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UNIVERSO TÉLMICO. 65

12-05-2019 12:45

Caetano Veloso e Agostinho da Silva sob o signo "Deus está solto"

Eduardo Aroso

 

Num dos seus escritos em forma de crónicas, reunidas no volume Caetano Veloso – Verdade Tropical, edição Círculo de Leitores, o cantor-compositor brasileiro confessa a influência que teve de Agostinho da Silva, bem como de outras figuras que gravitavam então junto do filósofo português,  no alvorecer do que viria a ser denominado «tropicalismo». Agostinho, um “bandeirante da cultura”, ensinava e criava instituições e universidades em terras de Vera Cruz, e, contra a corrente de uma distorcida portugalidade forjada pelo Estado-Novo,  o pensador de Barca de Alva retomava a ideia de uma vera fraternidade luso-afro-brasileira, só impossível se o Homem não o consentir. Caetano estava então imerso na ideia do que viria a ser o «tropicalismo» (nome incluído no álbum do cantor baiano «Tropicália»), conceito criado pelo artista plástico Hélio Oiticia, sendo que foi o jornalista Nelson Motta que pela primeira vez escreve um artigo sobre essa decisiva corrente cultural, com repercussões na música, literatura, cinema e outros domínios. A Roberto Pinho ficou a dever Caetano a sua ida para o Rio de Janeiro. Dele, diz o cantor: «Ele fora formado pelo professor Agostinho da Silva, o fascinante português fugido do salazarismo e que via no Brasil um esforço de superação da fase nórdico-protestante da civilização. Era um paradoxal sebastianismo de esquerda que se nutria de lucidez e franco realismo e não de mistificações. Se aquilo era um ardil da saudade do catolicismo medieval lusitano não ficava claro para mim».

 O que mais importa, de relance, é observarmos o impacto que para um cantor brasileiro do séc. XX tudo aquilo tinha no seu espírito. «O professor Agostinho, interessado em ligar Brasil com África e Oriente (no fim da vida ele estava apaixonado pela China “póscomunista”), nunca derrapou para nenhum tipo de reaccionarismo  radical: ele amava ver em Portugal (o mais antigo país da Europa – unificado e feito Estado-Nação desde o século XII) uma sugestão de futuro espiritualmente ambicioso, sem negar os frutos da paixão nórdica pela tecnologia. E quando ele dizia petulantemente que “Portugal já civilizou Ásia, África e América, falta civilizar Europa”, estava sobretudo mostrando que queria pensar ao arrepio dos poderosos».

Na verdade, fosse por convicção pessoal, por aquilo que emanava do próprio «tropicalismo», pensando com Agostinho neste cenário de fundo na ideia de uma relação Portugal Brasil, muito para além da distorcida que apresentava o salazarismo, ou ainda por todas estas circunstâncias, o certo é que por volta da década de 60 o cantor-compositor inculcava uma utopia clarividente da realização da Língua Portuguesa, não sendo de minimizar o facto de ser baiano de nascimento (como, por exemplo, Jorge Amado), isto é, uma herança genética que podia entrever o triângulo, Portugal-Brasil-África, quiçá mais interessante do que o tão falado triângulo das Bermudas (!). Caetano, conforme confessa, intui que «deveria aceitar a sugestão do destino e ir fazer música no Rio e em São Paulo porque coisas grandes necessariamente adviriam disso». É de crer que o autor de «Tropicália» aceitasse, dir-se-ia, essa missão de ser voz e melodia desse sonho que no sotaque «de português com açúcar (Agostinho da Silva) fizesse girar a seiva de alma e cultura no referido e cosmopolita triângulo. Embora a música do cantor fosse um canal importante não se pode descuidar a influência do cinema na figura exemplar de Glauber Rocha (também baiano) nas obras «Deus e o Diabo na Terra do Sol» ou «Barravento», este último porventura o de maior influência no tropicalismo.

Mas não só de Agostinho, ou melhor, antes dele, há o fascínio de Caetano (melhor seria dizer encanto?) pelo idioma luso-brasileiro. No meio de tanto fervilhar de tropicalismo, de se reclamar um «Brasil brasileiro», havia a sedução intelectual do Brasil pelas correntes culturais da Europa, nomeadamente o Dadaísmo.  Todavia, já nos bancos de escola o cantor fica marcado por Mensagem de Fernando Pessoa, muito particularmente pela figura mítica de D. Sebastião. Assim o diz: «É um poema de Mensagem, o livro de Pessoa que me impressionara na época da faculdade por ser capaz  - ao parecer constituir a fundação mesma da língua portuguesa ou a sua justificação última – de dar vida digna a esse mito tão frequentemente ridicularizado (o termo “sebastianismo” virou sinônimo de impotência auto-iludida, um quase consensual depreciativo da crítica da cultura entre nós). Uma versão corajosamente livre (e surpreendentemente nada reaccionária) desse mito tinha se apresentado a nossa geração de baianos através da figura do professor português Agostinho da Silva que, nos anos de ouro da Universidade da Baía sob o reitor Edgar Santos, fundara em Salvador o Centro de Estudos Afro-Orientais, sempre mirando um horizonte  de superação do estágio em que se encontrava o mundo liderado pelo Ocidente (…) Algo (ou muito disso) está por trás de toda a obra de Glauber – e, em que pesem as ironias e desconfianças, de todo o tropicalismo».

Podemos especular- não o sabendo com realidade de fonte directa – do que,  nos dias actuais, Caetano pensa de Agostinho da Silva, parecendo certo que a sua ideia e amor à língua portuguesa (aliás, bem apoiado pela irmã Bethânia) não conheceu declínio, a julgar pela sua obra, e pelo que, por contraste, disse da língua inglesa, quando por imperativos profissionais permaneceu uma temporada em Inglaterra. Seja como for, há uma indesmentível convergência que incarna perfeitamente no âmago do pensamento agostiniano, quando o cantor, ao jeito do Grito de Ipiranga, lança um outro quando diz «Deus está solto».

 

Maio 2019

 

INÉDITOS. 82

12-05-2019 12:38

 

FRAGMENTO DE DIÁLOGO ENTRE X E Y[1]

 

 

X

Não sabemos nada. Ninguém sabe nada. Se alguém sabe, esse é como um deus: esconde-se e cala, de modo que fica tudo na mesma. Sim! Só Deus sabe e conhece, mas tudo se passa no Universo dos homens como se Ele não fosse.

 

Y

Parece ser o seu silêncio a condição da existência do mundo. Como poderia o Mundo suportar a sua visão? No entanto revela-se. Como poderia o mundo ser sem a sua revelação? É este mínimo que nos é dado, mas esse mínimo é tão real quanto a própria existência do Mundo. Mais nada nos resta fazer do que apreender os sinais de luz compossíveis com os nossos limites. Depois da morte, logo se verá.

 

X

Por que o havemos de saber depois da morte e não agora? Por que havemos mesmo de procurar saber? Vê aquela rapariga que passa! Observa como é harmoniosa a andar, como nos movimentos do seu corpo quebradiço se prenuncia o amor e a maternidade. Como ela, outras ondularam e ondularão no éter pela infinidade dos séculos e na onda luxuriosa da forma feminina sempre se repetiu o mesmo desejo. Nascem e morrem os seres. De onde vêm e para onde vão? Só sabemos que aparecem e desaparecem numa forma de vida. Esta é a única realidade, mas tão indiferente à nossa metafísica quanto o era antes.

 

Y

Se eu cometo o erro de imaginar um antes e um depois onde só nos é possível ver o nada e o vazio, tu não cais em menor engano ao julgares que só te importarás em saber depois de ter sabido. Precisas de ter a certeza do termo para ires à sua procura. Como não há para ti tal termo, ficas onde estás céptico e impassível. És como um homem que nunca tivesse visto nadar nem soubesse que nadar era possível e, por isso, nunca tentasse atravessar as águas. Só farás o que os outros tiverem feito ou tentarás fazê-lo. Estarás para sempre dependente dos gestos dos outros.

 

X

E o que é que tu propões em troca?

 

Y

Aprende-se a nadar nadando. O conhecimento só é dado no acto de conhecer. Como disse o poeta, “tudo o mais é com Deus”.

 

X

Há, porém, outro caminho. A partir do que já se sabe, procurar-se saber mais.

 

Y

Não dizias há pouco que ninguém sabe nada?

 

X

Falava de Deus. Sei, por exemplo, que a terra gira em volta do sol. E, como este, tenho outros conhecimentos reais e bem positivos.

 

António Telmo



[1] Nota do editor – Inédito. O título é da nossa responsabilidade.

