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INÉDITOS. 91

13-05-2020 19:36

Na carta que em 2 de Junho de 1986 escreve a António Quadros, António Telmo revela-lhe que espera publicar um volume sobre “Filosofia e Cabala”, já completo, estando apenas à espera das três cartas que, com respeito aos sucessivos volumes de Portugal, Razão e Mistério a haver, tencionava escrever ao seu correspondente.

Mais de um ano depois, em nova carta para Quadros, datada de 28 de Julho de 1987, afirma: «Enquanto bibliógrafo, estou aperfeiçoando e reunindo escritos antigos que intitularei, num novo livro, de «Filosofia e Cabala».

Como quer que seja, o desejado volume só sairia a lume em 1989, com o título Filosofia e Kabbalah, parecendo mais conforme ao anúncio da missiva de Julho de 1987. Será bem de presumir que os planos de Telmo para o novo livro tenham mudado consideravelmente.  

O escrito ainda inédito que agora publicamos intitula-se "Introdução à Filosofia e Cabala" e destinar-se-ia, possivelmente, à primitiva versão do livro, aquela a que o filósofo da razão poética se refere na carta de Junho de 1986, ou a uma eventual versão intermédia. O leitor que se recordar do “Prolóquio” de Filosofia e Kabbalah poderá verificar como são diferentes estes dois textos de cariz introdutório.  E curioso será notar que o confronto, tanto pela convergência como pela divergência, de Álvaro Ribeiro e José Marinho, que rege o desenvolvimento da "Introdução à Filosofia e Cabala", irá reaparecer, de um modo bem mais sintético, nesse escrito fundamental do cânone télmico que é o artigo “Sampaio Bruno, «O Encoberto»”, primeiramente publicado em 1989 na revista Leonardo, o que o torna contemporâneo de Filosofia e Kabbalah, e mais tarde recolhido em Viagem a Granada. A amplificação propiciada por um tal diálogo transcende já, como razão acrescida para a sua publicação, o inegável interesse histórico ou biográfico do texto que agora se propõe. Na verdade, e como o leitor comprovará, o aprofundamento assim propiciado pode resultar iluminante. 

     

Introdução à Filosofia e Cabala

 

Quem teve, como eu, a felicidade, ou a infelicidade, de ter, simultaneamente, como mestres de filosofia dois homens tão diferentes como Álvaro Ribeiro e José Marinho, tão diferentes sobretudo na orientação do pensamento, ou nada compreendeu e pôde, à vontade, seguir qualquer caminho fora da autêntica filosofia, ou, no esforço de compreensão dos opostos, descobriu, maravilhado, que a síntese estava na origem de ambos, isto é, em Leonardo Coimbra.

A fotografia, que aparece no frontispício deste livro, tirada, dizem, no dia em que o supremo professor da Faculdade de Letras do Porto deu a última aula, foi ocasionalmente ou por disposição sobrenatural marcada por profundas e exactas relações simbólicas. As nove personagens fotografadas configuram um misterioso símbolo judaico-cristão, correntemente designado por “árvore das sephiroth”, mas que surge em todos os templos onde verdadeiramente se cultue Deus “em espírito e em verdade”. Esquematicamente, compõe-se de três colunas que determinam todo o edifício: a maçonaria, isto é, a arquitectura, somente dá como visíveis a coluna da direita e a coluna da esquerda; a coluna do meio é representada por um trono ou algo que a ele alude, mas é, de sua natureza e dignidade, invisível ou imaterial.

O que espanta, olhando a fotografia, é que no lugar das duas colunas laterais estejam Álvaro Ribeiro e José Marinho. E o espanto é tanto maior quanto, pela estação de pé, são realmente duas colunas de um e de outro lado de Leonardo Coimbra. Todos os outros estão sentados. A simetria formada pelo Mestre e pelos dois discípulos é perfeita.

Ocorre-nos à lembrança o famoso fresco de Rafael que representa Platão e Aristóteles n’A Escola de Atenas. Aqui não foi o acaso mas o génio do pintor que, no compasso formado pelas figuras dos dois filósofos compôs em esquadria a mão direita de Platão com a mão esquerda de Aristóteles.

José Marinho, o platónico, inclina para a terra a cabeça, meditativamente séria; Álvaro Ribeiro, o aristotélico, parece olhar o horizonte longínquo. Este momento, o da fotografia, é aquele em que eles vão “partir”, em que se propõem “criar de novo” a filosofia do Mestre. Há decepção e desalento na postura de Leonardo Coimbra. O decreto de Salazar, ao extinguir a sua Faculdade de Letras, “sociedade que funcionava inteiramente aberta ao público, sem perder a sua qualidade de secreta”, viera alegrar a inveja dos seus inimigos, no seu maior número constituídos por pseudoantiestado novo [sic]. Mas ali ficava fixada a imagem de uma verdadeira escola cabalista, que, passados vinte anos, viria a ser conhecida pelo nome de Movimento da Filosofia Portuguesa.

O que vou escrever traduz a opinião de alguém que tem participado, a seu modo, nesse movimento. É de esperar que todos quantos tiveram, como eu, a felicidade, ou a infelicidade, de serem discípulos de Álvaro Ribeiro e José Marinho não concordem em tudo, ou em nada, com essa opinião. Limito-me a exprimir aquilo que me foi dado ver.

