Blogue

UNIVERSO TÉLMICO. 68

10-06-2020 09:23

Deixem Luís de Camões em paz,

Ou amem-no de vez!

Eduardo Aroso

                                                        

   «Que eu bem sei que o canto

                                                        Há-de achar menos crédito que espanto»

                                                                       (Canção VII, Luis de Camões)         

 

O poeta que vive no coração de muitos portugueses – uns guardam-no em semiconsciência; menos são os que o escutam dentro de si - parece que foi convocado a regressar ao túmulo nos Jerónimos, para ter que ouvir o já velho camonismo de Estado. Essa obrigação da lembrança anual de quem no resto do ano deixa vaguear o idioma português num caos de ortografias, não sei se sentirá uma dor semelhante à do cidadão que tem que pagar cada vez mais impostos. Mas lá terá que ser, não há outro remédio. Neste 10 de Junho, espera-se que a cerimónia se salve pelo acto de um poeta evocar outro poeta e a certeza do autor de «Os Lusíadas» não se expor a selfies.

A imagem de Luis de Camões mudou (isto é, repartiu-se) de algum modo nestes últimos 40 anos. Houve quem felizmente se distanciasse dos que mantinham (mantêm?) a ideia de uma epopeia que afinal de contas não foi bem assim, havendo até quem tenha escrito que «Os Lusíadas» são uma anti-epopeia (título de um livro) de um antirrevolucionário! Todavia, muitos dos que se distanciaram dessa falange, não deixam de ver ainda na magna obra uns pecadilhos por ela imitar o estilo dos velhos clássicos, arremetidas essas como se fossem uma espécie de “reparo” ao poeta, por ele trazer à sua obra todos esses heróis gregos e outros temas da Antiguidade. Tal finca-pé parece não deixar ver o essencial: o zénite da epopeia atingido na Ilha dos Amores, onde se vislumbra, para quem possa ver (imaginar) o horizonte mais largo de Portugal e da humanidade.

 

Assim, ao contrário do que possa parecer, esta imagem do vate não é, qualitativamente, muito diferente daquela que nos apresentava a política cultural do Estado Novo (e ainda não extinta de vez), ou seja, o poeta servia às mil maravilhas para umas coisas, mas para outras nem pensar. O Canto IX, recheado de cenas dionisíacas de “erotismo e paganismo” era silenciado no meio académico, chegando mesmo a ser omitido nalgumas edições mais populares. Depois de 74, foi abolida a censura, mas o espírito de interpretação literal, escolástico, raramente tem dado lugar a uma hermenêutica simbólica e esotérica do poeta que escreveu: «Transforma-se o amador na coisa amada». Aqueles que, de algum modo, o têm feito, não conhecem os corredores académicos; se conhecem, não servem para citação nos actos solenes.

Fiquemos com o retrato de Camões que parece não ter mudado muito para os portugueses, e que podemos ler em «Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões» de António Telmo (1927-2010), uma hermenêutica de desocultação de «Os Lusíadas», publicada pela primeira vez em 1982.

«A imagem que, ao longo dos séculos, o camonismo de Estado formou e difundiu mostra o autor de «Os Lusíadas» como um plagiador de Petrarca na lírica, de Virgílio na épica, de Platão na filosofia; um homem de inegável talento, mas sem iniciativa criadora, servo em religião do catolicismo, mentiroso pelo uso da mitologia romana, pior cronista do que João de Barros; um sensual hesitante entre a atracção do sexo e a sua sublimação. Quatrocentos anos se aborreceram os portugueses com esta imagem à qual atribuíram um sentido não muito diferente do retrato do Presidente da República em exercício, obrigatoriamente pendurado nas repartições públicas. Por ironia ou sarcasmo pintaram o plagiador – homem de algum talento, servil e beato, mentiroso e sensual – com uma coroa de louros sobre a cabeça severa de guerreiro. Em cima escreveram: Luís de Camões, Príncipe dos Poetas; e puseram por baixo a palavra «Pátria».

 

Vésperas do 10 de Junho de 2020

DOS LIVROS. 66

03-06-2020 19:39

Columbano Bordalo Pinheiro, O Velho do Restelo

Museu Militar de Lisboa

____________

 

O Velho do Restelo

 

Este velho «de aspecto venerando», «com um saber só de experiências feito» que segue e possui uma «justa Lei», não é somente, como tantas vezes se tem repetido, a voz do bom senso, expressão do espírito conservador. Talvez se deva mais uma vez, aqui, acompanhar Fiama que o vê como a personalização do Velho Testamento.