 

DOS LIVROS. 63

02-05-2019 10:24

Os filósofos e a inveja[1]

 

Os poetas e os filósofos são ambos vítimas do mal por caminhos diferentes. A sociedade tolera os poetas da palavra, da pedra ou da cor, talvez porque não argumentam e o seu irracionalismo não põe em perigo a mediocridade das relações humanas, sustida, nas suas vastas ramificações, pela razão judicativa. Os filósofos, aparecendo como seres de razão, de uma razão que é o argumento que torna evidente a mediocridade e transmite à verdade intuída pelo irracionalismo dos poetas o poder capaz de a tornar activa no mundo dos homens, vêem-se por isso perseguidos e hostilizados, odiados, até ao assassinato.

 

António Telmo

 

(Publicado em Capelas Imperfeitas - Dispersos e Inéditos, 2019)


 


[1] Nota do editor – o título é da nossa responsabilidade.

 

EDITORIAL. 19

02-05-2019 10:15

Ter a palavra

Se entre nós estivesse ainda fisicamente, António Telmo festejaria hoje o seu 92.º aniversário. A verdade é que, menos de dez anos após a sua partida, a quase totalidade da sua obra, incluindo muitos dos escritos que deixou inéditos, se encontra já à disposição dos leitores em todas as livrarias de Portugal. É este um trabalho que entrou já na sua recta final, e que em breve se concentrará naquilo que no espólio do filósofo permanece ainda por publicar.  

A edição, no próximo Outono, com a proverbial chancela da Zéfiro, de A Verdade do Amor precedida de Adriana, Volume XI das suas Obras Completas, que será prefaciado por Paulo Samuel, constituirá, por certo, um marco muito importante nesta caminhada. Num tempo em que António Telmo foi devolvido aos leitores e em que se prenuncia e se pronuncia a reaparição nos escaparates de outros nomes do seu universo, que é o do livre pensamento radicado na língua portuguesa. São eles, os leitores, também os das gerações mais novas, que agora têm a palavra.

ÁLVARO RIBEIRO E «A LITERATURA DE JOSÉ RÉGIO», 50 ANOS DEPOIS. 02

09-04-2019 10:39

A fenomenologia do narcisismo em Álvaro Ribeiro[1]

 

A fenomenologia do narcisismo constitui uma das linhas mestras do mais recente livro de Álvaro Ribeiro, A Literatura de José Régio.

Deste livro hão-de só falar os que se preocupam, não com o livro ou com o autor, mas com os temas e os problemas de que a reflexão filosófica se apoderou no espírito de Álvaro Ribeiro. Por isso, nos parecem inoportunos e desnecessários os protestos que alguns discípulos do autor apresentaram contra o silêncio do mundo literário que fechou o livro no seu cofre de superficialidades. O filósofo responde em prosa às perguntas de Deus; o poeta interroga Deus que lhe responde em verso. Mas os literatos falam de poetas e, às vezes, de filósofos sem tratar das perguntas e respostas. Não tem qualquer interesse o que dizem e, quase sempre, é preferível que estejam calados. Se Deus me pergunta como é que eu explico a existência do mal num mundo por ele criado, o desinteresse do literato em conhecer ou mencionar a minha resposta, porque não pertenço à tertúlia de imbecis que lhe é simpática, é o sinal de que não lhe foi posta análoga pergunta e, por isso, a sua opinião sobre o livro que fiz em resposta a essa e outras interrogações é tão pouco importante para mim como serão certamente para a lua, seus movimentos e suas fases, o ladrar dos cães que se perde na solidão solene dos espaços.

Quando dizemos que filósofo é quem responde em prosa às perguntas de Deus e que poeta é quem interroga Deus que lhe responde em verso, relevamos ou o predomínio da razão ou o predomínio da inspiração. «Os homens superiores são os que não perdem a razão nos momentos em que vão sendo agraciados por instruções espirituais.» No outro extremo está o poeta narcisista, que se deixou dominar pelo fascínio do próprio ser. O narcisismo, em termos freudianos, é a sístole de um movimento cuja diástole é o homossexualismo. Quem ama a própria imagem pode evitar o suicídio que lhe dá a ilusão duma futura posse substituindo-a por uma imagem semelhante, mas exterior. Contudo, a via narcisista foi indicada como o único caminho de realizar a liberdade. «…o problema da liberdade é solidário do problema da individuação, como ficou demonstrado por Leibniz em monografia célebre. Tal foi focado com logicidade irrefutável no discutido livro de Max Stirner, intitulado Das Einzige und seine Eigentum, cuja tradução exacta seria O Único e a sua Unicidade ou O Próprio e a sua Propriedade, se os franceses não o houvessem traduzido por L’Unique et sa proprieté. Esta obra representa em filosofia o que em estética poderia ser chamado O Narciso e o seu narcisismo, porque postula o solipsismo levado às suas extremas consequências».

À via operativa da liberdade dá-se o nome de iniciação. Aqui, o conceito de narcisismo alarga-se, pois a vivência pelo único da sua unicidade impõe o corte absoluto da corrente para o exterior nos três pontos em que ela é possível: sexo, nutrição e sensações. O exemplo perfeito é o da iniciação cátara, que se exprimiu poeticamente nas trovas medievais de amor, e que consistia num suicídio lento pela fome, pela sede e pela solidão, enquanto as energias dos sentidos eram reconduzidas pela concentração mental ao ponto original donde tinham emergido à medida que o corpo se ia estruturando.

Narrado por Ovídio, o mito de Narciso (que corresponde ao mito da queda de Lúcifer) contém já todos os elementos que permitem interpretá-lo como uma descrição por imagens da “iniciação”. Explicando a morte de Narciso pelo “Nosce te ipsum”, Tirésias integra o mito na sabedoria órfica, cujo esoterismo constituiu a raiz última e primeira da filosofia de Sócrates e do platonismo. Álvaro Ribeiro que define o narcisismo como «a presença perante o espelho» não ignora a correspondência do mito grego com o mito hebraico, propriamente kabbalístico, ao caracterizá-lo também pela oposição a Deus. As iniciações luciferinas, ao número das quais pertence a cátara, se fosse possível referi-las a um sentimento fundamental seria, porém, não a vaidade, mas o orgulho. A vaidade, que os literatos cultivam, no tipo superior de narcisista, que é o filósofo solipsista, dá, com efeito, lugar ao orgulho, mas um e outro sentimento excluem a comunicação livre dos espíritos, a convivência angélica dos entes que não quiseram separar-se. Leibniz assegura esta convivência por um mecanismo de reflexões das mónadas nas mónadas até ao infinito. É, no entanto, um precursor de Max Stirner ao afirmar que a mónada não tem portas nem janelas. A mónada contém todos os elementos da totalidade e uma vez emanada de Deus por fulguração é, logo, um ente autónomo e perfeito que só precisa de tomar consciência de si para “ser igual aos Elohim” (“Eritis sicut Dei”).

O Génesis sofreu esta interpretação, mas Álvaro Ribeiro, preferindo a ortodoxia hebraica às várias doutrinas heterodoxas mais ou menos ligadas à Kabbalah, recorre precisamente ao Génesis para transcender o ponto de vista narcisístico. Reflectindo o preceito mosaico de que não é bom que o homem esteja só, vê na mulher o complemento indispensável do homem, e, portanto, a base terrestre e natural da redenção ou da sobrenaturalização. «A mulher coopera eficazmente na sobrenaturalização quando cumpre o dever de criar e educar os filhos, e nessa função está a sua bondade e o seu valor. Cumpriria ao homem ser o agente capaz de se tornar sagrado, isto é de ser sacerdote, capaz de iniciar a sua esposa nos segredos ou nos mistérios sobrenaturais que asseguram a verdade do amor. Em nossa época, que julgou indispensável instituir cursos para noivos e escrever viáticos para a vida conjugal, bem merecia ser o Cântico dos Cânticos, em sua tradução espanhola de Frei Luís de Leon ou em sua tradução portuguesa de João de Deus, texto fiel onde o estudioso pudesse haurir a melhor inspiração.»

Esta doutrina desagrada aos narcisistas que defendem a igualdade dos sexos, o mesmo sexo em homens e mulheres, o homossexualismo. A alteração da mulher em homem ou do homem em mulher não é, porém, possível, sem que se formem dois novos seres, ainda completamente diferentes um do outro, por muito que consigam parecer-se exteriormente. Corresponde a alteração a um trânsito para outros planos psíquicos, onde às diferentes naturezas correspondem diferentes energias, para não dizer demónios que nelas são recebidos por rotura do subconsciente.

A demonologia do sexo, descrita em termos modernos por Freud, nos termos da moda psiquiátrica, constitui efectivamente uma das chaves utilizadas por Álvaro Ribeiro na interpretação de José Régio. A psicologia do homem solteiro deve ser sobretudo referida às visitas nocturnas de entes sobrenaturais e quem diz do homem solteiro dirá da mulher solteira, tendo em mente quanto as ciências ocultas ensinam sobre incubos e veículos. O poeta José Régio representa no morcego de Jacob e o Anjo o incubo de Afonso VI, mas sugere que nele reside a “forma de luz” perseguida pela iniciação cátara.  