A filosofia de Álvaro Ribeiro e a filosofia de José Marinho aparecem-me como duas direcções, – a judaica e a cristã – do pensamento de Leonardo Coimbra. Propriamente, dever-se-ia dizer aqui esoterismo judaico e esoterismo cristão. Um dos exercícios de pensamento que éramos forçados pelas circunstâncias a praticar era o de determinar o que distinguia um de outro filósofo, mas mais difícil era ainda o de procurar ver o que, em ambos, era comum. De um modo geral, pode dizer-se que Álvaro Ribeiro era racionalista e José Marinho irracionalista. Os dois defendiam, porém, o valor da imaginação e da intuição e ensinavam que o princípio da filosofia é a ideia de Deus. Diferiam radicalmente quanto ao valor gnósico do “juízo”, interpretando a relação do Verbo do quarto Evangelho com a substância em modos distintos. Para José Marinho a relação procedia pelos modos infinitivo e interrogativo, para Álvaro Ribeiro pelo modo indicativo[1] e pelo modo condicional ou imperativo[?]. O juízo é o que cinde a infinitude da relação, o juízo é o que une e torna cognoscível essa mesma infinitude. O juízo, que se componha com o amor, e a razão que se componha com a fé, têm de interrogar-se sobre aquilo que os garanta enquanto actos imediatos do pensamento; o juízo é, em si, uma operação mental de amor à Sofia, que logo se articula com outros juízos para formar um raciocínio completo, ou silogismo, desde que o seu movimento sirva os desígnios da arte. Et caetera, et caetera…

A preocupação de alguns, aquilo de que se ocuparam antes de os ouvir, era a da garantia transcendente da fé católica, a única que nos falava do ensino de Cristo. A fé católica é a fé dos portugueses. Não há, entre nós, outra religião. Ou se é católico, ou não se é católico. É-se budista, shintoísta, para não se ser católico. É-se materialista também para não se ser católico. Mas o que nos perturbava era que se pudesse ser católico e materialista ao mesmo tempo. A filosofia parecia-nos substituir a crença à fé e a fé à ideia de Deus, não só existente mas também vivente em toda a criação.            

 

Giordano Bruno idealizou um sistema de filosofia, pela arte da mnemónica, à qual chamou a “religião da mente”. A expressão é estranha, mas exprime bem o objectivo de atingir a ideia de Deus ou a ideação própria de Deus através do pensamento. Para tanto, o pensamento terá de organizar-se num sistema mnemónico ou da memória coordenado com a memória do mundo, que, segundo Bruno, reside nos astros. A analogia é o método ocultista de conhecimento, ao pretender pensar o invisível pelo visível, encontrar a espécie e o género, partindo do indivíduo. Leonardo Coimbra via nela uma espécie de indução. José Marinho preferia dizer anagogia e negava, como o mestre, autêntico valor gnósico ao silogismo. Álvaro Ribeiro interpretava o silogismo como “catologia”, como a operação inversa da “analogia”. A catalogia faz descer o logos à Terra para a redimir. Com efeito, opunha-se ao destino que José Marinho atribuía à filosofia: o de relacionar o pensamento com o Ser; para ele a filosofia tinha por fim relacionar o pensamento com a acção. Ocultista de formação leonardina, compunha, porém, a catalogia com a analogia, tendo até querido demonstrar que nela está a origem do silogismo.

Era evidente para todos nós que a escola de filosofia fundada por Sampaio Bruno e criada por Leonardo Coimbra vendia um ensino secreto, esotérico, ocultista. Nela perdíamos a nossa alma para a ganharmos. Tratava-se de um desafio. É natural que nem todos tenham aguentado o jogo até ao fim, com todas as suas consequências. Outros, sabendo que a liberdade tem seus riscos, preferiam seguir “a via iniciática de olhos bem abertos”. A expressão é de José Marinho.

Vale a pena lembrar todo o passo da Introdução à Teoria do Ser e da Verdade:   

           

«Assim, o autor crê ter ficado simultaneamente autónomo e fiel a uma via remotíssima de pensamento. Essa via, ao mesmo tempo fácil e dificílima em sua subtileza, ao mesmo tempo e sempre revelada e oculta, permanece aberta para todos os homens e todos os seres. Uns a seguem livres, outros forçados por o que é, para estes, necessidade incompreensível, absurdo destino. Melhor parece livremente segui-la e de olhos abertos.»

 

António Telmo



[1] Nota do editor – Esta palavra surge riscada no manuscrito, sem que tenha sido substituída por outra equivalente; mas António Telmo manteve as palavras que imediatamente se lhe seguem, nomeadamente a conjunção coordenativa “e”, pelo que alvitramos a hipótese de que, afinal, a terá mantido.

 

    

 

INÉDITOS. 90

10-05-2020 11:04

Um povo “mélangé”[1]

 

Se a “gnose” teve, em Portugal, até 1513, o seu Templo ou, com mais luz, se Portugal foi até então o Templo da “gnose”, entrada depois em “dormência” durante quatrocentos anos, é no diálogo entre a poesia e a filosofia que subitamente irrompe por volta de 1910, com a República, onde [sic] se devem estudar as características próprias que assumiu no lugar da alma que dá pelo nome de Terra de Santa Maria. A uma certa espécie de “gnose” teremos de referir o que Álvaro Ribeiro disse ser a originalidade da filosofia portuguesa. Singular filosofia essa, em terra portuguesa, que, por espontânea fidelidade à mesma visão sófica, há-de conciliar pensadores tão distantes como Sampaio Bruno e Leonardo Coimbra, poetas tão diferentes como Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa.

Ao falar-se de lugar da alma, há que lembrar como, já na pré-história, sucessivas vagas de povos se detiveram aqui perante o Oceano: a cultura dolménica é um dos sinais. Mais perto de nós, bárbaros, judeus e romanos, árabes depois, franceses, ingleses e espanhóis disputaram esta terra, usando de força e astúcia. O processo continua, embora revestindo outros aspectos. Os turistas de todo o mundo vêem nela o paraíso do seu prazer.

Mas judeus e árabes viam nela outro Paraíso.