Isto, todavia, não é o mais importante. As três estrofes finais do Canto IV, contendo as últimas imprecações do Velho dão muito que pensar. Ele invoca a sua Lei, a Lei justa, para condenar o Titanismo, dando como exemplos que se não devem seguir o de Prometeu roubando o fogo do céu para o meter no coração do homem. Fogo de altos desejos que move o coração onde arde. Faéton, que roubou o carro alto do pai (Apolo, o Sol) e Ícaro procurando atingir o Céu voando para fora do labirinto da vida são segundo o terceiro exemplo do que não se deve fazer, cometimentos que vêm na esteira do pecado original de Adão seduzido por Eva, seduzida pela serpente, a colher o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal.

Altos e nefandos são, segundo o Velho, tais cometimentos. Paradoxalmente, altos e nefandos.

Todavia, a Nova Lei que veio ou virá substituir a Velha Lei, é a da Graça e traz em si o amor, o movimento para o Amor.

As imprecações do Adamastor coincidem com as do Velho.

 

~

 

                  LUSÍADAS

    (CANTO IV)

CII

«Oh! Maldito o primeiro que, no mundo,

Nas ondas vela pôs em seco lenho!

Dino da eterna pena do Profundo,

Se é justa a justa Lei que sigo e tenho!

Nunca juízo algum, alto e profundo,

Nem cítara sonora ou vivo engenho

Te dê por isso fama nem memória,

Mas contigo se acabe o nome e glória!

CIII

Trouxe o filho de Jápeto do Céu

O fogo que ajuntou ao peito humano,

Fogo que o mundo em armas acendeu,

Em mortes, em desonras (grande engano!).

Quanto milhor nos fora, Prometeu,

E quanto pera o mundo menos dano,

Que a tua estátua ilustre não tivera

Fogo de altos desejos que a movera!

CIV

Não cometera o moço miserando

O carro alto do pai, nem o ar vazio

O grande arquitector co filho, dando,

Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.

Nenhum cometimento alto e nefando,

Por fogo, ferro, água, calma e frio,

Deixa intentado a humana geração.

Mísera sorte! Estranha condição!»

 

António Telmo

 

(Publicado em Luís de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas seguido de Páginas Autobiográficas, 2015)

DOS LIVROS. 65

03-06-2020 19:22


Memórias cruzadas

 

– O que te traz tão preocupado, Amigo?

– Se eu te dissesse que gostaria de escrever um livro que fosse absolutamente sincero e, porque me sinto incapaz de fazê-lo, uma grande tristeza me invade e caio na mais estúpida das apatias…

– A apatia! Eis o problema. Freud recomendava, há um século, que se ingerisse uma pequena quantidade de ópio e que isso era suficiente para adquirir a energia que nos faz prosseguir confiantes no caminho da Ciência.

– Eu gostaria que o simples pensamento de Deus me recuperasse para esse caminho. Mas onde é que Deus se encontra neste momento?

– O bispo de Kars respondeu a análoga pergunta feita pelo pai de Gurdjieff que «Deus estava algures a construir uma escada para que os homens subissem por ela».

Estava com Álvaro Ribeiro no café da Brasileira do Rossio e ambos ouvimos claramente esta conversa que se desenrolava numa mesa ao lado, próxima de nós. Esperávamos pelos outros do grupo que ali se reuniam connosco às quintas-feiras: o José Marinho, o Eudoro de Sousa, o Orlando Vitorino e mais dois ou três, mas certamente só estes de que refiro os nomes estavam na nossa mente. Há meia hora que ali estávamos e Álvaro Ribeiro mantinha-se calado, o que me punha nervoso, com a sensação estúpida de estar a mais. Os dois homens, ao nosso lado, levantaram-se e dirigiram-se ao criado para pagar os cafés.

– Vão ver se a escada já está feita – disse Álvaro Ribeiro sorrindo e ironizando, mas logo recuperou a indiferença que espelhava no rosto e na atitude do corpo.

– Não é vulgar ouvirem-se daquelas conversas – tentei eu, timidamente.

– O António Telmo já defrontou o problema da apatia? Só o homem sente tédio; os animais ignoram-no e os homens inferiores também.

A minha memória correu para a imagem da minha namorada, uma colegial que conhecera há três semanas.

Andava divagando pelo Chiado, à procura, pelos cafés, de alguém conhecido para conversar. Era a hora da saída dos empregos. As pessoas pareciam todas apressadas. Diante de mim, que me encostara a uma parede, passou uma colegial, com uma bata branca. Outras tinham passado já. Eram alunas da Escola Comercial que, ao tempo, funcionava na Calçada do Combro. De repente, tive a sensação esquisita de já ter vivido aquele momento, nos seus mínimos pormenores, aqueles carros a passar, aquelas mesmas pessoas, aquela mesma rapariga que eu, sabia-o muito bem, nunca tinha visto antes.