Narciso, adolescente de extraordinária beleza, depois de ter repudiado quantos e quantas se apaixonaram por ele, viu-se no espelho das águas e, perdido de amor por si próprio, suicidou-se com uma pedra. Tirésias, o adivinho, predissera com efeito que Narciso viveria muitos anos se não se conhecesse.

É este, em breves palavras, o mito de Narciso, tal como nos foi transmitido pelos poetas.

A psicanálise apoderou-se do mito, designando por narcisistas todos aqueles que se deixam fascinar pelo próprio corpo, servindo-se dele como única fonte de prazer erótico, na tentativa de realizar um acto fisicamente impossível. O espírito recorre à imaginação inventando perversões que substituem um acto impossível, mas a doença, a loucura e a morte são as consequências inevitáveis e subconscientemente desejadas pelo narcisista.

Nos termos da psicologia imediata, o narcisismo, de que todos nós, mais ou menos, participamos, que está ligado a uma fase de desenvolvimento erótico de todos os indivíduos, quando se torna dominante e se fixa transforma-se num caso patológico a ser tratado pela medicina. Mas há mais. Se o narcisismo, que perdura e invade a vida erótica do indivíduo, é pela psicanálise explicado por traumatismos de infância, pode dar-se o caso de não ser o indivíduo a sofrê-lo, contra sua vontade, mas de ser voluntariamente cultivado, como uma técnica de separação do mundo exterior, podendo abrir ao espírito uma via mística, se convenientemente posto em relação com outros valores. 

 

António Telmo

     

 


[1] Publicado originalmente em Capelas Imperfeitas - Dispersos e inéditos, Zéfiro, Sintra, 2019.

 

UNIVERSO TÉLMICO. 64

03-04-2019 12:41

Publicamos hoje o texto da intervenção de Risoleta C. Pinto Pedro, sobre a obra poética de Manuel J. Palmeirim, na sessão de homenagem aos poetas populares de Sesimbra que se realizou naquela vila, no passado dia 23 de Março, no Auditório Municipal Conde de Ferreira, numa organização da Liga dos Amigos de Sesimbra.

foto de Sara Ramos

Manuel J. Palmeirim - As duas faces de um poeta

Risoleta C. Pinto Pedro

 

Para falar de Manuel J. Palmeirim, outros, nomeadamente ou especialmente António Reis Marques, seriam muito mais indicados do que eu, por isso não ousarei falar do que não sei. Apenas posso falar do que conheço dele: dois livros de poesia e pouco mais.

O primeiro livro, Espumas Vivas, sai em Março de 1950 em edição de autor, o segundo, 7 Poemas de Sesimbra, em 1963, uma edição de O Sesimbrense, na colecção “Poesia Sesimbrense”.

Não possuo muita informação sobre o autor, não é fácil encontrá-la, nem é esse o propósito da minha comunicação, que se baseia sobretudo numa análise literária dos dois livros, mas é importante assinalar o que o próprio, numa introdução intitulada “Duas Palavras”, ao segundo livro, nos diz:

Dedica o seu livro aos companheiros Gilberto Pinhal e Zé Preto, que nessa altura já tinham partido, prematuramente, mas que evoca com admiração e carinho, recordando momentos em que foi confidente da inspiração poética quer de um quer de outro. Anuncia, também, os próximos números da colecção a um e a outro dedicados, justificando a sua precedência enquanto trombeta anunciadora da futura vinda poética dos verdadeiros heróis.

Tive conhecimento do seu trabalho na área editorial, nomeadamente na Europa-América e na D. Quixote, com muitas traduções para esta última.

Para além dos livros citados e sobre os quais me debruçarei, tenho conhecimento, que muito agradeço ao João Aldeia, de activa colaboração n’O Sesimbrense, que se conheça a partir de 1946 e até 1968, nomeadamente contos e outros textos literários, poesia, assuntos locais, polémica…

Apesar de os ter lido, não serão alvo deste estudo, até porque não quero monopolizar o tempo da sessão, mas poderão ser objecto de estudo e partilha numa outra comunicação, por alguém que tenha gosto em fazê-lo, sugestão que deixo, ou por mim, se não se apresentar ninguém.

 

É visível, neste poeta, por um lado a veia da tradição, que lhe vem da origem, e a veia mais moderna, que lhe vem do contacto com a poesia contemporânea, muito possivelmente potenciada pelo seu trabalho em editoras. O que é curioso é que, dos dois livros que lhe conheço, aqueles a que tive acesso, Espumas Vivas e 7 Poemas de Sesimbra, acima referidos, a tradição vem depois da modernidade. Cá voltaremos.

No primeiro, de 1950, apesar de não ser livro directamente relacionado com Sesimbra, e do seu carácter mais inovador, sem preocupações em respeitar o cânone tradicional no que respeita à rima ou à métrica (inovador, mas não necessariamente melhor…), ainda assim aqui vem rebolar aos nossos pés a espuma do mar materno. Aliás, o próprio título lhe denuncia a origem, e a alusiva metáfora está presente e dá o tom logo no primeiro verso («Vivo na imensidade revolta e encapelada/ Dos meus pensamentos»), embora com menos embalo do que o segundo livro. O primeiro poema traz ainda algum ritmo, uma memória viva que se vai perdendo ao longo do livro. Que, aliás, termina assim: «Babei-me e adormeci». Será o retorno à baba das ondas que é a espuma?

O poeta, por modéstia, por sinceridade, ou por fingimento poético à Pessoa, Pessoa que ressoa de vez em quando neste primeiro livro, não se tem em grande conta como poeta, aliás, não tem em grande conta os poetas em geral:

«Um poeta é um cavalheiro que se lembrou de escrever/ Que estava satisfeito ou triste, irritado ou feliz/ Num determinado momento.»

Quanto à rima e à métrica, com que se há-de reconciliar no segundo livro, não ficam muito bem no retrato que faz do cânone da poesia, como coisa passada:

«Antigamente havia a métrica e a rima,/ O som e a música,/ E o poeta quando chegava ao fim já não sabia/ Se tinha sentido aquilo que escrevera,/ Se escrevera apenas com sentido».  Lembra vagamente “O Poeta é um fingidor”, de Fernando Pessoa. Para ele, a qualidade está na razão directa do sentir: «Qualquer um pode fazer um poema/ Melhor faz quem mais sentir». Resta saber se este é o sentir “sincero” dos românticos, se o sentir “fingido” de Pessoa.

Ainda sobre a rima, sendo verdade que rimar e criar uma métrica regular não chegam para que aconteça poesia, também é verdade, como António Telmo tão bem assinalou, que métrica não é o mesmo que metrificação e que tanto esta como o ritmo, antes de aparecerem no poema, estão dentro do poeta. Ritmo e métrica apenas surgem materialmente no poema porque já existiam antes, tal como a língua. Assim sendo, são duas das mais nobres funções ou características inalienáveis da poesia, a que se deve acrescentar a metáfora.

Ao contrário do autor, não avaliarei e muito menos quantificarei o seu talento, tal é impossível e não tem muito interesse, cada leitor que o faça, mas não posso deixar de afirmar que a maior parte das vezes a sua métrica, sobretudo a do segundo livro, 7 Poemas de Sesimbra, parece corresponder a um ritmo interno. E isso fala muito a seu favor.

Ainda a propósito do primeiro, Espumas Vivas, e da qualidade poética, não posso deixar de assinalar o excelente “Apontamento Crítico” assinado por L. D. Cardefe, que tem tanto de sucinto quanto de certeiro. Embora eu me permita semi discordar, tenho de reconhecer a qualidade.

Começando por afirmar que a arte se compõe «de três partes integrantes: o real, o poético e o ideal», de cuja «harmoniosa fusão integral surge «a vida coada através da arte: não já, pois, como vida, mas como Vida». Concluindo que «partindo da vida, chega-se à Vida atravessando os tão desejados (e tão mal trilhados) caminhos da arte.». Vê a arte como um «meio de construção da Vida» e não como um fim. Critica o facto de se viver «em excesso para a arte» em vez «de se viver para a Vida». Afirma, implacável, que se começa «por ser artista… e não se chega a ser homem!»

Desta falha exclui Manuel J. Palmeirim, a quem atribui tal «humanidade, que ele atinge frequentemente o desumano».

Esta desumanidade talvez a encontre em alguns versos que se aproximam do excesso de Álvaro de Campos, como vemos em: («Caminham no céu gigantescas aves de metal»); e do cinismo dele mesmo ou à Cesário, que exemplifico: («Olha, filho: Não te mates!/ Não te mates porque esta vida não vale dois tiros.»); ou ainda: («(Donde estou não se vê a lua/ Mas presumo que está uma noite óptima para os poetas.)»).

Ao mesmo tempo que o seu prefaciador afirma «Palmeirim é um homem!», acrescenta que não chega «a ser artista». Nem Poeta. E remata: «Faltam-lhe para isso, em Espumas Vivas, o elemento poético e o elemento ideal». Conclui que ali está presente «o real, em toda a sua brutal sinceridade».

