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VOZ PASSIVA. 90

10-06-2020 09:43

A camonofilia de António Telmo[1]

António Cândido Franco

 

António Telmo (1927-2010) foi um fino e subtil ensaísta, na linha de Fernando Pessoa e Mário Saa, com uma vasta erudição linguística, do latim ao hebraico, e uma inteligência simbólica muito ágil nos saltos semânticos, virtudes raras em época marcada por estreiteza apertada da razão e que bastam para destacar os trabalhos que assinou, se não mesmo para fazer deles casos únicos no domínio do ensaio poético em Portugal.

Estreou-se com um livro de semblante pré-clássico, Arte Poética (1963), muito atento aos problemas da linguagem verbal e aos tópicos da poesia virgiliana, e fechou com um livro póstumo, A Aventura Maçónica–Viagens à Volta de um Tapete (2011), onde se deteve a desenvolver com sagacidade aspectos relativos à dimensão simbólica que sempre o preocupou.

Entre a curta dezena de livros que deu à estampa, os estudos dedicados a Camões constituem parcela expressiva, pela regularidade da publicação, pela atenção diversificada, pela singularidade das abordagens. No total deu à luz da publicidade, entre 1977 e 2011, ao longo de mais de três décadas, um conjunto de oito estudos de boa arquitectura, quatro deles desenvolvimentos sólidos uns dos outros, a que se somam oito textos de curto fôlego, por vezes simples apontamentos, mas nunca irrelevantes, em pouco mais dum parágrafo.

Consciente decerto da novidade das suas leituras camoninas, capazes de marcarem uma diferença entre a vasta silva dos estudos dedicados ao épico português no período que foi o seu, António Telmo, quando chegou a ocasião de iniciar a publicação das suas obras completas, decidiu construir com essas leituras o primeiro volume das referidas obras, atitude que mostra o carinho que nelas punha.

O livro, Luís de Camões (2010), surgido ainda em vida do autor, deixou apenas de fora dois estudos camoninos, um deles póstumo, “Autobiografia e Sobrenatural em Luís de Camões”, longo diálogo em torno de Camões, onde se revisitam em exercício sinóptico as questões camoninas que mais o interpelaram, apresentando-se tal estudo como uma súmula final, produto da derradeira estação da vida, que não substitui porém os trabalhos anteriores nem exaure a copiosa torrente da sua riqueza.

Sobre o conjunto destas leituras nos iremos deter nesta nota, de modo a destacar o esteio inovador que elas proporcionaram aos estudos camoninos do tempo em que surgiram.

 

1 Formas de Camonismo em Portugal

No momento em que António Telmo abriu o comentário da poesia de Camões distinguiam-se no estudo desta orientações variegadas, que, não mostrando novidade assinalável em relação ao passado recente, ampliavam e desenvolviam as linhas de envolvimento que vinham da primeira metade do século e até de trás.

Em primeiro lugar, um camonismo oficioso, que vivia paredes meias com a consagração oficial de Estado que o Poeta experimentava desde as comemorações do terceiro centenário da sua morte, em 1880, e que muito se desenvolvera depois de 1910, com especial reparo para a criação do Dia de Portugal em 1925, não mais revogada, na data que se aceitava e reconhecia ser a do falecimento do Poeta.

Este camonismo, empolgantemente eloquente mas hermeneuticamente estéril, encontra expressão em algumas declarações de Teófilo ou de Lopes Vieira, cujos textos dedicados ao Épico português foram recolhidos no livro póstumo Camões na Obra de Afonso Lopes Vieira (1974); basta atentar num deles, “Na Entrega de Os Lusíadas ao Presidente do Brasil”, para se sentir a natureza pomposa desta abordagem, mais insinuante do que se esperaria, contaminando outras linhas de ancoragem.

De seguida como linha marcante nas abordagens de Camões na época em que Telmo abriu os seus estudos, constituindo mesmo a orientação mais seguida e praticada, deparamos com aquilo que podemos designar por camonologia, significando esta uma ciência textual, uma textologia de largo aparato técnico, cuja ambição maior é contribuir de forma decisiva para a resolução das questões, e muitas na lírica eram, que o corpus de Camões apresentava.

O mais típico representante desta escola – cujo antecedente se encontra na preocupação filológica com que Carolina de Michaëlis abordou em 1922 e 1924 dois cancioneiros camonianos e se posicionou contra a proliferação de apócrifos, desautorizando assim edições recentes mas consagradas como a do Visconde de Juromenha (1860-9) – é Jorge de Sena, que propôs a revisitação fenomenológica dos textos de Camões, a partir dum conjunto de laboriosas operações numéricas e estatísticas sobre os textos, cuja finalidade era a construção do sentido da determinação tipológica, espécie de matriz fidedigna de todos os textos de Camões.

Exemplo modelar da aplicação do método encontra-se na leitura que Sena fez da canção VII de Camões, Manda-me Amor que cante o que a alma sente, com três versões diferentes, de que resultou um gigantesco estudo numérico, publicado em livro, Uma Canção de Camões (1966). Ao longo de seiscentas páginas Sena vai acumulando números, quadros, estatísticas, cálculos, numa profusão obsessiva de operações, que visam obter o inquérito estrutural ou fenomenológico, a partir do qual se poderá construir o sentido da determinação tipológica.

Já um camonologista insuspeito como Vítor Manuel de Aguiar e Silva apontou com severa catadura os limites dos processos usados por Sena. Diz: A metodologia e a instrumentação estatísticas manejadas por Sena, que permitem uma ostensiva proliferação de esquemas e quadros com números, percentagens, índices de variabilidade e invariabilidade, etc., só poderiam ter conduzido como conduziram, a três categorias de resultados: um simples e improdutivo acervo de constatações numericamente expressas; um reducionismo devastador dos chamados “modelos estruturais” (…); enfim uma manipulação ad libitum das próprias operações estatísticas, e não apenas das conclusões delas extraíveis (…). (“Jorge de Sena, Camonista”, in Colóquio-Letras, nº 67, 1982)

Seria porém injustiça – e não foi essa com certeza a intenção de Aguiar e Silva – remeter a camonologia de Jorge de Sena para a arrecadação das coisas infecundas. Os estudos de Jorge de Sena, pela imensa informação que carreiam em domínios tão variados como a genealogia ou a história do livro, pelo largo conhecimento dos problemas relativos aos textos, pela agilidade expressiva, pela fuga que fazem em momentos estratégicos ao seu próprio método estrutural, posicionando-se em áreas inesperadas e promissoras, são um contributo intorneável aos estudos camoninos.

Não se pode deixar de referir como paradigmático deste efeito o estudo que Jorge de Sena dedicou ao sentido das alusões ao povo judaico em Os Lusíadas, “Novas Observações acerca da sua Epopeia e Pensamento” (in Ocidente, 1972), que tão prometedor e fecundo se mostrou junto de jovens investigadores da época que com ele encetaram novos e denodados trilhos na abordagem de Camões.

Assinalem-se ainda no quarto centenário da edição de Os Lusíadas os prefácios de Sena à monumental reedição fac-similada das valiosas edições comentadas que Manuel de Faria e Sousa fez de Os Lusíadas (Madrid, 1639) e das Rimas Várias (1685-89), dois estudos de primeva importância, talvez os primeiros que modernamente justiça fizeram ao grande comentador do século XVII, que escolheu ser o difusor de Camões em língua espanhola e cujo papel na cultura desta, até na tentativa de substituir Gongora por Camões, projecto desmedido mas muito mais lúcido do que se possa de entrada pensar, sobretudo em termos da primeira metade do século XVII, ainda está na forma devida por apreciar.