O Eudoro de Sousa foi o primeiro a chegar: um homem atarracado, de rosto socrático. Sentou-se abrindo muito as pernas, como fazem todos que têm uma grande barriga. Abriu a boca bocejando. O Álvaro Ribeiro trocou um olhar cúmplice comigo, acompanhado pelo mesmo sorriso de há pouco.

– Estávamos a conversar sobre a “apatia”. O Eudoro não quererá dizer qualquer coisa aqui ao nosso amigo sobre o modo como Aristóteles ensina a despertar o pathos nos homens embrutecidos?

– A gente do povo costuma arcar[1] a apatia com um manguito. Mas você prefere à baixa magia do povo a alta magia da tragédia grega?

Exemplificou com o gesto. A sua figura tomou certa comicidade que lembrava certos bonecos de barro pintado que se vendem nas feiras. Álvaro Ribeiro pareceu ler no meu pensamento:

– … e da comédia grega. Ali vem quem sabe do assunto.

O José Marinho entrava no café, ladeado do A. Quadros e do A. Botelho. A qual dos três se referia Álvaro Ribeiro? Mas logo que se sentaram, começou-se a falar de outra coisa. Deixei de os ouvir. O que me preocupava era o problema da apatia.

Mais tarde, haveria de ler em Gurdjieff que toda a humanidade sofria presentemente de apatia, tanto lhe fazendo que existisse isto como aquilo, e que isso se devia à ininterrupta perda de energia do nosso planeta causada pela produção gigantesca de luz eléctrica. Falei nisso ao Max Hölzer.

– Ainda é cedo para que você entenda a coisa – respondeu-me.

Tinham passado trinta anos sobre a reunião que evoco no café da Brasileira.

 

António Telmo

 

(Publicado em Capelas Imperfeitas - Dispersos e Inéditos, 2019)

 


 

[1] N. do O. – Palavra de muito difícil percepção no original manuscrito. Admitimos igualmente a hipótese de António Telmo haver escrito “assar”.

 

INÉDITOS. 93

29-05-2020 17:40

Na Grécia, como em Portugal, havia cigarras [1]

 

Basta a existência da palavra “Tio” na língua portuguesa para se ter por evidente a formação grega do nosso povo. “Tio” provém de “Theios” – o elemento divino da família. Não é uma palavra erudita; exprime uma relação popular de parentesco. Há quem, com certa probabilidade, defenda a origem grega da língua portuguesa.

Quando lemos as peças de Aristófanes, as revistas do Parque Mayer da Antiguidade Clássica, a “Apologia de Sócrates” onde é manifesta a “inveja” como a virtude nacional dos gregos, ou então o episódio de Xantipa, furiosa com as conversas filosóficas do marido, não podemos deixar de ficar estupefactos perante a imagem que os alemães difundiam da “doirada Hélade” das colunas dóricas e eólicas, o país da filosofia! Verdadeiramente de filosofia só havia a Escola de Platão e conhece-se bem como Aristófanes ridiculariza Sócrates, aplaudido por todos os intelectuais desse tempo que se rebolavam grosseiramente cheios de gáudio nos seus assentos. Os grupos nas grandes praças, as intermináveis conversas, os negócios e as intrigas podemos hoje vê-las em qualquer largo de qualquer cidade de província ou ali no Rossio ou na Avenida de Roma. Sócrates e Fedro reflectiam sobre “retórica” e o “amor” junto a um ribeiro, ao som adormecente das cigarras. Na Grécia, como em Portugal, havia cigarras.

No que diz respeito à proveniência [d]a língua portuguesa, não se vê bem por que, por exemplo, os artigos não terão derivado de o, n, oi, ai, porque os gregos possuíam artigos e os romanos não. Com um pouco de astúcia toda a língua portuguesa poderia derivar do grego.

O leitor indigna-se?

Raciocine connosco por um momento.

Se cada língua é um sistema, a dedução de outro sistema terá de obedecer a leis de transição mais ou menos fixas. As diferenças são sempre as mesmas, se num e noutro sistema as “constantes” guardam a mesma distância. Fazer uma língua derivar de outra é uma questão de paciência e de propaganda.

 

António Telmo         



[1] Nota do editor – o título é da nossa responsabilidade.