Ora eu, apenas leitora que nunca conviveu com o poeta, não posso avaliar, como já referi, da sua sinceridade, por essa mesma razão não poderei dizer se é ou não artista.

Mas poderei anotar que se o mar aparece como ideia motriz, o seu ritmo só iremos encontrá-lo, plenamente, no segundo livro. Perde neste primeiro livro em ritmo, o que ganha em reflexão, confidência crítica e indignação. Salta directamente da vida, por cima do ritmo e da rima, para o ideal. Mas um ideal pela negativa. Não nos diz ele como deveria ser a Vida, mas lamenta ele que seja como é a vida. Diferentemente do que preconiza o seu, de resto excelente, por assim dizer, prefaciador.

Mas não poderei estar totalmente de acordo com L. D. Cardefe, porque pelo meio de um texto mais aparentado com uma reflexão sobre a vida, saltam de vez em quando poéticas e belíssimas imagens, como esta:

«De mil espumas brancas de viver efémero/ Uma me salpicou o rosto/ Qual pontada fria.»

Tem metáfora, tem ritmo, tem métrica. É belo.

Polvilham também o livro considerações sobre a arte, passíveis de reunir e formar algo a que poderíamos chamar a Arte Poética do Manuel J. Palmeirim da primeira fase:

Por exemplo:

«Esta maneira de escrever a que alguns chamam “poema”/ É maneira de escrever como a prosa./ Simplesmente leva mais intervalos».

Caeiro estaria de acordo. Curiosamente, Campos também.

Mas Campos também não desgostaria do poema “Sem Rótulo”:

«Caminham no céu gigantescas aves de metal;/ Atravessam os mares monstruosos peixes de ferro;/ Cruzam a terra velozes móveis!/ Em tudo, homens!/ Homens nas aves, homens nos peixes, homens nos móveis velozes.// Matraqueiam bocarras de fogo escancaradas/ Um troar sinistro, no ar, no mar, na terra./ Em tudo, homens!»

E eu estaria de acordo com Campos. Tem rasgo, é poesia. Mas depois perde força… Essa é, aliás uma característica de alguns destes poemas: a irregularidade da sua força poética.

Também ao início do poema “Tensão” é impossível ficar indiferente:

«Um morro gigantesco, negro, horrendo,/ Na noite escura se confundindo – trevas unidas./ Sobre o morro um olhar desvairado domina a terra inteira./ Uma gargalhada sinistra ecoa lugubremente/ De vale em vale/ E repete-se… Repete-se eternamente/ Zunindo-me nos ouvidos/ Sarcástica, ameaçadora, rude, negra – mais trevas unindo./ Quem a ouve estremece. Quem a não ouve não vive.»

Quase nos sentimos na Serra de Pascoaes.

E a seguinte passagem, que um poeta menor não escreveria:

«Não ouves a gargalhada do medo, animal?/ Não tremes agora como um cão perante o desconhecido?/ Não corres como um cavalo ao pressentir o que não se vê?/ Não galgas, como um felino apavorado,/ Obstáculos – intransponíveis quando te julgas homem?// Não penses no que és!»

Ou ainda, pelo inesperado:

«Reuniram-se os sete pedaços desiguais do meu prato/ E o prato voltou para a minha mesa.»

Como se o tempo tivesse passado a movimentar-se ao contrário. Um físico actual não se surpreenderia com esta relativização do tempo, o passado depois do presente.

Não teria importância a ausência do uso canónico das ferramentas da poesia tradicional, a métrica e a rima, se se tivesse sempre deixado arrebatar pela metáfora, como aqui acontece. Perde força quando se entrega à reflexão, à conclusão, à moral, à lamentação, daí a fraqueza da maior parte dos finais. Mas a garra está lá, existe. A arte está lá, mas de modo irregular, em qualidade desigual. Na ausência da rima, da métrica, é salvo, e de que maneira, pela metáfora.

Já o segundo livro, os Sete Poemas de Sesimbra,  com uma respiração ao pé deste mar, tem dentro de si o ritmo das ondas, que  está nas palavras, apenas têm de ser procuradas. Este livro é banhado pela espuma, mesmo quando o poema é sobre o castelo.

Melhora quando se aproxima da tradição, o livro tem mais unidade e há mais equilíbrio, porque aqui se alimenta do que é perene, que vai buscar ao início do movimento das ondas. Quando imita o moderno, fragmenta-se como espuma e perde-se de si. Quando se aproxima da tradição poética e histórica, ganha ritmo o verso e a métrica balança na língua como um barco no mar, o ambiente para que foi criado.

Reparte-se este segundo livro espacialmente entre a praia, não a dos turistas, mas a do pescadores, o castelo e a estrada. E a história. Dos homens, dos lugares e da Poesia.

No início do livro, a intertextualidade com Raul Brandão, na epígrafe, pois também ele escreveu sobre Sesimbra e os pescadores.

Marginal a estrada, a dos namorados, o desejo incontrolável. O corpo sob o poder da lua e do calor do Verão. E aqui estamos em pleno cenário das cantigas de amigo. O campo de avelaneiras onde dançam as amigas do séculos XI, XII, é substituído pela estrada, mas o som do mar, como numa barcarola medieval, é o alaúde do amor. O  movimento das ondas materializado no refrão, a imitá-las.

Curiosa a ambivalência do namoro, a lembrar muito outro amigo de Sesimbra, António Telmo e a sua peça de teatro A Verdade do Amor:

Palmeirim canta: «Pares de namorados arrulham pecados,/ Demoníacos uns, outros santificados,/»

E Telmo: «A menina e o menino/ Sexo neutro: a criança!/ Feminino e masculino. Siga a dança!»

Estes sete poemas soam entre a praia e o castelo, a água e a pedra. E em “Bairro dos Pescadores” os «cubos alinhados» das casas são «barcos cansados», numa certa analogia, pela antítese, com a expressão de Miguel Real em A Cidade do Fim, romance sobre Macau onde também Sesimbra é personagem. A expressão de Miguel Real é «naus que viram casinos», mas refere-se a Macau. Aqui não há dinheiro para tal, são as casas que parecem naus exaustas, em repouso.

No livro de 1963 encontramos uma toada antiga, ancestral, que vem dos trovadores, um ritmo que vem do mar. Quem nasceu ou viveu em Sesimbra, conhece-o.

Contudo, também neste livro o poeta relativiza a rima e o rimar. Não nos poemas, mas no texto introdutório. Assume-se como mais prosador e afirma que «nem sempre que faço versos acontece poesia»; bem como reafirma que «a facilidade em rimar e conhecimentos de métrica nunca foram a maior riqueza de um poeta. O que diz aqui em prefácio já dissera no anterior livro em poema. E no entanto, aqui acontece rima, métrica e… poesia.

Três destes poemas, como informa, já haviam sido publicados n’O Sesimbrense sob pseudónimo: Tristão Sesimbra. Por aqui ficaríamos mos a saber que ali vem publicando poesia «de quando em quando».

Tem uma atitude humilde, porque não só não se exalta, como se desmerece, e aproveita esta edição do primeiro livro na colecção “poesia Sesimbrense” de 1963, para justificar a sua precedência, enquanto arauto dos poetas que, no seu entendimento, o são verdadeiramente: Zé Preto e Gilberto Pinhal.

Talvez o pseudónimo “Tristão” concentre em si a tristeza do desaparecimento dos amigos poetas, a tristeza que numa concepção simbólica da doença surge associada à tuberculose que prematuramente os levou.

Já Telmo, também convivendo com amigos infectados pela doença, ouve uma voz que o avisa de algo como: Não entristeças, senão entuberculizas. Era um quase menino, pouco sabia da metafísica das doenças, contudo existe um saber universal a que os poetas têm acesso.

Mas voltando ao que escreve Palmeirim sobre a rima, permito-me discordar dele. Se rimar toda a gente rima, rimar com elegância dentro dos limites da métrica, como ele faz, com uma ou outra excepção, não é para qualquer um, e não é fácil fazê-lo sem cair na banalidade.

Acrescenta-lhe ainda a toada tradicional bem servida pela anáfora e temos poesia quase cantada e sem dúvida muito cantável.

Seria até interessante se em vez de se pagar balúrdios a cantores de centésima ordem, como vemos por esse país fora, se investisse numa composição musical de qualidade a partir de poetas da terra, destes ou de outros poemas sesimbrenses. Sesimbra ganharia.

O primeiro poema apresenta um processo muito interessante, ao analisar ou conciliar Sesimbra, de que trata o poema, com um tom eminentemente lírico, pela presença anafórica do eu, no refrão de cada estrofe («Comigo e sem mim»); transforma o que parece exterior em confidência, sem de si falar. O lirismo em alta rotação.