A camonologia não viveu todavia apenas dos contributos desorbitados que Jorge de Sena lhe deu. Outros como António José Saraiva, Vítor Manuel de Aguiar Silva, Maria Vitalina Leal de Matos ou Vasco Graça Moura se posicionaram de modo idêntico, e nem sempre com o insucesso de Jorge de Sena, insucesso metodológico entenda-se, decerto porque apostaram menos na sistematização estrutural duma grelha definitiva, capaz de resolver de vez as graves questões do corpo textual camonino, do que na modesta regulação caso a caso de questões textuais singulares.

Trabalhos modelares neste âmbito, mostrando previdência crítica, labor minucioso, conhecimento prospectivo e persistência de avanço, são alguns daqueles que Aguiar e Silva foi dando de forma dispersa e regular à estampa ao longo das décadas de setenta e oitenta do passado século, antes de mais as notas, as avaliações, os materiais que junta relativos ao problema do cânone da lírica de Camões, área onde melhor se desenha e sente o contributo da sua investigação.

Os sucessos desta camonologia textológica, recolhida no livro Camões: Labirintos e Fascínios (1994), são porém muito limitados e apenas relativos a questões heurísticas e ecdóticas, e ainda assim, por via da quantidade e da complexidade dos problemas que se foram acumulando ao longo das várias edições da lírica, sem possibilidades de chegar a termo conclusivo, tudo se resumindo a curtos avanços, quantas vezes não mais do que detectar lapsos, até irrelevantes, dos predecessores.

A camonologia, que anotou ainda pela mão de António José Saraiva pertinentes tópicos de gramática, do léxico à sintaxe de Os Lusíadas, esbarra em questões hermenêuticas relativas ao sentido, frustrando qualquer avanço em termos de significação. Quanta decepção, quanto malogro mesmo, num texto de Aguiar e Silva, também recolhido no livro acima mencionado, “Função e Significado do Episódio da Ilha dos Amores na Estrutura de Os Lusíadas”, que estaria destinado no seio do seu trabalho a visar questões muito mais amplas e significativas do que a mera ecdótica, até porque toma como ponto de arranque um segmento camoniano sem qualquer novelo textológico, caso o autor não temesse entrar por outros trilhos que não o exaustivo estudo das fontes eruditas, mas exteriores, terreno seguro mas quase infecundo em tão denso e enigmático ponto.

Assim, tal como ficou, o erudito trabalho de Aguiar e Silva tudo o que alcança no domínio da simbolia é repetir um muito estafado lugar-comum do camonismo oficial, o ideal cruzadístico que animou e guiou, como autêntica superestrutura ideológica, o Estado e o escol intelectual da Nação (…) no século de Quinhentos (p. 142), associado no caso ao centro nevrálgico de Os Lusíadas, a Ilha de Vénus, reduto resistente do mais alto simbolismo do poema, o que torna o estudo infinitamente mais deceptivo.

Além das famílias aqui notadas, camonistas oficiosos e camonologistas, podemos ainda assinalar um terceiro ramo, interessado menos na obra do Poeta do que na biografia dele, que chamamos de camonografia e que teve no José Hermano Saraiva de Vida Ignorada de Camões (1978) o astro de brilho mais visível.

Este braço do camonismo, reprimido com dureza pela camonologia científica, a ponto dos estudos biográficos de Camões terem entrado em franca retracção desde Carolina Michaëlis, não obstante a rica estirpe de antecedentes, remontando aos primeiros estudiosos, Manoel Correia, Pedro Mariz e Severim de Faria, este braço, dizíamos, não deu qualquer contributo relevante ao conhecimento formal ou semântico dos textos, já que estes apenas lhe interessavam em função do seu propósito, a biografia do Poeta, restringindo-se o proveito que desse braço temos, não despiciendo todavia, às investigações genealógicas de arquivo, área em que colheu elementos avulsos de valor, que nenhum camonista pode hoje ignorar, dando um subsídio indispensável aos estudos gerais camonianos.

 

2 Sentido Interior do Texto

O quadro que aqui traçámos mostra o estado dos estudos camoninos no instante em que António Telmo deu a público o primeiro trabalho sobre Camões. Tal aconteceu no ano de 1977 com o longo escrito “O Esoterismo de Os Lusíadas”, publicado como capítulo autónomo dum dos seus livros mais conhecidos, História Secreta de Portugal.

Que nos propõe o autor neste trabalho sobre o poema, logo seguido por um outro, em 1980, da mesma natureza, “O Segredo de Os Lusíadas”? Falamos duma abordagem por dentro do texto, aduzindo sentidos para o poema não imediatamente perceptíveis à leitura desprevenida, sentidos esses que necessitam de pesquisa e apuramento, a partir da constatação da letra conter estratos de sentido, alguns imediatos, outros velados, soterrados por olvidos relativos ao contexto ou até em última visão por vontade expressa do autor, para isso recorrendo a cifras de disfarce.

Não se pense que esta adução inicial, a que o autor se manterá fiel ao longo de mais de três décadas de trabalho, pertence a António Telmo, até no que a Camões diz respeito. Sampaio Bruno, inspirando-se nos estudos sobre Dante de Eugénio Aroux e de Grabiele Rossetti, que viram intenções veladas em Dante, no caso anti-papais, de resto indiciadas pelo texto, O voi, ch’avete gli intelleti sani/ Mirate la dottrina che s’asconde / sotto il velame delli versi strani, escreveu no final da vida, entre 1914 e 1915, um conjunto de textos dedicados à poesia portuguesa dos séculos XVI e XVII, mais tarde reunidos no livro Os Cavaleiros do Amor ou a Religião da Razão (1960; 1996), cujo fio condutor é a indagação dum sentido interior para o texto, com elucidação de aspectos contextuais e de cifras textuais pouco atendidas, sendo Amor, extenso tópico do tempo e palíndromo de Roma, a mais expressiva.

No caso de Bruno, como nos de Aroux e de Rossetti, a dobra escondida do texto prendia-se antes de mais com a situação da época, quer na Itália de San Donino quer na Ibéria dos Usques, marcada em ambos os espaços pela feroz vigilância inquisitorial, o que condiciona o sentido interior do texto a uma orientação político-religiosa de resistência.

António Telmo, partindo destas inquirições de significado, não se ateve porém a elas. Se por um lado o seu trabalho, numa das suas esferas mais fecundas, dá a súmula “A Identidade Religiosa de Luís de Camões” (2009), recolhida depois no volume das obras, onde é patente o desenvolvimento da investigação de Bruno, por outro esse labor segue de perto uma escala de sentidos diversificados, posto que encadeados, que assinala uma novidade sobre Bruno, alargando aquilo que antes surgia apenas condicionado a um sentido político, mesmo tendo na base uma condição religiosa.

Esta novidade, manifestando-se por um entendimento em leque das significações da poesia de Camões, livrou a exegese de António Telmo dum dualismo redutor, sentido patente e sentido latente, e permitiu-lhe um vasto enriquecimento de ideias, que teve ponto cimeiro, a partir do qual frutificou em direcções várias, na publicação em 1982 dos dois estudos que constituem o livro Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões, hoje reunidos no volume publicado em 2010, e que representam com os estudos anteriores um assinalável progresso da compreensão da épica de Camões.

Um camonismo como o de Telmo, elegendo como esfera de estudo a letra, mas não se contentando com a restituição ecdótica desta, antes indo no encalço duma escala de sentidos, não podia senão estar destinado a prestar um contributo ímpar numa zona essencial mas muito desprotegida do texto camonino, as significações, em que a retórica balofa do camonismo oficial, o literalismo paralisante da camonologia heurística, a obstinação irrelevante da camonografia biografista nada mais podiam oferecer, quando em tal domínio entravam, do que puídos chavões sem substância.