 

INÉDITOS. 92

23-05-2020 18:32

Carlos Castaneda[1]

 

Um dos acontecimentos mais importantes dos últimos dez anos foi, sem dúvida, a publicação dos quatro livros de Carlos Castaneda, que descrevem a iniciação do jovem americano nos mistérios índios, em pleno século XX. Um bruxo, um iniciado, um “homem de conhecimento” transmite pela primeira vez a um branco, a um jovem que não é índio, a misteriosa sabedoria antiga dos mexicanos, cuidadosamente ocultada e preservada dos invasores espanhóis, envolvendo-o numa experiência perigosíssima que, de grau em grau iniciático, o conduz até aos confins da vida e da morte.

A transmutação das aparências naturais das coisas e dos seres, o contacto directo com o mundo das formas subtis, o poder de bilocação e de invisibilidade, o desdobramento da personalidade, a separação e objectivação do próprio corpo, a dissolução e integração dos elementos físicos e psíquicos numa forma de consciência superior, tudo isso que conhecemos apenas pelo testemunho, sempre duvidoso, dos ocultistas ou pelas histórias adultas contadas às crianças, aparece ali nos livros de Castaneda rodeado de um rigor que quase diríamos científico se não fosse muito mais do que isso, na forma tão impressionantemente próxima de um diário, tão evidente e demonstrativa que certamente não há ninguém que leia esses livros sem ficar ferido de espanto ou, pelo menos, de inquietantes dúvidas. As pessoas incultas ou de cultura primitiva acreditam, em geral, nestas coisas, mas os sábios costumam pô-las de parte demasiado depressa. O sábio é o conquistador espanhol do México, representante de uma civilização superior e que age em nome da matemática e de Cristo. Isto não obstante serem os quatro Evangelhos o correspondente hebraico dos quatro livros de Castaneda.

O que mais surpreende, porém, é a falta de seriedade de filósofos responsáveis na reflexão dos chamados fenómenos ocultos. Já me referi a eles, a propósito de Joseph de Maistre. Exige-se que esses fenómenos não sejam uma interpretação da realidade ou que, então, sejam determinadas, com todo o rigor kanteano da ciência do espírito que é a filosofia, as formas a priori da sensibilidade transcendental. Porquanto o que também nos ensina o quádruplo livro de D. Juan é que a natureza (Heraclito dizia que ela gosta de se esconder) deixou de aparecer ao homem quando se desenvolveram nele as formas a priori da sensibilidade periférica – o espaço, o tempo e o número. Um linguista americano, Lee Whorf, já muitas vezes referido neste livro, pensa que não são formas universais, como se prova pela análise das línguas ameríndias, mas que vieram transportadas nos carros de fogo das línguas indo-europeias.

Defendia Haman, um alemão colérico e indomável adversário de Kant, que a poesia é «a língua maternal do género humano». Ninguém ignora análoga posição do italiano Vico. Todavia, se a tese é aceite por alguns (outros preferem a que refere a origem das línguas ao trabalho) é aceite na condição de considerar-se a poesia uma forma ilusória de conhecimento, que deixa de fora a realidade – o mundo objectivo – e representa o primeiro passo na conquista histórica do mundo da subjectividade.       

 

António Telmo



[1] Nota do editor – o título é da nossa responsabilidade.

 

VOZ PASSIVA. 89

19-05-2020 21:05

Revisitação de Viagem a Granada

Eduardo Aroso

Creio estar fora de questão dizer-se, com o automatismo habitual do “pensamento que não pensa”, que tal obra de António Telmo é melhor do que uma outra sua, pois fazê-lo seria obviamente negar a completude da sua individualidade. Se uma obra existe é porque reflecte uma faceta que o autor intencionalmente quer dar a conhecer. E quantas vezes nos surpreende um criador com a estranha diversidade do seu universo! Também Ricardo Reis nos convidou a ser «plural como o Universo».

Não é este o momento mais propício para desenvolver o tema da astrologia na obra de Telmo, mas também aqui a surpresa não teria sido menor, fosse para o público que em 1977 leu História Secreta de Portugal (onde surge o horóscopo de Portugal, traçado pelo autor de Mensagem, mais tarde analisado em outra obra de Telmo O Horóscopo de Portugal), ou no seio da corrente da filosofia portuguesa pelo tema que, depois de Pessoa, estava em repouso. Não fosse a tremenda mensagem dessa obra de Telmo (porque nela além da astrologia há os meandros da História, do Símbolo e do Mistério, desocultados e simultaneamente ocultos), o filósofo de Estremoz teria sido colocado num lugar de trans-heterodoxia!  

