, é necessário não esquecer os homens que estão por detrás dos símbolos, de modo a determinar oposições e complementaridades cruciais através da psicagogia. (TELMO, A., 2015: 207)
E, pouco adiante, acrescentará:
Esta lógica da alma surpreende e espanta. Chego a ter medo que não seja verdadeira, como se o intérprete tivesse caído em qualquer espécie de falso delírio. Os quatro invocam-se uns aos outros, num jogo movente de teses e antíteses tão reais como as de Hegel. E, no fim, o que importa é a unidade progressiva dos quatro, «o equilíbrio das várias potências da alma», para usar a expressão do próprio poeta. Mais ou menos, nem que seja tão-só aparentemente, todos o conseguem pelo predomínio dado ao elemento fixo em nós. Mas Fernando Pessoa desencadeia os elementos e encadeia-os depois num sistema de relações dinâmicas em que cada um se desenvolve livre até onde vai o poder de conhecer. Nunca nenhum poeta o fez assim. Com matemática interna. Por isso os heterónimos, longe de serem um artifício, uma construção arbitrária da imaginação, são, ao invés, tão necessários e quase diria fatais que da sua existência dependia para Fernando Pessoa o desenvolvimento livre da sua experiência humana e sobre-humana e até a perpetuidade ulterior do seu ser consciente.
Os últimos períodos deste extracto de “Os heterónimos de Fernando Pessoa”, escrito de imprensa publicado em 1973, e posteriormente reunido Filosofia e Kabbalah, de 1989, se reafirmam a tese télmica do sistema heteronímico como instrumento poético de realização espiritual, ou seja, como expressão literária de uma experiência misteriosa ou iniciática – é-se iniciado nos mistérios –, podem, quanto ao rigor construtivo que neles se enfatiza, ser aproximados de uma outra proposição de Fernando Cabral Martins:
Mas os heterónimos dialogam, discutem teoria do conhecimento, definições da arte posições políticas, formas religiosas, conhecem-se no grupo que formam. Toda a fragmentação se resolve num sistema perfeito de relações e diferenças. Todos têm o seu lugar preciso – mesmo o ortónimo. (MARTINS, F. C., 2014: 92)
A possível divergência na franca convergência das asserções dos dois intérpretes está sobretudo em que Telmo, sempre fiel ao norte d’o que mais importa, e assim desinteressado do que apodava de cultural, foi ao âmago de quanto se joga na heteronímia. Sem nunca a maltratar, a sua leitura não se contenta com a epiderme. De certo modo, ou até certo ponto, acompanha o Pessoa ortónimo, esse «novelo embrulhado para dentro», como imprecisamente se lhe refere, citando-o, em Filosofia e Kabbalah (TELMO, A., 2015: 202). É o ortónimo o avesso de que Campos se constitui como o direito, no improvável comércio que entre ambos se estabelece nas páginas do Portugal Futurista. Certo que o nome contrapolar de Pessoa nos “passos da cruz” que se viu ser engendrada por Telmo é Caeiro e não Campos, mas a um e a outro os une a primazia que concedem à exterioridade.
Porém, essa propensão para o exterior, e a recusa da metafísica que a envolve, não podem ser encaradas nos mesmos termos num e noutro caso. Escreve António Telmo: «Alberto Caeiro, mestre de Álvaro de Campos, o da Idade do Ferro, está, por dom inato e iniciação subtil, na Idade do Oiro» (TELMO, A., 2015: 200). Caeiro, que pelo filósofo vimos ser referido ao Norte onde parece ter estado o Paraíso, «porque está antes de o Abismo e da Queda, usa as palavras dos homens como quem não quer e não precisa» (TELMO, A., 2015: 209). Ao contrário de Álvaro de Campos, que em Tabacaria a rejeita em detrimento dos chocolates, o seu mestre recusa a metafísica apenas porque ela lhe seja desnecessária. Só num plano de aparência, que, não obstante, sempre teremos de levar em conta, Alberto Caeiro se encontra referido ao elemento terra, porque, no seu caso, as noções de matéria e de corpo se revestem de uma significação que o Ocidente profano terá dificuldade em aceitar. Um excerto de Benzimra tornará mais evidente o que vem de ser afirmado:
Os conceitos de anímico e de corporal têm apenas um valor relativo e a mesma coisa poder-se-ia dizer anímica ou corporal consoante o plano de referência considerado. No fluir temporal, as etapas de solidificação não são todas percorridas de imediato nem de um só golpe. E deste modo, o que para Adão no Éden era corporal, isto é, ocupava o lugar da exterioridade, pertence no homem da nossa época à ordem da interioridade e releva de um plano superior.