O comentário talmúdico – modelo da exegese do texto escrito no tempo de Camões, e dele se serviu um Manuel de Faria e Sousa no seu comento – supõe quatro níveis de sentido. As quatro direcções da poética podem ser associadas aos quatro sentidos da exegese tradicional, cujo interesse se mantém, como se pode ver em qualquer lição sobre o estudo da literatura: a restituição da letra (sentido literal), a procura duma figuração (sentido alegórico), a fixação dum quadro relacional com o contexto histórico (sentido moral) e por fim a percepção daquilo que podemos designar com propriedade o espírito da letra (sentido anagógico).

Em Telmo se alguma insuficiência há, é no domínio do primeiro nível que está, posto que a sua indagação fonética, muito atenta às trasladações do som, atenue o juízo. Todos os outros se entrançam na sua leitura de forma a desenhar o sentido final ascendente, anagógico, verdadeiro caroço das significações da poesia de Camões, que como grande arquitectura poética, em estreita relação com Virgílio e Dante, muito seria de admirar que dele estivesse ausente.

Assim a Ilha – que em Aguiar e Silva nunca chega a levantar voo do chão raso do literalismo – alcança em Telmo um estatuto novo, quando este a levanta, através da simbolia da esfera, ao estatuto de arquétipo do mundo. Tal transposição de sentido leva o intérprete a reformular toda a significação do poema camoniano, enriquecendo a sua compreensão pela translação da História ao Espírito, quer dizer, do sentido literal ou moral ao anagógico, ao encarar a viagem histórica no plano iniciático, cujo termo é a contemplação pelos nautas do modelo do mundo físico.

Isto que aqui surge de supetão, perdendo por isso boa parte da surpresa, é obtido em Telmo por um inteligente trabalho gradativo de aproximação, um esforço de tipo comparatista, em que se procura tirar o máximo proveito especulativo da comparação em jogo. No caso a escolha recai sobre uma iluminura persa do século XIV, pintada no quadro do Islão mas de influência zoroástrica, substrato cultural da Pérsia, que o Islão não apagou, e que mostra manifesta semelhança com a descrição da Ilha da épica camoniana.

A aproximação entre estas duas realidades, iluminura e escritura verbal, mostra-se feliz, enquadrando a Ilha num espaço de ideias marcado pelo neo-platonismo de sinal gnóstico, o que permite pela primeira vez entender a Ilha como mundo supra-sensível, ínsula divina lhe chama Camões (Canto IX, 21), e justificar sem estreiteza as estâncias dedicadas no episódio ao apóstolo Tomé, protagonista dum dos apócrifos mais ligados às interpretações gnósticas do cristianismo e o único que teve contacto directo, por predicação, e numa altura em que esta não era o monólogo que depois se fez, com as vastas regiões da Pérsia, então em pleno desenvolvimento da reforma zoroástrica. Ao evangelizador das áreas orientais se atribui em tradição milenar o baptismo dos Magos que vieram do Oriente a Belém e que nada mais eram do que sacerdotes avésticos de Zaratustra; o papel que estes têm no apócrifo de Tomé mostra bem o grau de sincretismo cultural que foi obtido pelo apóstolo entre as tradições orientais do dualismo e a nascente novidade do cristianismo.

O passo dedicado a Tomé, quando atenção houve à sua estranheza, foi lido apenas como tópico anti-jesuítico de Camões, que assim teria deixado de lado Francisco Xavier, o pregador ibérico da Índia e companheiro de Inácio de Loyola, como se o poeta estivesse apenas preso ao horizonte da antipatia pessoal, não avisando até para o perigo da matéria em causa (canto X, 120), e que é irrisório associar a qualquer questiúncula com a Companhia. Em aviso tão sério, em consigna tão sibilina e estratégica, outra e mais funda será a causa; para saber a que matéria alude o passo é preciso pelo menos encarar esta como implicante nas mais altas esferas do poema, o que não é nem pode ser o caso de qualquer irritação pessoal de Camões com os jesuítas.

A ideia duma afluência gnóstica na Ilha de Os Lusíadas – daí o letreiro do livro de 1982, porquanto os maniqueus são os neo-platónicos de fácies gnóstica – ajudou então a compreender o passo de Tomé e a visionar, o que não é despiciendo, a textura supra-sensível da Ilha com uma nitidez que até esse momento escapara, velada que sempre andara por observações menores e distractivas, quando não nulas. Demais, a percepção da importância no poema da corrente dualista, tal como ela se manifestou em círculos cristãos do primeiro século, permitiu alargar a intertextualidade cultural do poema, apontando a uma percepção real das ideias religiosas do poema e do poeta.

Dois estudos seguintes de Telmo sobre Camões – “O Messianismo de Camões” (2004) e “A Identidade Religiosa de Luís de Camões” (2009) – exploram este aspecto aberto pela aproximação da Ilha camoniana ao mundo da luz do dualismo persa, quer através do cripto-judaísmo de feição neo-platónica, como é o caso do cabalismo que derivou da escola de Gerona do século XIII, e que Camões como homem culto com certeza conheceu e meditou, quer através do cristianismo de feitio gnosticizante, indiciado nas estâncias sobre Tomé e cujas raízes eram fundas e antigas no noroeste da Península com a heresia priscilianista, e resistentes, com a sobrevivência desses brotos em manifestações posteriores, de Isabel de Aragão aos templários e seus sucessores.

Sobre a elucidação da natureza heterodoxa do cristianismo em Camões é notável, posto que introdutório, o texto da mesma época, “O Simbolismo das Cores Templárias na Poesia de Camões e na Festa dos Tabuleiros em Tomar” (2008), hoje no volume camonino das obras completas, em que se decifra o passo da cilada de Baco em Mombaça e se explora a lírica a partir das cores que estão presentes num dos raros casos em cujo seio sobreviveu a acossada inspiração templária.

 

3 Da Camonologia à Camonofilia

Não se julgue, com aquela freima destruidora de quem nem se dispõe a ouvir, que estamos diante de qualquer delírio risível. Basta atentar nos dois épicos atrás citados, Virgílio e Dante, e no forte parentesco de ambos com o poeta português, para se perceber como um plano anagógico de significação fará sempre ao poema português uma falta decisiva, ou não soubéssemos o que sabemos sobre a catábase da épica virigiliana e do poema dantesco. Sem tal plano, o poema de Camões não passa de letra morta, como se vê nas leituras tristes e cinzentas que durante anos sobre ele arrastámos, com as tão penosas repetições do poeta da Raça, do Império, da Cruzada ou da História.

Depois dos estudos de António Telmo a poesia de Camões surge-nos como uma síntese da herança do Portugal do século XV, aquele que aceitou a convergência sinergética das três religiões do Livro, aquele que iniciou e desenvolveu a exploração do Atlântico, aquele que no seio dessa expansão deu o messianismo de Fernão Lopes e o paracletismo de Nuno Gonçalves, tudo expressões heterodoxas duma cultura atlântica, excêntrica por isso, e muito surpreenderia se assim não fosse, tratando-se como se trata da obra poética capital relativa aos Descobrimentos.

A obra de Camões teve o desmedido mérito – e sem ele muito do seu viço murcharia – de superar um contexto de feroz perseguição religiosa, integrando de forma velada, e outra não seria possível por bisonha que fosse a censura dominicana, as linhas que no passado recente haviam feito a riqueza da Península, mostrando-se assim muito consciente da herança que nela havia e se perdia e intentando com ela, agora por meio do Oriente, uma nova síntese, através da reunião de forças desencontradas mas reconhecíveis, o cabalismo criptojudaico, o cristianismo iniciático e o sufismo islâmico, através do qual se perpetuou, pelo menos no que não coube ao nestorianismo cristão, o dualismo zoroástrico.