A preocupação social que já encontráramos no livro anterior, cruza-se aqui de forma harmónica com os “ais” que caracterizam alguma poesia lírica, nomeadamente a nossa poesia original, trovadoresca, mas igualmente expressam as vidas «da gente sem pão».

Reparem na musicalidade da aliteração, em: «Do mar marulhando», a coerência da forma com o conteúdo no paradoxo: «No vale tão fundo/ Tu ficas mais alta/ Que todo o nundo».

Da praia, relata poeticamente a labuta e a fome; do castelo, a história e o orgulho. A uni-los, a coragem, a bravura. E como sabe articular o falar sobre o antigo com a crítica ao novo:

«As guerras de agora/ São inda peores, mais maquiavélicas/ Heróis não existem. Deitaram-nos fora/ Os inventos novos, novas armas bélicas.»

Encontramos neste livrinho, desde os ais das cantigas de amigo aos romances tradicionais recolhidos por Garrett.

E uma imensa sabedoria poética, entretanto adquirida pela compreensão de que, ao contrário do que afirmara no outro livro, não é necessário que o poeta seja literalmente sincero, pelo contrário. Aqui o canta:

«Se escondes a dor,/ Descobres poesia!». Aqui, o poeta é um fingidor. E não parece ver mal nisso.

Com esta inteligência poética entre um e outro livro reforçada, muitas são as mudanças. Se não fora a preocupação com a crítica social, quase não identificaríamos o mesmo poeta. Parece ter meditado nas palavras de L. D. Carfede e atravessando os caminhos da arte, aqui está a poesia com tudo a que tem direito, musicalidade, confidência, tradição, observação do real e transformação pela metáfora. O percurso da vida à Vida. A provar que é aquilo que nega ser: um poeta. Com rima e métrica e tudo. E crescendos dentro dos poemas de modo a criar finais fortes, nobres, por vezes épicos.

Um enorme crescimento é o que encontro neste segundo livro, através deste caminho iniciático que proporciona a arte para se conhecer a verdadeira Vida. Através do símbolo, do ritmo e da música, que o mesmo é dizer-se da metáfora, da métrica e da rima, uma forma mais familiar de falar da poesia que transforma e não se limita a contar as vidas pequenas de homens conformados na sua revolta, mas os eleva entre o barco e o castelo e os prepara para uma Vida Nova. Como diria Dante, não basta descer aos infernos, é preciso de lá sair e essa é a missão do poeta: ir e voltar. Não é para todos.

 

Sesimbra, 23 de Março de 2019.

 

DISPERSOS. 17

03-04-2019 12:28

No dia em que se completa um quarto de século sobre a partida de Agostinho da Silva, publicamos, em homenagem ao Estranhíssimo Colosso, um dos testemunhos que sobre ele nos deixou António Telmo, e que aliás irá integrar o capítulo "Agostinho da Silva, o último discípulo de Leonardo Coimbra" do próximo volume, que será o XI, das suas Obras Completas, A Verdade do Amor precedida de Adriana, que será lançado ainda no decorrer do presente semestre. Chamamos a atenção do leitor para as notas ao texto, onde damos conta da posição do Professor João Ferreira, que nele é mencionado e do teor do mesmo diverge, impugnando vários aspectos factuais do respectivo testemunho.

Três histórias verídicas[1]

 

Primeira História:

J. F., ex-núncio apostólico da Guiné[2], com no bolso uma carta antiga do Cardeal Cerejeira convidando-o para Reitor da projectada Universidade Católica de Lisboa, doutorado em Filosofia pela Universidade de Lovaina[3], autor de livros notáveis de filosofia franciscana, estava, há alguns meses, desempregado da Igreja no dia em pediu ao Agostinho da Silva, de passagem por Portugal, que lhe arranjasse trabalho no Brasil.

Havia, no meio das árvores do cerrado de Brasília, um edifício inacabado que fora projectado para nele se instalar a Universidade de Teologia. Ficara pelo primeiro piso. Tinha a forma de um grande barco e a planície à volta era um mar. Por cima era como se fosse o convés, onde, a toda a volta, estavam esboçadas umas paredes que formavam como que pequenos camarotes, mas que Agostinho da Silva interpretava como as celas de um convento ou lugares de oração.

Eu e ele todas as manhãs subíamos por uma escada em espiral ao convés do navio e, como num rito, cada vez que aí íamos, o almirante do pensamento dizia ao seu imediato estas palavras memoráveis:

«Ali, naquela cela, ficará um budista, ali um cristão, naquela ali um muçulmano, na seguinte um judeu e, para cada uma das outras, imagine a religião que quiser. Será a primeira Universidade de Teologia porque aqui convergirão para o Uno todas as religiões. Foi o que os portugueses sonharam com a escola de Sagres.»

O pedido de J.F. veio na mesma corrente. O ex-núncio apostólico da Guiné partiu para o Brasil, viagem paga, a fim de fundar a Universidade[4].

Todavia, ali chegado, Agostinho da Silva nunca mais lhe disse nada, depois de lhe ter assegurado moradia e mantimento. Passaram-se longos dias, um trazia outro e o outro coisa nenhuma até que o futuro fundador não aguentou mais e, dirigindo-se-lhe, perguntou:

– Senhor Professor, quando é que pensa que se deve dar início à criação da Faculdade de Teologia? Não foi para isso que vim para o Brasil?

– Exactamente. – Respondeu Agostinho da Silva –. Foi para fundar a Universidade de Teologia que veio para o Brasil. Qual é a dificuldade? Olhe, meu amigo, vá até ao meio do cerrado, sente-se numa pedra e pense em Deus. Fica fundada a Universidade de Teologia.

J.F. saiu desolado desta conversa[5], mas não demorou muito tempo que, pelos caminhos do mundo, o empregássemos como professor de Literatura[6].  

 

Segunda História:

Na Universidade de Brasília, era frequente os alunos chegarem atrasados às aulas. Ninguém os castigava por isso. Sofriam menos tempo as aulas do que os alunos do resto do mundo.

A aula que, nessa manhã, Agostinho ia dar tinha por tema a navegação à bolina física e metafísica. Não estava lá nenhum aluno, já depois do toque. Quando chegaram os primeiros, dez minutos depois, viram espantados que o professor estava a falar para as carteiras e que nem sequer se interrompeu quando eles entraram, prosseguindo por aí fora na sua navegação. Pela primeira vez, aqueles rapazes sentiram que não estavam ali obrigados.

 

Terceira História:

Um dia ficou doente de morrer. Os médicos disseram-lhe:

– O senhor tem uma doença que leva fatalmente à morte. Há, todavia, uma injecção que o pode salvar, mas essa injecção ou salva ou mata. Neste caso, o doente é quem decide: arriscar-se à injecção ou durar mais alguns meses.

– Venha a injecção. – Disse Agostinho da Silva.

O enfermeiro enganou-se e, em vez de uma dose, deu duas. O doente entrou em coma. Mas, lá por dentro de si começou a ver uma roda a girar. Rodava a grande velocidade, movimentando-se por círculos concêntricos, cada um com a sua cor. Teve, então, a certeza de que se conseguisse fazer parar a roda não morreria e ficaria salvo. Pôs nessa ideia toda a intenção. A roda parou.

Esta história foi-me contada pelo próprio.

 

Estas três histórias mostram que o pensamento pode criar, comunicar e dar a vida. O pensamento é como um nada ao pé da solidez das coisas e da agressividade da quantidade. Vemos as ruas cheias de pessoas, movendo-se em todos os sentidos, cada uma levada pela sua emoção. Num campo de futebol ou durante uma manifestação política é a humanidade que pesa. Não reparamos na brisa que agita os ramos das árvores e desfralda as bandeiras. Mas toda essa gente vive daquele elemento de onde a brisa nasce e que é invisível e imponderável como se fosse um nada. Agostinho da Silva conhecia como ninguém a suprema importância da brisa. Não foram só os seus livros e os seus discursos que receberam a inspiração do Espírito. Vivia extravagantemente a vida. Tudo o que para nós é exterior era para ele interior. Durante os três anos que convivi diariamente com Agostinho da Silva não precisei de ler os seus livros e de ouvir as suas conferências para saber para onde nos levava.

 

António Telmo



[1] Nota do editor – Publicado originalmente em A Phala, n.º 38, Julho/Agosto de 1994, p. 20.

[2] Nota do editor – António Telmo refere-se a João Ferreira (n. 1927, Agunchos, Ribeira de Pena), hoje Professor aposentado da Universidade de Brasília, na qual ingressou em 1968, após convite de Agostinho da Silva e Eudoro de Sousa. A respeito deste e de outros escritos em que António Telmo o menciona (nomeadamente o texto seguinte do presente volume e a entrevista à revista Ler – Livros e Leitores, de 1998, conduzida por Francisco José Viegas, já publicada no Volume VI destas Obras Completas (Viagem a Granada seguida de Poesia, pp. 95-107) o depoimento que nos foi prestado por João Ferreira contraria, em vários aspectos, a versão apresentada por António Telmo. Assim, desde logo, João Ferreira nunca foi núncio apostólico. Na Guiné-Bissau, foi Director-Geral, residente em Bissau, de todas as escolas, rudimentares, primárias, técnicas e de formação de professores de primeiro grau da Prefeitura Apostólica daquela província ultramarina, num total de cerca de 500, entre 10 de Junho de 1963 e 10 de agosto de 1965. 