É isto que explica que diversas tradições apresentem a natureza corporal dos primeiros tempos como mais fluida, mais subtil e mais radiante do que a matéria à qual estamos acostumados. Elas dão do mundo sensível das origens uma descrição tal que seríamos tentados a daí inferir que a matéria mudou de propriedades ao longo do tempo, quando o que mudou, foi menos a matéria – cujo conceito não pode ser mais impreciso – do que o ponto de vista sobre o que é ou não é corporal, sobre o que é exterior ou detém lugar na interioridade.
O que, no estado edénico, era sentido como invólucro corporal ou exterior foi absorvido para o estado anímico quando Adão e Eva provaram o fruto proibido. Descendo então um grau de Existência, eles foram revestidos de um novo corpo, mais grosseiro do que o precedente, e feito de uma substância inferior. Foi porque se «aperceberam de que estavam nus», que sentiram a vergonha e a confusão e se «cobriram com vestes feitas com folhas de figueira», e depois «com peles de animais». (Benzimra, A., 2013: 322)
Sabida a equívoca duplicidade dos símbolos, o elemento terra, que para Caeiro se constituirá como o signo dominante, deve aqui ser duplamente referido: no plano lógico subjacente ao desenvolvimento que na heteronímia se reflecte, à terra simbólica da densidade corpórea após a Queda; e, num plano ontológico, que o poeta subtilmente re-velou, à terra espiritual onde impera o glorioso corpo de luz de Adão. Neste sentido, é possível afirmar, a partir de António Telmo, uma aparente oposição, mas também uma efectiva complementaridade, entre Caeiro e o Pessoa ortónimo. Desse prisma, o primeiro será o ponto de partida do segundo, mas será também a sua meta, bem que provisória, ou intercalar, pois a coincidência tangencial, numa ascensão espiralada, é apenas aparente: uma ilusão de óptica. O Pessoa ortónimo, «o que vive nos Infernos, na África da alma» (TELMO, A., 2015: 207) – e por isso estará certo referi-lo ao elemento fogo que os relatos visionários nos dão como termo da descida aos infernos –, parece destinado à realização vertical dos grandes mistérios.
7. Dito isto, será com efeito Álvaro de Campos o paladino da exterioridade corpórea, tal como esta, na Idade de Ferro em que, com ele, nos encontramos, é usualmente entendida. Nessa medida, Campos pode bem representar o direito de que o Pessoa ortónimo, novelo embrulhado para o lado de dentro, se constitui como o avesso. Desse comércio insólito, porém inconsútil, nos dão notícia as páginas pessoanas por nós consideradas no Portugal Futurista. Do aprofundamento do estudo das relações entre a Vanguarda e a Tradição, que aqui se encetou perfunctoriamente, dependerá, em última análise, a melhor compreensão das tensões interiores que enformam o dinamismo em que se joga a heteronímia pessoana.
Bibliografia final
BENZIMRA, André (2012). Enquête sur l’existence d’une théorie du temps cyclique en Franc-maçonnerie. Milão: Archè
BENZIMRA, André (2013). Petits et grands dans la kabbale. Paris: Éditions de La Hutte
CAMPOS, Álvaro (1982). «Ultimatum». In: Portugal Futurista – 2.ª edição facsimilada. Lisboa: Contexto, pp. 30-34
GERSÃO, Teolinda (1982). «Para o estudo do futurismo literário em Portugal». In: Portugal Futurista – 2.ª edição facsimilada. Lisboa: Contexto, pp. XXI-XXXIX.