Tudo isto, que aos pobres camonologistas contemporâneos faz abrir a boca de incredulidade, foi porém conhecidíssimo dum comentador tão ilustre como Manuel de Faria e Sousa, patriarca da camonologia o titulou Sena e assim o recebe e evolve Telmo, que no tempo em que escreveu não pensou senão em colocar o poema no plano do sagrado – e o mesmo havia feito o primeiro comentador dele, Manoel Correia, que ainda teve diálogo cara a cara com o Poeta, na edição de 1613, dando o poema ao divino e equiparando a sua feitura aos textos arrebatados dos antigos Profetas. Se as leituras camonianas de Telmo outros méritos não tivessem, este de recolocar o poema no plano da leitura anagógica, juntando-lhe ideias, alargando-lhe as fronteiras, diversificando-lhe as fontes e as referências bibliográficas, nenhum lho tirava.

Sem o interesse de António Telmo por Camões, sem a sua camonofilia, a que é justo juntar a de Fiama (1938-2007), autora de O Labirinto Camoniano e Outros Labirintos (1985), podíamos dizer que nada sabíamos d’ Os Lusíadas a não ser o nome dos comentadores e dos editores, o ano e o lugar das edições, as diferenças entre elas, com curiosidade especial para a dos “Piscos”, truncada esta, além de questões triviais de léxico, de sintaxe e de mitologia. Se assim fosse, convenhamos que, tratando-se dum poema de envergadura universal, publicado há mais de 440 anos, escandaloso seria.

Sem o Camões de António Telmo, síntese de tradições, lugar de convergências de culturas religiosas distintas, onde a cultura romana, ou mesmo europeia e cristã, é só parcela, e não a maior, não terá a Ibéria Camões para dar ao mundo, sobretudo ao mundo que dela deriva, pois o Camões expressão do Portugal, da Ibéria e da Europa habsburguinos, nada pode interessar povos que a cultura inquisitorial da Contra-Reforma tão abusivamente tripudiou.

 

 

[texto escrito em Junho de 2011

e revisto em Fevereiro de 2015]

 

 



[1] Nota do editor - O presente ensaio é uma versão revista do artigo “O camonismo de António Telmo”, publicado originalmente em Suroeste, revista de literaturas ibéricas, n.º 2, pp. 129-137, 2012. Integra a marginália do Volume III das Obras Completas de António Telmo, Luís de Camões e o Segredo d'Os Lusíadas seguido de Páginas Autobiográficas, Zéfiro, 2015. 

 

DOS LIVROS. 67

10-06-2020 09:32

Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões

 

Empregámos a palavra maniqueísmo como um sinal da gnose camoneana, não no sentido da corrente espiritual fundada pelo persa Mani. Poderíamos ter escrito «cátaros» ou «priscilianistas», em vez de «maniqueus». Este último termo é mais popular e é, sobretudo, à volta dele que se cristalizam as opiniões.

Desculpe-se o título do livro com a sua sugestão de uma aventura de piratas, mas se soubermos transpor aquilo que é imediatamente nele dado para o plano das significações, – o plano onde as imagens são para além de si –, a sugestão infantil tornar-se-á acutilante, logo capaz de se cruzar dolorosamente com os problemas dos homens.

Não foi nosso intuito expor uma filosofia maniqueia porventura existente em Luís de Camões. Seria fácil desenhar um diagrama gnóstico com a ideia de Deus abscôndito (Canto X, 80), a emanação de uma primeira Inteligência Arquetipal (Canto X, 79) – «pensamento casto e puro, criador de todas as cousas», a esfera das potências celestes (Canto X, de 81 a 89), a esfera do mundo intermediário imaginal (Ilha do Amor), plano do mundo elementar, esse «caos confuso» onde o mal existe realmente. A finalidade dominante foi mostrar o facto irrecusável do paralelismo entre a imaginação de Camões e a de Zoroastro, na ideia de repelir o preconceito corrente da irrealidade do mundo subtil, que em nossa ignorância confundimos com o mundo evasivo da fantasia.

O desembarque dos maniqueus na Ilha de Camões significa também isto. Somente desembarcando na Ilha somos forçados a reconhecê-la como uma realidade. Para tanto, teremos de assumir a qualidade de «maniqueus», porque o sobrenatural, isto é, a face superna da natureza, só está ao alcance de quem assume essa qualidade.

Somente depois se torna possível cumprir o que vem significado nestes versos:

 

«Podeis vos embarcar, que tendes vento

E mar tranquilo, para a Pátria amada».

Assim lhe disse; e logo movimento

Fazem da Ilha alegre e namorada».

 

Versos equívocos, pois tanto podem querer dizer, numa ou noutra de duas possíveis interpretações sintácticas, («da Ilha» é complemento determinativo ou complemento circunstancial de lugar?), que partiram da ilha de regresso a casa ou que a trouxeram consigo. A análise sintáctica d’Os Lusíadas nem sempre é um exercício inútil e torturante.

O último sentido é, na harmonia da nossa interpretação, altamente provável.

Que significa fazer movimento da Ilha?

A tentação é pensar que o poeta sugere pela expressão que a potência divina da imaginação se transforme num movimento de transfiguração da Pátria. Só que Portugal, no tempo de Camões, vinha de iniciar um longo ciclo de quatrocentos anos, de quarenta decénios ou de quatro séculos. Dir-se-á, dentro da imagética própria deste estudo, que as legiões de Ahriman passaram a reger definitivamente os nossos destinos. «Uma austera, apagada e vil tristeza» enublou a alegria auroral da Ilha e quando, passados esses quatrocentos anos de deserto da alma, se começou de novo a ouvir a «angélica soada» dos poetas ou o severo dizer dos filósofos, quando vários movimentos espirituais de inequívoco sinal disseram ter chegado a hora da transfiguração logo movimentos contrários se formaram, aos quais uma longa, astuciosa e ardilosa campanha tinha dado todos os recursos e todas as armas para se imporem na opinião pública e deixarem na sombra a misteriosa jasminácea do pensamento português.

Duas figuras dominaram, durante meio século, o círculo das acções e reacções mentais dos portugueses: António Salazar e António Sérgio. Ambos têm de comum um critério cheio de severidade para com todas as formas de imaginação que se apresentam, nos poetas e nos prosadores, com a finalidade secreta ou patente de dizerem o mistério. A imaginação é, no pensamento de um e de outro, uma diversão da mente humana, que deve ser contida nos seus limites, onde deverá manter-se sem qualquer pretensão gnósica. É à própria imaginação, dada como a forma do irracional, que é atribuída, num a desordem política, no outro a desordem mental que caracterizam a vida portuguesa. Ordem e progresso ou ordem e clareza eis o ideal proposto por estes dois mestres das gerações actuais. António Salazar, numa entrevista, mandou Leonardo Coimbra deixar-se de filosofias e dedicar-se a escrever versos; António Sérgio disse a Teixeira de Pascoaes que continuasse a escrever versos, mas não se metesse com a filosofia. Para que ficasse tudo na mesma, foi sob a égide de António Sérgio que se fez a revolução contra Salazar.

A proposta de claridade ou de clareza, de ordem ou de coerência, no pensamento e nas suas expressões, procede como se a obscuridade e a desordem fossem próprias da imaginação, esquecendo-se quem propõe de que as «imagens» são dispositivos de captação da luz muito mais eficazes do que as «abstracções», afinal de contas imagens também, mas reduzidas a um mínimo de intensidade, meros sinais telegráficos do mundo sensível e das suas relações. Mais ou menos velada, a luz é a fonte originária da imaginação, a qual não se transcende reduzindo-se, mas passando a outro plano, – o da intelecção –, ali onde é em si a claríssima esfera de que nos fala Camões. Só que a visão do inteligível pressupõe que se tenha condensado em si suficiente energia luminosa pela contemplação e activação da imagem primeira entre todas, – aquela que cada um de nós pode formar de si na intimidade mais profunda do seu ser. O morse da abstracção traduz-se numa perda contínua de energia que corre, como um fogo-fátuo, sobre a superfície das coisas.