Etnicamente somos uma mistura, “un mélange”, como observou um famoso esoterista europeu que se negou, por isso, a difundir o seu ensino aqui. Ele, no seu relativo acerto, não contou com a persistência de estratos rochosos mais profundos que não sofreram a corrosão superficial. São esses estratos que, por direito e dever, se ligam íntima e secretamente com o espírito da Terra. Persistem fundos e ocultos, ignorados dos intelectuais que, esses sim, desde os políticos aos escritores, desde os escritores ao clero, são a perfeita expressão dum povo “mélangé”, dividido e dilacerado entre três religiões, amesquinhado pela Europa e, por isso, dócil e servil a tudo o que vem de fora, que recebe com júbilo os invasores, se deixa corromper por eles e se arroga o direito da última palavra em política, em economia, em filosofia, em religião. O sentimento oculto de inferioridade excita neles a inveja, que já foi caracterizada como o vício nacional.

 

António Telmo      



[1] Nota do editor – O título é da nossa responsabilidade.

 

EDITORIAL. 22

02-05-2020 00:09

Uma página renovada

 

No dia em que se completam 93 anos sobre o nascimento de António Telmo, apresentamo-nos perante os leitores com uma página digital renovada e ampliada, sobretudo nos seus conteúdos.

Assim, actualizámos os registos bibliográficos do filósofo da razão poética, há poucos dias enriquecidos com a (re)descoberta de uma importante recensão de Dalila Pereira da Costa à Gramática Secreta da Língua Portuguesa, que até hoje permanecera desatendida e omissa na sua bibliografia passiva. Fora publicada no Volume I, número 4, da revista Nova Renascença (Verão de 1981), e a sua localização tornou-se possível graças ao precioso livro Nova Renascença – Revista Trimestral de Cultura: Perfil e Identidade de uma Revista (Fundação Eng. António de Almeida, Porto, 2015), da autoria de Paulo Samuel, membro do nosso Projecto.   

Algumas secções são novas na nossa página; outras sofreram uma significativa remodelação.

No primeiro caso, encontra-se a breve notícia biográfica do nosso patrono, bem como as rubricas dedicadas a Agostinho da Silva, à Colecção Thomé Nathanael ou à correspondência; no segundo, os itens da apresentação do Projecto e das Obras Completas de António Telmo. No seu conjunto, estas alterações não só reflectem o desígnio de aperfeiçoamento que sempre nos tem norteado, como também a acumulação de um património de realizações que é hoje o nosso.

Note-se ainda, a este respeito, que, desde o seu início, em 20 de Novembro de 2013, e até hoje, a página do PAT.VO já registou a afluência de 637.543 visitantes, o que diz bem da sua aceitação e implantação.

Por estes dias, ficou concluída a transcrição e a anotação das cartas de Dalila Pereira da Costa para António Telmo, acervo epistolar que se guarda no espólio do filósofo e que será publicado no próximo número – já o 26.º, no segundo semestre de 2020 – da revista Nova Águia,  cujo autor em destaque será justamente António Telmo .

A par deste valioso contributo epistolográfico, também um conjunto de escritos inéditos, já transcritos, do próprio António Telmo será destinado àquele número da revista dirigida por Renato Epifânio, com o qual se pretende assinalar a passagem do décimo aniversário da partida do nosso patrono, que irá ocorrer em 21 de Agosto do corrente ano.

A poucos meses de cumprir o seu sétimo ano de existência, o Projecto António Telmo. Vida e Obra prossegue, assim, a sua missão de estudo e edição do espólio de António Telmo

Já entregue ao editor Alexandre Gabriel, da Zéfiro, o Volume XI das Obras Completas de António Telmo, A Verdade do Amor precedida de Adriana, que viu a sessão do seu lançamento a 20 de Março, na Cooperativa Árvore, no Porto, ser cancelada por força da crise sanitária emergente, entrará no prelo assim que estiverem reunidas todas as condições necessárias. Do seu surgimento em público aqui daremos, oportunamente, a notícia que é devida.

Mormente nos tempos difíceis que se vivem, o contacto com os leitores é um imperativo que procuraremos cumprir o melhor possível. Daí a proposta de sucessivos textos, sobretudo inéditos, que se tem acentuado nesta nossa página digital nos últimos dias, e que culmina, já no dia de hoje, com a publicação de uma página autobiográfica de António Telmo, resgatada ao seu espólio, bem como de dois notáveis escritos, da autoria de António Carlos Carvalho e de Risoleta C. Pinto Pedro, dedicados ao nosso patrono, a cuja família, na pessoa da Dr.ª Maria Antónia Braia Vitorino, expressamos calorosamente a nossa gratidão.       

VOZ PASSIVA. 88

02-05-2020 00:07

Uma questão de linhagem

António Carlos Carvalho      

Não acredito em raças (entre humanos, só no caso dos animais, e mesmo assim …), mas sei que existem linhagens, que também não são de sangue, mas sim de espírito. Provavelmente, são as linhagens que juntam os amigos, que formam as amizades – essa forma de amor mais duradoura, e mais inexplicável, do que o próprio amor.

Com António Telmo tive uma relação de amizade tão forte que resistiu ao afastamento circunstancial entre nós, durante bastantes anos, eu em Lisboa e ele em Estremoz, eu sempre dependente de quem me levasse até lá, o que não era nada fácil.

Essa nossa amizade foi, do meu lado, igualmente sustentada pela admiração profunda, espontânea, desde a leitura do manuscrito de «História Secreta de Portugal».

Reencontrámo-nos em Sesimbra, primeiro em casa do Rafael Monteiro, e depois nas sessões na Biblioteca (que há muito se deveria chamar Biblioteca António Telmo), aí já em companhia da Cynthia. Com ele, era sempre o calor da amizade, da palavra sábia e da própria presença essencial.

Por causa de tudo isso, eu e a Cynthia rumávamos alegremente a Sesimbra, como quem faz uma peregrinação às fontes, às origens de uma certa forma de estar no mundo. Aquelas sessões e a presença de António Telmo eram o mais parecido possível com as antigas tertúlias que já não chegámos a frequentar – em vez dos cafés, o auditório de uma biblioteca, numa casa dos livros (esses outros amigos sempre disponíveis, à mão, ao alcance de um olhar mais atento e interessado).