[3] Nota do editor – Na verdade, foi na Pontifícia Universidade Antoniana de Roma que João Ferreira, em 10 de Dezembro de 1953, defendeu a sua tese de doutoramento intitulada Petrus Hispanus eiusque positio psychologica relate ad Avicennam [Pedro Hispano e a sua posição doutrinal em psicologia relativamente a Avicena].

[4] Nota do editor – João Ferreira afirma que nunca Agostinho lhe falou de teologia nem de cargos teológicos nem de uma Faculdade de Teologia.

[5] Nota do editor – Cf. a nota anterior: a versão de João Ferreira contraria este relato.

[6] Nota do editor – Segundo João Ferreira, Agostinho da Silva foi sempre a pessoa mais participativa, mais atenta, mais lutadora, mais amiga, para o colocar na Universidade. Sempre quis a sua presença na Universidade, lutando por ela como ninguém.

 

UNIVERSO TÉLMICO. 63

26-03-2019 12:02

Gilberto Pinhal e o milagre de Alalaia

Pedro Martins

 

Que a arte é longa e a vida breve, eis uma verdade há muito sabida, que o caso doloroso do sesimbrense Gilberto Pinhal nos vem agora sublinhar. Partiu quando o século ia a meio, com 23 anos, às mãos de uma tísica, essa tesoura das parcas, que, pouco antes, já cortara o fio subtil do confrade Zé Preto. Com eles e com Rafael Monteiro, Manuel José Palmeirim, António Telmo, António Reis Marques e Francisco Reis Marques, teve Sesimbra a sua mais notável geração de homens de letras, da história à poesia, do jornalismo à filosofia.

Pescador e graduado da Mocidade Portuguesa, cujo Centro de Marinharia fora chamado a comandar em Lisboa, Gilberto Cerqueira Pinhal foi sobretudo um «misto de poeta e marinheiro, e por isso alma bem portuguesa», como dele afirma, judicioso, quem o evoca na edição de O Sesimbrense de 12 de Novembro de 1950, seis dias após a sua morte. Não vem assinado, o obituário, mas não custa supor, e será mesmo de admitir, que tenha sido Rafael a escrevê-lo.        

Gilberto Pinhal, que usava assinar com o pseudónimo Palma Gil, deixou-nos alguns poemas, entre eles o extraordinário Alalaia – Poema do Mar, saído a lume em folheto e posto a concurso em Siracusa. É sobre ele que vos irei falar. Bastaria este poema, como realmente bastou, para que nunca devêssemos esquecer quem o compôs.

É Alalaia a versão poética de uma lenda sesimbrense, tal como esta, naqueles anos, lhe terá chegado pela tradição oral. Disso mesmo parece dar conta ao narrar que «o velho pescador desfia ao neto / o rosário já de seu avô».

Lenda vem de legenda, palavra que significa o que deve ser lido.

Que deve, pois, ser lido em Alalaia? Isto é: como deve ser lido? 

A primeira pregunta a fazer é esta: o que é a Alalaia? 

Pode dizer-se que é uma ilha.

Pelo menos, a isso nos autoriza o Professor João Chagas, no artigo que em 1999 publicou no Jornal de Sesimbra e que em 2005, enquanto editor da Sesimbra Eventos, tive a honra de republicar no derradeiro número desta agenda cultural, que foi também o último de um díptico dedicado aos mitos e às lendas de Sesimbra. Particularmente lúcida foi a relação que este nosso saudoso Amigo nele então sugeriu entre a Ilha do Amor de Camões e a Alalaia. Como se vai perceber.

Onde fica essa ilha, a Alalaia? Os mareantes que a procuram, esclarece Palma Gil, vogam «através dos espaços, sem rumo, sem norte, sem fim», buscam «essa terra que para lá do Sol fica». Esta é uma coordenada repetida, várias vezes, ao longo do poema. Mas o poeta também nos diz que «Alalaia jaz / no seio do mar, / Envolta em mistério oculto, / negada aos olhos do Mundo».

Parece haver aqui uma contradição. Mas não passa de mera aparência, se ali tomarmos o Sol e o mar como símbolos. O símbolo, ensina Álvaro Ribeiro, é a metade sensível de uma realidade insensível, isto é, de uma realidade que não pode ser alcançada pelos sentidos. Temos assim duas imagens que nos remetem para uma realidade de outra ordem.

A verdade é que Alalaia não fica neste nosso mundo. Está situada num outro mundo, do qual poderemos até, talvez, dizer que é o outro mundo.

E a este respeito será muito importante observar que a visão da Alalaia é não raro precedida de uma atitude religiosa. Isso mesmo se verifica logo nos quatro primeiros versos do poema: «Correu no céu o sinal / em abrir luminoso do horizonte / ao dobrar dos joelhos / dos homens quedados em oração».

Gilberto Pinhal persiste nesta ideia com uma outra imagem: «Alalaia, morreste / e existes no sonho das gentes, / para lá da bruma intransponível, / que o homem quer desvendar. / Alalaia existe, / no arrebol do Sol nascente, / quando, ao largar da rede, / ao “lavacão”, / os barretes mostram cabelos, / e os lábios deixam sair uma oração».

Surge aqui um dado novo, que se vai revelar do maior significado: a visão da Alalaia dá-se de manhã.

Não creio que essa circunstância seja um acaso, pois o nosso poeta parece frisá-la pela insistência: «Envolta em nuvens de alvo linho, / quando a lua, amortalhada, agonizou, / a terra floriu / no calor da divindade, / no nascer dos raios fecundantes / do Sol abrasador». No verso imediatamente seguinte, revela Gilberto: «Era nascida Alalaia».  E, poucas estrofes adiante, irá escrever: «… e a manhã rompia /em pinceladas de rosada aurora! / É dia, vai recomeçar Alalaia! / … e o dia vinha, / e a noite vinha, / e o Sol passava, / e a lua banhava beijos e abraços, / e a terra era céu / de beleza, de clareza, / no mistério eterno do dia nascente»

Palma Gil afirma agora, referindo-se à Alalaia, cuja visão surge sempre ao raiar da aurora, que a terra era céu de beleza, de clareza. Não será, por isso, errado ver na Alalaia uma terra celeste, o que aliás é coerente com a minha afirmação de que ela é já um outro mundo. Quero com isto dizer que a Alalaia não é o mundo físico ou natural, em que estamos e que se oferece às nossas percepções sensoriais, mas um mundo situado já fora do espaço e do tempo. Assim, a Alalaia, tal como o poeta a vai descrevendo, é «a terra bela, / de mar tranquilo, de homens puros / de vida eterna»; é também a terra «do sol eterno»; e é ainda «o sonho eterno que os barcos correm, / de mar em mar, / em busca do ignoto».

O sol eterno a que Gilberto se refere é, pois, o sol da Alalaia, isto é, será já o sol daquela terra que fica para lá do sol desta terra, que é ainda o nosso mundo. Antes de tentar conferir a todos estes dados uma unidade de sentido, irei, uma vez mais, procurar explorar aquela dualidade no poema de Gilberto Pinhal.

Da Alalaia diz-nos ele, por exemplo, o seguinte: «Foi ali / que as florestas deram faunos; / bergantins de magia pisaram lagos prateados / de homens de arcaboiços bronzeados / em halos de esplendor infindo, / sobre as areias morenas aurifulgindo, / filhos de fadas, / que as vagas taparam / no rebentar do infernal marulho.»  Mais à frente, revela: «Era nascida a Alalaia, / a terra bela, / de mar tranquilo, de homens puros / de vida eterna, no cantar dolente das Nereidas – voz de Neptuno, / que Anfitrite espalhava / pelas dunas sossegadas; sono embalador de felicidade, / que Diana deixou no seu dócil passo, / em busca de Febo, / em procura de maior claridade… / e a luz irradiava, / do altar à vela, que rasgava céus, / do mar ao moinho, que cortava ventos. / A terra colorida / era o princípio de Júpiter, / o cantar da alvorada da eterna vida.»

Estas duas passagens suscitam três observações.

A primeira diz respeito à nota de tranquilidade, quando não de quietude, que nos é sugerida por alguns versos do segundo excerto, em que, como acabámos de ver, se fala de: mar tranquilo; cantar dolente; dunas sossegadas; sono embalador; dócil passo. A própria noção de eternidade, pressuposta neste excerto, remete-nos para um tempo imóvel, em que tudo é simultâneo, em que nada obedece já à lei da sucessão.