Nem sempre aqueles que se apresentam como defensores da clareza nas ideias, são como pretendem partidários da luz porque procedem ignorando a noite onde as estrelas brilham. São espíritos irrealistas que não têm em conta as múltiplas condições de produção da luz ou de qualquer outra energia afim. Falam dela como se a conhecessem antes da treva.      

Dissemos que as imagens são dispositivos de captação de energias subtis. Deixadas a si próprias e sem relação com a luz imperitura de onde provêm, isto é, sem relação com o uno em que todas são e que só a filosofia prevê e vislumbra, funcionam como baterias semi-descarregadas, são, na literatura, a poesia sem sentido do mais alto e do que mais importa. Desculpe-nos o leitor a linguagem mecânica, mas com os cartesianos convém ser cartesiano.

A esta separação ou cisão da poesia e da filosofia há que chamar aqui, para nos mantermos fiéis à imagética deste estudo, o fender-se da ilha ou o quebrar da ponte Chinvat. Não significa isso que queiramos propor uma poesia filosófica, mas temos de dizer uma filosofia poética. Um dos poucos exemplos de poesia filosófica é a de Antero de Quental, aliás o poeta mais caro a António Sérgio. Em Antero de Quental, a imagem não é vivência ou símbolo, mas alegoria. O exemplo mais alto de filosofia poética é o de Leonardo Coimbra, aliás o pensador mais odiado por Sérgio e por Salazar. Nele, a ideia é a flor enorme que abre na floresta esplendorosa da imaginação; a ideia é vivência da qual nenhuma imagem pode ser a alegoria.  

A negação do mundo intermediário, da sua realidade, existência e objectividade, pela sua conexão com a fantasia, a mística, a intuição e o irracional, teria como consequência, a tornar-se completamente vitoriosa, a ruína da poesia e da filosofia e a suspensão do movimento essencial da alma que aspira à verdade. Esse mundo, porém, causa pavor e alguns se negam, por fé débil, a tomá-lo a sério.

Confundida a imaginação activa com a dispersiva fantasia, contra a poesia e a filosofia dos «imaginativos» levantam os adversários da gnose a exigência de um pensamento prático, «de pés fincados na terra». A teorização desta experiência atrai e solicita os estratos profundos deste povo da experiência, que atravessou os mares, edificou cidades e civilizações e «compassou» o universo. Há, porém, que não confundir a experiência, forma de conhecimento no perigo, com a preocupação de governar bem a casa, de fincar os pés na terra para nela ficar preso. A experiência do nómada do espírito não é a experiência do sedentário.

Aqui ocorre a relação, sugerida por Camões, do povo português com o tomismo de Tomé, inconfundível com o de Tomás (de Aquino), este importado ou invasor.

Sempre o nosso poeta sobrepõe o saber de experiência ao saber da razão. Tomé, ele no-lo lembra, «a Jesus Cristo teve a mão no lado». E, no Canto IX, escreve sobre o amor gnóstico:

 

«Mais vale experimentá-lo que julgá-lo,

Mas julgue quem não pode experimentá-lo.»

 

Saber válido é, sobretudo, «saber de experiência feito». Mais de uma vez, reaparece, como se sabe, a mesma ideia n’Os Lusíadas.

Aquilo a que devemos atender neste ponto é à dupla relação que se pode estabelecer com o mundo intermediário, indicada naqueles dois famosos versos: relação de conhecimento por contacto ou relação de conhecimento pela razão. No Canto X se diz de Deus abscôndito que é Saber alto, profundo e ilimitado e, algures numa ode, que quem criou todas as coisas foi «um pensamento casto e puro». É a esse Saber e a esse pensamento que está referido o conhecimento operativo. Camões não reduz à Terra e seus limites o campo da experiência. O seu sentido prático tem a loucura do invisível.

Aqui se detêm muitos que, dotados embora de espontâneo amor à verdade e de lúcida inteligência, temem descer à intimidade de si próprios, dos outros e do mundo, às suas infinitas extensões, onde se levanta a realidade da Imagem, cuja beleza poderosa e sacrossanta desperta nas almas desejo, espanto e medo. Preferem, então, descansar na ideia de que, no celeste, tudo está resolvido, restando ao homem ocupar-se do terrestre.

Assim, o desembarque dos maniqueus na Pátria do regresso e donde, talvez, nunca tenham chegado a sair, encontra o mesmo deserto que já era na hora da partida. Os últimos cem anos são disso o sinal inequívoco. Onde estão aqueles que poderiam ter seguido o ensino iniciático de Sampaio Bruno ou o magistério iluminado de Leonardo Coimbra? Quem pôs de lado, do outro lado da filosofia, os poetas que lhe são afins, Guerra Junqueiro, Gomes Leal, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa? Porque não seguiram o fundo apelo do movimento de filosofia portuguesa de Álvaro Ribeiro e os avisos do grande pensador gnóstico José Marinho? Porque não ouvem a voz paraclética de Agostinho da Silva? Como deixam que outros tentem deter tão significativos «movimentos» da ilha, pelo ardil de «normalizar» o excepcional ou de «silenciar» a palavra demasiado evidente ou de «caluniar» quando uma coisa e outra já não são possíveis?

Queremos assim dizer que os maniqueus andam dispersos. Todavia, exatamente à volta de Luís de Camões começam a levantar-se vozes, aqui e ali, que lançam evidente perturbação no camonismo de Estado. A mais nítida é a da Fiama Hasse Pais Brandão. Todavia, outros como José Hermano Saraiva, Maria Antonieta Soares de Azevedo, António José Saraiva e António Carlos Carvalho têm contribuído decisivamente para mostrar a nova luz a figura interior e exterior do poeta. A hipótese de criptojudaísmo não é, claramente, a deste estudo. Preferimos determinar a orientação espiritual de Luís de Camões, segundo uma linha que tanto pode congraçá-lo com o cristianismo como com o islamismo ou o judaísmo. A impressão que resulta é a de que, para o autor de Os Lusíadas, as religiões de nada decidem, presas que estão ao plano denso em que actuam. Há uma gnose cristã, uma gnose judaica, uma gnose islâmica e, nas três religiões do livro, esse elemento comum sempre defrontou adversários ferozes; por isso mesmo, a gnose camoneana não pode definir-se por nenhuma delas. É na Pérsia que os estudiosos situam o centro de onde derivam, circulando pelo mundo, as várias correntes de sentido gnóstico, nessa Pérsia à qual sempre o poeta se refere com palavras de exaltação: «Olha da grande Pérsia o império nobre».

Não é o melhor modo de desfazer o conflito de opiniões religiosas já iniciado à volta d’Os Lusíadas vir agora propor uma doutrina comum a todos os portugueses, da qual o poeta excelso seja a expressão?

 

António Telmo

 

(Publicado em Luís de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas seguido de Páginas Autobiográficas, 2015)

UNIVERSO TÉLMICO. 68

10-06-2020 09:23

Deixem Luís de Camões em paz,

Ou amem-no de vez!

Eduardo Aroso

                                                        

   «Que eu bem sei que o canto

                                                        Há-de achar menos crédito que espanto»

                                                                       (Canção VII, Luis de Camões)         

 

O poeta que vive no coração de muitos portugueses – uns guardam-no em semiconsciência; menos são os que o escutam dentro de si - parece que foi convocado a regressar ao túmulo nos Jerónimos, para ter que ouvir o já velho camonismo de Estado. Essa obrigação da lembrança anual de quem no resto do ano deixa vaguear o idioma português num caos de ortografias, não sei se sentirá uma dor semelhante à do cidadão que tem que pagar cada vez mais impostos. Mas lá terá que ser, não há outro remédio. Neste 10 de Junho, espera-se que a cerimónia se salve pelo acto de um poeta evocar outro poeta e a certeza do autor de «Os Lusíadas» não se expor a selfies.