De Sesimbra e desses encontros trazíamos sempre algum alimento, uma ideia, uma frase, um simples gesto significativo – essas pequenas-grandes coisas que nos confortam neste deserto, neste exílio em que nos foi dado viver.

A Cynthia ofereceu-lhe um quadro seu, «A Dama de Ouros», que o António Telmo expôs no seu escritório e diante do qual meditava, segundo nos confessou. Imaginei-o muitas vezes (continuo a fazê-lo, confesso também) sozinho no seu escritório-biblioteca, entre os livros e de olhos postos nos símbolos feitos pintura, num diálogo solitário. Porque António Telmo pertencia, pertencerá sempre, à linhagem dos grandes solitários, os grandes leitores e visionários que só encontram verdadeira companhia nas letras, nas palavras e nas imagens de outros como eles, marcados pelo mesmo signo, pelo mesmo sinal, pelo mesmo mistério.

Algum tempo antes do nosso Amigo partir, a Cynthia e eu oferecemos-lhe um livro, «As Lojas de Canela», de Bruno Schulz (1892-1942), escritor e pintor, judeu polaco, sabendo que ambos eram da mesma linhagem e que o encontro entre os dois seria uma verdadeira descoberta.

Um livro, entre muitas coisas, acaba por ser um traço perfeito de união entre almas da mesma linhagem. Solitárias, sempre, mas unidas com outras como elas. As almas daqueles que mais ninguém entende porque são radicalmente diferentes, únicos, incapazes de caber em qualquer prateleira de classificação em que os queiram arrumar. Só têm lugar nos sonhos e nos momentos especiais de uma vida, se tivermos essa sorte ou oportunidade.

E no Jardim do Paraíso, sob os ramos frondosos da Árvore da Vida.

(E agora, meu caro Amigo, vou acender uma vela com a chama das suas palavras. Em fundo, como uma música, teremos o silêncio que Elias ouviu quando procurou Aquele cujo Nome é impronunciável: um Nome absolutamente silencioso.)

VOZ PASSIVA. 87

02-05-2020 00:04

«As coisas das coisas»

ou os segredos da Gramática

Risoleta C. Pinto Pedro

Tenho nas minhas mãos a primeira edição da Gramática Secreta da Língua Portuguesa, de António Telmo, publicada em 1981 pela Guimarães. Este texto voltaria a ser publicado inserido nas Obras Completas, Vol. II, acompanhado de Arte Poética, o seu primeiro livro. Mas não o seu primeiro texto. Para recuarmos ao seu primeiro texto teremos de ir até ao quintal da sua tia em Alter do Chão onde, com seis anos, desenhava na branca parede alentejana, com uma ervinha verde, uma figura geométrica com que aprendia «a imaginar» e sobre a qual afirma:

«Tudo quanto escrevi, meus livros, emerge daqui.»

Logo, da imaginação à geometria (ou o contrário?), da geometria ao pensamento, do pensamento à razão poética, uma vida, uma obra.

Mas voltando à Gramática Secreta, destaca Dalila Pereira da Costa em recensão na Nova Renascença do Verão do ano da publicação, as palavras de Telmo, sintetizando o seu pensamento na correspondência entre os três parâmetros poesia, filosofia e profecia: «que a forma superior da razão é a poética, que há uma razão poética, binómio já de si iluminante.». São palavras do segundo parágrafo da Gramática Secreta de cuja citação Dalila omite as que se seguem e concluem a frase: «na condição de atribuirmos igual peso aos dois termos» e que são de uma importância essencial pois são elas que conferem a este filósofo o pensamento tão equilibrado que lhe conhecemos e que o poupa a alienações em que estes campos, quando mutuamente mal apoiados, normalmente desembocam: profecias vagas, superficiais, não sustentadas e inquietantes. Ele próprio escreve na Introdução à mesma Gramática que «as almas melancólicas são atraídas pelo esplendor de mistério […], mas também pelo jogo fácil e bizarro de imagens, aparentemente distantes, que se projecta, conduzido pela metáfora, no espelho das correspondências». Não é o caso de Telmo, e a si se aplicaria o que seguidamente ele afirma: «Nos espíritos mais experientes e adultos, o movimento das imagens obedece a leis precisas da razão poética». Ora uma das ferramentas base do rigor com que pensa as ideias é a Gramática. Daí a imperativa necessidade interna de um filósofo com este perfil ter escrito tal livro que se auto-justifica diversa e plenamente. Exemplifico, e aqui já o leitor começa a fazer a correspondência entre os primeiros desenhos do menino e o pensamento do filósofo, ficcionista e poeta que publica o seu primeiro livro, a Arte Poética, que já anunciava a Gramática, num momento de maturidade que toda a sua escrita reflecte. Sobre o mundo sensível, afirma:

«Pôde o leitor ver como foram aparecendo, a dar-lhe sentido, os inteligíveis: os números e as figuras. O movimento que organiza o sensível pelo inteligível é o pensamento. O pensamento pensa o mundo sensível e o seu movimento espelha-se na razão do homem que dispõe da palavra. É o acto do poder da palavra que edifica o mundo.»

O menino desenhava figuras que continham números escondidos, que anunciavam letras.

«Neste meio subtil que é a língua, o pensamento pensa-se a si próprio, e é por isso que os primeiros princípios são as letras-elementos da palavra humana, ecos remotos mais significativos do Verbo supremo.»

Daí, a importância que confere à identificação dos números, das figuras e das letras «pelo próprio  movimento que os distingue».