Outra nota da maior importância, e aliás decisiva, é o facto de os seres e as coisas parecerem difundir uma luz que lhes não é exterior, que lhes não vem de fora, mas que tem neles próprios a sua origem: os homens aparecem-nos envoltos em halos de esplendor infindo; e as areias, apesar de morenas, refulgem em dourado. Dir-se-ia, pois, que comungam dessa luz que, nas palavras do poeta, irradia do altar à vela e do mar ao moinho.

Por último, deve notar-se que Palma Gil chama à Alalaia terra colorida. E era dessa terra, conta-nos ele, depois, no poema, «que a gaivota, núncia marinha, / trazia notícia estranha, / às areias tórridas, / da terra sem cor e sem fé / das gentes exaustas, / dos campos incolores, /  do mar tenebroso, / dos penedos agrestes, das flores bravias; / Sol sem calor, / de luz mortiça; / vida sem brilho, no aço nu / da lança maldita, / que a Cruz não esqueceu…»

O contraste entre os dois mundos não poderia ser mais evidente: na cor, na luz e no calor. E também na fé, ou na falta dela. Já vimos que a visão da Alalaia depende da adopção prévia de uma atitude religiosa. Assim, não será de estranhar que a ausência de uma tal atitude, por falta de fé, impeça essa visão.

Uma terceira passagem do poema, que corresponde a toda uma estrofe, permite condensar em síntese o que as duas anteriores mostravam: «ALALAIA!, ALALAIA! / de bosques ridentes / de “ziziphus marinhos, / de esmeraldas irisadas, / de Lotos divinos, / que teus filhos ofertaram, / deixando p’ra trás do rumo, / o esquecimento da vida terrena… / luz branca a pairar / nos lagos serenos da tua paz; / tanger bronzeado / do sino a repicar, / em melodiosa  ode de recolhimento, / a clamar, da tua gente, / uma prece infinda…»

Eis, pois, de novo, a paz e a luz, e a prece que a elas conduz. Que pensar de tudo isto?

A chave que nos abre as portas de Alalaia, iremos encontrá-la em António Telmo e na leitura hermenêutica que nos propõe de Os Lusíadas, no seu Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões.

Vou assim socorrer-me deste seu livro, nascido de uma descoberta espantosa: as inúmeras coincidências, que o filósofo verificou existirem, entre a descrição da Ilha do Amor que aparece no célebre Canto Nono da epopeia e uma pintura pertencente a um manuscrito tardio (do fim do século XIV) do sul da Pérsia, que encontrou reproduzida no livro Sufi de Laleh Baktiar. Esclareça-se, desde já, que a palavra sufi designa, na tradição muçulmana, o iniciado. O sufismo é o esoterismo islâmico, do mesmo modo que a Kabbalah é o esoterismo judaico.

A Ilha de Camões a que Telmo alude no título do seu livro é, pois, a Ilha do Amor e tem, desde logo, em comum com a Alalaia o ser uma ilha. Mas as coincidências não ficam por aqui. Tal como no poema de Gilberto Pinhal, são marinheiros ou mareantes aqueles que a avistam e alcançam. E, tal como no poema sesimbrense, há a sublinhar o facto, que António Telmo acentua, de «a Ilha surgir aos olhos dos navegadores quando a Aurora se levanta. Os versos são estes:

 

Houveram vista da Ilha namorada

Rompendo pelo céu a mãe formosa

De Memnónio, suave e deleitosa.

                                   (Canto IX, 51)».

 

À terra colorida de Alalaia parece poder corresponder a «Ilha angélica pintada» de Camões. Escreve António Telmo:

 

«Esta expressão, na estrofe 89 do Canto IX, envia-nos para outras expressões, convergentes, de que salientamos estas duas: «ínsula divina ornada de esmaltado e verde arreio» (estrofe 21), «formosos outeiros… que do gramíneo esmalte se adornavam» (estrofe 54). O brilho próprio da pintura persa é o da ilha pintada e esmaltada: «as coisas segregam luz.» «Pintada» não significa ali «descrita». Significa que a ilha é uma pintura.»    

 

Na Ilha do Amor, como António Telmo realça, a luz que ilumina as coisas «não vem do exterior, de um foco luminoso – sol, lua ou lâmpada –, foco exterior ao objecto iluminado. Vem do objecto que é iluminado. Também este ensinamento se encontra no Canto IX:

 

Para julgar, difícil cousa fora,

No céu vendo e na terra as mesmas cores,

Se dava às flores cor a bela Aurora,

Ou se lha dão a ela as belas flores.

                                               (Canto IX, 61)»

 

Como é evidente, não poderei aqui reproduzir pari passu toda a demonstração de António Telmo, o modo como, ponto por ponto, compara a Ilha do Amor do Canto Nono de Os Lusíadas com a pintura persa, estabelecendo sucessivas correspondências entre as duas obras, ou como, a partir de um documento do esoterismo islâmico de raiz iraniana, chega ao zoroastrismo, essa tradição matricial da Pérsia que tanto influenciou os três monoteísmos abraâmicos: judaísmo, cristianismo  e Islão.

O que me importou foi assinalar os pontos de convergência – e não são poucos – entre Camões, tal como Telmo o leu, e o nosso Palma Gil. Por essa via nos fomos já aproximando do sentido mais elevado do poema Alalaia, de forma a mostrar que a sua mensagem tem um sentido iniciático e que, por conseguinte, estaremos diante de uma autêntica obra de arte, não apenas pela beleza estilística dos seus versos, que todos, nesta sala, saberão decerto reconhecer e admirar, mas também por dar expressão a um pensamento ancestral e fecundo que responde aos anseios de uma humanidade decaída e em busca da redenção.

Entre esses pontos de convergência, retomo agora o da visão auroral da Ilha, que no nosso caso toma o nome de Alalaia. «Este tipo de conhecimento», ensina António Telmo, «recebeu no hermetismo da Renascença o nome de cognitio matutina, por oposição à cognitio vespertina, o conhecimento do homem exterior e da exterioridade das coisas. O conhecimento matutino, oriental («Portugueses somos do Ocidente / Vimos buscando as terras do Oriente ou as terras da Aurora») é o homem de luz, ao aceder «à morada que segrega a sua própria luz».

A cognitio matutina será então o conhecimento do homem interior e da interioridade das coisas. É, pois, uma gnose e uma autognose, o conhecimento do que em nós e no mundo é interior, oculto, secreto; e pressupõe uma iniciação. Não é um conhecimento pelo corpo e pelos seus sentidos, porque estes só nos permitem conhecer o mundo exterior; é um conhecimento pela alma ou, mais precisamente, por aquela sua faculdade, aquele seu órgão subtil de percepção, adormecido na maioria dos homens, a que se dá o nome de imaginação, acrescentando-se-lhe o epíteto de criadora para que se não confunda com a fantasia. É que, ao contrário do que sucede com esta última, como ensina António Telmo, que tenho vindo a seguir, «a realidade que por ela é percebida é objectiva, no sentido de que se a alguém se revela, outro nas mesmas condições verá o mesmo. A única diferença para com o mundo sensível, com o que aí é visto e logo contado por distintos observadores, consiste em que, além, a visão fixa um universo movente. A ilha de Vénus movia-se pelas águas, docemente empurrada pelo poder da Deusa, «como o vento leva branca vela» mas, logo que os nautas a viram e se lhe dirigem, torna-se firme e imóvel».

Diante desta longa citação, começo pelo seu final, para relembrar algo que já assinalei: também a visão da Alalaia nos é dada, pelo menos tendencialmente, em termos de imobilidade. Na transposição para a linguagem iniciática e esotérica de Henry Corbin, adoptada por António Telmo, essa visão é a do mundus imaginalis, um mundo que «não é fantasia ou mentira nascida na mente, mas um mundo tão real como o sensível, intermediário dele para com o mundo inteligível».

Numa primeira fase, a que os antigos gregos chamavam os pequenos mistérios, todo o trabalho iniciático aspira à reintegração do homem decaído neste mundo intermediário ou subtil. Fala-se, então, a este propósito, na restauração do estado primordial ou na restituição a Adão, símbolo da humanidade decaída após a expulsão do paraíso terrestre, do seu glorioso corpo de luz. Se for possível demonstrar que Gilberto Pinhal concebeu a Alalaia como esse paraíso, terei praticamente concluída a demonstração da tese subjacente à minha leitura.

Peço, por isso, a vossa atenção para uma estrofe do poema onde se reencontram alguns versos já nossos conhecidos: «Verga-te, ó tempo! / que o mistério vai passar, / levando na crista da onda / o Eden dos homens, através dos espaços, sem rumo, / sem norte, sem fim. / O Eden que os homens hão-de procurar / e que jamais encontrarão».