A imagem de Luis de Camões mudou (isto é, repartiu-se) de algum modo nestes últimos 40 anos. Houve quem felizmente se distanciasse dos que mantinham (mantêm?) a ideia de uma epopeia que afinal de contas não foi bem assim, havendo até quem tenha escrito que «Os Lusíadas» são uma anti-epopeia (título de um livro) de um antirrevolucionário! Todavia, muitos dos que se distanciaram dessa falange, não deixam de ver ainda na magna obra uns pecadilhos por ela imitar o estilo dos velhos clássicos, arremetidas essas como se fossem uma espécie de “reparo” ao poeta, por ele trazer à sua obra todos esses heróis gregos e outros temas da Antiguidade. Tal finca-pé parece não deixar ver o essencial: o zénite da epopeia atingido na Ilha dos Amores, onde se vislumbra, para quem possa ver (imaginar) o horizonte mais largo de Portugal e da humanidade.

 

Assim, ao contrário do que possa parecer, esta imagem do vate não é, qualitativamente, muito diferente daquela que nos apresentava a política cultural do Estado Novo (e ainda não extinta de vez), ou seja, o poeta servia às mil maravilhas para umas coisas, mas para outras nem pensar. O Canto IX, recheado de cenas dionisíacas de “erotismo e paganismo” era silenciado no meio académico, chegando mesmo a ser omitido nalgumas edições mais populares. Depois de 74, foi abolida a censura, mas o espírito de interpretação literal, escolástico, raramente tem dado lugar a uma hermenêutica simbólica e esotérica do poeta que escreveu: «Transforma-se o amador na coisa amada». Aqueles que, de algum modo, o têm feito, não conhecem os corredores académicos; se conhecem, não servem para citação nos actos solenes.

Fiquemos com o retrato de Camões que parece não ter mudado muito para os portugueses, e que podemos ler em «Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões» de António Telmo (1927-2010), uma hermenêutica de desocultação de «Os Lusíadas», publicada pela primeira vez em 1982.

«A imagem que, ao longo dos séculos, o camonismo de Estado formou e difundiu mostra o autor de «Os Lusíadas» como um plagiador de Petrarca na lírica, de Virgílio na épica, de Platão na filosofia; um homem de inegável talento, mas sem iniciativa criadora, servo em religião do catolicismo, mentiroso pelo uso da mitologia romana, pior cronista do que João de Barros; um sensual hesitante entre a atracção do sexo e a sua sublimação. Quatrocentos anos se aborreceram os portugueses com esta imagem à qual atribuíram um sentido não muito diferente do retrato do Presidente da República em exercício, obrigatoriamente pendurado nas repartições públicas. Por ironia ou sarcasmo pintaram o plagiador – homem de algum talento, servil e beato, mentiroso e sensual – com uma coroa de louros sobre a cabeça severa de guerreiro. Em cima escreveram: Luís de Camões, Príncipe dos Poetas; e puseram por baixo a palavra «Pátria».

 

Vésperas do 10 de Junho de 2020

DOS LIVROS. 66

03-06-2020 19:39

Columbano Bordalo Pinheiro, O Velho do Restelo

Museu Militar de Lisboa

____________

 

O Velho do Restelo

 

Este velho «de aspecto venerando», «com um saber só de experiências feito» que segue e possui uma «justa Lei», não é somente, como tantas vezes se tem repetido, a voz do bom senso, expressão do espírito conservador. Talvez se deva mais uma vez, aqui, acompanhar Fiama que o vê como a personalização do Velho Testamento.

Isto, todavia, não é o mais importante. As três estrofes finais do Canto IV, contendo as últimas imprecações do Velho dão muito que pensar. Ele invoca a sua Lei, a Lei justa, para condenar o Titanismo, dando como exemplos que se não devem seguir o de Prometeu roubando o fogo do céu para o meter no coração do homem. Fogo de altos desejos que move o coração onde arde. Faéton, que roubou o carro alto do pai (Apolo, o Sol) e Ícaro procurando atingir o Céu voando para fora do labirinto da vida são segundo o terceiro exemplo do que não se deve fazer, cometimentos que vêm na esteira do pecado original de Adão seduzido por Eva, seduzida pela serpente, a colher o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal.

Altos e nefandos são, segundo o Velho, tais cometimentos. Paradoxalmente, altos e nefandos.

Todavia, a Nova Lei que veio ou virá substituir a Velha Lei, é a da Graça e traz em si o amor, o movimento para o Amor.

As imprecações do Adamastor coincidem com as do Velho.

 

~

 

                  LUSÍADAS

    (CANTO IV)

CII

«Oh! Maldito o primeiro que, no mundo,

Nas ondas vela pôs em seco lenho!

Dino da eterna pena do Profundo,

Se é justa a justa Lei que sigo e tenho!

Nunca juízo algum, alto e profundo,

Nem cítara sonora ou vivo engenho

Te dê por isso fama nem memória,

Mas contigo se acabe o nome e glória!

CIII

Trouxe o filho de Jápeto do Céu

O fogo que ajuntou ao peito humano,

Fogo que o mundo em armas acendeu,

Em mortes, em desonras (grande engano!).

Quanto milhor nos fora, Prometeu,

E quanto pera o mundo menos dano,

Que a tua estátua ilustre não tivera

Fogo de altos desejos que a movera!

CIV

Não cometera o moço miserando

O carro alto do pai, nem o ar vazio

O grande arquitector co filho, dando,

Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.

Nenhum cometimento alto e nefando,

Por fogo, ferro, água, calma e frio,

Deixa intentado a humana geração.

Mísera sorte! Estranha condição!»

 

António Telmo

 

(Publicado em Luís de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas seguido de Páginas Autobiográficas, 2015)

DOS LIVROS. 65

03-06-2020 19:22


Memórias cruzadas

 

– O que te traz tão preocupado, Amigo?

– Se eu te dissesse que gostaria de escrever um livro que fosse absolutamente sincero e, porque me sinto incapaz de fazê-lo, uma grande tristeza me invade e caio na mais estúpida das apatias…

– A apatia! Eis o problema. Freud recomendava, há um século, que se ingerisse uma pequena quantidade de ópio e que isso era suficiente para adquirir a energia que nos faz prosseguir confiantes no caminho da Ciência.

– Eu gostaria que o simples pensamento de Deus me recuperasse para esse caminho. Mas onde é que Deus se encontra neste momento?

– O bispo de Kars respondeu a análoga pergunta feita pelo pai de Gurdjieff que «Deus estava algures a construir uma escada para que os homens subissem por ela».

Estava com Álvaro Ribeiro no café da Brasileira do Rossio e ambos ouvimos claramente esta conversa que se desenrolava numa mesa ao lado, próxima de nós. Esperávamos pelos outros do grupo que ali se reuniam connosco às quintas-feiras: o José Marinho, o Eudoro de Sousa, o Orlando Vitorino e mais dois ou três, mas certamente só estes de que refiro os nomes estavam na nossa mente. Há meia hora que ali estávamos e Álvaro Ribeiro mantinha-se calado, o que me punha nervoso, com a sensação estúpida de estar a mais. Os dois homens, ao nosso lado, levantaram-se e dirigiram-se ao criado para pagar os cafés.

– Vão ver se a escada já está feita – disse Álvaro Ribeiro sorrindo e ironizando, mas logo recuperou a indiferença que espelhava no rosto e na atitude do corpo.

– Não é vulgar ouvirem-se daquelas conversas – tentei eu, timidamente.