Vem isto a propósito do texto hoje colocado na página «António Telmo. Vida e Obra», que me recordou de novo Viagem a Granada, livro que o autor me ofereceu com uma dedicatória não menos generosa e pela qual – como numa tríplice operação – eu viria a confirmar o que já outro filósofo e poeta tinha chamado: «afinidades electivas». O meu primeiro (re) encontro, face a face com Telmo, deu-se em Alenquer, no final dos anos 90, nessa terra também palmilhada pela Rainha Santa Isabel. Com as mãos sobre os meus ombros, o filósofo falou-me, entre outros assuntos, do «entusiasmo», e eu meio distraído até então, fixei bem que entusiasmado é estar cheio de Deus.

 Só quando cheguei a casa mergulhei no que tinha acontecido: António Telmo, entre várias pessoas que havia no local, deu-me atenção! O suposto – o que, com imensa alegria, não deixei de fazer - era que eu ali tivesse ido para ouvi-lo e apertar-lhe a mão. Da primeira leitura, cinco capítulos entraram logo em mim, como água fresca em dia de Verão: Teoria da Imaginação de Álvaro Ribeiro, Esotérico e Exotérico, Oarística, O Génio da Língua Portuguesa e António Quadros, A Lua e a Primavera. Neste último, Telmo diz que Vasco da Gama Rodrigues [lembram-de da sua obra O Cristo as Nações?] fez o horóscopo de António Quadros e que este «viu com incómodo que ele o caracterizava como um espírito lunar. E não se libertou desse desgosto mesmo quando outros astrólogos lhe lembraram que a Lua é o espelho do Sol e lhe mostraram que a conjunção de tantos astros no mesmo lugar do horóscopo era o sinal de um destino superior. Morreu exactamente na hora em que teve início a Primavera de 1993, ali onde a roda do tempo recebe o impulso da luz que o liberta do nocturno Inverno». Não é de crer - salvo melhor conhecimento deste particular - que António Quadros andasse a correr astrólogos para conhecer melhor o seu destino, pelo que talvez não seja difícil adivinhar quem terá sido o discreto mas não secreto astrólogo que lhe transmitiu que «a conjunção de tantos astros no mesmo lugar do horóscopo era o sinal de um destino superior». Não lemos todos também Portugal, Razão e Mistério?

 

19-5-2020

DOS LIVROS. 64

18-05-2020 18:22

Levaram luz pr’a onde reina a treva

 

Levaram luz pr’a onde reina a treva

Insensíveis como se nada houvesse.

Tanto lhes faz acácia, rosa ou esteva

Que segredo seja com c ou s.

 

Trabalham agora na Internet.

Sua dimensão é a de um computador

Que manda para o mundo o diabrete

E as suas cinco pontas de furor.

 

Sentado na cadeira de Salomão, Satã ri

Tem a seus pés o mundo como o fez.

Porém o Outro, o do Yod e do I

 

Aquele Mundo que realmente é três

Recolheu-se à espera. Está ali

Onde o infinito se recolhe em si.

 

António Telmo

 

(Publicado em Viagem a Granada seguida de Poesia, 2016)

DOCUMENTA. 08

18-05-2020 18:03

Que, por volta de 1993, O Encoberto foi um dos nomes possíveis (Portugal e Átrio sendo os outros) de uma revista que António Telmo e alguns membros do seu círculo procuraram concretizar, já se sabia. Agora, o espólio télmico veio revelar que, cerca de dez anos antes, o título Encoberto havia sido dado a um  projecto de revista, segundo parece totalmente idealizado e delineado por Telmo. É o que o sumário transcrito de um dos proverbiais cadernos de apontamentos do filósofo, que agora se publica, permite inferir. Nada se sabe sobre quem e com que escritos colaboraria na publicação. Mas, pelos temas e tópicos alinhados no papel, fica-se com uma ideia aproximada do que poderia vir a ser o periódico que, numa fase absolutamente incipiente, se esboçava.

      

Lima de Freitas, Estudo para D. Sebastião

Museu Nacional Grão Vasco, Viseu

 

____________

 

Iº Número

 

 

ENCOBERTO

Revista católica de filosofia portuguesa

 

Propósito

 

O martinismo de Pascoal Martins (Arte de Filosofar e o Encoberto)

 

Diferenças entre Portugal e Espanha (a filosofia do cristão-novo).

 

A doutrina alvarina dos sexos e o mistério da Cabala

 

Dante da nossa perspectiva

 

O conceito de barroco em José Marinho

 

Tendências actuais da filosofia portuguesa na sua relação com o catolicismo (Pinharanda Gomes).