GUÉNON, René (2000). Aperçus Sur L’Initiation. Paris: Éditions Traditionnelles
GUÉNON, René (2002). Symboles de la Science Sacrée. Paris: Gallimard
GUÉNON, René (2002a). Aperçus Sur L’Ésotérisme Chrétien. Paris: Éditions Traditionnelles
MARTINS, Fernando Cabral (2014). Introdução ao Estudo de Fernando Pessoa. Lisboa: Assírio & Alvim
PASQUALLYS, Martinets de (1979). Tratado da Reintegração dos Seres Criados. Lisboa: Edições 70
RIBEIRO, Álvaro (2009). A Razão Animada. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda
TELMO, António (2014). A Terra Prometida: Maçonaria, Kabbalah, Martinismo e Quinto Império. Sintra: Zéfiro
TELMO, António (2015). Filosofia e Kabbalah seguida de Álvaro Ribeiro e a Gnose Judaica e outros estudos. Sintra: Zéfiro
TELMO, António (2017). O Horóscopo de Portugal e escritos afins. Sintra: Zéfiro
TELMO, António (2017a). História Oculta de Portugal precedida de No Meio do Caminho da Vida e Os Meus Prefácios. Sintra: Zéfiro
VOZ PASSIVA. 80
03-04-2018 12:21Da escrita de Risoleta C. Pinto Pedro sobre António Telmo
Eduardo Aroso
Há quem leia nas mãos, outros nos olhos, e há muito menos gente a ler o Portugal oculto, muito embora, em alguns contornos, seja visível em pormenores monumentais, na pintura, no pensamento português e na literatura. Risoleta Conceição Pinto Pedro deu à estampa a sua mais recente obra António Telmo, Literatura & Iniciação, que nos chega como um ânimo atento e consciente da leitura de um dos maiores pensadores portugueses do século XX, árduo labor a que poucos se lançam, ou não fosse este um Getsmani perante o “literariamente correcto”! Aventura difícil que só a alma pode ter como regozijo compensador para quem percorre a verdadeira Tradição, quantas vezes labiríntica, mas que, apesar disso, é a única prova real de que há labirinto, enigma que não se pode anular, mas resolver-se (Pessoa diria «cumprir-se») pela única entrada e saída.
Não seria atrevimento, sobretudo pelos últimos escritos de Risoleta, dizer que esta também persiste em não quebrar o subtil fio de Ariadne, na esteira da via sibilina e serviçal que, por exemplo, uma Dalila Pereira da Costa também percorreu, por certo em tempos e contextos de vida diferentes, mas sempre no único e mor contexto que se designa de Portugal, e para alguns de Porto Graal.
O facto da capa de António Telmo, Literatura & Iniciação constar de uma foto, onde vemos o olhar perscrutador de António Telmo, qual radiografia pensante sobre a pedra do Mosteiro dos Jerónimos, sendo um pormenor da obra em causa é contudo algo que não está alheio ao conteúdo do livro. Da sua leitura, ficamos com a serena convicção da autora desta obra poder esclarecer - melhor dizendo, aproximar - o leitor do legado de António Telmo. Como se apresentasse, face a face, o leitor ao filósofo e disso resultasse uma atmosfera mais propícia e apetecível para percorrer a sua obra, começando logo pela linguagem cristalina, muito própria de Risoleta. Esta não cai na tentação do que muitas vezes acontece: pretender dizer o que o autor estudado nunca diria, e nós vemos que os corredores académicos estão cheios disso. O que a autora, serenamente, vai operando em cada página, é trazer o que porventura escape ao leitor numa leitura que não capte com mais facilidade todo o manancial télmico. Uma coisa é certa: Risoleta C. Pinto Pedro move-se (e move-nos), não enjeitando a mesma atmosfera anímico-espiritual na linha fulcral de pensamento do autor de História Secreta de Portugal. A afeição a essa atmosfera é como um horizonte para além do qual se adivinha não uma mas várias Índias, ou a caverna da palavra que ainda nos pode devolver o «pensamento que pensa», o mesmo é dizer para nós que acreditamos que há ainda uma casa ou pátria física e/ou anímica onde se repousa e ganha força para a batalha da vida.