Por isso, Dalila chama a atenção, no seu artigo, para a afirmação de Telmo sobre uma genealogia da língua «que deriva de uma língua sobrenatural, pressentida pelos poetas, e, neste livro, tornada menos distante através da ‘árvore’ das letras». Telmo coloca em paralelo uma árvore genealógica terrestre (a que provém do latim) e outra celeste. Para isso vai estabelecer uma relação entre a tradição hebraica da árvore das safiras, como por vezes lhe chama, e a língua portuguesa, pela comparação dos sistemas fonéticos de uma e de outra.

António Telmo sabe que não está a inventar sobre o nada, mas, na minha opinião, brilhantemente a sistematizar e aprofundar, relacionando com a nossa língua, aquilo que filósofos e poetas há muito vêm pensando e escrevendo. Platão ocupa lugar privilegiado no final deste extraordinário livro. Onde dedica, também, um capítulo à “Guematria”, estudando a passagem do latim para o português, em cujo percurso se perdeu a relação dos números com as letras, explorando um pouco o que poderia ser «a gramática secreta da língua latina» através da relação matemática com a gramática.

Já ouvi dizer que este livro não é perfeito. Havê-los-á? Não o sendo, é fascinante e fundamental. Acima de tudo, é de imprescindível leitura a quem queira prosseguir nos seus próprios caminhos.

Alguns consideram que as letras, como as palavras, são pura convenção; há quem pense que são sinais das coisas e há quem as olhe com uma diferente profundidade considerando-as, para além de sinais, «as coisas das coisas», cheias do Espírito, do Verbo e da Voz, nas palavras do cabalista Jean Reuchlin. Por isso, há quem diga, como René de Tryon-Montalembert e Kurt Hruby, em A Cabala e a Tradição Judaica, que «as letras do alfabeto começam a cantar», e quem as ouve pode assistir à narração, através do alfabeto incandescente, do modo como foi iniciado o mundo no bailado da criação. O mundo sensível será, nesta perspectiva, uma dança.

É a coreografia desta dança que Telmo nos ajuda a tentar compreender e, quem sabe?, a tentar vislumbrar o próprio coreógrafo. Dança, oração, figura geométrica, equação, poema…

No livro acima citado, pertencente à biblioteca de António Telmo, conta-se a história que se segue. É uma parábola sobre as letras e sobre aquilo que encontramos designado em diversos textos de Telmo como o Génio da língua. Esse mesmo Génio implícito no pensamento e nas palavras de Cortesão quando escreve sobre a formação da nacionalidade: a língua enquanto manifestação de um génio e prévia ao território, que para ela passa a existir. A propósito disto, Cortesão fala mesmo na língua portuguesa como sendo ela um poema. Telmo explicou-o em forma de Gramática. Eis a comovente e deliciosa versão desta aventura metafísica da língua contada em A Cabala e a Tradição Judaica:

«Um estalajadeiro, após uma série de peripécias que agora não interessam, dirigiu a seguinte oração a Deus: «Mestre do Universo, Tu vês bem quanto o meu coração me pesa, pois não pude, neste dia santo, unir-me à comunidade para com ela rezar. Nem sequer tenho um ritual de que me possa servir! E também não sei as orações de cor. Mas vou fazer a única coisa que está ao meu alcance: vou pôr-me a repetir o alfabeto, com todo o fervor, como uma criança que ainda não sabe ler. E Tu, ó Deus! Tu te encarregarás de juntar correctamente as letras para com elas compores as palavras das minhas orações». Esta deliciosa história cheia de Graça e sabedoria, diz sábia e elementarmente todo o poder das potências que são os fonemas e as letras. António Telmo disse-o no ensaio filosófico que é a sua Gramática, e disse-o transversalmente em praticamente toda a sua obra.

Na ficção:

«Crátilo via naquela definição de Hermógenes o sinal inequívoco de ele estar de fora perante a ciência das letras, a antiquíssima ciência, outrora ensinada aos homens por Hermes. À luz dessa ciência, à qual os iniciados davam escondidamente o nome de “hermética” e os profanos o de “Gramática”, a palavra flor era a síntese de quatro fonemas, significativa do que era realmente a flor: um sopro de vida (o f) levantando (o l) o ser invisível da planta até à forma suprema de uma esplendorosa rotação (o o e o r).»

“A Primeira Figura do Tarot”, in: Contos Secretos.

 Também na memória:

«[…] o grão-de-bico no sapato tornando doloroso o andar: o R é o fonema mais vibrante. Platão dá-o como um símbolo de movimento. Dá forma a muitas palavras que exprimem, de facto, o movimento corrente, carro, rio, reumático, roda, e todos os seus derivados, etc. Todavia, onde a nobreza do fonema se torna bem evidente é quando aparece a iniciar e a compor, nas mais diversas línguas, as palavras que significam vermelho: Espanhol: rojo; Alemão: rot; Inglês: red; Francês: rouge. Em Português temos rubor, róseo, ruivo e vemo-lo em palavras relativas a vermelho, encarnado, escarlate, roxo

In: Páginas Autobiográficas

Ainda na poesia:

«Meu Deus, o que se escreve em vão/ Para encher a vida e o tempo!/ O espírito que move a mão,/ Como ela, é muito lento.// Preferes letra a fonema/ Pois sabes que vais ser lido./ Mas o essencial do poema/ Fica p’ra sempre perdido.// Seria bom ter a Ciência,/ Não ser só a mão que escreve./ Sei, contudo, em consciência,/ Que a arte é longa e a vida breve.// Entre o medo do secreto/ E a dor de o não viver/ Fiquei um analfabeto/Que sabe, porém, escrever.»

In: Poesia

INÉDITOS. 89

02-05-2020 00:00

O destino mais difícil de cumprir[1]

 

É costume explicar as relações hostis entre os irmãos pelo desejo de cada um deles ocupar o primeiro lugar no amor dos pais. Assim o mais velho, durante algum tempo sozinho no seio da família, teria visto os seus privilégios de unigénito divididos pelo segundo e, depois, pelo terceiro irmãos. O benjamim aparece numa altura em que o primeiro já tem idade suficiente para sentir a deslocação do afecto. Daqui uma mais profunda hostilidade do primeiro para com o último. Os relatos bíblicos de Isaac, Jacob ou José, os contos tradicionais, como a Gata Borralheira ou o Pequeno Polegar, descrevem esta constante de hostilidade dos irmãos ou irmãs mais velhos para com o último ou a última das filhas. Este é umas vezes o terceiro, outras o sétimo, outras o décimo.