 

Os Serões de São Petersburgo

 

Portugal e a França (Balzac e Gérard de Nerval; Paul Claudel; Huyssmans, Barbey d’Aurevilly e Léon Bloy). Alemanha e Inglaterra (o protestantismo)

 

Contra a interpretação francesa da Igreja Católica. O conflito moderno. Os Positivistas e A Arte de Filosofar.

 

A conversão de Leonardo Coimbra. O dogma da Encarnação do Verbo.

Textos de Bruno, Joseph de Maistre, Álvaro Ribeiro, Leonardo e José Marinho, e de Agostinho da Silva.

 

A Prece de Fernando Pessoa. Comentário.

 

Crítica de livros (tomada de posição pensante…)

“O Papa e A Inquisição Espanhola”, tradução de Pinharanda Gomes.

 

Comemorações do Centenário do Nascimento de Leonardo Coimbra.

 

“A Filosofia Hebraica” de Pinharanda Gomes

“Gramática Secreta da Língua Portuguesa”

“Exaltação da Filosofia Derrotada” de Orlando Vitorino

“Confissão de um homem religioso”, de José Régio

“O Sebastianismo” de António Quadros

 

A condenação pelo patriarcado das actividades em Portugal da Igreja de Lefèvre.

 

As categorias de Aristóteles à luz da Kabbalah

 

A teoria alvarina do ensino e a teoria marxista.  

INÉDITOS. 91

13-05-2020 19:36

Na carta que em 2 de Junho de 1986 escreve a António Quadros, António Telmo revela-lhe que espera publicar um volume sobre “Filosofia e Cabala”, já completo, estando apenas à espera das três cartas que, com respeito aos sucessivos volumes de Portugal, Razão e Mistério a haver, tencionava escrever ao seu correspondente.

Mais de um ano depois, em nova carta para Quadros, datada de 28 de Julho de 1987, afirma: «Enquanto bibliógrafo, estou aperfeiçoando e reunindo escritos antigos que intitularei, num novo livro, de «Filosofia e Cabala».

Como quer que seja, o desejado volume só sairia a lume em 1989, com o título Filosofia e Kabbalah, parecendo mais conforme ao anúncio da missiva de Julho de 1987. Será bem de presumir que os planos de Telmo para o novo livro tenham mudado consideravelmente.  

O escrito ainda inédito que agora publicamos intitula-se "Introdução à Filosofia e Cabala" e destinar-se-ia, possivelmente, à primitiva versão do livro, aquela a que o filósofo da razão poética se refere na carta de Junho de 1986, ou a uma eventual versão intermédia. O leitor que se recordar do “Prolóquio” de Filosofia e Kabbalah poderá verificar como são diferentes estes dois textos de cariz introdutório.  E curioso será notar que o confronto, tanto pela convergência como pela divergência, de Álvaro Ribeiro e José Marinho, que rege o desenvolvimento da "Introdução à Filosofia e Cabala", irá reaparecer, de um modo bem mais sintético, nesse escrito fundamental do cânone télmico que é o artigo “Sampaio Bruno, «O Encoberto»”, primeiramente publicado em 1989 na revista Leonardo, o que o torna contemporâneo de Filosofia e Kabbalah, e mais tarde recolhido em Viagem a Granada. A amplificação propiciada por um tal diálogo transcende já, como razão acrescida para a sua publicação, o inegável interesse histórico ou biográfico do texto que agora se propõe. Na verdade, e como o leitor comprovará, o aprofundamento assim propiciado pode resultar iluminante. 

     

Introdução à Filosofia e Cabala

 

Quem teve, como eu, a felicidade, ou a infelicidade, de ter, simultaneamente, como mestres de filosofia dois homens tão diferentes como Álvaro Ribeiro e José Marinho, tão diferentes sobretudo na orientação do pensamento, ou nada compreendeu e pôde, à vontade, seguir qualquer caminho fora da autêntica filosofia, ou, no esforço de compreensão dos opostos, descobriu, maravilhado, que a síntese estava na origem de ambos, isto é, em Leonardo Coimbra.

A fotografia, que aparece no frontispício deste livro, tirada, dizem, no dia em que o supremo professor da Faculdade de Letras do Porto deu a última aula, foi ocasionalmente ou por disposição sobrenatural marcada por profundas e exactas relações simbólicas. As nove personagens fotografadas configuram um misterioso símbolo judaico-cristão, correntemente designado por “árvore das sephiroth”, mas que surge em todos os templos onde verdadeiramente se cultue Deus “em espírito e em verdade”. Esquematicamente, compõe-se de três colunas que determinam todo o edifício: a maçonaria, isto é, a arquitectura, somente dá como visíveis a coluna da direita e a coluna da esquerda; a coluna do meio é representada por um trono ou algo que a ele alude, mas é, de sua natureza e dignidade, invisível ou imaterial.