Creio que a demonstração ficou feita. Estamos já num plano superior ao do tempo e do espaço: é o Eden, o Paraíso. Será possível alcançá-lo? E como?

Muito importante é a afirmação de que o mistério, ao passar, leva na crista da onda o Eden dos homens. O emprego do termo mistério denota o rigor da propriedade expressiva: refere a iniciação. E a alusiva identificação desse mistério com a viagem de navegação revela que esta, no seu sentido mais alto, cifra simbolicamente a demanda dessa iniciação. Tal foi aliás a significação superior que António Telmo assinalou n’Os Lusíadas.

Alguns outros versos de Gilberto sugerem que o paraíso foi outrora perdido: «ALALAIA! ALALAIA! / dos ventos do mar, / do belo e puro que o homem quis / e que Deus vedou ao homem; / és o sonho que refulge, / que o mundo ambiciona, / que o homem sente e não vê.»

Insisto: será possível alcançá-lo, a esse paraíso? Estes versos de Palma Gil, no seu aparente pessimismo, parecem responder negativamente.  Os que se lhes seguem, e que são aliás os derradeiros do poema, não consentem maior esperança: «ALALAIA!, / és o mundo belo e puro, / terra de sonho e magia / para lá do Sol, / a viver em cada coração. / ALALAIA, / vê-se… e não existe! / ALALAIA, / existe… / …e não se vê.»

Ficamos desconcertados perante uma realidade que ora nos foge ora nos ilude. Mas a ilusão é só nossa. E somos nós quem falta à chamada, que é afinal a do moço chamador, se à imortal balada de Zé Preto, já aqui evocado pela voz soberana de Mestre António Reis Marques, símbolo vivo da geração que hoje celebramos, se à imortal balada, dizia eu, restituirmos a sua altíssima significação primacial. É que essa chamada é para o mar e é para a morte. O mar como via ou caminho da iniciação, a morte como símbolo da mudança de estado que conduz a um segundo nascimento. «O chamamento essencial», na interpretação de António Telmo, num inédito que O Sesimbrense publicou em Julho passado. E por isso «o moço conhece, / da noite, os segredos. / Não teme fantasmas / E fala com os medos». O moço é um ocultista improvável, saído das páginas de As Sombras de Pascoaes, esse sublime mago do Marão em cuja leitura Telmo, vindo da Arruda, terra das bruxas, e entrado na roda de que se tornou o eixo, como belamente escreveu Rafael, iniciou os seus conviventes.   

Alalaia vê-se, e não existe, porque a sua visão é já a de um mundo cuja existência se situa num plano que os nossos sentidos não alcançam. E por isso ela existe, e não se vê. Pascoal Martins, um grande iniciado do século XVIII, judeu, cabalista e maçon de provável origem portuguesa, chamava misteriosamente ao paraíso terrestre a terra erguida acima de todos os sentidos.

Tem razão Palma Gil no seu pessimismo, que não chega a ser definitivo. Diz tudo quando escreve estes versos: «O ouro cegou olhos, / arrasou barcos, destruiu homens; / o ouro brilhou no Mundo! / De vante à ré, / nas fustas e caravelas, / soou a harpa do Demo, / que Cileneu tangia; / de mar a mar, / de cabo a cabo, / em vozear de trovão, / reboou o som maldito, / por entre o estertor das bombardas, / de amura a amura, / às camarinhas… / O ouro brilhou! / e as terras caíam, rendidas, / às velas dominadoras; / mas Alalaia, / o sonho, / continuou… / …para lá do mar impenetrável, / té que o alvor foi mais brilhante! /As naus tocaram praias de Alalaia! /As naus cobriram mares de Alalaia! / E Alalaia ficou… / na frente das proas / …nos olhos dos mareantes, /saudosos e estranhos / Alalaia à vista!, / no grito absorto / do gageiro descrente / …os barcos rodaram, / em bordo de bolina… / e, no pôr do Sol, / a terra afundou-se / aos homens de ambição».

No pôr do Sol, a terra afundou-se aos homens de ambição. Já sabemos o que entender pelo pôr do sol. É a cognitio vespertina, o conhecimento ocidental do homem e do mundo na sua exterioridade, levado ao extremo pela ambição material que cega. Alalaia existe e não se vê. Por isso o poeta, uma vez mais, nos dará notícia, do cesto da gávea, «do sol eterno, / da vida pura / do paraíso, fugido às mãos da ambição».

Resta-nos esperar por um milagre? Só ele nos levará à Alalaia?

Milagre é propriamente este poema, surgido em circunstâncias sociais, económicas e culturais que, à partida, o tornariam improvável, ou mesmo impossível. Tributário da influência de Rafael e sem paralelo na produção do seu autor, somente a Balada do Moço Chamador de Zé Preto, e alguns poemas sesimbrenses de Telmo com ele poderão enfileirar, pela sabedoria, pela beleza e pela força, no pódio do Parnaso exíguo da Piscosa. Que se saiba não foi Gilberto Pinhal um iniciado, e por isso Alalaia parece vir dar alguma razão a René Guénon quando explica a presença, no folclore, de aspectos da tradição esotérica pela necessidade que os iniciados, perante circunstâncias adversas, sentiam de a perpetuar nas criações populares, assim tornadas suas depositárias inconscientes. A esta luz, que me parece poder sustentar uma hipótese razoável, o que de mais espantoso se verifica na lenda da Alalaia, tal como Gilberto Pinhal a fixou no seu poema, são a extensão e a profundidade com que o ensinamento tradicional que ele revela pôde chegar até ao poeta e, por ele, até nós. Não são ruínas, muito menos destroços. Quase se diria uma casa pronta a habitar. E a este propósito conviria começar por verificar, dadas as ressonâncias fonéticas, que relação poderá existir entre a expressão árabe Laa ilaha ill-Allah (não há deus senão Alá), testemunho de fé do monoteísmo islâmico, fórmula empegada no chamamento à oração e no início das orações, e a nossa Alalaia. Se àquela a expurgarmos das asperezas da sua pronúncia original, teremos la-i-la-i-la-la. Talvez então Alalaia exista e se deixe ver.

DOS LIVROS. 62

22-03-2019 11:32

José Preto

 

As três parcas estão postas no inferno.

Ali domina a divindade virgem

Tendo na fronte escrito o Nome eterno,

De todos os nomes a secreta origem.

 

Lê nel’o amante o nome suave e terno

Da sua amada. As setas o atingem

Na manhã, quando pasma, ante o externo

Rosto da aurora a quem as rosas tingem.

 

Sesimbra, a parca oculta corta o fio

Do novelo da vida do teu poeta

Quando o Toiro muge com o cio,

 

Da natureza amoroso. Eis tudo nasce!

E o poeta morto jaz da tripla seta.

Com o sol de Maio a vida a el’ faz-se.

 

António Telmo

 

(Publicado em Viagem a Granada seguida de Poesia, 2016)

 

DOS LIVROS. 61

06-03-2019 16:28

Zé Preto. Foto publicada por Joaquim Diogo no blogue Salvaterrazimbra

 

 

Zé Preto*

 

Acontece-nos, às vezes, perguntar se há um sentido e qual em termos conhecido determinada pessoa que passou pela nossa vida como um meteoro de sombra, riscou-lhe o céu de luz e se apagou. Digo meteoro de sombra porque o passado é, como o Hades descrito por Homero, um lugar de imagens e sombras. Digo meteoro porque todas as almas são luzes que desceram a iluminar a matéria que as entenebreceu.

José Preto passou pela minha vida e eu passei pela sua. Eu passei, nos meus anos moços de entusiasmo pelo conhecimento nascente, talvez para lhe emprestar o Fédon de Platão, o Fédon ou sobre a imortalidade da alma.

Havia também o Gilberto Pinhal, o outro poeta de Sesimbra, como ele esperando a morte inevitável dos tuberculosos. A penicilina ainda não tinha sido descoberta. Era estranho! O rosto do Gilberto, a sua cabeça assemelhava-se até à coincidência com a de Rodolfo Steiner, tal como aparece num dos livros dele que, então, nós líamos. Apareceu-me, depois, em sonhos e ainda hoje o vejo, tal como o vi alguns dias depois de ter morrido, mais nitidamente do que, ao lembrá-lo, na vida real. A nossa pálida memória diurna é a superfície ou o eco de uma memória mais funda, em nós ínsita, onde os seres são realmente existentes. Às vezes aparecem inesperadamente. Onde, em que lugar, em que tempo os trazemos connosco? Ou não seremos nós que estamos nesse lugar e não tomamos consciência disso, do mesmo modo que eu, estando como estou neste mundo, em que sou e vivo, mal me apercebo dele?

Da leitura do Fédon nasceu a poesia “O Moço Chamador”. É uma balada de mar e morte. O chamamento essencial.

 

Antonio Telmo

 

(Publicado em Capelas Imperfeitas - Dispersos e inéditos, 2019)


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* O título é da nossa responsabilidade.

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