– O António Telmo já defrontou o problema da apatia? Só o homem sente tédio; os animais ignoram-no e os homens inferiores também.

A minha memória correu para a imagem da minha namorada, uma colegial que conhecera há três semanas.

Andava divagando pelo Chiado, à procura, pelos cafés, de alguém conhecido para conversar. Era a hora da saída dos empregos. As pessoas pareciam todas apressadas. Diante de mim, que me encostara a uma parede, passou uma colegial, com uma bata branca. Outras tinham passado já. Eram alunas da Escola Comercial que, ao tempo, funcionava na Calçada do Combro. De repente, tive a sensação esquisita de já ter vivido aquele momento, nos seus mínimos pormenores, aqueles carros a passar, aquelas mesmas pessoas, aquela mesma rapariga que eu, sabia-o muito bem, nunca tinha visto antes.

O Eudoro de Sousa foi o primeiro a chegar: um homem atarracado, de rosto socrático. Sentou-se abrindo muito as pernas, como fazem todos que têm uma grande barriga. Abriu a boca bocejando. O Álvaro Ribeiro trocou um olhar cúmplice comigo, acompanhado pelo mesmo sorriso de há pouco.

– Estávamos a conversar sobre a “apatia”. O Eudoro não quererá dizer qualquer coisa aqui ao nosso amigo sobre o modo como Aristóteles ensina a despertar o pathos nos homens embrutecidos?

– A gente do povo costuma arcar[1] a apatia com um manguito. Mas você prefere à baixa magia do povo a alta magia da tragédia grega?

Exemplificou com o gesto. A sua figura tomou certa comicidade que lembrava certos bonecos de barro pintado que se vendem nas feiras. Álvaro Ribeiro pareceu ler no meu pensamento:

– … e da comédia grega. Ali vem quem sabe do assunto.

O José Marinho entrava no café, ladeado do A. Quadros e do A. Botelho. A qual dos três se referia Álvaro Ribeiro? Mas logo que se sentaram, começou-se a falar de outra coisa. Deixei de os ouvir. O que me preocupava era o problema da apatia.

Mais tarde, haveria de ler em Gurdjieff que toda a humanidade sofria presentemente de apatia, tanto lhe fazendo que existisse isto como aquilo, e que isso se devia à ininterrupta perda de energia do nosso planeta causada pela produção gigantesca de luz eléctrica. Falei nisso ao Max Hölzer.

– Ainda é cedo para que você entenda a coisa – respondeu-me.

Tinham passado trinta anos sobre a reunião que evoco no café da Brasileira.

 

António Telmo

 

(Publicado em Capelas Imperfeitas - Dispersos e Inéditos, 2019)

 


 

[1] N. do O. – Palavra de muito difícil percepção no original manuscrito. Admitimos igualmente a hipótese de António Telmo haver escrito “assar”.

 

INÉDITOS. 93

29-05-2020 17:40

Na Grécia, como em Portugal, havia cigarras [1]

 

Basta a existência da palavra “Tio” na língua portuguesa para se ter por evidente a formação grega do nosso povo. “Tio” provém de “Theios” – o elemento divino da família. Não é uma palavra erudita; exprime uma relação popular de parentesco. Há quem, com certa probabilidade, defenda a origem grega da língua portuguesa.

Quando lemos as peças de Aristófanes, as revistas do Parque Mayer da Antiguidade Clássica, a “Apologia de Sócrates” onde é manifesta a “inveja” como a virtude nacional dos gregos, ou então o episódio de Xantipa, furiosa com as conversas filosóficas do marido, não podemos deixar de ficar estupefactos perante a imagem que os alemães difundiam da “doirada Hélade” das colunas dóricas e eólicas, o país da filosofia! Verdadeiramente de filosofia só havia a Escola de Platão e conhece-se bem como Aristófanes ridiculariza Sócrates, aplaudido por todos os intelectuais desse tempo que se rebolavam grosseiramente cheios de gáudio nos seus assentos. Os grupos nas grandes praças, as intermináveis conversas, os negócios e as intrigas podemos hoje vê-las em qualquer largo de qualquer cidade de província ou ali no Rossio ou na Avenida de Roma. Sócrates e Fedro reflectiam sobre “retórica” e o “amor” junto a um ribeiro, ao som adormecente das cigarras. Na Grécia, como em Portugal, havia cigarras.

No que diz respeito à proveniência [d]a língua portuguesa, não se vê bem por que, por exemplo, os artigos não terão derivado de o, n, oi, ai, porque os gregos possuíam artigos e os romanos não. Com um pouco de astúcia toda a língua portuguesa poderia derivar do grego.

O leitor indigna-se?

Raciocine connosco por um momento.

Se cada língua é um sistema, a dedução de outro sistema terá de obedecer a leis de transição mais ou menos fixas. As diferenças são sempre as mesmas, se num e noutro sistema as “constantes” guardam a mesma distância. Fazer uma língua derivar de outra é uma questão de paciência e de propaganda.

 

António Telmo         



[1] Nota do editor – o título é da nossa responsabilidade.

 

INÉDITOS. 92

23-05-2020 18:32

Carlos Castaneda[1]

 

Um dos acontecimentos mais importantes dos últimos dez anos foi, sem dúvida, a publicação dos quatro livros de Carlos Castaneda, que descrevem a iniciação do jovem americano nos mistérios índios, em pleno século XX. Um bruxo, um iniciado, um “homem de conhecimento” transmite pela primeira vez a um branco, a um jovem que não é índio, a misteriosa sabedoria antiga dos mexicanos, cuidadosamente ocultada e preservada dos invasores espanhóis, envolvendo-o numa experiência perigosíssima que, de grau em grau iniciático, o conduz até aos confins da vida e da morte.

A transmutação das aparências naturais das coisas e dos seres, o contacto directo com o mundo das formas subtis, o poder de bilocação e de invisibilidade, o desdobramento da personalidade, a separação e objectivação do próprio corpo, a dissolução e integração dos elementos físicos e psíquicos numa forma de consciência superior, tudo isso que conhecemos apenas pelo testemunho, sempre duvidoso, dos ocultistas ou pelas histórias adultas contadas às crianças, aparece ali nos livros de Castaneda rodeado de um rigor que quase diríamos científico se não fosse muito mais do que isso, na forma tão impressionantemente próxima de um diário, tão evidente e demonstrativa que certamente não há ninguém que leia esses livros sem ficar ferido de espanto ou, pelo menos, de inquietantes dúvidas. As pessoas incultas ou de cultura primitiva acreditam, em geral, nestas coisas, mas os sábios costumam pô-las de parte demasiado depressa. O sábio é o conquistador espanhol do México, representante de uma civilização superior e que age em nome da matemática e de Cristo. Isto não obstante serem os quatro Evangelhos o correspondente hebraico dos quatro livros de Castaneda.

O que mais surpreende, porém, é a falta de seriedade de filósofos responsáveis na reflexão dos chamados fenómenos ocultos. Já me referi a eles, a propósito de Joseph de Maistre. Exige-se que esses fenómenos não sejam uma interpretação da realidade ou que, então, sejam determinadas, com todo o rigor kanteano da ciência do espírito que é a filosofia, as formas a priori da sensibilidade transcendental. Porquanto o que também nos ensina o quádruplo livro de D. Juan é que a natureza (Heraclito dizia que ela gosta de se esconder) deixou de aparecer ao homem quando se desenvolveram nele as formas a priori da sensibilidade periférica – o espaço, o tempo e o número. Um linguista americano, Lee Whorf, já muitas vezes referido neste livro, pensa que não são formas universais, como se prova pela análise das línguas ameríndias, mas que vieram transportadas nos carros de fogo das línguas indo-europeias.