Quanto a essa atmosfera onde Risoleta C. Pinto Pedro se move (e nos move), aí reside o essencial, mas convém dizer que estar no tom, como bem sabem os músicos, não é necessariamente repetir as mesmas frases musicais nota a nota, pois que por variante se pode entender continuar na mesma tonalidade. E se modulação houver, trata-se de dar continuidade ao que não deve ter cisão.
8-3-2018
«OS MEUS PREFÁCIOS». 14
03-01-2018 12:37
Carta prefacial a O Anjo e a Sombra, de Pedro Martins[1]
Meu estimado Amigo Pedro Martins
Li pela segunda vez o texto do seu livro e, como da primeira, senti que estava perante um momento decisivo da evolução da alma portuguesa.
A alma portuguesa recolheu-se, como sabe, na filosofia derrotada, tal como a denominou Orlando Vitorino significando com isso que não há hoje condições de levar ao povo o que é do povo e há pois que esperar o dia do Advento, quando a desolação for total.
O Pedro Martins podia ter sido um campeão da filosofia triunfante, se persistisse em pensar sem expectativa pelo declive fácil de uma qualquer carreira universitária ou política. Devo confessar-lhe que, não obstante os laços de amizade que nos puseram a mim e a si colaborantes em vários momentos de expressão cultural e até cultual, não esperava que, de repente, efeito talvez de um fiat lux, emergisse da Sombra da sua alma o Anjo do seu intelecto a dizer-nos as palavras que faziam falta e que ainda não tinham sido ditas sobre Teixeira de Pascoaes e a filosofia portuguesa, a filosofia portuguesa e a redenção de Portugal.
Antes de si, na sua geração, já havia o Pedro Sinde com O Velho da Montanha – A Doutrina Iniciática de Teixeira de Pascoaes. Mas o Pedro Sinde nasceu já com o sentido do caminho. Bastou-lhe olhar para ver. O seu caso é diferente. Foram-no buscar.
Não me explico de outro modo a transfiguração que, subitamente, recebeu o seu pensamento (veja “o pensamento” como sujeito gramatical). É verdade que ambos conhecemos as estranhas circunstâncias que envolveram a emergência do seu livro. Uma reacção e, depois, o relâmpago.
Hoje, vejo claramente porque lhe foi distribuído o papel de compassar a filosofia portuguesa tendo por ponto fixo Teixeira de Pascoaes e por ponto rotativo o pensamento de Álvaro Ribeiro.
O Pedro Martins trazia atributos que raramente convivem entre si na mesma pessoa: uma clara inteligência, até excessivamente clara a ponto de ser prejudicada pela rapidez do raciocínio; uma capacidade de trabalho perfeitamente adequada ao exercício dessa inteligência; intuição e imaginação; limpidez moral que o punha pronto a combater pelo que se lhe afigurasse ser o bem e a verdade; e era sobretudo atraído pelo “mistério da beleza, primeira e última, da metáfora”, tal como lhe aparecia na arte e na natureza.
Terá sido tal constelação de atributos que decidiu da “escolha”? Creio que sim, embora nestes casos permaneça quase sempre meia oculta a verdadeira causa.
Antes de terminar esta carta, gostaria de deixar um aviso. Eu sei por experiência própria que cada livro que escrevemos é como um espelho em que projectamos o que no momento é o melhor de nós. A luz que ilumina o espelho vem do nosso próprio olhar. Envolve-nos um fascínio que é uma inteira criação da nossa imaginação. Tal envolvimento pode levar à perda do dom de pensar em expectativa.
Mas, sem envolvimento, não há desenvolvimento. De livro para livro, vamos mudando de pele como a cobra até à perfeita desnudificação. Depois, “o mais é com Deus”. Desejo-lhe as maiores felicidades para si e para o seu livro.
António Telmo
[1] Pedro Martins, O Anjo e a Sombra – Teixeira de Pascoaes e a Filosofia Portuguesa, s/l, Pena Perfeita, 2007, pp. 11-12.