Não creio que a explicação psicológica seja definitiva. Há aqui uma lei que reflecte relações entre princípios. A força do catolicismo reside em grande parte no facto de ver o filho como Unigénito. Na ideia da Santíssima Trindade não há elemento de conflito, ma suma harmoniosa processão de Pessoas que constitui o fundamento inabalável de um universo harmonioso. As heresias medievais ou opuseram o Filho ao Pai, ao Pai no qual ofitas e carpocracianos viram o demiurgo do mal criador do Mundo, ou identificaram o Espírito Santo com Santa Maria. A ideia de queda em Deus, inaceitável na visão católica do mundo, é defendida pelos gnósticos que, significativamente, põem no princípio sete ou oito arcanjos entre os quais se gera uma desarmonia, causadora da queda.

Ao primogénito corresponde o princípio de conservação, a Tradição do Pai. O mais novo é o elemento de revolta, representado mitologicamente por Satan. Todavia, na Bíblia, o pai abençoa consciente ou enganado o filho mais novo em lugar do mais velho. Os restantes irmãos seguem, em geral, o mais velho. Nos chineses, onde a tradição familiar é poderosíssima, o mais velho é que traz a luz, o cavalo fogoso, enquanto o mais novo é a porta de outro mundo. É mais um sinal de que as relações entre os pais e os filhos e destes entre si constituem a projecção dos primeiros princípios o facto do I King fazer corresponder os oito trigramas principais ao Pai e à Mãe, aos Três irmãos e às Três irmãs.

Abro esta autobiografia com estas reflexões porque a lei de acção e reacção que liga o benjamim ao primogénito é um dos elementos simples que constituem a grande lei que rege a minha existência e a dos outros homens.

Nasci com o sol no segundo decano do signo do Touro. O meu Pai nasceu no segundo decano do signo da Virgem; minha Mãe no signo Escorpião a 14 de Novembro. O segundo dos meus irmãos nasceu também em Escorpião, primeiro decano, 25 de Outubro, a quatro dias do primeiro dos meus irmãos, que ainda é do signo da Balança, mas já sofre enorme influência do signo seguinte.

Nasci, pois, do outro lado da família.

É este o destino mais difícil de cumprir, se quisermos manter, apesar da zenital oposição, a totalidade das relações.

O indivíduo que eu sou beneficia da posição do Sol na casa nona, a casa da gnose e da Viagem, do esplendor da Lua em Touro no Zénith, do favor de Vénus na décima casa. Júpiter está benigno em Peixes. Urano na casa oitava, em Carneiro, Marte retrógrado e desacompanhado em Cancer, Saturno, também desacompanhado na casa dos ancestrais, parecem ser inquietantes sinais de desarmonia. Neptuno na casa XII avisa contra “inimigos ocultos”.

Vieram sete fadas… e a má…

Assim começam todas as histórias verdadeiras. Mas sem a má não se manifestariam os dons concedidos pelas outras.

 

António Telmo



[1] Nota do editor – O título é da nossa responsabilidade.

 

INÉDITOS. 88

01-05-2020 11:34

Leonardo Coimbra, filósofo exemplar[1]

 

A ideia de uma queda no Divino, explícita em Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa, restaurada por José Marinho com a noção de cisão em Deus, oculta ainda em Álvaro Ribeiro, mas exigida por quem queira ter uma compreensão lúcida do seu pensamento, mostra que a “gnose”, após quatrocentos anos de latência ou adormecimento, volta a ressurgir na poesia e na filosofia portuguesas como o sinal irrecusável da nossa visão do mundo. Uma única, enigmática excepção: Leonardo Coimbra. O espontâneo sentido da beleza da Criação e da presença nela do Divino, uma grande generosidade que o atraía para a ideia de que o Divino é no encontro fraterno das mónadas, mais do que um Ser é uma Relação, levaram Leonardo Coimbra a desviar de seus pares, mas, porque lhe era impossível perdê-los de vista, concebeu, no cruzamento do catolicismo com a gnose, uma das mais difíceis filosofias, cujo segredo não será nunca suficientemente interrogado.

Leonardo Coimbra é o nosso filósofo exemplar.

 

António Telmo



[1] Nota do editor – O título é da nossa responsabilidade.

 

CORRESPONDÊNCIA. 47

30-04-2020 11:36

Carta de Dalila Pereira da Costa para António Telmo, de 3 de Novembro de 1981

 

Porto, 3-XI-1981

 

Querido Amigo António Telmo

 

Não se preocupe com faltas de respostas a cartas; o silêncio é também uma forma de diálogo, ou comunhão, quando duas pessoas estão tão ligadas como nós, pelo mesmo amor à pátria e serviço a ela, que nos ocupa a vida inteira. Nossa gratidão mútua, deve ser só por esse serviço, mútuo. Está sempre tudo muito bem.

Ainda, desculpe se a leitura de seu belo livro teve de minha parte muitos erros. Ele estava, no seu conhecimento, profundo, para além, e muito, da minha competência.

Este fim de Setembro, dei umas voltas pelas redondezas do Douro, a certos lugares sagrados: e na igrejinha românica (séc. XIII) de S. Pedro de Tarouca, lembrei-me muito de António Telmo. No túmulo do Primeiro Conde de Tarouca, D. João de Menezes, (general de Arzila e Tânger e das Armadas do Oceano, etc.) – há no alto dois medalhões de navegantes, perturbantemente semelhantes aos do grupo do lado Sul do Claustro dos Jerónimos, estudados por si[1] (e nestes, ao de Pedro Álvares Cabral e Vasco da Gama). Não sei de quem é o trabalho do túmulo: procurei em Reinaldo dos Santos, Vergílio Correia, etc., e não encontrei. Vá lá um dia ver: a igreja é uma beleza.