Defendia Haman, um alemão colérico e indomável adversário de Kant, que a poesia é «a língua maternal do género humano». Ninguém ignora análoga posição do italiano Vico. Todavia, se a tese é aceite por alguns (outros preferem a que refere a origem das línguas ao trabalho) é aceite na condição de considerar-se a poesia uma forma ilusória de conhecimento, que deixa de fora a realidade – o mundo objectivo – e representa o primeiro passo na conquista histórica do mundo da subjectividade.       

 

António Telmo



[1] Nota do editor – o título é da nossa responsabilidade.

 

VOZ PASSIVA. 89

19-05-2020 21:05

Revisitação de Viagem a Granada

Eduardo Aroso

Creio estar fora de questão dizer-se, com o automatismo habitual do “pensamento que não pensa”, que tal obra de António Telmo é melhor do que uma outra sua, pois fazê-lo seria obviamente negar a completude da sua individualidade. Se uma obra existe é porque reflecte uma faceta que o autor intencionalmente quer dar a conhecer. E quantas vezes nos surpreende um criador com a estranha diversidade do seu universo! Também Ricardo Reis nos convidou a ser «plural como o Universo».

Não é este o momento mais propício para desenvolver o tema da astrologia na obra de Telmo, mas também aqui a surpresa não teria sido menor, fosse para o público que em 1977 leu História Secreta de Portugal (onde surge o horóscopo de Portugal, traçado pelo autor de Mensagem, mais tarde analisado em outra obra de Telmo O Horóscopo de Portugal), ou no seio da corrente da filosofia portuguesa pelo tema que, depois de Pessoa, estava em repouso. Não fosse a tremenda mensagem dessa obra de Telmo (porque nela além da astrologia há os meandros da História, do Símbolo e do Mistério, desocultados e simultaneamente ocultos), o filósofo de Estremoz teria sido colocado num lugar de trans-heterodoxia!  

Vem isto a propósito do texto hoje colocado na página «António Telmo. Vida e Obra», que me recordou de novo Viagem a Granada, livro que o autor me ofereceu com uma dedicatória não menos generosa e pela qual – como numa tríplice operação – eu viria a confirmar o que já outro filósofo e poeta tinha chamado: «afinidades electivas». O meu primeiro (re) encontro, face a face com Telmo, deu-se em Alenquer, no final dos anos 90, nessa terra também palmilhada pela Rainha Santa Isabel. Com as mãos sobre os meus ombros, o filósofo falou-me, entre outros assuntos, do «entusiasmo», e eu meio distraído até então, fixei bem que entusiasmado é estar cheio de Deus.

 Só quando cheguei a casa mergulhei no que tinha acontecido: António Telmo, entre várias pessoas que havia no local, deu-me atenção! O suposto – o que, com imensa alegria, não deixei de fazer - era que eu ali tivesse ido para ouvi-lo e apertar-lhe a mão. Da primeira leitura, cinco capítulos entraram logo em mim, como água fresca em dia de Verão: Teoria da Imaginação de Álvaro Ribeiro, Esotérico e Exotérico, Oarística, O Génio da Língua Portuguesa e António Quadros, A Lua e a Primavera. Neste último, Telmo diz que Vasco da Gama Rodrigues [lembram-de da sua obra O Cristo as Nações?] fez o horóscopo de António Quadros e que este «viu com incómodo que ele o caracterizava como um espírito lunar. E não se libertou desse desgosto mesmo quando outros astrólogos lhe lembraram que a Lua é o espelho do Sol e lhe mostraram que a conjunção de tantos astros no mesmo lugar do horóscopo era o sinal de um destino superior. Morreu exactamente na hora em que teve início a Primavera de 1993, ali onde a roda do tempo recebe o impulso da luz que o liberta do nocturno Inverno». Não é de crer - salvo melhor conhecimento deste particular - que António Quadros andasse a correr astrólogos para conhecer melhor o seu destino, pelo que talvez não seja difícil adivinhar quem terá sido o discreto mas não secreto astrólogo que lhe transmitiu que «a conjunção de tantos astros no mesmo lugar do horóscopo era o sinal de um destino superior». Não lemos todos também Portugal, Razão e Mistério?

 

19-5-2020

DOS LIVROS. 64

18-05-2020 18:22

Levaram luz pr’a onde reina a treva

 

Levaram luz pr’a onde reina a treva

Insensíveis como se nada houvesse.

Tanto lhes faz acácia, rosa ou esteva

Que segredo seja com c ou s.

 

Trabalham agora na Internet.

Sua dimensão é a de um computador

Que manda para o mundo o diabrete

E as suas cinco pontas de furor.

 

Sentado na cadeira de Salomão, Satã ri

Tem a seus pés o mundo como o fez.

Porém o Outro, o do Yod e do I

 

Aquele Mundo que realmente é três

Recolheu-se à espera. Está ali

Onde o infinito se recolhe em si.

 

António Telmo

 

(Publicado em Viagem a Granada seguida de Poesia, 2016)

DOCUMENTA. 08

18-05-2020 18:03

Que, por volta de 1993, O Encoberto foi um dos nomes possíveis (Portugal e Átrio sendo os outros) de uma revista que António Telmo e alguns membros do seu círculo procuraram concretizar, já se sabia. Agora, o espólio télmico veio revelar que, cerca de dez anos antes, o título Encoberto havia sido dado a um  projecto de revista, segundo parece totalmente idealizado e delineado por Telmo. É o que o sumário transcrito de um dos proverbiais cadernos de apontamentos do filósofo, que agora se publica, permite inferir. Nada se sabe sobre quem e com que escritos colaboraria na publicação. Mas, pelos temas e tópicos alinhados no papel, fica-se com uma ideia aproximada do que poderia vir a ser o periódico que, numa fase absolutamente incipiente, se esboçava.

      

Lima de Freitas, Estudo para D. Sebastião

Museu Nacional Grão Vasco, Viseu

 

____________

 

Iº Número

 

 

ENCOBERTO

Revista católica de filosofia portuguesa

 

Propósito

 

O martinismo de Pascoal Martins (Arte de Filosofar e o Encoberto)

 

Diferenças entre Portugal e Espanha (a filosofia do cristão-novo).

 

A doutrina alvarina dos sexos e o mistério da Cabala

 

Dante da nossa perspectiva

 

O conceito de barroco em José Marinho

 

Tendências actuais da filosofia portuguesa na sua relação com o catolicismo (Pinharanda Gomes).

 

Os Serões de São Petersburgo

 

Portugal e a França (Balzac e Gérard de Nerval; Paul Claudel; Huyssmans, Barbey d’Aurevilly e Léon Bloy). Alemanha e Inglaterra (o protestantismo)

 

Contra a interpretação francesa da Igreja Católica. O conflito moderno. Os Positivistas e A Arte de Filosofar.

 

A conversão de Leonardo Coimbra. O dogma da Encarnação do Verbo.

Textos de Bruno, Joseph de Maistre, Álvaro Ribeiro, Leonardo e José Marinho, e de Agostinho da Silva.

 

A Prece de Fernando Pessoa. Comentário.

 

Crítica de livros (tomada de posição pensante…)

“O Papa e A Inquisição Espanhola”, tradução de Pinharanda Gomes.

 

Comemorações do Centenário do Nascimento de Leonardo Coimbra.

 

“A Filosofia Hebraica” de Pinharanda Gomes

“Gramática Secreta da Língua Portuguesa”

“Exaltação da Filosofia Derrotada” de Orlando Vitorino

“Confissão de um homem religioso”, de José Régio

“O Sebastianismo” de António Quadros

 

A condenação pelo patriarcado das actividades em Portugal da Igreja de Lefèvre.

 

As categorias de Aristóteles à luz da Kabbalah

 

A teoria alvarina do ensino e a teoria marxista.  

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