O que espanta, olhando a fotografia, é que no lugar das duas colunas laterais estejam Álvaro Ribeiro e José Marinho. E o espanto é tanto maior quanto, pela estação de pé, são realmente duas colunas de um e de outro lado de Leonardo Coimbra. Todos os outros estão sentados. A simetria formada pelo Mestre e pelos dois discípulos é perfeita.

Ocorre-nos à lembrança o famoso fresco de Rafael que representa Platão e Aristóteles n’A Escola de Atenas. Aqui não foi o acaso mas o génio do pintor que, no compasso formado pelas figuras dos dois filósofos compôs em esquadria a mão direita de Platão com a mão esquerda de Aristóteles.

José Marinho, o platónico, inclina para a terra a cabeça, meditativamente séria; Álvaro Ribeiro, o aristotélico, parece olhar o horizonte longínquo. Este momento, o da fotografia, é aquele em que eles vão “partir”, em que se propõem “criar de novo” a filosofia do Mestre. Há decepção e desalento na postura de Leonardo Coimbra. O decreto de Salazar, ao extinguir a sua Faculdade de Letras, “sociedade que funcionava inteiramente aberta ao público, sem perder a sua qualidade de secreta”, viera alegrar a inveja dos seus inimigos, no seu maior número constituídos por pseudoantiestado novo [sic]. Mas ali ficava fixada a imagem de uma verdadeira escola cabalista, que, passados vinte anos, viria a ser conhecida pelo nome de Movimento da Filosofia Portuguesa.

O que vou escrever traduz a opinião de alguém que tem participado, a seu modo, nesse movimento. É de esperar que todos quantos tiveram, como eu, a felicidade, ou a infelicidade, de serem discípulos de Álvaro Ribeiro e José Marinho não concordem em tudo, ou em nada, com essa opinião. Limito-me a exprimir aquilo que me foi dado ver.

A filosofia de Álvaro Ribeiro e a filosofia de José Marinho aparecem-me como duas direcções, – a judaica e a cristã – do pensamento de Leonardo Coimbra. Propriamente, dever-se-ia dizer aqui esoterismo judaico e esoterismo cristão. Um dos exercícios de pensamento que éramos forçados pelas circunstâncias a praticar era o de determinar o que distinguia um de outro filósofo, mas mais difícil era ainda o de procurar ver o que, em ambos, era comum. De um modo geral, pode dizer-se que Álvaro Ribeiro era racionalista e José Marinho irracionalista. Os dois defendiam, porém, o valor da imaginação e da intuição e ensinavam que o princípio da filosofia é a ideia de Deus. Diferiam radicalmente quanto ao valor gnósico do “juízo”, interpretando a relação do Verbo do quarto Evangelho com a substância em modos distintos. Para José Marinho a relação procedia pelos modos infinitivo e interrogativo, para Álvaro Ribeiro pelo modo indicativo[1] e pelo modo condicional ou imperativo[?]. O juízo é o que cinde a infinitude da relação, o juízo é o que une e torna cognoscível essa mesma infinitude. O juízo, que se componha com o amor, e a razão que se componha com a fé, têm de interrogar-se sobre aquilo que os garanta enquanto actos imediatos do pensamento; o juízo é, em si, uma operação mental de amor à Sofia, que logo se articula com outros juízos para formar um raciocínio completo, ou silogismo, desde que o seu movimento sirva os desígnios da arte. Et caetera, et caetera…

A preocupação de alguns, aquilo de que se ocuparam antes de os ouvir, era a da garantia transcendente da fé católica, a única que nos falava do ensino de Cristo. A fé católica é a fé dos portugueses. Não há, entre nós, outra religião. Ou se é católico, ou não se é católico. É-se budista, shintoísta, para não se ser católico. É-se materialista também para não se ser católico. Mas o que nos perturbava era que se pudesse ser católico e materialista ao mesmo tempo. A filosofia parecia-nos substituir a crença à fé e a fé à ideia de Deus, não só existente mas também vivente em toda a criação.            