Gostei muito de receber e ler sua carta. Votos para seu novo trabalho sobre a Ilha dos Amores[2]: o omphalos dos portugueses.

Aqui junto lhe vão estes jardins[3].

Queria que eles fossem mensagem de alegria, esperança e fé.

Não pense em escrever-me, agradecer, etc. O que vale é o seu tempo consagrado a seu trabalho.

Um abraço de sua amiga, fraterna e dedicada,

                                                        Dalila

 

Ando tentando seguir um percurso português: da Serpente (a do neolítico e de Ofiussa) até à Imaculada (a do Rei da Restauração): às apalpadelas nos cafundós do nosso passado[4].

 

[Carta manuscrita.]



[1] Na História Secreta de Portugal.

[2] Referência ao que viria a ser o livro Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões, de António Telmo, publicado no ano seguinte, em Lisboa, com a chancela da Guimarães. Pode hoje ser lido no Volume III das Obras Completas de António Telmo, Luís de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas seguido de Páginas Autobiográficas, editado pela Zéfiro em 2015.

[3] Referência ao livro Os Jardins da Alvorada, de Dalila L. Pereira da Costa, que nesse ano de 1981 saíra a lume com a chancela de Lello & Irmão - Editores.

[4] Desta investigação viria a resultar o livro Da Serpente à Imaculada, editado por Lello & Irmão em 1984.

 

VOZ PASSIVA. 86

30-04-2020 11:30

[Recensão a Gramática Secreta da Língua Portuguesa][1]

Dalila Pereira da Costa[2]

 

 

Título: Gramática Secreta da Língua Portuguesa

Autor: António Telmo

Edição: Guimarães & C.ª, Editores

Lisboa, 1981

 

Este livro, agora surgido, continuará a linha perscrutadora do Autor sobre o ser português, já iniciada e seguida pelos seus anteriores livros: Arte Poética, História Secreta de Portugal, nos quais se prossegue uma «visão que, até agora, se exceptuarmos alguns apontamentos de Sampaio Bruno e de outros pensadores, onde ela se demorou breves instantes, apenas recebeu uma expressão cifrada», como se declara a página 23 daquela segunda obra. O nódulo central que guia e justifica este trabalho pátrio levado a cabo fielmente através desses livros, estará ainda dito explicitamente nas palavras da contra-capa deste mesmo livro: e elas serão indispensáveis de citar, para uma abordagem, mesmo muito breve, desta sua última obra agora surgida. «Há uma história oculta de Portugal. Não dizemos isto no sentido em que de tudo se pode afirmar ter um aspecto oculto. Pensamos que houve entre nós (senão connosco) uma organização esotérica que, de uma maneira perfeitamente consciente e intencional, procurou a partir desta Pátria, a que deu existência, redimir o mundo do mal e da divisão». E será esta a história à qual nos teremos de reportar para qualquer tentativa de vislumbre do problema do ser português, como seu segredo.

Na tenção providencialista e esperançosa que estará inclusa e concedida na história de Portugal desde seu início, desde sua entrega, como missão, nas mãos de seu Fundador, estará também inclusa esta obra redentora, desde então visando um carácter ecuménico: o Quinto Império. Obra de unificação e reintegração na terra, iniciada à dimensão universal pelos Templários, depois Ordem de Cristo, ela teria sofrido, a partir duma certa data – e aqui marcada exactamente, 1513 – uma paragem, queda ou frustração. E esta finalidade, justificadora de toda uma história nacional, e suas linhas de força, não estará escrita numa linguagem dada a ver, às claras, nos documentos ou trabalhos de carácter estritamente historicista, mas escrita numa linguagem simbólica que, tal como a de Apolo, o deus da profecia, cultuado e escutado em Delfos, «não diz nem esconde, significa», segundo Heraclito.

Nesta linguagem cifrada, para a clarividência de António Telmo, a sua primeira expressão será de carácter arquitectónico, o «manuelino», e a segunda de carácter poético, através da obra dos poetas galegos e portugueses e, supremamente, através da obra de Camões, Os Lusíadas e ainda sua lírica; continuada por P.e António Vieira, Pascoaes e Pessoa profeticamente, será sobre ela que aqui incidirá esta hermenêutica: como sobre um testemunho deixado e transmitido através duma corrente de iniciados desta Pátria. A última fase deste testemunho, a Mensagem, construindo-se sobre a ideia do Quinto Império, dará ainda continuidade, nos nossos dias, «à demanda do centro invisível do mundo, sem a qual o Quinto Império não será mais do que uma miragem» (op. cit., p. 119).

E ainda, nestas páginas, se lembrará que «neste povo hipnotizado pelo transcendente, a ordem dada foi a que manda realizar a Monarquia Universal» (pág. 28).

Julgamos ter sido necessário lembrar estas palavras, antes de abordar o livro de António Telmo recentemente surgido, para dar uma visão global da tenção da sua obra, toda ela fielmente como serviço à sua Pátria.

Agora, neste ciclo histórico presente, a expressão da finalidade transcendente de Portugal estando «apenas confiada aos poetas e filósofos da profecia», é natural que este investigador exemplar se curvasse sobre o instrumento eleito desta expressão, a língua portuguesa. E ainda, seguindo o seu princípio, aqui logo declarado na Introdução da Gramática Secreta da Língua Portuguesa: «que a forma superior da razão é a poética, que há uma razão poética, binómio já de si iluminante».