 

Giordano Bruno idealizou um sistema de filosofia, pela arte da mnemónica, à qual chamou a “religião da mente”. A expressão é estranha, mas exprime bem o objectivo de atingir a ideia de Deus ou a ideação própria de Deus através do pensamento. Para tanto, o pensamento terá de organizar-se num sistema mnemónico ou da memória coordenado com a memória do mundo, que, segundo Bruno, reside nos astros. A analogia é o método ocultista de conhecimento, ao pretender pensar o invisível pelo visível, encontrar a espécie e o género, partindo do indivíduo. Leonardo Coimbra via nela uma espécie de indução. José Marinho preferia dizer anagogia e negava, como o mestre, autêntico valor gnósico ao silogismo. Álvaro Ribeiro interpretava o silogismo como “catologia”, como a operação inversa da “analogia”. A catalogia faz descer o logos à Terra para a redimir. Com efeito, opunha-se ao destino que José Marinho atribuía à filosofia: o de relacionar o pensamento com o Ser; para ele a filosofia tinha por fim relacionar o pensamento com a acção. Ocultista de formação leonardina, compunha, porém, a catalogia com a analogia, tendo até querido demonstrar que nela está a origem do silogismo.

Era evidente para todos nós que a escola de filosofia fundada por Sampaio Bruno e criada por Leonardo Coimbra vendia um ensino secreto, esotérico, ocultista. Nela perdíamos a nossa alma para a ganharmos. Tratava-se de um desafio. É natural que nem todos tenham aguentado o jogo até ao fim, com todas as suas consequências. Outros, sabendo que a liberdade tem seus riscos, preferiam seguir “a via iniciática de olhos bem abertos”. A expressão é de José Marinho.

Vale a pena lembrar todo o passo da Introdução à Teoria do Ser e da Verdade:   

           

«Assim, o autor crê ter ficado simultaneamente autónomo e fiel a uma via remotíssima de pensamento. Essa via, ao mesmo tempo fácil e dificílima em sua subtileza, ao mesmo tempo e sempre revelada e oculta, permanece aberta para todos os homens e todos os seres. Uns a seguem livres, outros forçados por o que é, para estes, necessidade incompreensível, absurdo destino. Melhor parece livremente segui-la e de olhos abertos.»

 

António Telmo



[1] Nota do editor – Esta palavra surge riscada no manuscrito, sem que tenha sido substituída por outra equivalente; mas António Telmo manteve as palavras que imediatamente se lhe seguem, nomeadamente a conjunção coordenativa “e”, pelo que alvitramos a hipótese de que, afinal, a terá mantido.

 

    

 

INÉDITOS. 90

10-05-2020 11:04

Um povo “mélangé”[1]

 

Se a “gnose” teve, em Portugal, até 1513, o seu Templo ou, com mais luz, se Portugal foi até então o Templo da “gnose”, entrada depois em “dormência” durante quatrocentos anos, é no diálogo entre a poesia e a filosofia que subitamente irrompe por volta de 1910, com a República, onde [sic] se devem estudar as características próprias que assumiu no lugar da alma que dá pelo nome de Terra de Santa Maria. A uma certa espécie de “gnose” teremos de referir o que Álvaro Ribeiro disse ser a originalidade da filosofia portuguesa. Singular filosofia essa, em terra portuguesa, que, por espontânea fidelidade à mesma visão sófica, há-de conciliar pensadores tão distantes como Sampaio Bruno e Leonardo Coimbra, poetas tão diferentes como Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa.

Ao falar-se de lugar da alma, há que lembrar como, já na pré-história, sucessivas vagas de povos se detiveram aqui perante o Oceano: a cultura dolménica é um dos sinais. Mais perto de nós, bárbaros, judeus e romanos, árabes depois, franceses, ingleses e espanhóis disputaram esta terra, usando de força e astúcia. O processo continua, embora revestindo outros aspectos. Os turistas de todo o mundo vêem nela o paraíso do seu prazer.

Mas judeus e árabes viam nela outro Paraíso.

Etnicamente somos uma mistura, “un mélange”, como observou um famoso esoterista europeu que se negou, por isso, a difundir o seu ensino aqui. Ele, no seu relativo acerto, não contou com a persistência de estratos rochosos mais profundos que não sofreram a corrosão superficial. São esses estratos que, por direito e dever, se ligam íntima e secretamente com o espírito da Terra. Persistem fundos e ocultos, ignorados dos intelectuais que, esses sim, desde os políticos aos escritores, desde os escritores ao clero, são a perfeita expressão dum povo “mélangé”, dividido e dilacerado entre três religiões, amesquinhado pela Europa e, por isso, dócil e servil a tudo o que vem de fora, que recebe com júbilo os invasores, se deixa corromper por eles e se arroga o direito da última palavra em política, em economia, em filosofia, em religião. O sentimento oculto de inferioridade excita neles a inveja, que já foi caracterizada como o vício nacional.

 

António Telmo      



[1] Nota do editor – O título é da nossa responsabilidade.

 

<< 12 | 13 | 14 | 15 | 16 >>