«Neste meio subtil que é a linguagem, o pensamento pensa-se a si próprio», e assim aqui se procurará nas suas letras-elementos, os «ecos remotos mas significativos do Verbo supremo». Porque, assim como haverá aqui uma história profana explicitamente e outra história secreta ocultamente escrita em cifras, também para a linguagem haverá duas genealogias. «Se o português, provém, como entende a maioria, do latim e as palavras portuguesas têm, na generalidade seus étimos nas palavras latinas, tal ‘genealogia’ compõe-se com outra, mais alta, que deriva de uma língua sobrenatural, pressentida pelos poetas, e, neste livro, tornada menos distante através da ‘árvore’ das letras. Teremos, pois, uma árvore genealógica terrestre e uma árvore genealógica celeste. Do encontro das duas raízes surgiu a língua portuguesa» (pág. 7). E António Telmo, pela primeira vez na espiritualidade portuguesa, estabelece a relação entre a tradição hebraica da Árvore dos Sephiroth, e esta língua. Os dez princípios ou atributos divinos representados na Kabbalah, e que formam a estrutura interna do mundo visível e invisível, vão-lhe permitir uma equivalência entre o sistema fonético português e este sistema hebraico dos sephiroth; assim, «a fonética portuguesa é a demonstração de que cada língua possui uma estrutura sagrada!» (pág. 28). Se a «árvore» surgiu da «contemplação de sábios e de santos», esta sabedoria suprema se reflectirá perfeitamente nas línguas reais. E também aqui se criarão aquelas palavras portuguesas, já apontadas pela intuição de Pascoaes, como as mais específicas e singularizantes do ser português: ermo, oculto, remoto… palavras crepusculares. «Dir-se-á, pois, que o povo português, no extremo ocidente da Europa, é também na língua o povo do entardecer. Se a noite, o abismo se situam qualitativamente na 10 Sephira, ali onde impera o u, vogal escura e nocturna, e o invernal R, já a manhã, o sol nascente, a luz que desponta e irrompe da fonte suprema devem referir-se ao mundo da emanação» (pág. 51).     

Aqui, tudo se traduzirá por uma predominância das vogais e destruição das consonantes: o que aproximará a língua portuguesa de «aquela língua à qual a simbologia chama a língua dos pássaros ou dos iniciados» (pág. 53). O que confirmará ainda uma das nossas mais altas e remotas vocações tradicionais: de ser terra de iniciação, neste extremo ocidental.

Terminaremos esta rápida aproximação da obra de António Telmo citando ainda as suas palavras na última página da História Secreta de Portugal: «Tudo está em atribuir ou não à acção gigantesca que os «iniciados» cifraram nos Jerónimos uma repercussão que, subitamente, se revele nos seus efeitos adiados por um longo período de adormecimento. Tudo está para o indivíduo português em acreditar nisto ou não e, em caso positivo, em assumir conscientemente as consequências de uma sempre possível frustração».   

 


[1] Nota do editor – Publicado originalmente in Nova Renascença, Volume I, n.º 4, Porto, Verão de 1981, pp. 453-455.

[2] Nota do editor – Assinado com as iniciais “D. P. C.”.

 

INÉDITOS. 87

28-04-2020 22:02

L. e T. de Pascoaes

 

A amizade entre estes dois homens não foi importante somente para eles, mas mais ainda para todos nós, porque nela e dentro da mais séria e compreensiva atitude da alma se cruzaram duas das orientações cardiais do pensamento português. São o maniqueísmo (Pascoaes) e o cristianismo (Leonardo) que, confrontado com os problemas que aquele lhe põe, se coloca à suficiente distância do cristianismo de estado para poder encontrar o seu caminho de reflexão e de liberdade. As duas outras orientações cardiais são esse mesmo cristianismo de estado, assegurado pelas instituições laicas e religiosas, e várias formas de materialismo e de racionalismo ateu que tem com o primeiro mais afinidades do que em geral se supõe.

Damos as quatro direcções do esquema espacial. Na obra de Leonardo Coimbra, constantemente se verifica que o seu pensamento se forma reagindo perante estas três arestas e, se digo perante e não contra, é porque procurou integrar aquelas três orientações na sua própria orientação, lutando, num dos lados, por um catolicismo renovado, noutro por uma razão científica criacionista, noutro ainda por uma conciliação que é, afinal, a expressão de uma profunda afinidade, quer o dualismo invencível dos novos maniqueus não deixa realizar-se plenamente.

Deveria, talvez, dizer gnósticos em vez de maniqueus. O maniqueísmo é uma variedade da gnose. Esta palavra é a que, segundo Leonardo Coimbra, caracteriza o pensamento de Teixeira de Pascoaes.         

Temos, pois, Bruno, Antero e Pascoaes, do lado da “gnose” e Leonardo profundamente interessado neles.

Bruno é um representante, entre nós, da gnose judaica. Nele se repercute o pensamento de Isaac Luria, filtrado pelas reflexões sobre o pensamento contemporâneo: Leibniz (Amorim Viana), Schelling, Darwin, etc….

Antero vai ligar-se ao budismo tal como foi refractado pela filosofia nórdica.

Pascoaes é de pura inspiração portuguesa, um Prisciliano renovado e casto, um maniqueu naturalista.

Há ainda António Sérgio e a sua relação com a Índia, étnica (era goês) e espiritual, o pensador do “uno unificante”, mas nele há uma radical repulsa em combinar a Razão com a Fé. Um espírito quezilento que se comprazia em aborrecer os descobridores do espírito, aqueles que para atingir uma estrela embarcam no que lhes parece, na ocasião, o melhor barco – razão, imaginação, intuição – e só depois de estarem em pleno oceano é que põem a funcionar o astrolábio. Claro que confiam em quem fez os barcos. Mas um barco serve para descobrir e não para ficar ali pregado como se fosse de pedra e cal, uma espécie de prisão maçónica, onde, contando os dias, se passam as horas sempre iguais a brincar à ciência ou à religião.    

 

António Telmo

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